(249) Sobre o ressentimento na história
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Bem sei que a tua infância foi muito dura, que andaste descalço na neve a empurrar uma carroça para ganhar a tua vida. E sei que é verdade que hoje, não o posso negar, tenho uma vida muito mais confortável. Mas de que é que eu tenho de te estar reconhecido? carta de Kafka ao pai.
Na origem do ressentimento está sempre uma ferida, uma violência sofrida, uma afronta, um traumatismo. Quem se sente vítima não pode reagir por impotência. Rumina a sua vingança que não pode pôr em marcha e que constantemente o atormenta.
Todas essas mortificações da violência ligada ao tráfico negreiro ficam guardadas na memória: não têm conta as automutilações e os suicídios, as revoltas esmagadas, os assassínios.
Não há um colonizado que não pense pelo menos uma vez ao dia em instalar-se no lugar do colono.
Há uma obra do historiador Marc Ferro (Director de Estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales e codirector da revista Les Annales), que me parece ser fundamental para o entendimento, mesmo que parcial, da génese das visões históricas e da construção de memórias coletivas.
Trata-se de O ressentimento na história. Compreender o nosso tempo, onde Ferro vem chamar a atenção para as manifestações do ressentimento como contributo para a inteligibilidade da História. Pelas suas palavras “na origem do ressentimento está sempre uma ferida, uma violência sofrida, uma afronta, um traumatismo. Quem se sente vítima não pode reagir por impotência. Rumina a sua vingança que não pode pôr em marcha e que constantemente o atormenta”.
É esta existência do ressentimento que “mostra como é artificial o corte entre o passado e o presente, que deste modo vivem um no outro, tornando-se o passado um presente mais presente que o presente”.
Conhece-se o ressentimento e o desejo de vingança a nível individual: os ressentimentos que aparecem após se sofrer uma injustiça ou uma humilhação podem durar anos, dando lugar a vinganças que podem durar várias gerações ou conduzir a actos de violência individual qualificados como actos de loucura, como lemos regularmente na imprensa.
Tudo isto existe também a nível de Estados, cujo exemplo mais evidente é o da segunda guerra mundial que é muitas vezes dita como sendo resultante da humilhação que a Alemanha sofreu após o fim da primeira guerra.
Estas manifestações de ressentimento, o modo como aparecem e os seus efeitos através da História são, contudo, de difícil apreensão, até porque se mantêm latentes, mascaradas noutros fenómenos, como na luta de classes, no racismo ou no nacionalismo, podendo ainda interferir com eles.
E, para nos provar que estas manifestações de ressentimento não são só deste último século, oriundas dos fenómenos das Grandes Guerras e das descolonizações, Ferro começa por abordar o ressentimento milenar existente entre escravos e perseguidos e o tempo do aparecimento do cristianismo que, ao considerar todos os homens como sendo irmãos, vai por um lado humanizar a servidão dos escravos, mas, por outro lado vai hostilizar o poder instituído ao ponto de ser considerado como um crime, punido com a morte.
Só que a partir da altura em que o imperador se converte, logo esta mesma Igreja que guardava ressentimentos contra a autoridade imperial, vai dirigir o seu ressentimento contra os judeus, aqueles que tinham crucificado Jesus, e contra os hereges que lhe contestavam os fundamentos. O perseguido torna-se perseguidor.
Como este ressentimento perdura ao longo de séculos e se manifesta, é o que Ferro nos mostra ao falar do massacre dos judeus mortos à paulada em Jedwabe, na Polónia, em 1941: este massacre foi obra de polacos e só deles, partindo de uma iniciativa popular e espontânea, sem qualquer intervenção das tropas nazis alemãs, resultado de um ressentimento oriundo de um ajuste de contas para com aqueles que crucificaram Jesus Cristo; “Sim, ensinaram-nos na escola”, como explicou um dos assassinos.
No capítulo seguinte, Ferro vai abordar a questão do ressentimento nas revoluções. Em França, a 4 de Agosto de 1789, o medo de uma conjura aristocrática após a revolta de Paris, leva os camponeses a atacarem os castelos para lá irem queimar os documentos onde se encontravam inscritas as contribuições a pagarem aos senhores: trata-se de um acontecimento sem equivalente na história, “pois esta decisão de romper o vínculo entre propriedade feudal e propriedade tout court foi irreversível”.
Esta recusa a pagar representava apenas um aspecto do ressentimento do campesinato, porque o que ela queria era pôr termo aos atentados à dignidade. Este furor camponês contra a ordem aristocrática e os excessos do poder monárquico, são fenómenos que têm a sua origem num passado longínquo.
A palavra “ressentimento” surge em 1593 em Le Dialogue du Français et du Savoysien, associada ao descontentamento da nobreza hereditária por ver entrar burgueses para as suas fileiras. Ver poluída a identidade do grupo suscita ressentimento, desta vez na nobreza, contra os que chegaram tarde e os responsáveis pala enxertia.
O ressentimento contra os privilegiados cria condições para um furor vingativo contra tudo o que se pensasse obstar a uma regeneração integral: o campo de acção dos ressentimentos, das invejas, das vinganças, alarga-se; qualquer pessoa podia tornar-se um privilegiado aos olhos do seu vizinho. O igualitarismo passa à frente da aspiração à liberdade.
A revolução de fevereiro de 1917 na Rússia, é a resposta imediata a aspirações que as populações traziam dentro de si, atingindo todos os pontos da sociedade, daí ser considerada por Ferro como a mais integral das revoluções: “Era o mundo às avessas”.
Essa agitação fora precedida por século e meio de revoltas camponesas, que levaram que a sua ira e ressentimento se manifestassem incontidamente daquele modo. O sentimento de impotência que surge perante a impossibilidade de mudar a sociedade, irá dar origem ao aparecimento do cruzamento entre o ressentimento pessoal e o raciocínio doutrinário, que leva à negação da piedade ou generosidade para com o inimigo de classe, bem como à indiferença absoluta perante o sofrimento dos infelizes.
É focado o exemplo de Leonid Martov, social-democrata judeu, que achava que os progromes tinham o seu lado positivo, pois eram sinal de uma participação dos camponeses numa acção política, mesmo sendo contra os judeus!
Tal como em França a partir de 1792, na Rússia, após os primeiros meses da revolução de 1917, em que o ressentimento das classes populares tinha estado contido, o ressentimento e a ira popular levam ao Terror Vermelho: termos idênticos (“inimigo do povo”, “sabotagem”, “açambarcador”, “purgar a sociedade”), atrocidades cometidas, esta violência vinda de baixo ataca tudo o que representa ou encarna a antiga ordem, oficiais, notáveis, funcionários, homens e mulheres de “mãos brancas”.
O ressentimento contra os privilegiados dava lugar a um furor igualitarista. Qualquer vestígio de superioridade era suspeito e posto em causa. O poder popular que entra no aparelho de estado graças à prática política dos bolcheviques que souberam enxertá-lo, pretende controlar tudo o que emana das elites. Feita a revolução, o cidadão requisita naturalmente a totalidade dos poderes, e afasta os suspeitos. A tal ponto, que leva as massas a perderem a confiança nesses dirigentes…
Sobre maio de 1968, em França, pergunta-se Ferro, se esses acontecimentos não serão também, uma expressão de ressentimento contra as elites. Estava-se nos meados dos anos sessenta, onde aparecia uma grande clivagem entre pais e filhos, traduzindo um profundo sentimento de humilhação. Estas relações entre pais e filhos foram sempre ambíguas, expressão de um ressentimento recíproco.
Já Kafka escrevera ao seu pai que:
“Bem sei que a tua infância foi muito dura, que andaste descalço na neve a empurrar uma carroça para ganhar a tua vida. E sei que é verdade que hoje, não o posso negar, tenho uma vida muito mais confortável. Mas de que é que eu tenho de te estar reconhecido?”.
Juntando a isto a democratização do ensino que surgia aos estudantes como um logro, uma vez que a selecção rejeitava a massa dos que não eram os melhores em determinado momento, nos exames, prejudicando exatamente aqueles que tinham falta de herança cultural, tal conduziu ao desenvolvimento de uma espécie de ressentimento contra os docentes.
Movimento idêntico, antiaristocrático, surge no teatro por actores e intermitentes que não tinham sido seleccionados, numa cadeia de ressentimentos que unia diversos grupos sociais, não necessariamente marcados pela mesma cólera, mas sim por um desejo de vingança.
Sobre a Alemanha e a sua revolução contra-revolucionária que foi a do regime nazi, Ferro atribui-lhe antecedentes muito anteriores a 1918 e ao Tratado de Versailles, chamando a atenção para o que Nietzche e Scheler escreveram sobre o ressentimento na sociedade, um ressentimento que se exprimia contra a burguesia e os seus valores, o liberalismo e “os judeus que o representam”, o parlamentarismo, a exploração do homem pelo homem.
Contudo, à humilhação de ser tratado como vencido e culpado, para quem não se julga culpado e ainda por cima se julga portador de uma civilização superior, vem juntar-se o ressentimento que se exerce como um “Versailles interior” contra aqueles que assumem a situação.
Temos ainda o caso do ressentimento pessoal que Goebbels tinha contra os judeus, por, num jornal dirigido por um judeu, lhe terem devolvido artigos e não lhe terem dado emprego.
Já para Hitler não existia este ressentimento pessoal contra os judeus, mas sim contra os “judeus-bolcheviques” que poderiam perverter a identidade alemã tal como perverteram a civilização russa: combate-o enquanto revolucionário.
Cada um dos registos de anti judaísmo, a responsabilidade dos judeus nos surtos revolucionários, o seu papel económico, a internacional “sionista”, o racismo, teve o seu papel a alimentar o ressentimento dos dirigentes nazis contra os judeus.
Segundo Ferro, no momento da derrota, os alemães não exprimiram o mínimo arrependimento, nem guardaram ressentimento contra o seu bem-amado Führer, o que constitui um mistério de comportamento dessa sociedade civilizada, das mais cultas da Europa, e que pôde participar em violências e crimes nunca antes vistos na História.
No pós-guerra em França, após a partida dos Alemães, são feitas 162 prisões nos primeiros cinco dias, sendo 42 executados. Há aqui uma irrupção de ódio, de punições, de vinganças.
Uma das formas com que este ressentimento se manifestou foi a sorte que coube às mulheres que tivessem tido ligações com um alemão: o cabelo foi-lhes rapado em público, pois elas representavam a derrota do macho francês ao ter sido preferido pelo vencedor.
Já quanto aos prisioneiros franceses que tivessem agido de igual forma com as alemãs nada aconteceu. Conclui Ferro que foi o medo sentido duranta vários meses, anos, que transformou, por ressentimento, pessoas normais em feras: o ressentimento não tem pátria.
No capítulo referente à memória nacional, que Ferro considera um viveiro de ressentimentos, apresenta o caso da Polónia como exemplo extremo de uma nação privada do seu Estado, por cupidez dos seus vizinhos.
Cinco vezes vítima de partilha, 1772, 1793, 1795, 1815 a 1918 desaparece como Estado soberano em 1939. Logo a seguir à guerra, era grande o ressentimento dos polacos contra os carrascos alemães (6 milhões de mortos, elites massacradas), só que esse ressentimento vai ser substituído pelo ressentimento contra a URSS, pelas execuções em massa e a manipulação histórica que se lhe seguiu.
Após o fim do regime soviético em 1989, os Polacos afirmavam, com razão, que tinha sido o seu combate (o Solidariedade) que mais contribuiu para essa revolução, pelo que a Europa lhes devia de estar reconhecida. Só que a Europa festejou Gorbatchev! De novo se alimenta um profundo ressentimento em relação à Europa.
Refere depois o caso da França-Inglaterra, irmãs siamesas na sua origem, oriunda do conflito entre as casas Plantagenetas-Angevinos contra Capetos-Francilianos, as questões religiosas, a rivalidade colonial, a ajuda francesa à emancipação Americana, a revolução industrial triunfante da Grã-Bretanha, a derrota francesa em Junho de 1940, a destruição da armada francesa pelos Ingleses para evitar que fosse tomada pelos Alemães, o plano Monnet, o plano Schuman para a nova Europa, o euro e a libra… Invejas ou ressentimentos?
Já entre Alemanha e França assiste-se a uma alternância de ressentimentos: a anexação de um pedaço da Alsácia durante a guerra dos Trinta Anos (1618-1648), Napoleão impondo a vassalagem, anexação e divisão da margem esquerda do Reno, a confederação do Reno em 1806, a Revolução Francesa, a Prússia de Bismarck, a “anarquia à francesa” de 1848, a guerra de 1914-1918, a II Guerra Mundial.
Na atualidade já não é o antigo Reich que aparece como ameaçador, são os Americanos ou os então soviéticos que o parecem. Mesmo assim, a quando da reunificação da Alemanha em 1989, Mauriac comentou que gostava tanto da Alemanha que preferia várias!
Passa de seguida para o problema colonial que diz não ter ficado encerrado com as independências, nem com os enormes movimentos de população que as acompanharam. Para Ferro, o ressentimento acumulado do passado está tão presente para essas populações como o presente, servindo muitas vezes até de estímulo para esse presente.
Estabelece como um dos percursos do ressentimento o do antigo tráfico de escravos, inicialmente feito pelos árabes, depois pelos europeus no atlântico, e continuado ainda hoje em dia. Todas essas mortificações da violência ligada ao tráfico negreiro ficam guardadas na memória: não têm conta as automutilações e os suicídios, as revoltas esmagadas, os assassínios.
Foi preciso esperar muito para que a escravatura fosse abolida e explicitamente condenada como crime contra a humanidade. Nos Estados Unidos, logo a seguir à Primeira Guerra, em 1919, é linchado o maior número de negros no Sul: 70. E muitos deles salvaram vidas, trabalharam em ambulâncias e até vestiam fardas da sua unidade militar. Em 1941 os negros são excluídos de um banquete de apoio ao esforço de guerra.
Esta expectativa impotente de se pertencer efectivamente a uma nação aumenta o ressentimento e leva aos negros americanos ao recurso de aderirem ao Islão com os Black Muslims (“o tempo dos brancos acabou…para que havemos de nos integrar no seio de moribundos?”).
O assassinato de Malcolm X e de Luther King, vai levar a uma violência organizada, que não vai resolver o problema. Progressivamente, vai-se assistir à transformação desse ressentimento em orgulho triunfante com o Black is beautiful.
Com os Black Panthers é reavivada a ideia de receber uma indeminização pela escravatura de que tinham sido vítimas, ideia esta que vai ser utilizada um pouco por todo o mundo, dos Sioux aos aborígenes da Austrália.
Enquanto não lhe é permitido agir, o homem do ressentimento rumina uma vingança imaginária. Esta característica encontra-se nos colonizados: em Nehru relativamente aos Ingleses, em Ho Chi Min relativamente aos Franceses. Dito de outra forma “não há um colonizado que não pense pelo menos uma vez ao dia em instalar-se no lugar do colono”.
Fazendo uma comparação, Ferro nota que uma ocupação estrangeira em França de apenas quatro anos, continua, sessenta anos depois, a perturbar os Franceses; na Argélia, os habitantes estiveram ocupados mais de cento e vinte anos e ainda com a memória de já terem sido antes ocupados pelo estrangeiro, os Romanos!
Além disso, os Franceses apoderaram-se de terras, o que leva a que o ressentimento dos colonizados se torne muito mais vivo, como se vê por toda a África, e como é o caso de Israel visto pelos Árabes da Palestina.
Outra causa importante que explica a natureza e o grau de ressentimento para com o colonizador é a sua relação com a identidade dos colonizados. O “indígena”, muitas vezes desenraizado e excluído do mundo dos Europeus, sem grandes hipóteses de promoção social, sensível ao racismo vulgar, alimenta sem cessar o seu ressentimento.
O ressentimento que os indígenas da Argélia manifestavam contra o colonizador era idêntico ao dos colonizados da Índia, da Indochina, do Vietname.
Mas no Islão, tal ressentimento era muito mais profundo, pois tinha a ver com uma humilhação oriunda do facto de eles terem começado por dominar aqueles que depois os haviam colonizado. Conservam na memória o tempo em que os impérios herdados da conquista árabe dominavam o mundo do Ocidente ou do Oriente.
Repare-se que, quando em 2001, Bin Laden reivindica a sua acção, fala de “oitenta anos de humilhação dos povos muçulmanos” numa alusão à extinção do califado por Ataturk. Para Ayman al-Zawahiri, braço direito de Bin Laden tratava-se de “vingar por fim a expulsão dos muçulmanos de Espanha”, o que talvez explique os atentados de Madrid em 2004.
Causa maior foi a derrota, em 1948, contra Israel, da coligação entre o Egipto, a Jordânia, a Síria, o Iraque e o Líbano contra as forças de um Estado “liliputiano” que nem sequer tinha um exército organizado. O desespero desta humilhação foi mais importante do que todas as perdas materiais. A recusa intransigente de uma parte dos Palestinos em reconhecer Israel e a dos Israelitas em pôr fim à anexação e colonização dos territórios conquistados em 1967 é o fermento do conflito que mais alimenta o ressentimento recíproco dos protagonistas.
Como conclusão, Ferro clarifica, dizendo que o ressentimento nasce de uma humilhação ou de um traumatismo que pode ser ocasionado pela extracção social, pela fraqueza física, de uma maneira geral por um complexo de inferioridade.
O ressentimento não está necessariamente associado a uma reivindicação precisa, nem é apanágio daqueles que identificamos como vítimas (escravos, classes oprimidas, povos vencidos, etc.). E pode afectar não apenas uma das partes em causa, mas as duas. Esta reciprocidade é um dos viveiros que lhe asseguram a perenidade. Significa isto que o ciclo dos ressentimentos nunca terá fim?
Enquanto não se estabelecerem pazes duráveis fundadas sobre o reconhecimento dos sofrimentos passados, o perdão, a reparação e o respeito mútuo, é muito provável a inevitabilidade de uma guerra de grande envergadura que virá a acontecer quando as pequenas guerras actuais já não forem suficientes para conter a violência das nações, servindo-lhes de válvula de escape.
FERRO, Marc – O ressentimento na história. Compreender o nosso tempo. Lisboa: Teorema, 2009.