(253) Grandes controvérsias
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Não se compreende para se acreditar, mas, ao contrário, acredita-se para se compreender.
Santo Anselmo x Gaunilo de Marmoutier, meditação sobre a existência e essência de Deus.
Uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo ser pensada e não ser pensada.
Tal como na Idade Média não havia alternativa para um pensamento fora de Deus, também agora nos querem fazer crer que não há alternativa fora do sistema económico-financeiro vigente. Os argumentos utilizados são os mesmos.
As grandes controvérsias dos nossos tempos andam quase todas elas sempre ligadas aos LR (livros de rosto, que em português se diz FB, Facebook), Instagram, apresentações em formato Conversas do Edu (Ted Talk), não se imaginando já sequer que elas se possam verificar fora desses meios de promoção e contaminação, a nível de imprensa escrita ou visualmente falada como na televisão.
Quanto aos assuntos em discussão ou apresentação vão variando alternadamente entre o maior número de câmaras que tornarão os telemóveis mais ou menos espertos, a necessidade de irmos a Marte, os russos que influenciam as nossas eleições, os chineses que tudo querem copiar e controlar, a Rainha de Inglaterra e família, quem vai ganhar o campeonato de qualquer coisa, se o Presidente vai ou não concorrer, o aquecimento global que nos traz frio, os carrinhos elétricos, os sacos de plástico, os preservativos de papel, as mulheres e homens que foram à penthouse dos produtores para datilografar guiões de filmes, finalmente os generais que estão a ser mortos e vão continuar a serem mortos (eufemismo para assassinados) o que parece ser mais democrático (já não são só os soldados, todos agora o podemos ser), as manifestações dos meninos e meninas que não querem herdar um mundo aquecido em que já se veem a trabalhar até ao fim da vida sem terem emprego nem horário de trabalho nem ar condicionado, etc.
Muito menos se consegue imaginar que quaisquer tipos de controvérsias pudessem ter tido lugar em épocas como a da ainda chamada de Idade Média, onde nem eletricidade havia, muito menos internet e telemóveis. Nem tipografia.
E, contudo, sem essa época os nossos tempos em que vivemos não teriam sido possíveis. Do progresso da agricultura, dos currículos escolares, das centenas de universidades, da recolha e cópia das grandes (e pequenas) obras nos mosteiros e milhares de igrejas, onde muito foi preservado ou iniciado. Muitas grandes e importantes obras foram escritas nesse tempo. E, muitas grandes e importantes controvérsias aí tiveram lugar. Como, por exemplo, esta controvérsia tida no século XI, que opôs Santo Anselmo (1033 – 1109) a Gaunilo de Marmoutier.
Quando alguns monges do mosteiro de Bec pediram a Santo Anselmo, que escrevesse um modelo de meditação sobre a existência e essência de Deus, no qual tudo se pudesse encontrar nas razões da fé, para que não precisassem dos argumentos da Autoridade ou da Escritura, Santo Anselmo começou por alinhar num opúsculo (“Exemplo de meditação sobre a razão e a fé”) várias provas da existência de Deus.
Na época, encontrava-se acesa a controvérsia entre os chamados “dialéticos” e os “anti-dialéticos”. Contra os dialéticos, Santo Anselmo afirmava o pilar da fé, recusando-se a submeter as Escrituras à dialética: a fé era o dado primeiro de que tudo devia partir. Pelo que, segundo Anselmo, não se compreende para se acreditar, mas, ao contrário, acredita-se para se compreender.
Já contra os anti-dialéticos, Santo Anselmo afirmava que não havia qualquer inconveniente em compreender racionalmente o que se acreditava, porque sendo a verdade de tal maneira vasta e profunda, nenhum mortal a poderá minimamente esgotar.
Pelo que a ordem a observar na procura da verdade seria: primeiro, acreditar nos mistérios da fé antes de os discutir pela razão; segundo, esforçar-se por compreender no que se acredita.
Entretanto, Anselmo começa a pensar na possibilidade de encontrar apenas um único argumento que não necessitasse de nenhum outro, para demonstrar a existência de Deus (1, p.7). Finalmente um dia, ao meditar no coro, fez-se-lhe luz:
“Deus é aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado”.
Encontrado e amadurecido o conceito, resolve escrever outro opúsculo, a que deu o título, “A fé em busca da inteligência”. Tanto este opúsculo como o anterior não levavam sequer nome de autor, só que, devido ao grande interesse e difusão dos mesmos, viu-se obrigado pela autoridade apostólica a inscrever neles o seu nome e a dar-lhes títulos mais convenientes: assim aparecem respetivamente o “Monologion” (solilóquio) e o “Proslogion” (alóquio).
É no capítulo II do “Proslogion” que Anselmo desenvolve o seu argumento, “Que Deus existe verdadeiramente”:
“Nós acreditamos, com efeito, que tu és “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado”. Será que não existe uma tal natureza, uma vez que o “insensato disse no seu coração: Deus não existe?” Mas certamente este mesmo insensato, quando ouve isto que eu digo— ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’— compreende o que ouve, e o que ele compreende existe na sua inteligência, mesmo se ele não compreende que isso existe na realidade. Porque uma coisa é que certa realidade esteja no intelecto, outra é compreender que tal realidade existe….
Mesmo o insensato está, pois, convicto de que ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’ existe pelo menos no intelecto: porque ele compreende-o quando o ouve, e tudo o que é compreendido existe no intelecto. Mas, sem dúvida, ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado’ não pode existir unicamente no intelecto. Se, na verdade, existe pelo menos no intelecto, pode pensar-se que exista também na realidade, o que é ser maior.
Se, pois, ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado’ exista apenas no intelecto, então ‘aquilo mesmo maior do que o qual nada possa ser pensado’ é ‘algo maior do que o qual algo pode ser pensado’. Mas isto, como é evidente, é claramente impossível. Existe, pois, sem a menor dúvida, ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’ tanto no intelecto como na realidade.”
Gaunilo, monge beneditino da abadia de Marmoutier em Tours, contemporâneo de Anselmo, critica este argumento, num breve opúsculo, com o sugestivo e apropriado título “Livro em Favor de um Insensato” (Pro Insipiente).
Convém dizer que Gaunilo não era um adversário de Anselmo: ambos defendiam a negação da intuição intelectual de Deus, tendo apenas visões distintas no que se referia à possibilidade da razão, sem qualquer auxílio, poder pensar o transcendente. Gaunilo negava tal possibilidade.
Basicamente, as objeções de Gaunilo tinham que ver com o considerar que ‘algo maior do que o qual nada possa ser pensado’ não estaria no intelecto, e que não era possível encontrar existência que lhe correspondesse. Eis o que ele escreve:
“(…) que aquela entidade seja tal que, uma vez pensada, não possa deixar de ser apreendida por um intelecto, certo da sua indubitável existência, deve ser-me provado por um argumento irrefutável, não porém por este segundo o qual isto já está no meu intelecto quando, uma vez ouvido, o entendo, Ora, neste mesmo intelecto, ainda julgo poder haver quaisquer outras incertezas ou mesmo falsas, ditas por alguém cujas palavras entendesse e ainda mais se, como acontece várias vezes, acreditasse nelas, eu que nisto ainda não acredito” (Pro Insipiente, ponto 2).
Ou seja, não é só por estar no intelecto que faz com que exista na realidade. E mesmo para estar no intelecto, não basta só pensá-la, temos que entendê-la.
Põe ainda em causa o entendimento e coerência da expressão que designa Deus. E argumenta com o exemplo de uma ‘Ilha Perdida’, que só pelo facto de se poder pensar nela, daí se poderia depreender a sua existência.
Anselmo responde às críticas num opúsculo, a que chamou “Livro Apologético” (Responsio Editoris), explicitando e expandindo a argumentação exposta no “Proslogion”. Começa logo por advertir Gaunilo ao dizer que se propõe responder “ao católico” e que lhe pede, portanto, a sua “fé e consciência” na crença de que Deus existe.
E entra diretamente no assunto, afirmando:
“sem duvidar: se ao menos se pode pensar que existe (que aquilo maior do que o qual nada se pode pensar), é necessário que exista. Efetivamente, não se pode pensar que exista senão como não tendo começo. Pelo contrário, tudo aquilo que pode pensar-se que existe, mas de facto não existe, é mediante um começo que pode pensar-se que existe. Logo, -aquilo maior do que o qual nada se pode pensar- não se pode pensar que existe, e não existir de facto. Por conseguinte, podendo-se pensar que existe, necessariamente existe.” (Resp., p.124).
E se:
“realmente se pode ao menos pensar, é necessário que exista. Com efeito, ninguém negando ou duvidando de que exista alguma coisa – maior do que o qual nada se pode pensar-, nega ou duvida de que, se ele existisse, não poderia deixar de existir tanto na realidade como no intelecto” (Resp. p. 124).
Sobre a afirmação de Gaunilo de que mesmo que exista no intelecto não se poder de aí concluir que se entenda, Anselmo vai explicar pela contradição da não-existência (não contradição), pois:
“se – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, existe somente no intelecto, isso mesmo é aquilo, maior do que o qual alguma coisa se pode pensar. Mas, evidentemente, em nenhum intelecto, aquilo, maior do que o qual alguma coisa se pode pensar, é – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar. Não é evidente pois que se tem de concluir: -aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, se existe nalgum intelecto, não existe somente no intelecto? Na verdade, se existe somente no intelecto, é ao mesmo tempo aquilo, maior do que o qual alguma coisa se pode pensar. Ora isto repugna”, (Resp. p.126.).
Anselmo, prevendo já alguma dificuldade de compreensão relativa à expressão ‘algo maior do que o qual nada pode ser pensado’, escrevera que:
“de uma maneira diferente é pensada uma coisa quando se diz a palavra que a significa; de outro modo diferente, quando é compreendido aquilo mesmo que a coisa é. Da primeira pode pensar-se que Deus não existe, mas da segunda, de modo nenhum <se pode pensar que Deus não existe>. Ninguém pode, seguramente, compreendendo o que Deus é, pensar que ele não existe, ainda que possa dizer estas palavras no coração sem nenhuma significação, ou com qualquer estranha significação” (Pros., cap.IV,p. 14).
Depois, vai demonstrar como é possível apreender a existência real do ‘algo maior do que o qual nada pode ser pensado’, começando por explicar que:
“nada impede que se fale do inefável, embora não se possa precisar o que é isso que denominamos inefável. Semelhantemente, pode pensar-se o impensável, embora não possa pensar-se o que vem a ser isso. Do mesmo modo, quando alguém profere – aquilo, maior do que o qual nada pode ser pensado-, o que se ouve pode indubitavelmente ser pensado e inteleccionado, embora essa realidade, maior do que a qual nada se pode pensar, não possa ser pensada nem inteleccionada. De facto, mesmo se alguém é tão insipiente, que afirme não existir – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, não será tão impudente que declare não poder inteleccionar ou pensar o que diz.” (Resp. p. 104.).
Dada a resposta, vai ainda mais longe para demonstrar que esses conceitos só podem ser apreendidos negativamente:
“Quem quer que negue existir uma realidade, maior do que a qual nada se pode pensar, intelecciona sem dúvida e pensa a negação que formula…Ora uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo ser pensada e não ser pensada. Logo, quem pensa – aquilo, maior do que o qual nada pode ser pensado-, não pensa que isso pode não existir, mas que ‘não pode não existir’.”
Embora na resposta de Anselmo, ele dedique o capítulo III ao problema da ‘Ilha Perdida”, é contudo no capítulo V (‘O Maior, e o Maior Pensável’) que o resolve, aproveitando um aparente e inexplicável erro de interpretação de Gaunilo: é que este, assenta todo o seu episódio da ilha perdida confundindo a fórmula de Anselmo – ‘algo maior do que o qual nada pode ser pensado’-, como se ela fosse ‘o maior de todos’.
Diz Anselmo:
“Em primeiro lugar, repetes frequentemente que eu afirmo o seguinte: aquilo que é a maior de todas as coisas existe na inteligência, e se existe na inteligência, existe também na realidade; de outro modo, a maior de todas as coisas não seria a maior de todas as coisas. Ora, em tudo quanto disse, não se encontra em parte nenhuma tal argumentação.”
Depois, vai ao cerne do problema, e escreve:
“Na verdade, o que existe pode não existir, e o que pode não existir pode pensar-se que não existe. Mas tudo aquilo que se pode pensar que não existe, se existe não é – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar; e se não existe, evidentemente que se existisse, não seria –aquilo maior do que o qual nada se pode pensar”, e, virando o argumento ao contrário “se não é possível provar de igual maneira, a respeito do que se diz ser –a maior de todas as coisas- o que a respeito de si, por si mesmo prova –aquilo, maior do que o qual se pode pensar- injustamente me censuraste de ter dito o que não disse, e é tão diferente do que eu disse. Mas, se é possível prová-lo, ao menos depois de outro argumento, nem neste caso devias censurar-me de haver dito que se pode provar… Com efeito, de maneira nenhuma se pode inteleccionar – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, senão como aquilo que é a única coisa maior que todas.”
Anotações breves:
Gaunilo não está a fazer um ataque pessoal a Anselmo; pelo exposto, está é a negar, que o conceito sirva para explicar o desconhecido, defendendo assim a impossibilidade de conhecimento racional de Deus. Ao considerar Deus como “a maior de todas as coisas “, coloca-o como supremo na ordem do real, o que torna possível pensar que, ou não exista (tal como para os entes que lhe estão abaixo), ou que possa existir um ser que lhe seja superior, mesmo que não exista.
Ou seja, dessa expressão “a maior de todas as coisas”, não se segue necessariamente todos os atributos divinos não tenham a mesma força que a expressão anselmiana.
No respeitante a Anselmo, o “insuperável da ordem do pensável”, só fará sentido no racional, se admitirmos que a dupla existência do ser, no intelecto e na realidade, é maior do que apenas se for no intelecto, e que a existência necessária é maior que a contingente.
Acima de tudo, Santo Anselmo mantêm-se fiel ao seu pensamento, que, como escrevemos no início, impunha a fé como dado primeiro de que tudo devia partir: não se compreende para acreditar, mas, ao contrário, acredita-se para se compreender.
Gaunilo, tão preocupado com os problemas inerentes à linguagem, à relação entre as palavras e a realidade que elas pretendem representar, aparentemente ignorou a razão principal que levou Anselmo a utilizar o “algo maior do que o qual nada pode ser pensado”: exatamente por um problema de linguagem, neste caso o da “limitação da linguagem humana para dizer Deus”.
De certa forma, tal como na Idade Média não havia alternativa para um pensamento fora de Deus, também agora nos querem fazer crer que não há alternativa fora do sistema económico-financeiro vigente. Os argumentos utilizados são quase os mesmos.
Bibliografia Mínima:
SANTO ANSELMO, “Argumento endonoético”, in Opúsculos Selectos da Filosofia Medieval, 4º ed, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2004.
SANTO ANSELMO, “Proslogion seu Alloquium de Dei existentia”, in Textos Clássicos de Filosofia, tradução de José Rosa, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008, ou na (http://www.lusosofia.net/textos/anselmo_cantuaria_proslogion.pdf).
COPLESTON, Frederick, A History of Philosophy, vol II, Medieval Philosophy, Image Books, Doubleday, New York, 1993.
GILSON, Étienne, La Philosophie au Moyen Age, des Origines Patristiques a la Fin du XVI Siécle, 2ª ed., Payot, Paris, 1962.
HIMMA, Kenneth Einar, “Ontological Argument for the Existence of God”, Internet Encyclopedia of Philosophy, (htpp://www.iep.utm.edu/ont-arg/print/).
S. A., “Ontological Arguments”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, http://plato.stanford.edu/entries/ontological-arguments/