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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(209) “A Ciência encontra, a Indústria aplica, o Homem conforma-se”

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

“Você pode ter o carro com a cor que quiser desde que seja preta”, Henry Ford.

 

“A minha vida, à minha maneira, a um preço suportável” (my life, my way, at a price I can afford), promessas iniciais das empresas digitais.

 

A privacidade é o preço que temos de pagar para termos a enorme quantidade de informações, ligações, e outras utilizações, sempre ao dispor, quando, onde e como as queremos.

 

“A Ciência encontra, a Indústria aplica, o Homem conforma-se”, lema da Exposição Universal de 1933 em Chicago.

 

 

 

 

A propósito dos horrores que os nazis tinham cometido aos judeus, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, declarou que isso só acontecera por o partido de Hitler, responsável por tais crimes, ser um partido socialista. Estava certamente a referir-se ao facto de o partido nazi se denominar “nacional-socialista”, daí a conclusão “lógica” de ser um partido socialista.

Os primeiros tempos do século XX foram caracterizados pela irrupção das massas de trabalhadores e desempregados na sociedade, pelo que se percecionava como normal a resolução dos problemas através das suas ideias associativas.  Pode-se dizer que o socialismo era a palavra de ordem. Daí, que até um partido como o nazi, necessitasse de se fazer ver como um partido com representação e ligação a essas massas que por todo o lado emergiam.

 

Henry Ford, foi um dos que primeiro se apercebeu dessas alterações que se estavam a produzir na sociedade. Contrariamente a todos os outros que se preocupavam com a produção de carros de luxo, Ford percebeu que a grande maioria que não tinha nada, também queria muitas coisas, mas a um preço que pudesse pagar.

Coube-lhe a ele a invenção da “produção em massa” (termo que significava a combinação de um grande volume de produção com um baixo custo unitário de produção), e com isso, conseguiu reduzir em 60% o preço dos automóveis.

 

Ao pagar aos seus empregados da cadeia de montagem salários mais altos (os famosos “five-dollar day”) do que até aí se imaginara, para que até eles pudessem comprar um carro, estava a reconhecer que a produção em massa assentava numa população de consumidores em massa.

Era a sua forma de pôr em prática a sua famosa máxima:

 

“Você pode ter o carro com a cor que quiser desde que seja preta”.

 

A necessidade da proteção dessa massa de consumidores ávidos, passou ainda pela implementação de medidas e métodos que garantissem os seus direitos e segurança enquanto consumidores/trabalhadores/consumidores (emprego seguro, carreira, e aumentos graduais de vencimento e benefícios).

A filosofia de base era que o mercado seria mais produtivo sempre que conseguisse estar em sintonia com as necessidades e mentalidades das pessoas.

 

Em meados dos anos setenta, o sistema começou a estagnar, a inflação a crescer, o crescimento cai abruptamente. Sucedem-se as manifestações, a guerra do Vietname, a corrupção de Watergate, a não resolução do problema económico, a descrença no sistema político, tudo isso provocando confusão, ansiedade e desespero.

 

O socorro “oportuno” veio dos prémios Nobel de economia, o austríaco Friedrich Hayek (1972) e o americano Milton Friedman (1974), que preconizavam a “liberdade do mercado” como panaceia para esses males.

 Este credo, que aparece originariamente na Europa como defesa contra a ameaça coletivista do comunismo, preconizava a aceitação do mercado como regulador perfeito, libertando a economia dos constrangimentos impostos pela regulamentação estatal. A autoridade absoluta das forças do mercado.

 

A nível social, tal teoria económica implicava também a aceitação da libertação de baias morais que limitavam o crescimento económico, pelo que preconizava a desigualdade da riqueza e de direitos como uma caraterística de um sistema de mercado bem-sucedido e como força de progresso.

Um mínimo de presença do Estado na economia, de legislação social e de políticas de proteção social, de sindicatos e de instituições de acordos coletivos, de princípios de democracia política, tudo isto deveria ser substituído pela versão da verdade do mercado, sendo a competitividade a única solução para o crescimento.

 

A empresa pública como instituição social passou a ser considerada como um erro custoso, e a sua relação de longa duração com clientes e empregados, passa a ser considerada como uma violação destrutiva da eficiência do mercado.

No ano 2000, as empresas públicas dos EUA empregavam menos de metade dos trabalhadores que em 1970. As empresas públicas tornaram-se “desnecessárias para a produção, incapazes para garantirem emprego estável e serviços sociais de um estado de bem-estar, e incapazes de providenciarem a longo prazo um retorno fiável do investimento”.

Aparece a promoção/glorificação do “empreendedor”, junção do dono e gestor, como exemplo de audácia, no topo do gume da competitividade, domínio e riqueza.

 

Seguiram-se três décadas de crescimento económico através deste sistema de exclusão, até que em 2011, 9 de agosto, se dá em Londres o que foi considerado como “o maior motim da sua história desde o motim de Gordon em 1780”.

O motim, com roubos e incêndios, espalhou-se por vinte e dois dos trinta e dois bairros. Os prejuízos causados ultrapassaram os 50 milhões de libras, 3.000 pessoas foram detidas.

 

As razões invocadas, foram o desemprego e a pobreza entre as pessoas (“No jobs, no money”) que desejavam fazer parte da classe média e que se ressentiam da grande desigualdade existente entre elas e a elite mais rica.

Inexistência de oportunidades, pouco acesso à educação, marginalização, privação, ressentimento e desespero.

A mesma causa, exclusão e desigualdade económica, vai estar na origem, em maio 2012, do movimento dos Indignados em Madrid, e do Occupy, a 17 setembro, em Nova Iorque (Wall Street).

 

Ou seja, o século XXI, apesar do crescimento digital explosivo, do aparecimento da Apple e congéneres, e da penetração da internet no nosso dia-a-dia, inicia a segunda década com enormes problemas económicos e de desigualdade social. E apesar disso, ou por isso, nesta “idade de um novo consenso sobre estabilização de política financeira, a economia assistiu à maior transferência de rendimentos da história para a classe alta”.

 

Num relatório de 2016, o FMI avisa sobre o problema da instabilidade, para concluir que a senda global para o neoliberalismo “não produziu os efeitos que se esperavam”.

Thomas Piketty, vê mesmo esta fase neoliberal como um retorno ao “capitalismo patrimonial”, um reresso a uma sociedade pré-moderna onde as ocasiões da vida dependem mais da riqueza já adquirida do que dos méritos próprios.

 

O que acontece é que as pessoas já não são camponeses analfabetos, servos ou escravos. As políticas sociais seguidas na maior parte do século XX permitiram a centenas de milhões de pessoas o acesso a experiências que até então eram apenas para uma pequena minoria: educação universitária, aumento da idade de vida, viagens, vários tipos de meios de comunicação, acesso às informações, trabalho altamente especializado e intelectualizado.

 

Tentar agora acantoná-las tratando-as como se fossem invisíveis, retirando-lhes as perspetivas, não já sobre o amanhã das suas vidas, mas sobre o hoje, substituindo um Estado social por uma individualização artificialmente forçada e sem conteúdo humano, só poderá causar instabilidade na sociedade. Provavelmente será esse o objetivo pretendido: a individualização permite um maior controle. O velho aforismo: dividir para reinar.

 

 

A fusão do capitalismo com o digital, no início do século XXI, vai aparecer como uma tentativa, uma esperança, para a resolução deste estado de coisas. Foram nesse sentido as promessas da Apple na primeira década deste século que, juntamente com a Google e Facebook, galvanizaram as populações de todo o mundo ao entreabrirem a possibilidade de uma comunicação generalizada entre todos, sobre o que quisessem, quando e como o quisessem,  (“o que eu quero, quando, onde, e como quero”), independentemente das limitações que os canais oficiais até aí impunham.

 

Dos “iPhones” para o “clique” através do qual se poderia inscrever e encomendar cursos e produtos “on line” que deram lugar ao aparecimento de centenas de milhar de empresas na “web”, “apps” e outro aparelhos, era a oportunidade há muito ansiada (e propagandeada) para se ter a “minha vida, à minha maneira, a um preço suportável” (my life, my way, at a price I can afford).

Estávamos a assistir à alteração do anterior padrão de consumo de massa quase indiferenciado para um consumo individualizado, por vezes quase narcisista e petulante.

 

 

Mas rapidamente este potencial galvanizante de mudança do contrato social, começou a ser desbaratado pela “incompreensão” dessas mesmas empresas que o promoveram.

A Apple, passa a ser criticada pela sua política de preços exorbitantes, pelos empregos em offshores, por explorar os seus vendedores, pela desresponsabilização sobre as condições de fabrico, por contribuir para os baixos salários devido à colaboração com empresas de recrutamento, pela evasão institucionalizada aos impostos, e até pelo desrespeito por normas ambientais.

A Google, ao lançar o Gmail em 2004, começou a utilizar sem consentimento a correspondência individual privada para gerar anúncios.

 A Facebook, ao lançar o Beacon em 2007, indicando que tal seria “uma nova forma para distribuir socialmente a informação”, permitia aos seus anunciantes terem acesso às compras dos seus utilizadores, bem como às redes que usavam.

 

Os contratos de prestação de serviços, também chamados de contratos de adesão, excessivamente longos e complexos, são feitos por forma a que os utilizadores não os leiam e se limitem a concordar com o que lá está escrito. Basta o “I agree”.

Pior, esses termos de serviço incluem cláusulas que permitem que eles possam vir a serem alterados em qualquer altura, sem o conhecimento específico ou concordância do utilizador, implicando por vezes até os serviços de outras empresas, sem, contudo, se responsabilizarem por esses serviços.

 

Independentemente de especialistas considerarem tais contratos como “moral e democraticamente degradantes, uma perversão que reestrutura os direitos dos utilizadores instituídos pelo processo democrático, substituindo-os por um sistema que a empresa deseja impor unilateralmente”, o facto é que este procedimento é hoje generalizado.

 

Estas empresas justificam e explicam essas violações como uma necessidade para se continuar a ter internet gratuita. Segundo elas, a privacidade é o preço que temos de pagar para termos a enorme quantidade de informações, ligações, e outras utilizações, sempre ao dispor, quando, onde e como as queremos.

Em sua defesa, Mark Zuckerberg, declara em 2010, que a privacidade deixara de ser uma norma social.

 

Àquela promessa/sonho de uma economia individualizada e de relações sociais com base numa informação digital democratizada, a realidade apresenta-nos antes o caminho de “crescimento pela exclusão”, cuja única lógica de acumulação é o investimento na transformação da vigilância/espionagem individual sem consentimento, como forma rápida de lucro.

 

Como ao longo dos séculos sempre vimos as ameaças virem do poder do estado, e para isso fomos criando mecanismos de proteção, ficamos perfeitamente impreparados  para nos defendermos quando essas ameaças vêm de novas empresas com nomes muito apelativos e geridas por jovens génios que se nos apresentaram como capazes de realizar os nossos sonhos por pouco dinheiro ou até mesmo gratuitamente.

 

Eis o que disse Larry Page, CEO da Google, ao Financial Times, a 30 de maio de 2014:

 

O objetivo da companhia é o de organizar a informação do mundo e torna-la universalmente acessível e útil […] De um modo geral, é melhor deter as informações (“data”) em companhias como a Google do que ela ser retida pelo governo sem os devidos processos, porque, obviamente, nós temos uma reputação a defender. Não tenho a certeza se o governo se preocupa tanto com tal” (https://www.ft.com/content/f3b127ea-e708-11e3-88be-00144feabdc0).

 

Ou seja, ao sugerir que as pessoas devam acreditar mais na Google que nas instituições democráticas, e ao afrontar o governo desta forma, o que estas empresas nos estão a dizer é que estão determinadas a manter o seu controle privilegiado sobre todas as nossas informações obtidas sem consentimento.

Elas acumulam enormes domínios de novos conhecimentos sobre nós, mas não para nós. Predizem os nossos futuros para que outros possam ganhar com isso, não para sermos nós a ganhar.

Querem que pensemos que as suas práticas são a expressão inevitável das tecnologias que empregam, quando é a sua lógica de rapina e crescimento que põe a tecnologia no comando.

 

Tudo isto significa que, passado todo aquele entusiasmo inicial e da crescente dependência de tecnologia, as forças económicas do mundo “real” mantêm-se bem presentes. Continua a imperar o “business as usual”.

Aliás, como já dizia o lema da Exposição Universal de 1933 em Chicago:

 

A Ciência encontra, a Indústria aplica, o Homem conforma-se”.

 

 

 

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