(211) Economia de vigilância: como a fizeram?
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Já ninguém se espanta que se compre sangue e se vendam órgãos, que se pague a outros para estarem grávidos por nós, para nos guardarem o lugar em filas de espera, para poderem matar animais em vias de extinção, etc.
“Nós somos os meios para os fins de outros”.
“Organizar a informação do mundo, tornando-a universalmente acessível e útil”, missão da Google.
“O que queremos, é ter a certeza que o governo não se meta nos nossos negócios para os não atrasar”, CEO da Intel.
Pela própria lógica da sua criação, estas empresas são impelidas para a operação num espaço em que as leis não contem.
A Google foi criada em1998 por Larry Page e Sergey Brin, e propunha-se alterar a forma controlada como a informação existia, substituindo-a por uma informação libertadora e democrática, extensível a todos. A informação como força social libertadora. A sua missão: “Organizar a informação do mundo, tornando-a universalmente acessível e útil”.
Os seus serviços rapidamente se impuseram a todos os utilizadores devido à grande diversidade de domínios que punha gratuitamente à disposição das pesquisas online. Como consequência, a informatização desses serviços, ia produzindo um crescente manancial de recursos.
Cada pesquisa providenciava data para além da resultante à da própria pesquisa: por exemplo, o número e o padrão dos termos pesquisados, a pontuação, a ortografia, os padrões do “cliquar”, a localização e a forma como a pesquisa era pedida.
Embora todos estes sinais/produtos colaterais fossem armazenados, eram inicialmente ignorados. Foi Amit Patel que se apercebeu da potencialidade desta data armazenada, e que dizia respeito aos interesses, pensamentos e sentimentos de cada um dos utilizadores, permitindo que o motor de busca se “transformasse” num sistema de aprendizagem que atualizava e melhorava os resultados da busca, numa reciclagem automática para criar novos produtos.
Nesta fase, o motor de busca necessitava das pessoas para aprender, e as pessoas necessitavam da “busca” para aprenderem. O utilizador providenciava matéria prima na forma de data comportamental, e essa mesma data era tratada pala empresa para aumentar a velocidade, a certeza, a relevância e ainda para desenvolver outros produtos como a tradução. Ou seja, toda a data comportamental era reinvestida para melhorar o produto ou o serviço.
Na fase seguinte, a data comportamental já não era só usada para melhorar os serviços para os utilizadores, mas para se aperceber do estado dos utilizadores com a finalidade de os emparelhar com os seus interesses. Com o acesso a estes dados comportamentais, a Google passou a poder saber o que um determinado indivíduo, num determinado tempo e lugar, estava a pensar, a sentir, ou a fazer.
Numa terceira fase, com a utilização de novos métodos, técnicas e táticas, o interesse passa a ser focado, não já nos processos automáticos de conhecimento do nosso comportamento, mas nos processos de formatação do nosso comportamento de acordo com os seus interesses. Ou seja, fazer com que o produto que vendiam, a previsão sobre o nosso comportamento, tivesse mais garantia de corresponder à realidade. Fazer com que a automatização que fluía acerca de nós passasse a automatizar-nos a nós. Transformarem-nos em certezas.
Resumindo: a invenção da Google permitiu “melhorar” as capacidades para se inferir e deduzir os pensamentos, sentimentos, intenções, e interesses de indivíduos e grupos, com uma arquitetura automatizada que operava independentemente do conhecimento e do consentimento da pessoa, possibilitando assim acesso privilegiado a segredos contidos na data comportamental, e condicionando o comportamento futuro.
Que isto já não nos espante, não nos indigne, nem sequer mereça qualquer tipo de atenção, é a prova do estado de anestesia a que fomos submetidos por estes novos métodos (1). Aliás, já ninguém se espanta que se compre sangue e se vendam órgãos, que se pague a outros para estarem grávidos por nós, para guardarem o lugar em filas de espera, para matarem animais em perigo de extinção, etc.
Uma das características da Google é que, contrariamente à Apple, os seus utilizadores não são seus clientes: não há qualquer troca comercial, qualquer preço ou lucro envolvido.
Os seus utilizadores também não são seus trabalhadores. Quando um capitalista emprega trabalhadores e lhes paga um salário e lhes dá meios de produção, então o que eles produzem pertence ao capitalista, que o pode vender para obter lucro. Na Google, os utilizadores não são pagos pelo seu trabalho, nem operam meios de produção.
Também contrariamente ao que se diz, os utilizadores da Google não são o seu produto. Os utilizadores são apenas as fontes do fornecimento de matéria-prima. Os seus produtos, embora baseados nos nossos comportamentos, e indiferente ao que fazemos ou ao que nos é feito, são as previsões que fazem sobre nós.
Nós somos os “objetos” a partir dos quais são extraídas as matérias-primas que são depois expropriadas para as fábricas de predição. Os produtos da Google são as previsões sobre o nosso comportamento, que são vendidas para os clientes da Google, que não somos nós. “Nós somos os meios para os fins de outros”.
O reinvestimento em serviços para os utilizadores são apenas um método para fazer com que estejam mais tempo em linha, permitindo assim a recolha de mais informações, ou seja, para atrair mais excedentes comportamentais (matéria-prima) que irão gerar mais receitas.
Inicialmente todos estes excedentes comportamentais eram simplesmente “encontrados”, com origem nas ações de busca dos utilizadores. Posteriormente, passaram a ser agressivamente perseguidos, caçados, em grande medida através da vigilância constante.
Ao mesmo tempo, as empresas criaram um novo mercado no qual esses “seus produtos de previsão” obtidos a partir da matéria prima comportamental, podiam ser comprados e vendidos.
É por esta recolha ser feita sem o conhecimento, e sem o consentimento dos utilizadores, e por ela estar na base da acumulação dos excedentes comportamentais, que a política de segredo é tão importante para estas companhias.
Desde o início que os responsáveis pela Google sabem que o seu sucesso iria requerer uma perseverante e contínua defesa deste seu “pecado repetitivo”. Por isso, eles não queriam ficar presos nem à disciplina da “governança” a que estavam sujeitas as empresas privadas, nem a restrições legais democráticas. Sabiam que para assegurar e explorarem a sua liberdade, a democracia devia de ser mantida ao largo.
Para resolver o primeiro caso, criaram uma arquitetura empresarial que lhes deu controle absoluto independente dos acionistas. Para o segundo caso, reclamaram que as suas operações diziam respeito apenas ao domínio do ciberespaço, um território social que não estava sujeito a qualquer lei.
E desenvolveram várias justificações, como, por exemplo, a manifestada pelo CEO da Intel, Andy Grove:
“A tecnologia de ponta anda três vezes mais depressa do que o mercado normal. E o governo anda três vezes mais devagar que o mercado normal. Temos, portanto, um desfasamento de nove vezes…E, portanto, o que queremos fazer, é ter a certeza que o governo não se meta nos nossos negócios para os não atrasar”.
Ou seja, pela própria lógica da sua criação, este tipo de empresas é impelida para a operação num espaço em que as leis não contem.
Os tais “excedentes comportamentais” incluem: buscas, e-mails, textos, fotos, canções, mensagens, vídeos, locais, padrões de comunicação, atitudes, preferências, interesses, rostos, emoções, doenças, redes sociais, compras e tudo o mais que se conseguir.
Para a captura dos excedentes comportamentais, a Google trabalha com novos algoritmos, sensores, conetividade para simular automóveis, camisas, telefone, livros, vídeos, robôs, chips, drones, camaras, realidade aumentada, córneas, árvores, televisão, escutas, nanobots, flora intestinal, etc.
As suas aquisições ou acordos que não fazem sentido para nós, têm todo o sentido para ela. E abrangem todos os campos e tamanhos, desde grandes empresas a miniempresas recém-formadas. Pequenos exemplos inesperados: com a firma que produz os aspiradores autónomos que limpam as casas, os Roomba; ou da empresa de segurança Nest, que instala câmaras nas casas; ou da empresa que produz camas e colchões, Sleep Number.
Os aspiradores autónomos, percorrendo as divisões das casas dando a conhecer todos os cantos e disposição das casas; as câmaras instaladas, vigiam quem se aproximar dentro de um determinado perímetro, e que enviam diretamente para a polícia o reconhecimento facial de quem não constar das listas fornecidas pelos donos; os colchões que dão indicação das melhores posições, do ritmo cardíaco e respiratório, da melhor temperatura, dos ruídos presentes no quarto, etc.
E não vamos falar sobre o Street View, que tantos problemas legais pôs, pelo que foi transformado em Google Maps, que continua a dar problemas legais, mas que já é mais aceite (o tal problema da água mole em pedra dura, como tática utilizada), nem de todos os aparelhos apelidados de smart-qualquer coisa. Nem do Pokémon Go, derivado do Google Maps, que lançado em julho de 2016, possibilitava data em tempo real que permitia elaborar mapas do interior, exterior, de espaços públicos e privados, e acima de tudo, a maneira como os utilizadores respondiam à tele-estimulação dirigida para objetivos pré-determinados.
Quando confrontado com esta “diversificação” de produtos para uma empresa que se devia dedicar à informação, Eric Schmidt, CEO da Google, respondeu:
“O objetivo da empresa é a satisfação dos clientes. A Google tem apenas um produto: a satisfação do cliente”.
Os clientes são os anunciantes mundiais e todos os outros que paguem pelas suas predições. Quanto maior for esta diversificação, mais confiável será a escala do produto, e maior será a possibilidade de alterar ou retirar os produtos que não corresponderem ao desejado.
O volume da informação obtida é de tal ordem que deixou de se ter capacidade para a discernir. A solução é a utilização de computadores de inteligência artificial (IA) para a poder analisar.
Um dos problemas que esta solução põe, é a enorme concentração de talentos em IA. Esses talentos não se encontram dispersos por toda a sociedade, mas antes concentrados num pequeno número de empresas.
Nesta “economia de vigilância”, estes cientistas não são recrutados para resolverem os problemas mundiais da fome ou para eliminarem os combustíveis à base de carbono. Em vez disso, os seus génios são usados para vasculharem os limites da experiência humana, para a transformarem em data e para a traduzirem para o novo mercado que cria riqueza pela predição, pela influência e pelo controle do comportamento humano.
Somos assim levados a acreditar neste padrão tecnológico de desenvolvimento em que aos poucos nos têm mergulhado. Ao aceitarmos a ideia que a tecnologia não deve ser impedida de fazer a sociedade prosperar, estamos a submetermos ao determinismo tecnológico. Daí que a consideração racional de valores sociais seja considerada retrógrada.
Por outro lado, como a Google é marca de sucesso, tal prova que esta nova forma de capitalismo utilizado conduz ao sucesso, num processo que se acredita automático e autónomo. A proliferação de empresas similares, grandes e pequenas, são disso prova.
Só que, esta nova lógica económica e seus modelos comerciais, a que Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”, não resulta do desenvolvimento tecnológico como nos querem fazer acreditar. Ela foi descoberta por pessoas reais, numa determinada data e local, sendo depois aperfeiçoada através de tentativas e erro, como sucede com qualquer realização humana. Neste caso, não há dúvida que foi a Google a pioneira na sua descoberta, elaboração, experimentação e prática do seu modelo, e na sua difusão.
No seu livro The Age of Surveillance Capitalism, The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power, Shoshana Zuboff começa por nos dar a definição de “capitalismo de vigilância”:
“1. Uma nova ordem económica que declara que a experiência humana constitui matéria prima gratuita para ser sub-repticiamente apropriada para as práticas comerciais de extração, predição e venda; 2. Uma lógica económica parasita na qual a produção de produtos e serviços está subordinada a uma nova arquitetura global de modificação comportamental; 3. Uma mutação parasita do capitalismo marcada pela concentração da riqueza, conhecimento e poder, sem precedentes na história humana; 4. O fundamento do quadro de uma economia de vigilância; 5. Uma ameaça tão significativa para a natureza humana no século XXI como o capitalismo industrial dos séculos XIX e XX foi para o mundo natural; 6. A origem de um novo instrumento de poder que conduz ao domínio sobre a sociedade e que apresenta enormes desafios à democracia do mercado; 7. Um movimento que tem por finalidade impor uma nova ordem coletiva com base numa certeza total; 8. Uma expropriação de direitos humanos críticos que é melhor entendido como se fosse uma golpe vindo se cima: o derrubar a soberania do povo.”
Um próximo blog irá abordar a seguinte questão: Como é que não demos por isso?
Nota 1: Michel Foucault (1926-1984), ao analisar de maneira muito técnica as maneiras como se exerceu o poder na Europa dos séculos XVII e XVIII, detetou uma mudança nas formas de conseguir obter a obediência dos indivíduos: já não se tratava de fazê-los obedecer à força, mas de torná-los dóceis. A docilidade não é uma obediência mecânica, como a vassalagem ou a escravidão, mas uma forma de domínio que necessita potenciar as capacidades dos indivíduos: quer dizer, quanto mais aptos, mais dominados; quanto mais capazes, mais úteis; quanto mais potentes, mais eficientes; quanto mais competentes, mais disponíveis.
Ver ainda o meu blog de 5 outubro de 2016, “Do ‘biopoder’ ao ‘psicopoder”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/do-biopoder-ao-psicopoder-21800).