(218) “As prisões do possível”
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Tudo é possível, exceto questionar o sentido e os limites do possível.
Vivemos condenados a escolher num mundo em que não há alternativa.
Participar, como no exercício do voto, significa ser contado sem contar para nada.
O pensamento como atividade tendencialmente colaboracionista.
Só há um mundo e está feito à imagem do Capital.
Nas prisões do possível, é o título do livro de Marina Garcés, refletindo a sua tese de doutoramento em filosofia, e no qual analisa o modo de ser de uma realidade que se afirma como única em cada um dos seus possíveis.
Viver nas “prisões do possível” significa termos de viver condenados a escolher num mundo em que não há alternativa.
Ou seja, viver num mundo em que tudo é agradavelmente possível, exceto questionar o sentido e os limites do possível.
Vivemos numa sociedade que promove as ideias e o livre pensamento, ao mesmo tempo que desativa todos os seus efeitos. Kant, prócere do despotismo iluminista, escrevia o célebre “atreve-te a saber”, mas, não deixava de o complementar com “raciocinai sobre tudo o que quiserem, mas obedecei”.
A diferença (grande) é que hoje, o despotismo global, diz-nos:
“Obedecei raciocinando sobre tudo o que quiserem”.
Ou seja, o pensamento passa a ser uma atividade tendencialmente colaboracionista.
Podemos ver tudo sem ver nada. O mundo é a realidade que nos põem diante de nós, seja através do ecrã, seja através das formas que temos de a narrar, de a analisar ou de nos deixarmos afetar por ela.
É através da visão que nos abstraímos da realidade, distanciando-nos dela, colocando-nos no seu exterior.
Não é em vão que, desde a caverna de Platão, a visão tem sido considerada como o mais nobre dos sentidos.
Não é, pois, de admirar que hoje nos encontremos na posição de espectadores: espectadores da história, espectadores culturais, espectadores das nossas vidas, espectadores do mundo.
Como fazia notar G. Debord sobre esta prática de aperfeiçoamento da visão que nos transformou em espectadores do mundo:
“O espetáculo é o herdeiro de toda a debilidade do projeto filosófico ocidental que foi uma compreensão da atividade dominada pelas categorias de ver (…) O espetáculo não realiza a filosofia, filosofa a realidade. A vida concreta de todos é que se degradou num universo especulativo”.
Passamos de filósofos a científicos e de científicos a espectadores. Esta relação privilegiada com o mundo, não conduziu a uma melhor disseminação da verdade, mas a uma entrega massiva ao império da mentira. “Vivemos num espetáculo de roupas e de máscaras vazias”, John Berger. Brutal e ligeira, a cultura da imagem entrega-nos a “um jogo em que ninguém joga e todos espreitam”.
Vemos a realidade do mundo como algo que nos puseram em frente e à distância da nossa vida. Todos agora nascemos com a imagem do nosso planeta implantada nas nossas retinas (a partir dos novos dispositivos de captação de imagens do planeta Terra) e com o sentido da situação que ocupamos no mundo. O mundo já não necessita ser imaginado, como acontecia.
Mas esta imagem que nos domina, temos obrigação de saber, não depende exclusivamente da capacidade tecnológica em produzir e difundir essas imagens do planeta. Tem também que ver com outros fenómenos igualmente importantes: a eliminação de qualquer ideia de transmundo (divino) ou de outro mundo (nascido da revolução) e do triunfo da globalização como imagem do mundo.
Fenómenos que podem ser resumidos numa frase: “Só há um mundo e está feito à imagem do Capital”.
Ou seja, a realidade fez-se una com o capitalismo. O mundo do capitalismo globalizado esgota hoje a totalidade do visível e proclama que não há mais nada para ver, que não há nada escondido, que não há outra imagem possível. Isto é o que há, diz-nos.
Noutra épocas, o invisível, era património das religiões cujos dogmas estabeleciam de que era feito e quem estabelecia a sua lei. Hoje, o capitalismo global cancela toda a invisibilidade, todo o não-saber, em favor da sua única verdade presente. O mundo, convertido em imagem sintetiza esta verdade.
Por isso, deixa de ser aquilo que há em nós, entre nós, aquilo que fazemos e que transformamos coletivamente, para converter-se em algo que se nos oferece, mas apenas para ser visto e acatado.
Como escreve Susan Buck-Morss:
“O mundo-imagem é a superfície da globalização. É o nosso mundo compartido. Empobrecida, obscura, superficial, esta imagem-superfície é toda a nossa experiência compartida. Não compartimos o mundo de outro modo”.
A própria cultura como expressão autónoma através da qual uma sociedade pode pensar-se a si mesma, como atividade viva, plural e conflituante com que damos sentido ao mundo que compartimos, acabou instrumentalizada e colonizada por forças políticas e mercantis.
Em vez de ser uma ameaça para a ordem social, ou o tesouro privilegiado de uns quantos, a cultura mostra-se hoje sem qualquer vergonha perante a sociedade, como servindo para criar postos de trabalho, aumentar os índices do PIB, oferecer divertimento e entretenimento para todos os gostos e para todas as camadas sociais, tornar o país mais coeso e torná-lo mais competitivo no mercado global.
Por um lado, ao tornar-se espetáculo e fonte de entretenimento, cria uma esfera separada que isola os conflitos da sua realidade social, da vida concreta.
Por outro lado, os mesmos princípios do que é a política democrática aceite, têm correspondência na esfera cultural: a liberdade e a participação.
A liberdade, como liberdade de eleição entre gostos, estilos e visões do mundo que coexistem ao lado uns dos outros, na maior das indiferenças.
A participação, que não significa aderir implicando-se. Participar, como no exercício do voto, significa ser contado sem contar para nada. É ser convocado sem poder convocar. Um campo de possíveis fechado. Tem infinitas opções, mas as regras do jogo estão claramente estabelecidas. Há lugar para todos, mas cada um tem o seu lugar.
Funciona, mas não é credível. Tal como com os partidos que continuam a funcionar, mas que não se levam a sério. Da mesma forma que votamos num ou noutro partido, ou ficamos em casa sem votar, também vamos ao cinema ou ao teatro, ou nos emocionamos com uma proposta musical.
Temos os nossos autores preferidos, tiramos cursos uns atrás dos outros, vamos a ciclos de conferências, estamos em dia com as últimas novidades, editamos os nossos próprios vídeos, revistas, etc. Mas, nada de nós é lá posto. A nós nada nos acontece, nada de nós se joga. Tanta atividade em que nada se passa.
Esta é a cultura que as democracias atuais oferecem ao mundo. A mesma ideia de liberdade e de participação despolitizadas, idênticas à da esfera política. O mundo global é em si mesmo este campo de possíveis no qual estamos condenados a eleger sem alternativas possíveis. Por isto, a cultura é hoje o instrumento preferencial perfeito desta economia avançada.
A falência do comunismo em 1989 foi celebrada como o triunfo do capitalismo, e declarada pelos ideólogos da globalização como a abertura da via para o aparecimento de “um só mundo” que legitimaria o que então se chamava de “pensamento único”.
Passados trinta anos, damos connosco a envergonhadamente celebrar o que consideramos ser a melhor opção possível, a resignarmo-nos a não ter outra opção que não seja a de seguir em frente, mesmo que contra nós próprios, uns contra os outros.
E aquele outro mundo que nos venderam como possível, tem vindo a demonstrar não oferecer promessas de bem-estar nem de justiça generalizada, mas apenas uma ficção provisória de privilégios para uns poucos.
Para todos os outros, resta um quotidiano mal-estar resignado, que se vê hoje relativamente ao trabalho, à educação, ao meio ambiente, ao amor, à política, e que se expressa na frase:
“Isto é o que se pode fazer…vamos ver o que acontece”.
Ficamos apenas com o sabor do irrevogável e do inexorável. As prisões que nos rodeiam. Pior: o facto é que já as interiorizámos.
É urgente recordarmos Kafka quando nos diz que a prisão está aberta, que não tem porta, e que somos nós, somente nós, que nos aferramos ao umbral.
Recomendação:
A sociedade do espetáculo, Guy Debord.
“A indústria cultural”, na Dialética do Iluminismo, Adorno e Horkheimer.