(231) Como nos consumimos
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A novidade constitui sempre a condição do prazer, S. Freud.
A vida do consumidor é uma sequência interminável de ‘novos começos’, Zygmunt Bauman.
As distrações exerceram uma grande força atrativa em todas as sociedades porque oferecem a possibilidade de esquecer momentaneamente as preocupações do presente, de esquecer as tensões que sofremos, de aligeirar a vida quotidiana.
Embora a televisão venda «tempo de cérebro humano disponível» destinado a preparar o espetador para receber as mensagens publicitárias, oferece sobretudo programas que dão a satisfação da inatividade mental, G. Lipovetsky.
Gilles Lipovetsky, é um filósofo e sociólogo francês que se tem dedicado à compreensão e explicação particular e global da sociedade em que atualmente vivemos, a sociedade “pós-moderna” do “híper-tudo”. A sua obra base, um ensaio de 1983, L’Ère du vide: essais sur l’individualisme contemporain (A era do vazio, ensaio sobre o individualismo contemporâneo), contém todas as problemáticas que posteriormente vai desenvolver em abordagens sistemáticas aos vários problemas da sociedade.
Basta ver as publicações que se lhe seguiram: L’Empire de l’èphémère: la mode et son destin dans les sociétés modernes (O Império do efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas), 1987; Le Crépuscule du devoir: l’éthique indolore des nouveaux temps démocratiques (O Crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos), 1992; La Troisième femme: permanence et révolution du féminin (A Terceira mulher: permanência e revolução do feminino), 1997; Métamorphoses de la culture libérale: éthique, médias, enterprise, 2002; Le Luxe éternel: de l’âge du sacre au temps des marques (O Luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas), 2003; Les Temps hypermodernes (Os Tempos hipermodernos), 2004; Le Bonheur paradoxal: essai sur la société d’hyperconsommation (A Felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo), 2009; La Société de déception (A Sociedade da deceção), 2006; L’Écran global: culture-médias et cinema à l’âge hypermoderne (O Ecrã global: do cinema ao smart-phone), 2007; La Culture-monde: réponse à une société désorientée (A Cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientadas), 2008; L’Occident mondialisé: controverse sur la culture planétaire (O Ocidente mundializado: controvérsia sobre a cultura planetária), 2010; L’Esthétisation du monde: vivre à lâge du capitalisme artiste (O Capitalismo estético na era da globalização), 2013; De la légèreté (Da leveza: para uma civilização do ligeiro), 2015; Plaire et toucher. Essai sur la société de la séduction (Agradar e tocar. Ensaio sobre a sociedade da sedução), 2018.
É desta sua última obra, Agradar e tocar. Ensaio sobre a sociedade da sedução, que aqui deixamos um pequeno excerto, sem nada acrescentar, retirar ou comentar:
“Retrato de Don Juan como consumidor
Através das novidades, já não são tantos os bens e as riquezas honoríficas que se procuram, mas as sensações e experiências do prazer. Agora, a novidade comercial tem menos um valor estatutário do que um valor emocional, lúdico e distrativo. A atração do consumismo prende-se com a sua capacidade de providenciar sensações indefinidamente renovadas: por isso, a compra do novo confunde-se com uma estética do consumo.
Num contexto dominado pelo culto dos prazeres efémeros, cada um tende a tornar-se «um colecionador de experiências», à espreita de intensidades novas, de mudança, de sensações inéditas vividas como pequenas «aventuras» que animam o universo do quotidiano. Aquilo que atrai no consumo é menos a dimensão do ‘ter’ do que os prazeres fornecidos pela mudança, o refrescamento do vivido, o arrebatamento das pequenas transformações, que são começos sem risco. Zygmunt Bauman exprimiu bem isto:
«A vida do consumidor é uma sequência interminável de ‘novos começos’.»
A compra-prazer funciona assim como uma das vias que permitem mais ou menos sair da rotina dos dias, escapar à perpetuação do mesmo, sentir novas emoções, conhecer novos «princípios». A sedução do consumismo reside precisamente neste poder perpétuo do começo, pois nada seduz mais que os momentos de começo:
«As inclinações nascentes, afinal de contas, têm encantos inexplicáveis, e todo o prazer do amor está na mudança» (Don Juan, Ato I, cena 2).
Cada consumidor contemporâneo comporta-se como o Sedutor de Sevilha: formidável vetor de prazeres efémeros, máquina de experiências múltiplas, a economia consumista gerou um donjuanismo generalizado, banalizado, que, obcecado com sensações novas e aventuras incessantes, se manifesta muito para além do domínio da conquista amorosa. A figura paradigmática do donjuanismo contemporâneo já não é o «pretendente do género humano», mas o consumidor móvel, emocional, dos tempos hipermodernos.
Verdade, escolha e personalização
O processo de mudança perpétua acompanha-se de um processo de diferenciação sistemática da oferta comercial, com as economias de solicitação do desejo a esforçarem-se para que os produtos nunca se apresentem como tipo único: tudo deve ser oferecido numa profusão de modelos, de opções, de diferenças grandes ou pequenas. Pondo em causa o modelo fordiano baseado na produção de grandes séries repetitivas, o capitalismo do hiperconsumo tende para a individualização dos produtos, para a declinação de variantes, para a proliferação industrial da variedade.
Enquanto durante os Gloriosos Anos Trinta, a massificação homogénea triunfava sobre a variedade, agora dominam a personalização dos produtos, as séries curtas, a multiplicação dos modelos. Com a hipersegmentação dos mercados, a sedução do diverso impôs a sua lei à ordem da produção industrial massificada.
O capitalismo da sedução deu origem a uma economia da variedade tanto no domínio da manufatura como no domínio da distribuição e da cultura. Cada vez mais ofertas de produtos utilitários e de varações, cada vez mais canais de distribuição, mas também mais filmes, séries, tendências da moda, estilos díspares: o capitalismo da sedução apresenta-se como um imenso supermercado com uma oferta prolífera e não estandardizada, que corresponde à diversidade dos gostos e dos desejos individuais. O princípio da sedução concretiza-se na lei da diversificação crescente.”
“[…] Criar o espetáculo e o sensacional, privilegiar o distrativo em detrimento da seriedade da informação: para reter a atenção do público e ganhar a corrida às audiências, tudo deve ser espetáculo e até hiperespetáculo. O divertimento, o riso, os jogos são os grandes vetores da sedução televisiva.
A atração irresistível da preguiça
As distrações exerceram uma grande força atrativa em todas as sociedades porque oferecem a possibilidade de esquecer momentaneamente as preocupações do presente, de esquecer as tensões que sofremos, de aligeirar a vida quotidiana. Este ponto é essencial.
No entanto, não é, contudo, suficiente para explicar o facto de, nas nossas sociedades, o desejo de entretenimento se concretizar principalmente no consumo de imagens televisivas e não noutros tipos de lazeres que podem produzir os mesmos efeitos de evasão. Por que é que o espetáculo televisivo ocupa a maior parte do tempo de lazer da maioria da população? Por que é que nos tornámos tão viciados na televisão, por que razão ligamos a televisão antes de consultar os programas, por que é que continuamos a ver programas que nos aborrecem e por que preferimos mudar de canal a desligar o aparelho?
[…] A verdade é que não vemos televisão para ter o sentimento de participar numa sociedade, mas sim para não termos de fazer, durante algum tempo, os esforços (trabalho, pensamento, responsabilidade) exigidos pela vida coletiva. O que seduz é o lazer espetacular e passivo, estranho ao universo do sentido: para o espetador, o que conta é o esquecimento dos problemas da vida séria, a neutralização das dificuldades quotidianas, a suspensão dos esforços que esta implica e, nomeadamente, os da reflexão, da atividade intelectual.
A sedução televisiva consagra o triunfo da preguiça mental, que pode chegar à passividade total. A força de atração considerável da televisão reside no facto de não mobilizar nenhum esforço, nem físico nem mental. As imagens do pequeno ecrã seduzem tanto mais quanto menos implicarem algum trabalho, algum esforço reflexivo; alimentam a preguiça mental, o prazer de não ter de pensar, de não ter de pensar em nada.
Embora a televisão venda «tempo de cérebro humano disponível» (Patrick Le Lay) destinado a preparar o espetador para receber as mensagens publicitárias, oferece sobretudo programas que dão a satisfação da inatividade mental.
[…] Mesmo quando os programas não apaixonam, a televisão continua a exercer uma certa sedução: a da preguiça, da passividade espetacular, a de não ter de prestar contas, de não fazer nada, de não precisar de refletir.
Não há manipulação nem mistificação das massas sem cérebro, mas a exploração de uma aspiração fundamental do ser humano: o gosto do menor esforço, aceder a momentos ligeiros, não fazer nada, fugir ao peso do sentido, ficar livre de toda a carga mental.
A ligação ao pequeno ecrã não resulta do facto de permitir ouvir falas públicas e de estar ligado aos outros, mas do facto de constituir o meio mais fácil de esquecer, no imaginário, os problemas da vida social. Não é o polo público que seduz, mas a desconexão privada.”