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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(243) Filhos, para quê? Os antinatalistas

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Não fui eu que tomei a decisão de nascer, Raphael Samuel.

 

Melhor do que ele ter nascido teria sido o aborto. Pois em vacuidade chegou e em escuridão partiu; E em escuridão o seu nome ficará escondido; E não viu nem conheceu o Sol, Eclesiastes (6:3-4).

 

Nunca ter nascido é o melhor / Mas se tivermos de ver a luz, o segundo melhor / É o rapidamente regressar para donde viemos, Sófocles.

 

Penso que a consciência humana é um trágico engano na evolução, dito pelo detetive Rustin Spencer "Rust" Cohle (Matthew McConaughey) em “True Detective”.

 

A vida é um breve rasgão de luz entre duas eternidades de trevas, Vladimir Nabokov.

 

 

 

 

Não sei se têm notado, mas a quantidade de anúncios, incentivos culturais, estéticos, psicológicos, e outros da nossa muito sabida sociedade, relativos aos muito pequenos espaços de habitação tipo caixotão, evidentemente com todas as comodidades, o que significa com televisão e wi-fi, têm vindo a aumentar exponencialmente.

O bom, ecológico, humano, prático, é agora viver-se em espaços mínimos (https://uk.yahoo.com/news/billionaire-219-tiny-flats-low-070049051.html) em que se abrirmos os braços conseguimos ter tudo à nossa disposição, conceito que, de certa maneira já Jacques Tati explorara no Mon oncle, quando a dona da moderníssima e higiénica casa do peixe-repuxo a explicava aos convidados: “Tudo comunica”. No caso vertente, “Tocamos em tudo”.

 

Longe vão os tempos em que expúnhamos a desumanização que as sociedades orientais demonstravam ao exibirem hotéis com buracos nas paredes, caixões sofisticados onde os trabalhadores (os empregados, evidentemente) passavam a noite. Civilizações, culturas menores.

Idêntica expressão de horror desenvolvíamos perante a política chinesa do filho único, apelidando-a de barbarismo, comunismo, de povos que bebem chá sem leite.

 

No entretanto, tem-se vindo a começar a popularizar na nossa sociedade a noção de que ter filhos é capaz de não ser uma boa ideia. Normalmente, nos tempos que correm, esta noção é  associada aos ativistas da crise climática que se mostram preocupados com a ideia de trazer filhos ao mundo numa época em que o próprio mundo está ameaçado de calamidades como o aquecimento global, a subida do nível da água dos oceanos, etc.

Há, contudo, um grupo que tem vindo a crescer e que defende que a procriação sempre foi e será errada devido ao sofrimento inevitável que é a vida: são os antinatalistas.

 

O professor de filosofia sul-africano nascido  em 1966, David Benatar, publicou em 2006 o livro, Better Never to Have Been: The Harm of Coming into Existence (Melhor nunca ter sido: o mal que é ter nascido), onde, pela primeira vez, aparece o termo “antinatalista”.

Apoiando-se no Eclesiastes, “[…] Eu disse: «Melhor do que ele ter nascido teria sido o aborto. Pois em vacuidade chegou e em escuridão partiu; E em escuridão o seu nome ficará escondido; E não viu nem conheceu o Sol. e em Sófocles, “Nunca ter nascido é o melhor / Mas se tivermos de ver a luz, o segundo melhor / É o rapidamente regressar para donde viemos”, para nos dizer que o antinatalismo tem estado sempre presente nas nossas sociedades, Benatar vai, contudo, utilizar um outro argumento: a redução do sofrimento humano.

Sabendo que a vida vem sempre acompanhada de sofrimento, trazer outra pessoa para este mundo é sempre garantir-lhe uma dose de sofrimento:

 

 “Mesmo entre as melhores vidas, a qualidade é bastante má –consideravelmente pior até do que a maior parte das pessoas reconhece. Apesar de obviamente ser já demasiado tarde para evitarmos a nossa própria existência, não é demasiado tarde para evitarmos a existência de outras possíveis futuras pessoas”.

 

Posteriormente, Benatar publicou em 2017, The Human Predicamente: A Candid Guide to Life’s Biggest Questions, onde vai contextualizar melhor o seu pensamento sobre o antinatalismo. E explica:

 

Contrariamente ao que muitas pessoas pensam, a qualidade da vida humana é muito má”. Mesmo os que julgam viver felizes estão bastante pior do que julgam. Estamos quase sempre com fome ou com sede; quando não estamos, temos de ir à casa de banho. Estamos muitas vezes com “desconforto térmico”, com muito frio ou muito calor, ou cansados ou sem conseguir dormir. Temos comichões, alergias, constipações, dores menstruais e afogueamentos.

A vida é uma procissão de “frustrações e irritações”, passada em filas de trânsito, em outras bichas, e preenchendo formulários. Forçados a trabalhar em trabalhos que nos deixam exaustos; mesmo “os que gostam do seu trabalho têm aspirações profissionais que nunca são atendidas”. Muitas das pessoas solitárias nunca se casam, muitas das que se casam discutem e divorciam-se. “As pessoas querem ser, parecer, e sentirem-se jovens, e, contudo, envelhecem inexoravelmente”.

Têm grandes projetos para os filhos e muitas vezes eles são coartados quando, por exemplo, os filhos provam serem um desapontamento de uma forma ou de outra. Quando aqueles que nos estão perto sofrem, nós também sofremos. Quando eles morrem, ficamos de rastos.

 

Para Benatar, a pergunta não é pois, se vale a pena viver. Ela deve ser antes sub-dividida em outras duas, a que responde:

 Vale a pena continuar a viver? (Sim, porque a morte é má.) Vale a pena começar a viver? (Não.)

 

 

 

Outras razões têm sido aduzidas para se diminuir o crescimento da população. Nos fins do século XVIII, Thomas Malthus chamava a atenção para o facto do crescimento da população poder ultrapassar as capacidades do seu sustento, argumento desenvolvido mais tarde, em 1968, pelo biólogo Paul e Anne Ehrlich, que, no seu famoso livro The Population Bomb (A bomba da população), sustentava que o crescimento global da população conduziria a fomes generalizadas e a enormes crises ecológicas, pelo que se devia de imediato tomar medidas para limitar o crescimento da população, como, por exemplo, impedir que as pessoas tivessem mais que dois filhos.

 

Em 1996, Les Knight, lança um website (http://www.vhemt.org/) criando o “Movimento para a Extinção Voluntária dos Humanos”, em que explica minuciosamente porque os humanos devem deixar de se reproduzirem.

 

A americana Dana Wells, cansada de lhe perguntarem porque ainda não tinha filhos, viu isso como sendo uma imposição de vida que lhe faziam. Para ela, “os seres vivos, por sentirem, podem ser maltratados, ao passo que aos não vivos não se lhes pode fazer mal”.

Criou a partir de 2017 uma série de vídeos no YouTube com o pseudónimo The Friendly Antinatalist, e a sua história pode ser vista no site  https://thefriendlyantinatalist.wordpress.com/my-story/.

Segundo ela, deve-se distinguir entre os que considera como “verdadeiros antinatalistas” (os que acreditam que criar uma nova vida é sempre errado), os “semfilhos” (os que não querem ter filhos, mas que não consideram a procriação como não-ética), e os “denatalistas” (os que desaprovam a procriação só em determinadas condições, como o caso das pessoas com certas deficiências genéticas que as possam transmitir aos descendentes).

 

 Os verdadeiros natalistas são, pois, aqueles que se opõem a qualquer nascimento, seja em que circunstância for. Para eles, a vida, mesmo nas melhores circunstâncias, não é uma dádiva ou um milagre, mas uma maldade e uma imposição. Ter uma criança não é um problema de escolha pessoal, mas sim uma questão de ética, e a resposta correta é sempre não.

 

Face às incertezas do mundo e ao agravar das condições ecológicas, a junção entre ativistas climáticos e antinatalistas começa a tomar forma. É o caso de Meghan Kallman e Josephine Ferorelli, duas ativistas climáticas preocupadas com o futuro que se poderá oferecer às crianças,  vão criar em 2015, a rede “Conceivable Future”, (https://conceivablefuture.org/), espaço de discussão onde não se advoga nenhuma escolha entre ter ou não ter filhos e onde se ensina “como criá-los  neste mundo onde se consomem combustíveis fósseis por excelência”.

 

 

Mesmo na distante, pequena e atrasada Índia, estes problemas encontram-se presentes. Em fevereiro de 2019, Raphael Samuel, resolveu por uma ação em tribunal contra os seus pais, dizendo que “Não fui eu que tomei a decisão para nascer […] A existência humana não tem qualquer significado”.

O que Samuel nos está a dizer é que é errado trazer a este mundo pessoas sem o seu consentimento.

Dando-se bem com os seus pais, com esta ação para a qual pede a indeminização de uma rupia, pretende apenas “amedrontar os pais, todos os pais em geral. Porque até agora os pais não pensam antes de terem filhos”, (https://www.theguardian.com/world/2019/nov/14/anti-natalists-childfree-population-climate-change).

 

 

Desta resumida abordagem, podemos constatar que este problema de ter ou não ter filhos, tem vindo a acompanhar a sociedade humana quase desde sempre, com cariz mais ou menos religioso, mais ou menos ético, mais ou menos individual ou global.

Interessante notar ainda a predominância que vem começando a ter nos tempos em que atualmente vivemos, ou melhor, começando a ocupar cada vez maior espaço comunicativo. Por maior difusão e utilização dos próprios meios de comunicação? Por maior consciência individual ou até coletiva? Por maior sentido de incerteza face ao futuro? Por maior dificuldade no assegurar o sustento de cada dia? Por interesse das grandes corporações em induzirem-nos tais assuntos? Por coincidência? Para encher espaço?

Talvez afinal a dona de casa da casa do peixe-repuxo de Jacques Tati esteja certa: “Tudo comunica”.

 

 

 

Recomendação

A leitura do “Eclesiastes” e a sua introdução feita por Frederico Lourenço, no volume IV, Tomo 1, da Bíblia, Antigo Testamento, Os Livros Sapienciais, onde se pode ler:

 

 “Registada a impossibilidade da felicidade individual, o Eclesiastes mostra-se igualmente lúcido quanto à inexistência de uma lógica justa na interação humana que permita a felicidade coletiva. Também não vale a pena lutar pelo bem comum, porque a Humanidade está à partida programada para que ele nunca possa existir: bons e maus são tratados do mesmo modo, e tanto faz ser-se perjuro ou alguém que cumpre a sua palavra, pois todos estão sujeitos ao mesmo destino «debaixo do Sol» (9:2-3).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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