(225) Saltemos, permanecendo. O “que somos”, “quem somos”.
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Não devemos esquecer que a evolução é um processo sem sentido, sem lógica e sem planeamento.
Hoje, na nossa sociedade, perante circunstâncias aparentemente idênticas, que se acreditam como não tendo saída, em vez de Apocalipses temos Distopias.
Vivemos numa civilização que se diz ocidental, por se achar à esquerda e à direita da dita oriental, assim dita por se achar à direita e à esquerda da dita ocidental, fazendo ainda juz à crença visível da deslocação do Sol em volta da Terra.
A forma como respondermos, a ambiguidade em que cairmos, a distância em que nos colocarmos perante o sermos natureza ou cultura, animalidade ou história, sobre lei natural ou lei moral, carne mortal ou filhos de um deus, marcará a civilização a que pertencermos, Marina Garcés.
Aquele que foi o enorme império de Alexandre Magno, acabou, após a sua morte, dividido entre os seus principais generais. Um deles, Seleuco Nicator, que ficara com um território-reino que se estendia da Bulgária ao Afeganistão, resolveu iniciar um novo sistema numérico de contagem do tempo, que fosse irreversível e contínuo, e independente do poder político e de acontecimentos extraordinários.
Recordemos basicamente os três sistemas para a localização temporal dos acontecimentos que até aí se usavam: atribuição, pelo monarca, de um nome relacionado com um acontecimento excecional ocorrido nos doze meses precedentes (ex. “o ano em que Naram-Sin chegou à nascente do Tigre e do Eufrates”); utilização de um epónimo, nome de uma personagem real ou mítica (ex. “ano de Péricles”); utilização do nome do monarca com o número de anos de reinado (ex. “no sétimo ano do reinado de Nabucodonosor”).
Em qualquer destes sistemas, o que era fixado eram acontecimentos geograficamente localizados e não datas que nos permitissem localizá-los no correr da história.
Note-se, por exemplo, a grande dificuldade do historiador Tucídides para nos indicar a data em que ocorrera a Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas:
“A “Paz dos Trinta Anos”, que entrou em efeito após a conquista de Eubeia, durou 14 anos; no 15º ano, durante o 48º ano do religioso Crícias de Argos, e quando Anesias era magistrado em Esparta, e quando ainda faltavam dois meses para acabar o magistratura de Pythodorus em Atenas, seis meses após a batalha de Potideia, e no começo da primavera, uma força de Tebas com mais de 300 fortes homens armados … entrou em Plateia, uma cidade da Beócia aliada de Atenas.”
Hoje, bastar-nos-ia dizer que tal acontecera em 431 a. C.
Seleuco, começou por atribuir o Ano 1 da Era Selêucida ao ano em que chegara à Babilónia (311 a. C.). A partir daí, a contagem far-se-ia sempre pela adição de mais um por cada ano que passasse. Assim, quando lhe sucedeu o seu filho, Antíoco, a contagem vinda do anterior continuou. Não houve qualquer paragem ou reinício, nem qualquer conexão com acontecimentos políticos ou com o ciclo de vida de monarcas ou conquistadores (não se iniciou uma nova contagem como sendo a ano 1 de Antíoco).
Muito provavelmente, a intenção de Seleuco era arranjar um sistema que lhe permitisse à distância correlacionar acontecimentos, tornando possível uma resposta e um governo mais eficaz para um território tão vasto.
E, dadas as vantagens que tal sistema tinha, acabou por ser seguido por outros poderes, embora com adaptações: o Anno Mundi, (AM), ou Ano da Criação judaico; o Anno Domini, (AD), Ano Cristão do Nosso Senhor, Era Comum da cristandade ocidental; a Hégira islâmica; e outros.
Esta aparentemente simples imposição, trouxe, contudo, grandes implicações e alterações na sociedade.
Implicações imediatas e práticas, hoje tidas como banais e naturais, começaram a surgir, alterando por completo a sociedade da altura: as inscrições na cunhagem das moedas, inscrições na construção de edifícios, nas oferendas aos templos, nos decretos civis, nas lápides, nos recibos de impostos, nos relatos da astronomia, nos contratos de casamento, e em muitos outros acontecimentos da vida diária das populações.
Implicações não previsíveis, e das quais talvez a mais importante, foi a que permitiu que pela primeira vez se pudesse conceber, com um certo grau de precisão, a previsão da localização de um acontecimento no futuro, fossem alguns anos ou décadas, ou mesmo até séculos.
Ao se apreender melhor a duração da história e da passagem do tempo, o quadro da nossa experiência do presente altera-se, permitindo-nos conceber um futuro, recordar o passado, reconciliar-nos com a impermanência, e com um mundo muito maior, mais antigo e mais durável.
Aquela limitação, aquele muro que constituía o “ciclo do monarca”, desaparecia, era derrubado: passava a haver mais mundo para além dele. Havia uma abertura.
Mas esta abertura dos tempos para a frente, trouxe também consigo, a abertura dos tempos para trás, com o aumento inexorável na atribuição de datas. O reconhecimento de uma sucessão de reinos ou de períodos históricos existentes antes do império Selêucida. O que, consequentemente, implicava o reconhecimento dos seus desaparecimentos.
Curiosamente, os estudiosos fazem-nos notar que só a partir da institucionalização da Era Selêucida, é que começou a aparecer a literatura dita dos fins-dos-tempos, a chamada “escatologia apocalítica”.
E, apresentam uma outra razão para o seu aparecimento: segundo eles, a institucionalização do tal sistema de contagem de tempo irreversível, infinito e transcendente, levou as pessoas a começarem a ver o império Selêucida como interminável, sem escapatória, pelo que a única saída que encontravam para lhe resistir e lhe pôr fim, era acabar com o tempo.
Para nós, o mais famoso desses escritos é o “Livro de Daniel” (para o caso não interessa a polémica sobre a falsa autoria e época em que foi escrito, ver Frederico Lourenço, Bíblia, volumeIII, Antigo Testamento, Os Livros Proféticos, p. 935) contido na Bíblia Hebraica, onde são apresentados os quatro sucessivos impérios que dominaram a história e a sua destruição: Babilónio, Medo, Persa e Selêucida. Até que finalmente se dará o aparecimento do império do Senhor Deus do céu, que jamais será destruído e que durará para sempre.
A grande importância desse escrito é apresentar a história como uma totalidade fechada e ordenada, como um todo completo, exterior ao tempo. Contrariamente ao tempo selêucida que não passava de uma mera passagem de tempo, aqui tudo está incluído, inclusivamente com o futuro já bem determinado.
A história que acontece e que está a acontecer, está encaminhada para uma determinada conclusão. Todos os acontecimentos, por mais díspares que nos possam pareçam, fazem parte de uma só história, uma história total, que convergem para um mesmo fim.
A história como revelação, como representação de um tempo providencial, conforme com o reinado prometido de Deus. É o aparecimento do conceito de teleologia, da história tendo como finalidade a realização do Reino de Deus.
Daniel, não tem dúvidas:
“Então Daniel louvou o Senhor Altíssimo e, falando em voz alta, disse:
‘O nome do grão Senhor será louvado para sempre, Porque d’Ele é a sabedoria e a grandeza. E Ele muda ocasiões e tempos, Depondo e pondo reis “
Hoje, na nossa sociedade, perante circunstâncias aparentemente idênticas, que se acreditam como não tendo saída, em vez de Apocalipses aparecem as Distopias.
Saltemos, permanecendo.
Atualmente, com um conhecimento mais alargado sobre a nossa permanência na Terra, julgamos definirmo-nos melhor através da formulação das interrogações sobre “Quem somos?”, e “O que somos?”.
Ao “quem somos?”, respondemos que somos a humanidade, somos pessoas, somos uma multiplicidade de grupos étnicos ou culturais, somos a soma de todos os indivíduos ou somos cada um de nós em guerra contra todos os outros. Uma multiplicidade de opções.
Já quanto ao “que somos?” a resposta vulgarmente aceite é muito mais objetiva: somos uma determinada espécie animal entre as outras. E para a catalogar, desfiamos uma série de conhecimentos científicos, representações artísticas e técnicas de gestão da própria vida da espécie.
“A forma como respondermos, a ambiguidade em que cairmos, a distância em que nos colocarmos perante o sermos natureza ou cultura, animalidade ou história, sobre lei natural ou lei moral, carne mortal ou filhos de um deus, marcará a civilização a que pertencermos.”
Na nossa civilização, acreditamos que a humanidade é livre, ao contrário da espécie humana que o não é. A humanidade delibera e atua, a espécie humana reproduz-se, cresce e morre. A humanidade é um nós que faz a história, fazendo de si mesma um valor e um projeto. A espécie humana é a matéria prima que, ao mesmo tempo que realiza esses projetos, mostra-nos os seus limites e fenece.
Na nossa civilização que se diz ocidental, por se achar à esquerda e à direita da dita oriental, assim dita por se achar à direita e à esquerda da dita ocidental, fazendo juz à crença na deslocação do Sol em volta da Terra, esta visão dualista tem perdurado e tem sido a sua coluna vertebral.
Acontece que hoje, ao reconhecermos que as alterações climáticas, bem como o esgotamento dos recursos do planeta que se estão a verificar, têm sido causadas pela intervenção humana, teremos de concluir que é a própria vida da espécie humana, agente das principais transformações físicas do planeta, que é o agente das condições históricas e sociais da atual e futura humanidade.
Ou seja, a humanidade, ao não respeitar os limites dessa visão dualista em que até agora vivíamos, ao não respeitar os limites entre os humanos como seres naturais e o nós da humanidade como seres históricos e morais, arrisca-se a ultrapassar a baliza dos limites vivíveis do mundo.
Pelo que talvez fosse interessante começarmos a aprender a pensar para além dessa visão dualista prevalecente, que nós somos também, histórica e politicamente, a espécie. O “que somos” é agora também “quem somos”.
Convém, contudo, não esquecer que, por mais bem-intencionados e pensantes que sejamos, estamos sempre a pronunciarmos sobre as balizas que nós próprios temos vindo a construir.
E, sobretudo, não esquecer que a evolução é um processo sem sentido, sem lógica e sem planeamento.