(216) Polícias no ar, avestruzes no chão
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Num canto qualquer afastado do universo espalhado por cintilantes e inumeráveis sistemas solares, existiu uma vez um astro em que animais inteligentes inventaram o conhecimento, F. Nietzsche.
As “máquinas” enviam sinais vídeo para um operador humano, um guarda fronteiriço que está a quilómetros de distância (um vídeo árbitro).
É apenas uma questão de tempo antes de um drone ser capacitado para agir contra as pessoas, fazendo-as parar, N. Sharkey.
Quem decide se se deve ou não desenvolver tal tipo de tecnologia que pode potencialmente vir a ser usada contra pessoas vulneráveis em locais com poucas proteções relativas a direitos humanos?
Não há filmes mais realistas do que os filmes americanos, mesmo que sejam de ficção científica. Nem que seja apenas pelos desejos expressos ou por acreditar que a realidade será mesmo assim, ou por inculcar esses desejos como se fossem reais para mais tarde os vir a transformar na realidade pretendida.
Então no caso particular dos filmes de ficção científica quando relacionada com a militarização da sociedade, leva-nos hoje a compreender melhor como ela nos preparou para a aceitação dos tempos em que vivemos: o que se julgava ser ficção ou divertimento, passou a realidade aceite sem contestação.
Lembremos “O Exterminador implacável” (The Terminator) de James Cameron, de 1984, com Arnold Schwarzenegger e Linda Hamilton, selecionado em 2008 pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, para ser preservado na National Film Registry, por ser “culturalmente, historicamente ou esteticamente significativo”.
As “máquinas” da Skynet (não confundir com a Sky News de Murdoch, uma vez que ele ainda está vivo e sem exo-esqueleto) dominam os céus perscrutando todas as formas de vivência humana no solo, com a intenção de a eliminar.
Ficção científica de 1984.
Em 2017, a União Europeia lançou um concurso (e respetiva bolsa inicial de 8 milhões de euros, evidentemente paga por nós) para o desenvolvimento, até meados de 2020, de um protótipo comercializável de “um enxame de robôs para a monitorização das fronteiras”, com vista à construção e equipamento de uma coleção de drones aéreos, marítimos e terrestres capazes de se aperceberem de “ameaças” de humanos.
Estes enxames de robôs serão pilotados com o recurso a inteligência artificial, e patrulharão autonomamente as fronteiras da Europa, em coordenação com drones de asa fixas, veículos terrestres, submarinos e barcos.
Estes robôs serão capazes de identificar humanos e decidir independentemente se eles representarão uma ameaça. Se determinarem que o humano tenha cometido um crime, eles próprios notificarão a polícia de fronteira.
Imagine-se em 2020 a caminhar despreocupadamente pelos bosques perto da fronteira. De repente ouve um zumbido mecânico, qual abelha gigante. Os drones detetaram-no e enviam enxames mais pequenos para o verem de perto. As antenas dos drones e de um veículo terrestre autónomo nas vizinhanças apanharam frequências rádio vindas do seu telemóvel que está inativo no seu bolso. Enviam esses sinais a um servidor central, que triangula a sua localização exata, enviando-a aos drones. Os enxames de robôs aproximam-se de si.
Câmaras óticas, de infravermelhos e térmicas, radar, sensores de frequência rádio, reconhecem-no como sendo um ser humano, e tentam adivinhar as suas intenções. Constitui uma ameaça? Está a tentar atravessar ilegalmente a fronteira? Traz consigo uma arma? Faz parte de uma organização criminosa ou terrorista?
As “máquinas” enviam sinais vídeo para o operador humano, um guarda fronteiriço que está a quilómetros de distância (um vídeo árbitro com treino policial). Ele verifica os vídeos e decide que afinal não há nenhuma ameaça. Prime um botão, e os robôs retiram-se para continuarem com a sua missão de patrulhamento.

É assim que deverá funcionar este sistema, apelidado oficialmente como Roborder (https://roborder.eu/).
São dadas “garantias” que o sistema nunca será armado (será um projeto exclusivamente não-militar) e nunca será comercializado fora do espaço da União Europeia.
Acontece que já se vendem no mercado robôs voadores equipados com atordoadores (Tasers), gás pimenta, balas de borracha, e outras armas.
Acontece que a garantia dada de que não serão armados é muito duvidosa, porquanto partes do sistema envolvem já tecnologia militar, o que facilitará a sua conversão para uso militar, e por ser fácil instalar sistemas de armamento: em 2015, com apenas 18 anos, Austin Haughwout, montou uma arma de fogo num drone por ele feito em casa (https://www.nbcconnecticut.com/news/local/FAA-Police-Investigate-Drone-Gun-Clinton-Connecticut-Video-316368531.html).
Acontece que ninguém garante que, após o projeto estar terminado, a sua tecnologia não possa ser redefinida e vendida fora da Europa, ou seja, que a sua “missão” de não provocar danos em humanos não possa ser redefinida e que não possa “cair nas mãos erradas”.
Acontece que assim que esta tecnologia tiver sido desenvolvida, ao fazer o trabalho eficientemente e a baixo custo, ela passará a ser vista como a solução para as migrações, acabando por ser instituída e aceite como rotina que acabará por ser aplicada sem qualquer consulta ou escrutínio legislativo (depois, a posteriori serão feitas Comissões Parlamentares).
A pergunta mais geral que se impõe:
“Quem decide se se deve ou não desenvolver tal tipo de tecnologia que pode potencialmente vir a ser usada contra pessoas vulneráveis em locais com poucas proteções relativas a direitos humanos?”
Noel Sharkey, professor de robótica e inteligência artificial (IA) da Universidade de Sheffield, fundador do Comité Internacional para o Controle de Armas Robóticas, avisa-nos sobre as implicações da combinação da tecnologia com base de decisões na IA e do seu uso em zonas fronteiriças politicamente sensíveis:
“É apenas uma questão de tempo antes de um drone ser capacitado para agir contra as pessoas, fazendo-as parar”.
Já vimos este filme. Literalmente, em 2013, Kosinski realizou Oblivion (Esquecido), com Tom Cruise, Olga Kurylenko e Morgan Freeman.
Muitos dirão: “OK, é filme. E mesmo que venha a acontecer, não é agora, e muito menos em Portugal”.
Surpresa: um dos seus principais parceiros do Roborder, é a Tekever, empresa portuguesa de drones criada em 2001 por ex-alunos do Instituto Superior Técnico, para a fabricação de drones (https://pt.wikipedia.org/wiki/Tekever).
Surpresa: o Roborder está previsto ser posto à prova com as polícias de fronteiras de Portugal, Hungria, Grécia e outras.
Os ingredientes estão todos lá, e até já estão a serem cozinhados. Muito brevemente a refeição estará pronta a ser experimentada. Mais um prato que teremos que comer e gostar. Porque sim.
Fábula:
“Num canto qualquer afastado do universo espalhado por cintilantes e inumeráveis sistemas solares, existiu uma vez um astro em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais ilusório da «história universal», mas não passou de um minuto. Bastaram algumas respirações da Natureza para o astro se congelar, e os animais inteligentes foram obrigados a morrer. Tal é a fábula que alguém poderia inventar …”, Nietzsche, “Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral”, 1873.