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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(221) Maneiras de poder. Maneiras do poder.

Tempo estimado de leitura: 3 minutos.

 

Quem tem o poder de formular as perguntas e de determinar a validez das suas respostas?

 

Quem separa a verdade da mentira?

 

Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor a que habitualmente chamamos de silêncio? W. Herzog, em O Enigma de Kaspar Hauser.

 

Aqui jaz um desconhecido assassinado por um desconhecido, lápide no túmulo de Kasper Hauser.

 

 

 

 

Quando Veiga Simão fundou em 1962 os Estudos Grais Universitários em Moçambique, para garantir a portugalidade e a credibilidade da instituição, a realização dos exames finais das várias cadeiras eram normalmente feitos por professores catedráticos convidados vindos da Metrópole.

 Numa das cadeiras do curso de medicina, o professor, interrogando o aluno sobre a bilharziose, pediu-lhe para elaborar um plano para a erradicação da doença. Uma vez que para o seu desenvolvimento necessita de passar pelos caracóis de lagoas, charcos, rios, o aluno começou por elencar como objetivo prioritário, a morte dos caracóis. Ao que o professor, do alto da sua cátedra, ironizou, perante o riso da assistência e o embaraço do aluno:

Então, e como é que os matava? Com um pauzinho?

 

Acontece que anos mais tarde, já após a independência, a quando da deslocação à China do então presidente de Moçambique, Samora Machel, integrado na sua comitiva seguia esse tal aluno, moçambicano negro, já formado em medicina.

Sendo a bilharziose uma doença endémica em Moçambique, foi com admiração que constatou que na China, tal doença já não existia. Interessado, quis saber qual o plano que tinham seguido. “Muito simples”, disseram-lhe. “Matámos os caracóis”.

Mas como?

Com um pauzinho. Todos os meses, ao fim de semana, saímos para o campo, e todos os caracóis que víamos, matávamos”.

 

Em 1974, Werner Herzog, realizou um filme com o título Cada um por si e Deus contra todos, que nos nossos cinemas foi publicitado com o nome de O enigma de Kaspar Hauser.

Basicamente, o filme conta a história de um adolescente que aparece em 1828 numa praça de Nuremberga. Ninguém sabia quem ele era, nem donde vinha. Trazia uma carta de apresentação anónima para o capitão da cavalaria, contando que fora criado sem nenhum contacto humano, num porão, e pedindo para que fizessem dele um cavaleiro.

Quando mais tarde aprendeu a falar, contou que alguém lhe deixava alimentos durante a noite, mas nunca vira ninguém.

Há um professor que o acolhe e tenta socializá-lo. No filme, aparecem algumas cenas desse processo de socialização. Finalmente, em 1833, Hauser acaba assassinado não se sabe por quem.

 

Juntamente com o aparecimento dos vários “meninos selvagens”, estas situações deram origem a estudos e teorias relacionados com a importância do processo de socialização para o desenvolvimento do ser humano, como, por exemplo, os que consideravam que não bastava falar para se entender o que se passava ao seu redor.

 

Há, contudo, no filme, uma cena particularmente interessante:

Para aferir sobre a inteligência natural de Hauser, um sério professor de lógica entende pôr-lhe o conhecido problema do mentiroso: Como será possível apenas com uma só pergunta, descobrir quem está a mentir quando duas pessoas se encontram numa encruzilhada do caminho, sendo que uma delas vem de uma aldeia onde todos dizem sempre a verdade e outro de uma aldeia onde dizem sempre mentiras?

Ainda hoje a grande maioria de nós terá dificuldades em reproduzir a lógica intrincada que permite resolver o assunto. O mesmo aconteceu com Kaspar. Só que ele diz:

 “Eu faria antes outra pergunta. Perguntar-lhes-ia a cada um deles se eram uma rã. O verdadeiro diria que não era, e o mentiroso dir-me-ia que era uma rã.

O professor de lógica irritou-se, considerou a pergunta como inválida, terminou a sessão e deu Kaspar como sendo retardado.

 

Num tempo como o nosso, em que através de uma cultura participativa-interrogativa se tem vindo a envolver a sociedade, que a leva a formar juízos de valor sobre o que é bom e mau, verdadeiro e mentiroso, talvez seja importante perguntar:

Quem tem o poder para formular as perguntas e determinar a validez das suas respostas?

 

A escolha da rã como exemplo é perfeita como jogo intelectual. A sua lógica obriga-nos a saltar como ela para um outro campo de jogo. E, não vale a pena continuar a perguntar. O quadro é outro.

 

Tal como o catedrático em Moçambique, e o professor de lógica em Nuremberga, também Samora Machel quando regressou da China, resolveu tentar levar à prática um programa para acabar com as moscas, pondo cada moçambicano a matar meia dúzia de moscas por dia, tal como os chineses tinham feito.

 Hoje continua a haver bilharziose e moscas em Moçambique. Mas, não é disso que aqui se trata. Trata-se é da identificação de um mesmo processo de pensamento como moldura que baia o pensamento. Maneiras de poder. Maneiras do poder.

 

 

 

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