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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(220) O abismo da liberdade e a liberdade do abismo

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Uma revolução representa um tempo entre o fim de um passado que já não satisfaz e que já não dá respostas, e um novo começo que se oferece como absolutamente imprevisível.

 

A violência, tão característica do início de uma revolução como meio (instrumento) para atingir um fim (a libertação, a conquista de direitos básicos), não pode ser confundida com o terror, que só aparece quando a violência passa a ser um fim em si mesmo.

 

Qualquer vendedor formado numa grande empresa capitalista sabe resolver uma questão dessas; mas 99 comunistas responsáveis em cada 100 não sabem, Lenine.

 

Tem havido uma luta de classes nos últimos 20 anos, e a minha classe ganhou, Warren Buffett.

 

 

 

 

 

Em 1963, no seu estudo sobre a revolução ( On Revolution), Hannah Arendt, apesar de pensar que “uma revolução é claramente um novo começo”, deixa-nos a indicação que tal não significa que seja impossível um começo sem se iniciar uma revolução, para o que basta pensar no fenómeno da desobediência civil ou numa participação política alargada e efetiva que nos permita um novo começo.

Daí que, para ela, a violência, tão característica do início de uma revolução como meio (instrumento) para atingir um fim (a libertação, a conquista de direitos civis básicos – vida e propriedade), não possa ser confundida com o terror, que só aparece quando a violência passa a ser um fim em si mesmo, não sendo, portanto, um instrumento.

 

Como bem observou Arendt, as revoluções não consistem apenas numa mudança, como sucede com um golpe de estado, desobediência civil ou transformação de um governo. Não se trata de restaurações ou de tentativas de retrocesso a um momento original ou primitivo em que a ordem estaria estabelecida. Pelo contrário, a revolução tem como consequência a instauração de uma novidade absoluta em termos de instituição, até aí não existente.

Ou seja, uma revolução representa um tempo entre o fim de um passado que já não satisfaz e que já não dá respostas, e um novo começo que se oferece como absolutamente imprevisível.

 

É a imprevisibilidade de um futuro que ainda está por-vir, agravada pelo facto de o passado imediatamente anterior já-não dar qualquer resposta, que torna o desejo inicial da revolução absolutamente incerto.

 

É exatamente por isto que os homens que as realizam se confrontem com a sensação de abismo que se segue ao momento inicial em que a iniciam. Eles sentem que a linha desse tempo não é de continuidade, mas sim de desconexão, em que se dá uma interrupção no tempo da sequência dos acontecimentos.

É o aparecimento de um hiato entre o passado e o futuro, entre o tempo do fim de um passado que já-não satisfaz, e um novo começo que ainda-não satisfaz, em que aparentemente é suprimida a continuidade dos acontecimentos no tempo, projetando-os para aquilo que é reconhecido como sendo o medo fundamental do abismo da liberdade.

 

É, talvez, este medo fundamental resultante de uma interrupção do tempo sem retorno, que faz, em maior ou menor grau, com que os homens que realizam as revoluções, recorram, apesar de tudo, ao passado para enfrentarem os problemas de um novo começo. Ou seja, não há um abandono absoluto do passado.

 

Por exemplo, na Revolução Americana, a luta contra o recente domínio colonialista britânico, não significou o abandono ou o corte com a tradição, levando os americanos da revolução a procurarem no passado (na ideia romana de autoridade como reconhecimento da importância do novo começo, da nova fundação a que a Constituição daria corpo) a garantia para que a própria finalidade da revolução (a liberdade política, o permitir às futuras gerações o direito de participarem numa esfera pública, de se pronunciarem acerca de assuntos políticos) adquirisse a durabilidade necessária.

Essencialmente, seria através da Constituição, com a separação de poderes e seu sistema de verificações e equilíbrio (“check and balances”), que se veriam livres dos Jorge III, dos reis acima da lei, de qualquer lei.

 

Na Revolução Francesa, a luta contra o secular domínio da nobreza e sua exploração, vai dar lugar aos conceitos de “bondade natural” do povo, de “vontade geral” do povo, e de um ideal de não representatividade associado ao poder legislativo, o que conduziu à fragilidade da autoridade e ao predomínio da libertação geral sobre a liberdade política.

 

Condições diferentes, que levam Arendt a distinguir entre o “le peuple” francês, como multidão una e miserável, e o “we, the people” americano, que embora também multidão, não era composto por miseráveis, não estava unido pela miséria, mas antes pela sua variedade, pela consciência da sua pluralidade.

Em vez da preocupação constante de fundar um corpo político que permitisse a liberdade, o objetivo principal da Revolução Francesa passou a ser a proclamação dos direitos do homem, que lhe eram reconhecidos pelo simples facto de terem nascido.

Embora a Revolução Americana tenha sido considerada por Arendt como o modelo da revolução perfeita, apesar de não ser dirigida para todos (a escravatura, etc.), foi a Revolução Francesa, com o seu apelo universal, que acabou por ser o modelo para as revoluções comunistas que se lhe seguiram.

 

 

 

Na Revolução de Outubro de 17 na Rússia, país onde há centenas de anos a governação quase feudal dos Czares faria parecer quase democrática a dos monarcas da Europa, a guerra perdida contra o Japão logo seguida da entrada na 1ª Guerra Mundial, a miséria, fome e repressão por um lado, e a enorme ostentação de luxo por uma pequeníssima parte, levaram à sublevação popular e à queda do imperador.

O governo parlamentar que se lhe seguiu, limitou-se, contudo, a conservar quase todas as instituições a funcionarem da mesma forma, incluindo continuando a manter a Rússia na guerra sem qualquer solução.

 Rapidamente um pequeno partido de revolucionários comunistas que advogavam a alteração radical do sistema (político, económico, cultural), com o seu programa de acabar com a guerra e com a entrega das terras a quem a trabalhava, ganha apoio maioritário entre a população, e assalta o poder.

Guerra civil, guerra movida pelo exterior, debandada quase geral de quadros intermédios, aceleram o aparecimento das comissões de trabalhadores, soldados e marinheiros, sindicatos, comissões de bairro, etc., como elementos de confiança e apoio do governo para o controle político e económico do Estado. A desconstrução do sistema instalado começara, a construção do novo sistema ia tomando lugar, excluindo radicalmente o anterior.

 

No campo económico os resultados não estavam a ser brilhantes, podendo até serem estrategicamente negativos.

Lenine, faz aprovar uma Nova Política Económica (NPE), segundo a qual reinstala parte das práticas e procedimentos capitalistas. Acusado por pretender abandonar o socialismo, vê-se forçado a defender a NPE e a sua posição, o que faz durante o XI congresso do Partido Comunista Russo bolchevique, PCR(b), realizado em Moscovo entre 27 de março e 2 de abril de 1922.

Eis algumas das suas declarações:

 

“[…] Temos de reconhecer que o problema da NPE, o problema fundamental, decisivo e incontornável é o de estabelecer uma ligação entre a nova economia que começámos a criar (muito mal, de forma desastrada, mas que começámos, de qualquer forma, a criar, com base numa economia socialista completamente nova e num novo sistema de produção e distribuição) e a economia camponesa […]

[…] Temos de provar que o conseguimos ajudar e, neste momento, quando o pequeno camponês se encontra num estado da mais lastimável ruína, pobreza e fome, os comunistas estão realmente a ajudá-lo. Ou o conseguimos provar, ou ele vai mandar-nos para o Inferno. Isso é absolutamente inevitável […]

 

[…] Estamos agora a formar empresas mistas, o que, tal como o nosso comércio estatal e a nossa NPE, significa que nós, comunistas, estamos a recorrer a métodos comerciais capitalistas […]

[…] O capitalista conseguia fornecer bens. Fazia-o de modo ineficaz, cobrava preços exorbitantes, insultava-nos, roubava-nos. Os trabalhadores e os camponeses comuns, que não discutem o comunismo porque não sabem o que é, estão bem cientes disso.

“Mas os capitalistas, afinal de contas, conseguiam-nos coisas; e vocês? Vocês não o conseguem fazer.”  Foi isto o que ouvimos na primavera passada […]

Por isso formamos as empresas mistas. Os capitalistas estão a trabalhar ao nosso lado. Estão a trabalhar como ladrões; fazem lucro; mas sabem fazer as coisas. Mas vocês estão a tentar fazer as coisas de uma maneira nova: não têm lucro, os vossos princípios são comunistas, os vossos ideais são esplêndidos […] Mas será que conseguem fazer o que precisa de ser feito? […]

Serão vocês capazes de gerir a economia tão bem como os outros? Os velhos capitalistas são capazes; vocês não são. É esta a primeira lição, a primeira parte principal do relatório político do Comité central. Não somos capazes de gerir a economia [..]

Ou provamos o contrário no ano que se segue, ou o poder Soviético não poderá existir […]

A questão é que os comunistas responsáveis, até os melhores entre eles, que são indubitavelmente honestos e leais, que nos velhos tempos sofriam a servidão penal e não temiam a morte, não sabem fazer negócio, porque não são homens de negócio, não aprenderam a fazer negócio, não querem aprendê-lo e não compreendem que têm de o começar a aprender do nada […]

[..] Temos poder político mais do que suficiente […] O poder económico nas mãos do Estado proletário da Rússia é perfeitamente adequado para assegurar a transição para o comunismo. Então, o que falta? Obviamente, o que falta é cultura na camada de comunistas que desempenham funções administrativas […]

É preciso estudar muito para o fazer, e os nossos não o estão a fazer. Espalham ordens e decretos por toda a parte, mas os resultados são bem diferentes dos desejados […]

[…] A ideia de construir a sociedade comunista exclusivamente com mãos comunistas é infantil, absolutamente infantil. Nós, comunistas, não passamos de uma gota de água no oceano, uma gota no oceano do povo […]

Porque foi necessário, três anos depois da evolução, na capital da República Soviética, fazer duas investigações, ter a intervenção de Kamenev e de Krasin e instruções do Politburo para comprar alimentos enlatados? O que faltava? Poder político? Não. O dinheiro também estava disponível […] O que faltava, então?

Cultura. Noventa e nove em cada cem oficiais da Sociedade Cooperativa dos Consumidores de Moscovo … e do Comissariado Popular do Comércio Externo têm falta de cultura […]

Qualquer vendedor formado numa grande empresa capitalista sabe resolver uma questão dessas; mas 99 comunistas responsáveis em cada 10 não sabem. E recusam-se a compreender que não sabem que têm de aprender o bê-á-bá deste negócio […]

Aquilo que o camponês conhece e a que está habituado é ao mercado e ao comércio. Não fomos capazes de introduzir a distribuição direta comunista. Faltaram-nos as fábricas e o equipamento para o fazer. Assim sendo, temos de dar aos camponeses aquilo de que precisam através do comércio, e temos de o fazer tão bem quanto os capitalistas o fizeram. Ou o povo não irá tolerar a nossa administração. Este é o ponto-chave da situação […]

A caraterística principal é não termos as pessoas certas para os lugares certos; é terem sido atribuídas a comunistas responsáveis, que combateram magnificamente durante a revolução, funções comerciais e industriais acerca das quais nada sabem […] Tendo em conta que durante algum tempo teremos de viver entre um sistema capitalista […] há que escolher as pessoas certas e introduzir formas práticas de controle. É isso que o povo irá valorizar […]

 

A 2 de março de 1923, Lenine, envia uma carta ao XII Congresso, debaixo do título “Como Devemos Reorganizar a Inspeção dos Trabalhadores e Camponeses”, onde podemos ler a célebre frase sobre a educação:

 

Para renovar o nosso aparelho de estado, devemos, custe o que custar, estar dispostos a, em primeiro lugar, aprender; em segundo lugar, aprender; e, finalmente, aprender; e depois garantir que a aprendizagem não seja letra-morta nem se limite a ser apenas um chavão da moda […]

Temos de seguir a regra: é melhor menos, mas melhor.”

 

 

 

A partir das eleições de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher, com o favorecimento dos mercados livres como reguladores do sistema económico e político, passou a acreditar-se que a globalização e as novas tecnologias, estão na base de uma nova economia em que o que se considera como talentos especiais devem ser particular e excecionalmente remunerados, o que fez disparar a desigualdade existente.

 Acredita-se, também, que quaisquer tentativas para reduzir a desigualdade através de impostos, falharão, porque a elite global esconderá o dinheiro nos paraísos fiscais. Além disso, acredita-se que o aumento dos impostos sobre os ricos, fará desaparecer a criação de riqueza (porque eles não terão interesse em se esforçarem), pelo que todos acabaremos mais pobres.

Acredita-se que o sucesso nada tem que ver com a sorte. Ignorando o lugar que a sorte desempenha no nosso sucesso, isso faz-nos sentir, se obtivermos sucesso, que tal se deva exclusivamente a nós próprios, ao nosso próprio valor. Os muito bem pagos, acreditam que o que ganham tem apenas que ver com o que se esforçaram para alcançarem essa posição.

Acredita-se que os pobres são preguiçosos, e que o trabalho árduo acabará por significar uma melhor qualidade de vida. Acredita-se que merecemos aquilo que temos, e que temos aquilo que merecemos.

Acredita-se que benefícios sociais generosos tornam as pessoas pobres mais preguiçosas e que os salários elevados são fundamentais para motivarem as pessoas talentosas.

Por tudo isto, acredita-se na existência da desigualdade por a sociedade ser, em si mesma, profundamente desigual (há 50 anos, um CEO nos EUA ganhava em média umas 20 vezes o salário de um típico trabalhador; hoje, o CEO ganha 354 vezes mais). Daí que a desigualdade se auto-perpetue, sem qualquer resistência.

Daí que os 1% dos mais ricos sejam cada vez mais ricos, pois têm mais incentivos e habilidades para enriquecerem cada vez mais.

Exercem cada vez mais influência nas políticas, desde subsidiarem as campanhas eleitorais até influenciarem as leis e regulamentos governamentais. O que Robert Reich chama de “socialismo para os ricos”, e que tão bem sintetizou Warren Buffett quando disse:

 

“Tem havido uma luta de classes nos últimos 20 anos, e a minha classe ganhou” (https://www.washingtonpost.com/blogs/plum-line/post/theres-been-class-warfare-for-the-last-20-years-and-my-class-has-won/2011/03/03/gIQApaFbAL_blog.html?utm_term=.b99288f7ab17).

 

Daí que se acredite que os impostos sobre o rendimento seja uma espécie de roubo, uma vez que o rendimento corresponde a algo que as pessoas ganharam correta e legalmente. Daí que tal imposto seja considerado como um mal necessário, que deverá, portanto, desaparecer ou ser o mais baixo possível.

Mesmo apesar de se saber que o que se ganha depende da educação que se teve, das circunstâncias do nosso nascimento e subsequentes cuidados de saúde, que mesmo se forem “privados” não deixam de depender da educação de médicos e enfermeiros, remédios e demais tecnologia, e que, tal como as mercadorias e serviços, dependem da infraestrutura económica e social, redes de transporte e de comunicações, fornecimento de energia e demais legislação existente, e ainda da contribuição de gerações anteriores, dos seus colegas atuais, e das ações do governo, pois mesmo assim, acredita-se que o que ganhamos se deve apenas ao facto de sermos os mais espertos e trabalhadores e que os altos impostos que pagamos não passam de um roubo que o governo delapidará em proveito próprio e em assistência social. Daí a justificação económica e moral para o abandono do país (fisicamente ou em dinheiro), trocando-o por outro onde se paguem menos impostos.

As irreversíveis forças dos mercados. A liberdade do abismo.

 

 

 

Recomendação:

Jonathan Aldred, Licence to be Bad: how Economics Corrupted US.

 

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