(252) As pequenas histórias têm moral
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As histórias ajudam-nos a atribuir significado áquilo que sem elas não passaria de uma série de acontecimentos aleatórios.
Esta é a maneira como gostamos de pensar que o mundo funciona: se nos esforçarmos, seremos recompensados.
O esforço, a determinação e o entusiasmo, nem sempre são recompensados.
Uma das razões porque todos nós gostamos tanto de histórias ou contos, é porque elas nos ajudam a atribuir significado áquilo que sem elas não passaria de uma série de acontecimentos aleatórios, conseguindo comunicar-nos ideias complexas sobre a forma como vemos o mundo e como ele funciona, mesmo sem disso termos conhecimento, e tudo isso através de estruturas simples.
Mas, como é que reagimos quando as ideias e as narrativas dessas histórias contradigam o nosso entendimento do mundo?
Para o tentar descobrir, Travis Proulx, Steven J. Heine e Kathleen D. Vohs KD, publicaram, na revista Personality and Social Psychology Bulletin, um estudo (1) das experiências que fizeram, socorrendo-se de duas pequenas histórias que exprimem maneiras diferentes de ver o mundo, a saber, “A tartaruga e a lebre” de Esopo (620 a.C.–564 a.C.), e “Uma mensagem Imperial” de Franz Kafka.
A Tartaruga e a Lebre
“A lebre vivia a gabar-se que era o mais veloz de todos os animais. Até ao dia em que encontrou a tartaruga.
– Eu tenho certeza de que, se apostarmos uma corrida, serei a vencedora – desafiou a tartaruga.
A lebre deu uma gargalhada.
– Uma corrida? Eu e tu? Essa é boa!
– Por acaso estás com medo de perder? – perguntou a tartaruga.
– É mais fácil um leão cacarejar do que eu perder uma corrida contigo – respondeu a lebre.
No dia seguinte a raposa foi escolhida para ser a juíza da prova. Mal foi dado o sinal de partida, a lebre arrancou na frente a toda velocidade. A tartaruga não se abalou e continuou na disputa. A lebre estava tão certa da vitória que resolveu tirar uma soneca.
"Se aquela molenga passar à minha frente, basta-me só correr um pouco para a ultrapassar" – pensou.
A lebre dormiu tanto que não se apercebeu quando a tartaruga, em sua marcha vagarosa e constante, passou por ela. Quando acordou, levantou-se e continuou a correr com ares de vencedora. Mas, para sua surpresa, a tartaruga, que não descansara um só minuto, já se encontrava muito à frente, e cruzou a linha de chegada em primeiro lugar.
Desse dia em diante, a lebre tornou-se o alvo das chacotas da floresta.
Quando dizia que era o animal mais veloz, todos a lembravam de uma certa tartaruga...”
Desta conhecida pequena história de Esopo (não sobraram escritos – se os houve - de Esopo, mas mera tradição transmitida oralmente, alguma recolhida por La Fontaine, 1621-1695), normalmente tiram-se duas interpretações morais:
# Quem persiste em prosseguir o seu caminho, como a tartaruga, acaba eventualmente sempre por alcançá-lo, mesmo que à partida esteja em desvantagem face aos outros concorrentes.
# A lebre perdeu a corrida por excesso de confiança.
De qualquer forma, ambas, quer a tartaruga quer a lebre, tiveram o que mereciam devido à maneira como se comportaram.
Esta é a maneira como gostamos de pensar que o mundo funciona: se nos esforçarmos, seremos recompensados. Se não nos esforçarmos não seremos recompensados. Os preguiçosos, os que têm excesso de confiança, perdem sempre.
Uma Mensagem Imperial (2)
Trata-se da pequena história de Franz Kafka, contada no artigo anterior, e segundo a qual o Imperador pretende enviar-nos uma mensagem, mas, por mais que o mensageiro se esforce, nunca a consegue entregar.
Ao contrário de Esopo, Kafka pretendo dizer-nos que o esforço, a determinação e o entusiasmo, nem sempre são remunerados.
Da amostra realizada pelo estudo, os participantes que leram a história de Kafka perceberam-na como uma ameaça à maneira como viam o mundo, bem como à sua identidade cultural. Já a história de Esopo não lhes pareceu fazer duvidar das suas identidades culturais, nem das suas visões do mundo.
Apesar da história de Kafka ser tão verdadeira quanto a de Esopo, a verdade que ela encerra é menos agradável.
Daí a fábula de Esopo fazer para nós mais sentido do que a de Kafka, que nos parece mais absurda, inesperada, confusa e sem sentido.
Daí a preferência dos participantes pela fábula de Esopo que nos afiança todo aquele conjunto de coisas que nos faz sentir seguros, confortáveis e nos são mais familiares. É o refugio nos quadros mentais conhecidos.
Não é, pois, de estranhar a resistência sentida contra a parábola de Kafka. O que é uma pena, porquanto ela contém verdades que devíamos considerar.
1. “When Is the Unfamiliar the Uncanny? Meaning Affirmation After Exposure to Absurdist Literature, Humor, & Art” (https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0146167210369896).
2. Ver blog anterior de 22 de janeiro de 2020, “Uma mensagem imperial”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/251-a-mensagem-imperial-65839).