(223) Os refugiados do Verão
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O pensamento também entra de férias.
Daí aquelas absurdas recomendações de leituras ligeiras, de canções de treta, de jornais leves e de conversas idiotas.
O que deveria ter sido um grande afluxo de refugiados relativamente controlado, transformou-se numa crise humanitária.
A forma como os países encararem este problema, a forma como as maiorias enfrentarem este problema de alteração da diversidade da população existente, ditará o futuro desses países.
Há uma crença muito arreigada nos países da Europa Norte, e infelizmente muito difundida entre algumas gentes do Sul por desconhecimento, vassalagem ou encantamento induzido, que diz que os países frios do Norte é que são os lugares dos bem-pensantes, os lugares bons para o pensamento.
E que por consequência os países quentes do Sul não são bons lugares para acolher o pensamento. Que a luminosidade associada provoca um excesso de visão e de perceção sensorial que satura as ideias, e que o calor, ao realçar a sensualidade dos corpos é um obstáculo para o estudo e para o raciocínio.
A ser como os nórdicos acreditam (e como os que se julgam também ser) , então o pensamento ficará restrito a um tempo (o inverno), a certos lugares (escolas, universidades, bibliotecas, centros culturais, …) e a certos especialistas (professores e intelectuais).
Em si, o pensamento pode ser considerado ou como um trabalho produtivo, ou como como atividade contemplativa, não produtiva.
Se o pensamento for um trabalho produtivo, irá necessitar, como qualquer outro trabalho, de ter férias de vez em quando. Fugir do frio, pôr o corpo e a cabeça ao sol, por momentos deixar de pensar. O pensamento (mesmo o nórdico) também entra de férias. Daí aquelas absurdas recomendações de leituras ligeiras, de canções de treta, de jornais leves e de conversas idiotas.
Mas se o pensamento for encarado como atividade não produtiva como preconizavam os filósofos gregos, ou seja, em que a produção do mundo é interrompida para se poder ter tempo para perceber e compreender, então, o verão seria o tempo do pensamento.
Mas, como também bem sabiam os filósofos gregos, essas “férias” só eram permitidas aos homens, libertos da servidão dos trabalhos domésticos, e aos ricos, libertos da necessidade de ganharem a vida trabalhando.
E qual seria o Verão desses homens e mulheres pobres de então? Qual é o Verão dos homens e mulheres de hoje, uns que fogem dos seus países de origem em improvisados meios de flutuação, muitos deles para morrerem afogados no Mediterrâneo ou dando às costas de países europeus? E outros, que fogem de encarar a situação, olhando para o lado, ou gozando as férias a bordo do seu barco, lendo novelas leves e jornais ligeiros, ao sabor de gin-tónico?
Felizmente que Portugal não tem costas para o Mediterrâneo, pelo que não há possibilidade de abalroarmos corpos humanos (de africanos, evidentemente). Estamos desculpados. Não é connosco.
Segundo o decidido em Dublin (Dublin Regulation), os primeiros países europeus em que os refugiados entrassem (“países de entrada”), teriam a obrigação de lhes conceder asilo. Mas, em agosto de 2015, Angela Merkel, vem alterar este esquema acordado ao dizer que a Alemanha estava pronta a aceitar todos os refugiados, independentemente do local em que tivessem entrado na Europa.
Em menos de um ano, afluíram à Alemanha mais de um milhão de pessoas, e a partir daí continuaram sempre a chegar a um ritmo impressionante (mil por dia, por vezes). Nunca, nem mesmo durante a reunificação, a Alemanha se deparara com tão grande problema logístico, económico e político.
O governo começou por orçamentar a quantia de 98 milhões de euros para assistir a esta vaga de novos habitantes, mas os números e o ritmo de entrada foram de tal maneira elevados, que o próprio governo não conseguiu só por si lidar com o assunto.
O que deveria ter sido um grande afluxo mas relativamente controlado, transformou-se numa crise humanitária que acabou por ter de ser privatizada, ou seja, em que parte substancial do tecido económico privado alemão acabou por ter de ser chamada a atuar, com a respetiva recolha de grandes benefícios (contratos com o governo e todas as outras pequenas ações desenvolvidas ou aproveitadas para instalar os refugiados). Da necessidade da institucionalização das famosas PPP.
Por exemplo: os hangares do aeroporto de Tempelhof (construído em Berlim em 1923, e onde posteriormente Hitler, rodeado das inevitáveis bandeiras com a suástica, discursava em cima de um pódio de onde se avistavam alguns campos de concentração a operarem nas redondezas, e de onde em 1940 os aviões dos EUA e aliados lançaram alimentos, e outros, para os habitantes famintos de Berlim ocidental durante a Guerra Fria), que tinham sido escolhidos para servirem de local de controle e passagem dos refugiados por apenas duas semanas, e que acabaram por aí permanecerem por muitos meses. Como beneficiária económica direta, a empresa privada Tamaja Social Services, encarregue da gestão destes hangares.
Ou as chamadas “vilas de contentores”, montadas em seis semanas e cujo maior contrato de 23 milhões de euros para a construção de 1700 unidades foi ganho pela Container-Handelsbro. Outras firmas forneceram cúpulas insufláveis, “kits de instalação” com o mobiliário básico e outros utensílios necessários para cinco semanas.
Ou a European Homecare, pequena empresa que desde 1990 oferecia serviços para os que pediam asilo, e que se transformou na maior empresa de fornecimento de habitação da Alemanha, cujos lucros dispararam de 17 milhões de euros em 2013 para 100 milhões em 2015
Ou a proliferação e o aumento do custo de arrendamentos de quartos, estúdios, garagens, hotéis, empresas de segurança, tudo pago pelo governo, o que fez elevar o número inicialmente previsto para a casa das centenas de milhões.
Por detrás das razões altruísticas invocadas por Merkel, move-se um outro fator que ameaça o futuro dos alemães: o declínio da sua taxa demográfica. Estima-se que em 2050, os menores de 15 anos representem apenas 13 por cento da população. Isto significa uma falta de mão de obra de enormes proporções.
Pelo que a chegada de centenas de milhar de pessoas, das quais mais de metade com menos de 25 anos, levou o CEO da Daimler a descrever os imigrantes como uma bonança, um “milagre económico”.
O problema é que esse “milagre económico” só poderá acontecer se o investimento público necessário se mantiver a um nível elevado durante bastante tempo.
Eis alguns indicadores:
Segundo fontes governamentais, só menos de 15 por cento dos refugiados sírios têm formação universitária ou treino especializado, e mesmo assim precisarão de treino para estarem ao nível equivalente dos trabalhadores alemães.
Ao nível mais básico, para poderem ser empregáveis têm de aprender alemão – 98 por cento não sabem alemão. Para tirarem um curso básico de alemão em 660 horas, 300.000 refugiados necessitam de 559 milhões de euros.
Apesar de 1 em cada 3 empresas alemãs se terem comprometido a empregar refugiados, em setembro de 2017, apenas 63 tinham conseguido serem contratados pelas 30 maiores empresas.
Como disse o porta-voz da Siemens: “Não é correto pensar que os refugiados possam, em apenas alguns anos, resolver todos os nossos problemas de trabalho”.
Ou melhor, como explicou o ministro do interior do governo alemão, referindo-se ao problema da integração dos refugiados: “Trata-se de um enorme esforço continuado a longo prazo”.
Ou seja, o povo alemão teria de estar preparado para despender durante vários anos, milhares de milhões na educação e treino dos refugiados no seu processo de integração.
Aparentemente, o surgimento de partidos de extrema direita que propõem soluções mais baratas e radicais (atirar sobre os imigrantes que entrem ilegalmente no país, esterilizar as mulheres, etc.- soluções que não resolvem o problema base da falta de mão de obra, isto, evidentemente, se o objetivo for resolver esse problema), o aumento dos casos de assalto sexual, os ataques com fogo posto que se sucedem aos campos de refugiados, e outros “casos” muito bem veiculados na comunicação “social” sempre atenta, parecem fazer crer que a população alemã, a julgar pelos resultados eleitorais, não está muito inclinada a continuar a suportar esse enorme esforço necessário para que a integração se faça da forma mais correta.
E isso, criará um outro problema: dado que os refugiados já lá estão, o país vai ver-se obrigado a absorver de uma forma anárquica uma população gigantesca de imigrantes que imporão um esforço suplementar à assistência social, ao mesmo tempo que o conjunto de empregados que contribuem para o estado social vai continuando a diminuir, o que acabará por provocar uma onda de ressentimento contra os refugiados, com tendência para crescer.
Por tudo isto, a forma como os países encararem este problema (não só a Alemanha), a forma como as maiorias enfrentarem este problema de alteração da diversidade da população existente, ditará o futuro desses países.
Dito de um modo mais popularucho:
Se o dinheiro gasto pelo governo alemão para integrar os refugiados for idêntico aos que os grandes clubes alemães de futebol despenderem na contratação de jogadores por forma a ombrearem com os outros clubes europeus, qual será a resposta da população? Integração de refugiados ou contratação de jogadores?
Uma achega:
Se os estrangeiros contratados como jogadores de futebol não forem considerados como refugiados, a sua contratação será inteiramente assumida pelos clubes (o que é o que tem sido feito até agora). Se forem considerados como refugiados, então a sua contratação poderá ser comparticipada pelo Estado.
Mais, se os clubes de futebol forem considerados como agentes culturais, então poderão serem constituídos como PPP, pelo que a contratação dos jogadores poderá também ser subsidiada pelo Estado.
Felizmente que a Alemanha também não tem fronteiras com o Mediterrâneo. Saia mais gin-tónico para o país do Norte.