(212) Como não démos por isso?
Tempo estimado de leitura: 6 minutos.
A ficção da produção de bens não entrou em consideração com o facto de se deixarmos o solo e as pessoas entregues ao mercado, tal levará à sua aniquilação, Karl Polanyi.
A divisão de trabalho molda a experiência cultural, psicológica e social.
Se a civilização industrial desabrochou às custas da natureza, o que agora ameaça custar-nos a Terra, uma civilização da informação moldada pelo capitalismo de vigilância florescerá à custa da natureza humana, o que ameaça custar-nos a humanidade, Shoshana Zuboff.
Ao longo de toda a história, as corporações mais poderosas da nação sempre se mobilizaram persistentemente na utilização da Constituição para combaterem a legislação governamental que lhes fosse indesejada, Adam Winkler.
Apesar dos muitos benefícios e dos imensos feitos do capitalismo industrial (da revolução industrial), ele deixou-nos perigosamente à beira do mesmo destino que os habitantes da Ilha de Páscoa tiveram quando destruíram o solo que lhes dera vida, acabando por erigirem as enormes estátuas que pesquisavam o horizonte em busca de socorro que não chegou.
A lógica de acumulação do capitalismo industrial desresponsabilizava as empresas pelas suas consequências destrutivas. Sabe-se hoje que esses métodos de dominação empregues por mais de dois séculos, alteraram, talvez fatalmente, as condições de vida na Terra, originando a desestabilização do sistema do clima, e o caos que se abate sobre todos os seres vivos.
Sabe-se também (já desde o tempo de Durkheim) que essa nova lógica de acumulação, extravasa, para além das suas práticas comerciais, para o fabrico de relações sociais, transformando as relações que tínhamos para connosco mesmo e para com os outros.
Atentemos nas características que a nova divisão de trabalho do capitalismo industrial vai introduzir: conversão da manufatura em produção em massa com base na padronização, racionalização, e intermutação das partes; cadeia de montagem em movimento; produção em volume; grande quantidade de trabalhadores assalariados concentrados em fábricas; hierarquias administrativas personalizadas; autoridade de gestão; especialização funcional; e a distinção entre empregados administrativos e operários.
Para além disso, a passagem da manufatura para o salário à hora, criou uma nova população de empregados e consumidores, homens e mulheres totalmente dependentes dos meios de produção possuídos e operados por empresas privadas.
O esqueleto dessa sociedade de massa assentava na autoridade hierárquica, e nas formas burocráticas centralizadas dos poderes públicos ou privados, com a imposição de conformidade, obediência e padronização humana.
A vida era regulada por instituições que eram o espelho das organizações industriais: escolas, hospitais, vida doméstica, em que as idades e fases eram percebidas como funções do sistema industrial, desde o ensino até à reforma.
Concluindo: esta nova divisão de trabalho vai moldar a experiência cultural, psicológica e social.
A análise de toda esta transformação, levou Karl Polanyi, (The Great Transformation: The Political and Economics Origns of Our Time), a escrever profeticamente, há quase setenta anos:
“A ficção da produção de bens não entrou em consideração com o facto de se deixarmos o solo e as pessoas entregues ao mercado, tal levará à aniquilação delas”.
Preocupada com a transformação que o capitalismo de vigilância possa vir a introduzir na nova civilização da informação em que vivemos, Soshana Zuboff, ressuscitando Polanyi, equaciona assim o problema:
“Se a civilização industrial desabrochou às custas da natureza, o que agora ameaça custar-nos a Terra, uma civilização da informação moldada pelo capitalismo de vigilância florescerá à custa da natureza humana, ameaçando custar-nos a humanidade”.
Como tudo isto foi acontecendo, como se foi dando a passagem para esta nova economia de um capitalismo de vigilância, é algo que importa saber, para podermos limitar os seus efeitos nefastos, se o quisermos ou se ainda o pudermos.
Algumas notas, razões explicativas, que contribuíram para o seu rápido sucesso e implantação:
Impreparação da sociedade:
Como seria possível imaginar que aquelas novas empresas que nos forneciam gratuitamente as possibilidades de acesso à informação sem limites, a novas formas de comunicação, a novos telefones móveis que cada um poderia transportar consigo, a novas formas de entretenimento à disposição e escolha de cada um, com donos tão novos e geniais, eram empresas que sem nosso conhecimento e consentimento se estavam a apropriar e a vender tudo o que pudessem da nossa vida?
Até porque a desconfiança sobre a devassa das nossas vidas, a vigilância sobre elas, era suposto virem do poder do estado que, inclusivamente, era costumeiro em fazer incursões no campo da modificação comportamental.
Ou seja, não estávamos preparados, porquanto até aí não havia quaisquer precedentes desse tipo de atuação por parte de empresas privadas. Além do mais, empresas de quem gostávamos e com tanto charme.
Não existência de legislação impeditiva:
A justificação dessas empresas para utilizarem a nossa privacidade dessa forma, apoderando-se dela, transformando-a em produto posterior de venda, é a mesma que foi utilizada pelos capitães-navegadores dos séculos passados quando invadiam as novas terras: a “declaração” que lhes dava direito a ficarem com tudo, perante a incredulidade e espanto dos povos invadidos (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/210-o-direito-a-conquista-55274).
Ou seja, insistiam na não existência de leis que as impedissem de prosseguir com as suas estratégias e práticas de nos manter no desconhecimento.
Políticas neoliberais dominantes:
Foram favorecidas pela cobertura que encontraram nas políticas neoliberais dominantes que faziam equivaler a regulação dos negócios pelos governos, a tirania.
Vigilância como estado de exceção:
Conjunturalmente, foram também favorecidas pela “guerra ao terrorismo” desencadeada pelo ataque de 9/11, em que o governo americano passou legislação excecional com vista a isentar a Google e outras empresas idênticas de restrições legais para que elas pudessem rapidamente desenvolver tecnologias de vigilância. Um “estado de exceção” que, inclusivamente, se estendeu à Europa, nomeadamente à Alemanha, Grã-Bretanha e França.
Estas “afinidades” entre governo e empresas deu origem a um exceciona lismo de vigilância que isentou esse novo mercado de escrutínio, alimentando o seu desenvolvimento.
Portas giratórias:
Claro está que essas empresas protegeram as suas operações, cultivando agressivamente as suas relações com os políticos recém-eleitos e nomeados, estabelecendo portas giratórias de cargos entre o governo e Silicon Valley, com grandes gastos nos grupos de pressão e com campanhas de insinuação e de influência cultural.
Gratuitidade de serviços:
Também os serviços gratuitos disponibilizados pela Google, Facebook, e outros, aparecem como necessários e irresistíveis de usar por parte por parte das pessoas à procura de informações para empregos e outros. A utilização destes meios de participação social muito contribuirão para a alteração comportamental em curso. Mesmo sabendo desse processo, a maior parte das pessoas não consegue afastar-se deles, ou mesmo se será possível fazê-lo.
Novos mercados apostados no comportamento futuro:
Estes novos mercados dão origem a muitos colaboradores, parceiros, e clientes cujas receitas dependem dessas previsões. Exemplos são as companhias de seguros que necessitam dessas previsões para uma maior garantia das suas receitas, ou o simples dono da pizaria com o mapa do Pokémon Go.
Ficar de fora é arriscado:
Muitas pessoas julgam que se não estiverem no Facebook não existem. Pessoas de todo o mundo correram para participarem no Pokémon Go. Com tanta energia, sucesso, e capital acorrendo ao domínio destas empresas, ficar de fora, ou pôr-se contra, é um negócio arriscado e solitário.
Sucesso financeiro e popularidade:
Os donos e gestores destas empresas de capitalismo de vigilância apresentam-se agressivamente a eles próprios como empreendedores heroicos. Muitas pessoas identificam-se e admiram o sucesso financeiro e popularidade e considera-os como seus modelos a seguir.
Participar do futuro:
Muitos também olham para estas empresas e seus dirigentes como autoridades sobre o futuro, como génios que veem mais longe que nós. O que é uma falácia, na medida em que sugere que por as empresas terem sucesso, então é porque estão no caminho certo. O que leva muitos de nós desejar participar nessa cadeia de inovações que antecipam o futuro.
A inevitabilidade:
A utilização obrigatória e intensiva do computador como mediação submerge-nos no dilúvio da retórica da inevitabilidade (“não há alternativas”), distraindo-nos da intencionalidade e contingência deste capitalismo de vigilância em que vivemos. O aparecimento constante de factos institucionais serve para estabilizar as novas práticas. Cai-se na resignação e num sentimento de ser escusado lutar contra, de não valer a pena.
Fraqueza humana:
Para além deste sentimento induzido de inevitabilidade, é também utilizado o argumento da ideologia da fraqueza humana. O ser humano como ser que falha, e incapaz de reconhecer as suas falhas. Daí ser necessária a sua modificação comportamental quer individual quer coletiva.
Divisão do conhecimento:
Há ainda o argumento que diz que essas empresas, que dominam uma anormal divisão do conhecimento, sabem coisas que nós não sabemos, e que é por isso que escondem as suas intenções e práticas, mantendo-as secretas. É, portanto, impossível compreender seja o que for que tenha sido feito em segredo e de forma ininteligível.
O sistema foi mesmo feito para nos por de lado, e ainda por cima assacando-nos a responsabilidade pelo nosso desconhecimento resultante da divisão do conhecimento por eles feita, da falta de tempo que lhe podemos dedicar, dos recursos e das ajudas disponíveis.
A velocidade:
A utilização política e militar da velocidade como forma de violência já era conhecida. É exatamente isso que fazem estas empresas, que passaram da invenção à dominação no tempo recorde de vinte anos. A velocidade é usada conscientemente para paralisar o estado de alerta, congelando a resistência enquanto nos distrai com gratificações imediatas. A sua velocidade ultrapassa em muito as da democracia e mesmo as nossas capacidades para perceber o que está a acontecer e a sopesar as consequências.
Para além destas razões e motivos apontados e relativos a esta nova fase da economia e da sociedade em geral, convém não esquecer que esta economia de vigilância continua a assentar as suas bases programáticas na economia geral em que se inscreve.
Por exemplo, não a podemos acusar de ser pioneira da política de portas giratórias e promiscuidade entre os governos e as empresas privadas. Nem das políticas de baixos salários e da promoção de desigualdade salarial, nem da fuga aos impostos. Nem a podemos acusar de tentar apoderar-se do Estado ou de tentar ultrapassar ou menorizar o governo, porquanto isso tem sido sempre uma constante do sistema. Está nos genes das grandes empresas:
“Ao longo de toda a história americana, as corporações mais poderosas da nação sempre se mobilizaram persistentemente na utilização da Constituição para combaterem a legislação governamental que lhes fosse indesejada”, Adam Winkler.