Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(537) Os novos cristãos-novos

Tempo estimado de leitura: 3 minutos.

 

"Não existe Cisjordânia — é Judeia e Samaria. Não existe povoação. São comunidades. São bairros. São cidades. Não existe ocupação." Mike Huckabee.

 

O Embaixador dos EUA em Israel opõe-se à criação de um Estado palestiniano, rejeitando a identidade palestiniana como "uma ferramenta política para tentar forçar a apropriação de terras por Israel".

 

E apela ao Presidente Trump para utilizar bombas atómicas para acabar com o Irão, pois ele é um escolhido por Deus.

 

 

 

 

Recentemente, o Presidente Trump partilhou com o público o texto de uma mensagem que lhe foi enviada por Mike Huckabee, embaixador dos EUA em Israel.

 

Eis o que diz o texto:  

 

Sr. Presidente,

 

Deus poupou-o em Butler, na Pensilvânia, para ser o Presidente mais importante num século — talvez de sempre. Não gostaria que as decisões que pesam sobre os seus ombros fossem tomadas por mais ninguém.

 

Muitas são as vozes que tem a falar consigo, Senhor, mas há apenas UMA voz que importa. A voz DELE.

 

Sou o seu servo designado nesta terra e estou disponível para si, mas não tento estar na sua presença com frequência porque confio nos seus instintos.

 

Nenhum Presidente na minha vida esteve numa posição como a sua. Não desde Truman em 1945. Não estendo a mão para o persuadir. Apenas para o encorajar.

 

Acredito que ouvirá do céu e que essa voz é muito mais importante do que a minha ou a de QUALQUER outra pessoa.

 

Enviaste-me a Israel para ser os teus olhos, ouvidos e voz e para garantir que a nossa bandeira está hasteada na nossa embaixada. O meu trabalho é ser o último a sair.

 

Não abandonarei este posto. A nossa bandeira NÃO virá abaixo! Não procurou este momento. Este momento procurou-O!

 

É uma honra servi-lo!

 

Mike Huckabee”

 

 

Mike Huckabee é um pastor Baptista conhecido pelas suas posições Evangélicas (a Verdade só está nos Evangelhos), que foi comentador político com programas de televisão na Fox News, na TBN e na rádio (The Huckabee Report), governador do Arkansas de 1996 a 2007, candidato presidencial à Casa Branca em 2008 e de novo em 2016, desistindo a favor de Trump. Em 2025 foi nomeado Embaixador em Israel, cargo que atualmente exerce.

 

A carta enviada ao presidente Trump, para além de expressar uma devoção pessoal, quase subserviência, que tem para com o seu chefe, reflete bem as suas posições sobre Israel e a Palestina que desde sempre tem defendido. 

Huckabee é um forte defensor de Israel, opondo-se à criação de um Estado palestiniano e rejeitando a identidade palestiniana como "uma ferramenta política para tentar forçar a tomada de terras por Israel". Em 2008, afirmou que "não existe realmente algo como um palestiniano". Em 2017, num acontecimento na Cisjordânia, declarou: "Não existe Cisjordânia — é Judeia e Samaria. Não existe povoação. São comunidades. São bairros. São cidades. Não existe ocupação."

Recentemente, a 1 de junho de 2025, disse que, se a França quer um Estado palestiniano, então que o “acolha” na Riviera Francesa.

 

Mas nesta carta, para além do fundamentalismo religioso expresso, o mais perturbador são a referência feita a Truman em 1945 (uma referência à última e única vez que um líder nacional usou armas atómicas contra um Estado inimigo), e a referência feita a Butler, a localidade em que como sabemos o próprio Trump afirma ter passado por uma transformação religiosa depois de ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato (‘It changed something in me’: Trump admits attemped assassination transformed his belief in God).

 

Um convite ao bombardeamento atómico de outra nação (neste caso, do Irão) em nome de Deus por um escolhido de Deus. E ainda vamos no século XXI.

 

O que há de diferente desta vez relativamente à decisão de invadir o Iraque em 2003 em que o período que antecedeu o conflito foi repleto de alegações alarmistas que se revelaram falsas (o vice-presidente Dick Cheney declarou: "Não há dúvida de que Saddam Hussein possui agora armas de destruição maciça. Não há dúvida de que as está a acumular para usar contra os nossos amigos, contra os nossos aliados e contra nós". O presidente George W. Bush afastou a verificação dos factos como um impedimento insustentável: "Não podemos esperar pela prova final — a prova cabal — que pode vir sob a forma de uma nuvem em forma de cogumelo.") é que agora essa decisão manifesta-se às claras com base num fundamentalismo religioso. Neste aspecto, Israel já ganhou.

 

Em qualquer dos casos, quer porque Trump se julgue verdadeiramente o ungido por Deus ou porque pretenda testar mais um dos limites do seu poder real (o de decidir uma ação de guerra sem autorização do Congresso), o destino está traçado. Por agora.

 

 

Nota: este artigo foi escrito antes do bombardeamento feito pelos EUA ao Irão, ocorrido a 22 de junho. Contudo, entendi mantê-lo por continuar a parecer-me esclarecedor.

Percebe-se agora melhor a razão porque Trump publicitou aquela carta do embaixador Huckabee.

 

Nota: complementar com o blog de 18 de novembro de 2015, “A cartilha do fundamentalismo”.

 

(536) O governo dos idiotas

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Os últimos dias dos impérios moribundos foram dominados por idiotas.

 

Uma sociedade convulsionada pela desordem e pelo caos, celebra os moralmente degenerados, aqueles que são astutos, manipuladores, mentirosos e violentos.

 

A tempestade impulsiona-o irresistivelmente para o futuro para o qual está de costas, enquanto a pilha de destroços à sua frente cresce em direção ao céu. Esta tempestade é o que chamamos de progresso, Walter Benjamin.

 

Trump, o piromaníaco, entretém-nos enquanto nos afundamos.

 

 

 

A 7 de junho de 2025, Chris Hedges escreveu este artigo, intitulado “The Rule of Idiots”, (O Governo dos Idiotas), que aqui traduzimos:

 

Os últimos dias dos impérios moribundos foram dominados por idiotas. As dinastias do império romano, maia, francês, Habsburgo, otomano, Romanoff, iraniano e soviético, desmoronaram debaixo da estupidez dos seus governantes decadentes que se ausentaram da realidade, saquearam as suas nações e refugiaram-se em câmaras de eco onde o facto e a ficção eram indistinguíveis.

 

Donald Trump e os bufões bajuladores da sua administração são versões atualizadas dos reinados do imperador romano Nero, que esbanjou vastos recursos estatais na persecução de poderes mágicos; do imperador chinês Qin Shi Huang, que financiou repetidas expedições a uma ilha mítica de imortais para trazer de volta uma poção que lhe daria a vida eterna; e de uma corte czarista irresponsável que se sentava a ler cartas de tarot e a participar em sessões espíritas enquanto a Rússia era dizimada por uma guerra que consumiu mais de dois milhões de vidas e a revolução se instalava nas ruas.

 

Em "Hitler e os Alemães", o filósofo político Eric Voegelin afasta a ideia de que Hitler — talentoso na oratória e no oportunismo político, mas pouco educado e vulgar — tenha hipnotizado e seduzido o povo alemão. Os alemães, escreve, apoiavam Hitler e as "figuras grotescas e marginais" que o rodeavam porque ele personificava as patologias de uma sociedade doente, assolada pelo colapso económico e pela desesperança. Voegelin define a estupidez como uma "perda da realidade". A perda da realidade significa que uma pessoa "estúpida" não consegue "orientar corretamente as suas ações no mundo em que vive". O demagogo, que é sempre um idiota, não é uma aberração ou mutação social. O demagogo exprime o zeitgeist da sociedade, o seu afastamento coletivo de um mundo racional de factos verificáveis.

 

Estes idiotas, que prometem recuperar a glória e o poder perdidos, não criam. Eles apenas destroem. Aceleram o colapso. Limitados na capacidade intelectual, desprovidos de qualquer bússola moral, grosseiramente incompetentes e cheios de raiva pelas elites estabelecidas que consideram tê-los menosprezado e rejeitado, transformam o mundo num parque de diversões para vigaristas, aldrabões e megalomaníacos. Declaram guerra às universidades, banem a investigação científica, propagam teorias charlatanescas sobre vacinas como pretexto para expandir a vigilância em massa e a partilha de dados, retiram os direitos dos residentes legais e empoderam exércitos de capangas, que é o que o Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE) se tornou, para espalhar o medo e garantir a passividade. A realidade, seja a crise climática ou a miséria da classe trabalhadora, não interfere com as suas fantasias. Quanto pior fica, mais idiotas se tornam.

 

Hannah Arendt culpa uma sociedade que abraça voluntariamente o mal radical por esta "irreflexão" coletiva. Desesperada por escapar à estagnação, onde eles e os seus filhos estão presos, sem esperança e em desespero, uma população traída é condicionada a explorar todos os que a rodeiam numa luta desesperada para progredir. As pessoas são objetos a utilizar, espelhando a crueldade infligida pela classe dominante.

 

Uma sociedade convulsionada pela desordem e pelo caos, como Voegelin sublinha, celebra os moralmente degenerados, aqueles que são astutos, manipuladores, mentirosos e violentos. Numa sociedade aberta e democrática, estes atributos são desprezados e criminalizados. Aqueles que os exibem são condenados como estúpidos; "um homem [ou mulher] que se comporte desta forma", observa Voegelin, "será socialmente boicotado". Mas as normas sociais, culturais e morais numa sociedade doente invertem-se. Os atributos que sustentam uma sociedade aberta — a preocupação com o bem comum, a honestidade, a confiança e o autossacrifício — são ridicularizados. São prejudiciais à existência numa sociedade doente.

 

Quando uma sociedade, como observa Platão, abandona o bem comum, desencadeia sempre desejos amorais — violência, ganância e exploração sexual — e fomenta o pensamento mágico, o foco do meu livro Império da Ilusão: O Fim da Alfabetização e o Triunfo do Espetáculo.

 

A única coisa que estes regimes moribundos fazem bem é espetáculo. Estes números de pão e circo — como o desfile do Exército de Trump, de 40 milhões de dólares, realizado no seu aniversário, a 14 de junho — mantêm uma população aflita entretida.

 

A Disneyficação da América, a terra dos pensamentos eternamente felizes e das atitudes positivas, a terra onde tudo é possível, é propagada para mascarar a crueldade da estagnação económica e da desigualdade social. A população é condicionada pela cultura de massas, dominada pela mercantilização sexual, pelo entretenimento banal e irracional e pelas representações gráficas da violência, a culpar-se pelo fracasso.

 

Søren Kierkegaard, em A Era Presente, alerta que o Estado moderno procura erradicar a consciência e moldar e manipular os indivíduos, transformando-os num "público" maleável e doutrinado. Este público não é real. É, como escreve Kierkegaard, uma "abstração monstruosa, algo abrangente que não é nada, uma miragem". Em suma, tornamo-nos parte de um rebanho, "indivíduos irreais que nunca estão nem nunca podem estar unidos numa situação ou organização real — e, no entanto, mantêm-se unidos como um todo". Aqueles que questionam o público, aqueles que denunciam a corrupção da classe dominante, são descartados como sonhadores, aberrações ou traidores. Mas só eles, de acordo com a definição grega de pólis, podem ser considerados cidadãos.

 

Thomas Paine escreve que um governo despótico é um fungo que cresce a partir de uma sociedade civil corrupta. Foi o que aconteceu com as sociedades do passado. Foi o que nos aconteceu.

 

É tentador personalizar a decadência, como se livrarmo-nos de Trump nos trouxesse de volta à sanidade e à sobriedade. Mas a podridão e a corrupção arruinaram todas as nossas instituições democráticas, que funcionam na forma, não no conteúdo. O consentimento dos governados é uma piada cruel. O Congresso é um clube que recebe subornos de multimilionários e de empresas. Os tribunais são apêndices das empresas e dos ricos. A imprensa é uma câmara de eco das elites, algumas das quais não gostam de Trump, mas nenhuma das quais defende as reformas sociais e políticas que nos poderiam salvar do despotismo. O que importa é a forma como disfarçamos o despotismo, não o despotismo em si.

 

O historiador Ramsay MacMullen, em Corrupção e o Declínio de Roma, escreve que o que destruiu o Império Romano foi "o desvio da força governamental, a sua má orientação". O poder passou a ser um enriquecimento de interesses privados. Esta má orientação torna o governo impotente, pelo menos como instituição capaz de satisfazer as necessidades e proteger os direitos dos cidadãos. O nosso governo, nesse sentido, é impotente. É uma ferramenta das corporações, dos bancos, da indústria de guerra e dos oligarcas. Ele canibaliza-se para canalizar a riqueza para o alto.

 

"O declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável da grandeza desmedida", escreve Edward Gibbon. “A prosperidade amadureceu o princípio da decadência; a causa da destruição multiplicou-se com a extensão da conquista; e, assim que o tempo ou o acidente removeram os suportes artificiais, a estrutura estupenda cedeu à pressão do seu próprio peso. A história da ruína é simples e óbvia: e em vez de indagar por que o Império Romano foi destruído, deveríamos ficar surpreendidos por ele ter subsistido por tanto tempo.”

 

O imperador romano Cómodo, tal como Trump, era fascinado pela sua própria vaidade. Encomendou estátuas de si próprio como Hércules e tinha pouco interesse em governar. Imaginava-se uma estrela da arena, organizando lutas de gladiadores em que era coroado vencedor e matando leões com arco e flecha. O império — que ele renomeou Roma como Colónia Comodiana (Colónia de Cómodo) — era um veículo para saciar o seu inesgotável narcisismo e a sua sede de riqueza. Vendeu cargos públicos da mesma forma que Trump vende perdões e favores àqueles que investem nas suas criptomoedas ou doam ao seu comité de tomada de posse ou à biblioteca presidencial.

 

Finalmente, os conselheiros do imperador providenciaram para que fosse estrangulado no banho por um lutador profissional, depois de anunciarem que assumiria o consulado vestido de gladiador. Mas o seu assassinato não fez nada para travar o declínio. Cómodo foi substituído pelo reformador Pertinax, assassinado três meses depois. A Guarda Pretoriana leiloou o cargo de imperador. O imperador seguinte, Dídio Juliano, durou 66 dias. Em 193, ano seguinte ao assassinato de Cómodo, houve cinco imperadores d.C.

 

Tal como no antigo Império Romano, a nossa república está morta.

 

Os nossos direitos constitucionais —processo legal, habeas corpus, privacidade, liberdade de exploração, eleições justas e dissidência — foram-nos retirados por decreto judicial e legislativo. Estes direitos existem apenas nominalmente. A vasta desconexão entre os supostos valores da nossa falsa democracia e a realidade significa que o nosso discurso político, as palavras que usamos para nos descrevermos a nós próprios e ao nosso sistema político, são absurdas.

 

Walter Benjamin escreveu em 1940, em plena ascensão do fascismo europeu e da iminente guerra mundial:

 

Uma pintura de Klee chamada Angelus Novus mostra um anjo com a aparência de quem está prestes a afastar-se de algo que está a contemplar fixamente. Os seus olhos estão fixos, a sua boca está aberta, as suas asas estão abertas. É assim que se imagina o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Onde nos apercebemos de uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma única catástrofe, que continua a acumular destroços sobre destroços e os atira diante dos seus pés. O anjo gostaria de ficar, despertar os mortos e restaurar o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso; ela prendeu-se nas suas asas com tanta violência que o anjo já não consegue fechá-las. A tempestade impulsiona-o irresistivelmente para o futuro para o qual está de costas, enquanto a pilha de destroços à sua frente cresce em direção ao céu. Esta tempestade é o que chamamos de progresso.

 

A nossa decadência, o nosso analfabetismo e o nosso afastamento coletivo da realidade estavam em formação há muito tempo. A constante erosão dos nossos direitos, especialmente dos nossos direitos enquanto eleitores, a transformação dos órgãos do Estado em ferramentas de exploração, a miséria dos trabalhadores pobres e da classe média, as mentiras que saturam as nossas ondas hertzianas, a degradação da educação pública, as guerras intermináveis ​​e fúteis, a dívida pública assombrosa, o colapso das nossas infraestruturas físicas reflete os últimos dias de todos os impérios.

 

Trump, o piromaníaco, entretém-nos enquanto nos afundamos.

 

 

 

 

(535) Porque não sabemos o que não sabemos?

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Sabiam os dirigentes americanos que as bombas atómicas lançadas sobre cidades e civis japoneses teriam efeitos prolongados e mortíferos?

 

O envenenamento por radiação como "forma muito agradável de morrer", General Leslie R. Groves.

 

Ao entrar na II Guerra Mundial, todas as principais potências envolvidas faziam experiências com seres humanos.

 

 

 

 

Na sabedoria que fomos adquirindo ao longo do tempo (ou que nos foi sendo ensinada por quem cuida de nós), temos como normal e natural a existência de seres superiores, mais iluminados, que nos protegem, fontes do nosso bem-estar que têm dado forma à nossa sociedade. Seres especiais aos quais chegamos mesmo a atribuir características como o da infalibilidade. Não nos passa, portanto, pela cabeça que tomem decisões que nos possam vir a afetar, sem terem prévio conhecimento dos condicionantes e implicações envolvidas.

 

1# Quando os cientistas e decisores políticos americanos tomaram a decisão de utilizar as bombas atómicas sobre cidades japonesas, tinham eles conhecimento dos efeitos prolongados e mortíferos que elas produziriam, de certa forma análogos aos das armas químicas ou biológicas?

O historiador Sean L. Mallory num estudo publicado na Diplomatic History de 24 de abril de 2012, “ ‘A Very Pleasent Way to Die’: Radiation Effects and the Decision to Use the Atomic Bomb against Japan” (“Uma muito agradável maneira para morrer”: os efeitos da radiação e a decisão de usar a bomba atómica contra o Japão), vai debruçar-se sobre esta questão.

Segundo ele, do que se sabe sobre o conhecimento pré-Hiroxima existente nos Estados Unidos respeitante à maioria dos efeitos biológicos imediatos e a longo prazo da radiação nas vítimas, é que eles já eram previsíveis. Embora a compreensão da radioatividade entre os cientistas do Projeto Manhattan nessa altura estivesse longe de ser perfeita, já em 1940 existia uma extensa investigação realizada por cientistas e médicos, incluindo experiências em humanos e animais, que sugeria que a bomba produziria efeitos persistentes e letais.

 

Contudo, esse conhecimento desempenhou pouco ou nenhum papel na decisão de utilizar a bomba atómica. A política de compartimentação e sigilo imposta pelo diretor do Projeto Manhattan, General Leslie R. Groves, combinada com a determinação em construir a bomba antes dos nazis, fez com que poucos, mesmo dentro do próprio Projeto Manhattan, estivessem cientes ou interessados ​​no crescente conjunto de conhecimentos sobre os efeitos da radioatividade libertada.

 Parece que mesmo os altos dirigentes que tomaram as decisões finais sobre a bomba, incluindo o presidente Harry S. Truman, o secretário de Estado James F. Byrnes e o secretário da Guerra Henry L. Stimson, parece que nunca foram informados de que a arma continuaria a adoecer e a matar pessoas muito tempo depois da sua utilização. A Santa ignorância.

 

 

2# Esta aparente desconexão entre o conhecimento científico e a tomada de decisões políticas no que diz respeito à bomba atómica, continuou a observar-se na Guerra Fria, período em que os EUA e a União Soviética estavam a preparar-se para lutarem entre si nas ruínas pós-nucleares da Europa. Ambos os países realizaram exercícios militares com testes nucleares reais, pondo soldados a marcharem em direção a nuvens de cogumelos radioativas.

Num desses exercícios de treino conduzido pela União Soviética, denominado exercício nuclear de Totskoye (o Departamento de Defesa dos Estados Unidos tinha planos semelhantes, Operação Dropshot) foi realizado em 1954 no campo de treino de Totskoye, no Oblast de Orenburg, região sul da Rússia. A importância deste exercício vem do facto de ter sido o primeiro a utilizar armas nucleares como meio para conter e destruir as defesas da oposição numa guerra nuclear.

A localização da base militar foi especificamente escolhida porque a configuração da região era muito semelhante à da Europa Ocidental, que Georgy Zhukov (o general do exército responsável pelo treino) acreditava ser o local mais provável para o início da Terceira Guerra Mundial.

O treino militar começou com uma detonação nuclear para verificar os seus efeitos no armamento de guerra, nos animais e na estrutura de defesa já preparada, que simulava a formação de uma força inimiga.

O contingente envolveu aproximadamente 45.000 militares e 10.000 cidadãos de regiões locais. Uma das maiores consequências deste treino militar foram os numerosos casos de cancro, defeitos congénitos, mortalidade infantil, doenças hematológicas e anomalias cromossómicas, devido às medidas inadequadas tomadas pelas autoridades soviéticas ao informar os participantes sobre os métodos de defesa contra quantidades excessivas de radiação.

 

Nos EUA, também os militares foram informados de que poderiam enviar tropas "imediatamente" para as cidades atingidas pelas bombas atómicas, tendo mesmo o general Groves classificado os relatos de envenenamento por radiatividade em Hiroxima e Nagasaki como propaganda japonesa. Em novembro de 1945, quando o número de vítimas de radiação era impossível de negar, Groves atestou no Senado que o envenenamento por radiação era "uma forma muito agradável de morrer".

 

3# Durante a Guerra Fria várias outras experiências destrutivas foram conduzidas pelos governos sobre os seus próprios soldados e cidadãos.

 Sabe-se, por uma investigação de 2024 do San Francisco Public Press e do The Guardian, que o Laboratório de Defesa Radiológica Naval dos EUA expôs pelo menos 1.073 pessoas à radiação em 24 experiências entre 1946 e 1963.

Os soldados recrutados e os voluntários civis foram colocados em ambientes radioativos ou propositadamente doseados com radiação sem o seu consentimento. O laboratório não se preocupou em monitorizar os efeitos na saúde a longo prazo. Na verdade, nem o governo se deu ao trabalho de manter os seus próprios resultados.

 Outros exemplos: o do projeto MKUltra, o projeto da CIA com a finalidade de desenvolver procedimentos de controlo mental com recurso a drogas psicadélicas e tortura psicológica. Ou o da Operação Sea-Spray, em que a Marinha dos EUA pulverizou secretamente São Francisco, entre 1950 e 1960, com bactérias para simular um ataque biológico. Aliás, experiências similares verificaram-se também noutras cidades americanas até 1969, altura em que Richard Nixon proibiu a pesquisa de patogénicos para a guerra.

 

No blog de 30 de junho de 2021, “Sobre farinhas e sacos”, refiro que “ao entrar na II Guerra Mundial, quaisquer das principais potências envolvidas, faziam experiências com seres humanos. Os alemães recorriam normalmente a prisioneiros judeus, russos e polacos. Também em Porton Down, devido à escassez de soldados disponíveis, se utilizaram os cidadãos das potências do Eixo que tinham sido feitos prisioneiros. Contudo, já antes, vinham fazendo experiências com seres humanos desde os anos 30, quando expuseram durante 10 anos, 500 soldados indianos em calções e camisa de algodão, em câmaras de gás mostarda, o que só foi descoberto em 2007 (as “experiências de Rawalpindi”).

Os avanços alemães foram notáveis neste campo, tendo criado o primeiro pesticida sintético, o tabún, que para além de ser letal era inodoro e incolor, e ainda o célebre zyklon b que usaram para assassinar milhões de pessoas. As armas químicas que tinham em armazém chegavam às 44.000 toneladas.

 Quantidades idênticas ou superiores deviam também ter os EUA: é significativo indicar que o Edgewood Arsenal do Chemical Corps do exército que dispunha em 1942 de um orçamento da ordem dos dois milhões de dólares empregando 1.000 trabalhadores, viu este orçamento durante o período entre as guerras ser aumentado para 1.000 milhões de dólares e 46.000 trabalhadores. Só o projeto para a construção da bomba atómica é que recebera mais recursos e pessoal.”

Cabe também referir o projeto secreto das Forças Armadas do Japão, conhecido como Unidade 731, que entre 1936 e 1945 se dedicou à pesquisa e desenvolvimento de armas biológicas e químicas, recorrendo a experiências letais em seres humanos, estimando-se que tenha provocado a morte de 200.000 pessoas, incluindo 10.000 prisioneiros de guerra. As experiências constavam de injeções de doenças, desidratação controlada, testes de armas biológicas, testes em câmara de pressão hipobárica, vivissecção, extração de órgãos, amputação e testes de armas padrão. As vítimas incluíam não só homens, mulheres (incluindo grávidas) e crianças raptadas, mas também bebés nascidos da violação sistemática perpetrada pela equipa dentro do complexo. Além disso, a Unidade 731 produziu armas biológicas que foram utilizadas em áreas da China não ocupadas pelas forças japonesas, o que incluía cidades e vilas chinesas, fontes de água e campos. Todos os prisioneiros dentro do complexo foram mortos para ocultar provas, e não houve sobreviventes documentados.

a 28 de agosto de 2002, é que o Tribunal Distrital de Tóquio decidiu admitir que o Japão tinha praticado guerra biológica na China e, consequentemente, era responsável pela morte de muitos residentes.

Tanto a União Soviética como os Estados Unidos recolheram dados da Unidade após a queda do Japão. Embora doze investigadores da Unidade 731 presos pelas forças soviéticas tenham sido presentes nos julgamentos de crimes de guerra de Khabarovsk, em Dezembro de 1949, foram condenados a penas leves de dois a 25 anos de prisão no campo de trabalho siberiano, em troca das informações que possuíam. A União Soviética construiu a sua instalação de armas biológicas em Sverdlovsk utilizando documentação capturada da Unidade na Manchúria. Aos investigadores capturados pelos militares norte-americanos foi-lhes secretamente concedida imunidade. O governo de Harry S. Truman ajudou a encobrir as experiências em humanos e concedeu bolsas aos perpetradores.

 

4# Contagens de mortos e desaparecidos em combate: Durante as negociações em Istambul, a Rússia ofereceu-se para entregar "unilateralmente" à Ucrânia os 6.000 corpos de militares das Forças Armadas da Ucrânia.

Esta oferta põe problemas significativos para o governo ucraniano. Primeiro porque reconhecer que os mortos são de facto soldados ucranianos será bastante dispendioso.

Depois, porque os mortos estão atualmente apenas listados como "desaparecidos" (o que é a prática usual em qualquer das Forças Armadas existentes). Se forem declarados mortos, as suas famílias terão direito a receber 15 milhões de hryvnias (UAH) (US$ 1 = UAH 41,50) cada (3 milhões de uma só vez e o restante ao longo de três anos e três meses).

Pelo que o regresso de seis mil corpos de militares mortos em combate custará 90 mil milhões de hryvnias (~2,2 mil milhões de dólares) em pagamentos do orçamento ucraniano. Isto representa quase 10% do orçamento militar da Ucrânia para todo o ano.

 

5# O historiador americano Ralph Raico (The Struggle for Liberty, A Libertarian History of Political Thought, 2004, pdf) vem dizer-nos que a propaganda moderna de guerra começou com "as histórias de atrocidades belgas de 1914, que foram talvez o primeiro grande sucesso de propaganda dos tempos modernos".

Referia-se à campanha britânica orquestrada para exagerar enormemente a agressão alemã na Bélgica e passar a mensagem de que os alemães eram uma raça bárbara, diferente dos civilizados franceses e britânicos da Europa. Baseava-se principalmente num relatório oficial do governo britânico conhecido como Relatório Bryce.

O relatório fazia inúmeras alegações infundadas sobre violações em massa, crianças com as mãos cortadas, freiras violadas e soldados canadianos crucificados à porta dos celeiros. Isto gerou horror e fanatismo antialemão em grande parte do mundo.

O problema é que era quase tudo baseado em mentiras. Eis o que Raico escreve:

 

Qual é a história das atrocidades belgas? A história das atrocidades belgas é que foram falsificadas. Foram fabricadas. Eram falsas. As fotos foram tiradas em edifícios específicos conhecidos em Paris. Os cenários foram desenhados por designers para a ópera parisiense. As histórias foram inventadas do nada e disseminadas pela propaganda britânica como mais uma arma na guerra — especialmente na guerra pelas mentes dos países neutros. […] Isto vira grande parte da opinião pública contra os alemães.

 

O regime britânico estava desesperado para que os americanos entrassem na guerra ao seu lado, e os britânicos não pouparam esforços nem despesas para os convencer de que estavam a combater um inimigo de maldade sem limites. O programa foi muito bem-sucedido. Raico observa que:

 

 

 “um preconceito enraizado da classe política e da elite social americanas foi galvanizado pela propaganda britânica. A 5 de agosto de 1914, a Marinha Real cortou os cabos submarinos que ligavam os Estados Unidos à Alemanha. Agora, as notícias para os Estados Unidos tinham de ser canalizadas por Londres, onde os censores moldavam e aparavam as reportagens em benefício do seu governo. Eventualmente, o aparelho de propaganda britânico na Primeira Guerra Mundial tornou-se o maior jamais visto pelo mundo; mais tarde, serviu de modelo ao Ministro da Propaganda nazi, Josef Goebbels.

 Philip Knightley escreveu que ‘os esforços britânicos para levar os Estados Unidos à guerra ao lado dos Aliados penetraram em todas as fases da vida americana. […] Foi um dos maiores esforços de propaganda da história, e foi conduzido tão bem e tão secretamente que pouco sobre ele surgiu até à véspera da Segunda Guerra Mundial, e a história completa ainda está por contar’.”

 

 

 

 

 

(534) As leis naturais sobre a raça

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

“Não são proposições e conceitos que garantem a lei do Ser. Apenas o Führer e só ele é a Realidade na Alemanha hoje e no futuro”, Heidegger.

 

Ao retirarem aos judeus qualquer possibilidade de poderem ser considerados seres humanos morais, estes professores e intelectuais deram a Hitler as armas ideológicas que qualquer movimento necessita para o seu sucesso. 

 

O que se aplicava aos povos “inferiores” é agora utilizado para caracterizar os povos do Sul, os desempregados, os trabalhadores, os alentejanos, os ilhéus, os pobres (que “só o são porque o querem”), os eternos pretos, os homossexuais, etc.

 

 

 

 Quando os nazis tomam o poder em 1933, grande parte dos intelectuais e professores universitários manifestaram-se agradecendo a Hitler por ter livrado a Alemanha da tripla ameaça da revolução russa, da decadência cultural e do declínio económico.

 É assim que em 1934, o reitor da Universidade de Bonn, saúda o nazismo como sendo a alvorada de uma “ética heroica”, uma idade de “otimismo moral”. Eis o que Heidegger diz:

 

 “Não são proposições e conceitos que garantem as leis do Ser. Apenas o Führer e só ele é a Realidade na Alemanha hoje e no futuro”.

 

A partir de 1935, o enorme desenvolvimento da máquina de guerra nazi, ao mesmo tempo que ajudava a recuperação económica, corria, por outro lado, o sério risco de colocar as exportações alemãs perante um boicote internacional que viesse a ser imposto, pois contrariava todos os acordos anteriormente assinados e que visavam restringir o crescimento das suas forças armadas.

 Esta foi, talvez, uma das causas que tenha levado Hitler a decretar “uma reorientação” na guerra contra os judeus, procedendo a uma arianização agressiva (ou seja, confiscação) dos negócios e bens de 75.000 a 80.000 judeus, à sua expulsão da Bolsa e de vários outros setores de atividade económica (como os dos têxteis, dos cigarros, das atividades bancárias, gado e casas de penhores).

A partir daí prosseguiu agressivamente uma política de chantagem, extorsão e roubo, legalmente permitida e sancionada pelo objetivo da limpeza do Volk. Em finais de 1936, 260 das maiores empresas de donos judeus tinham sido arianizadas, muitas delas por respeitados industriais que nem pertenciam ao partido nazi. Aos judeus nenhum alemão pagava quaisquer dívidas que tivessem, não lhes era concedido crédito, o que os obrigava a venderem as propriedades que detinham.

 

Simultaneamente, começa-se a promover uma campanha de desinformação de forma a criar uma base racional que justificasse a perseguição aos judeus. Tudo isso é feito através do desenvolvimento de uma verdadeira indústria académica de pesquisa, com notícias, filmes e documentários, exibições, programas educacionais, livros de texto onde se disseminavam os últimos avanços ‘científicos’ com o fim de provarem que a existência da “questão judaica” era culpa dos Judeus.

Ou seja, procuravam-se já os parâmetros para o estabelecimento de um futuro consenso que servisse de base aos planificadores da Solução Final, e que simultaneamente levasse o povo a acreditar que o “perigo judeu” era justificado.

 

A 15 de Setembro de 1935, dá-se a publicação das Leis sobre a Raça de Nuremberga, que incluíam entre outras, a proibição dos casamentos inter-raciais, a proibição da existência de criados judeus nas casas, a proibição de os judeus utilizarem a bandeira suástica Alemã.

Mas, acima e tudo, estas Leis vieram permitir aos alemães viverem dentro da legalidade, uma vez que os crimes cometidos ou a cometer contra os judeus deixaram de serem considerados como crimes, dado que os judeus passaram a serem considerados como estrangeiros, não fazendo parte da pátria alemã.

A grande maioria dos alemães que lamentava o boicote e a destruição de propriedades dos judeus, vai gradualmente aceitando como inevitável o estatuto de pária para os judeus.

 

Mas, Hitler necessita que o racismo seja visto como uma verdade científica. Todas as pesquisas efetuadas e a efetuar, terão de se conformar a este objetivo.

 Os biólogos tentaram tudo para encontrarem no sangue traços que permitissem identificar um judeu. Apesar dos vastos fundos atribuídos não conseguiram identificar qualquer tipo de sangue, cheiro, tamanho de crânio, lóbulo de orelha, nariz, ou outra marca que distinguisse um judeu.

 Curiosamente, este não resultado dos seus biólogos coincidiu com a “reorientação” da política racial de Hitler de 1935. A partir daí, a caça aos judeus passou a incidir sobre estereótipos culturais em vez dos físicos. Em vez das ciências naturais, a enfâse passou para as ciências sociais e para as humanidades.

 Os “estudos raciais” (Rassenkunde) passam a fazer parte do currículo obrigatório de muitas disciplinas. Linguistas, historiadores, geógrafos, psicólogos, geógrafos culturais, antropologistas, inundam o mercado com novos livros de texto e outras publicações.

A partir de meados de 1935 criam-se oficialmente cinco Institutos Universitários com a finalidade de estudarem e estriparem a influência judaica nas ciências naturais, na cultura, na história, na jurisprudência e na religião.

 A aproximação multidisciplinar, o elevado perfil público exibido, a orientação política, as cerimónias protocolares, os esplendorosos banquetes e os encontros anuais, fazem destes estudos raciais, acontecimentos públicos de grande prestígio.

Amplo acompanhamento por toda a comunicação social, livros encadernados com luxuosas fotografias, livros de bolso, bibliografias, mapas, publicitando aberta e constantemente o “perigo judeu”, tornavam respeitável e aceitável, até para a classe média educada, a existência de um espírito corrosivo judeu que não podia continuar a fazer parte da sociedade alemã.

 O primeiro desses institutos teve como origem o chamado Instituto Lenard (do físico Philipp Lenard), que vinha já desde 1920 a desacreditar a física “judaica” de Einstein. Em 1933, Lenard atraiu as atenções dos nazis quando saudou Hitler como “um cientista natural que procura a Verdade através de meios empíricos”.

 Chamava de “judeus brancos” a todos os físicos que aceitassem a teoria quântica e da relatividade: essa teoria era tipicamente judaica por ser muito complexa, em oposição ao espírito germânico que produziria uma teoria simples e elegante para a compreensão do universo.

 O Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha, criado com autorização do Ministro da Educação e do Ministro da Propaganda, baseava a sua linha de orientação na teoria segundo a qual as mudanças históricas provinham da luta racial.

 Para diretor do instituto é nomeado Carl Schmitt, sendo convidados para participantes uma plêiade de conhecidos intelectuais como Julius Streicher e Martin Heidegger.

Essencialmente debruçaram-se sobre conjuntos arquivísticos com a finalidade de reverem as interpretações dos acontecimentos históricos mais significativos. Desde a atribuição do aparecimento do capitalismo ao nefasto materialismo judaico, do impacto negativo dos casamentos inter-raciais nas culturas de vários países, do contributo positivo que os emigrantes huguenotes do século XIX trouxeram, através do seu sangue, para a fortaleza da Prússia, até à consideração da Revolução Russa como resultado da luta entre os “inferiores” judeus Bolcheviques e a “superior” nobreza dos Russos Brancos.

A agência de notícias nazi dava indicações aos editores dos meios de comunicação para publicitarem mensagens do tipo: “Povo germânico, leiam e saibam como os judeus vos têm prejudicado”.

 O Instituto do Reich para a Jurisprudência levou a efeito uma conferência em outubro de 1936 sobre a “dejudaização”, à qual comparecem 100 dos 400 professores de jurisprudência das Faculdades de Direito da Alemanha.

A finalidade era pôr de acordo as leis do estado com as Leis da Raça, uma vez que essas Leis de 1935 impuseram a segregação dos judeus.

 Os participantes na conferência identificaram livros de texto, artigos de revistas de Direito, bem como decisões de jurisprudência que tinham sido tomadas por autores com nomes que poderiam ser judeus, artigos de opinião, notas de rodapé e tudo o mais que pudesse constituir contaminação, a fim de evitar que viessem a serem citados por autores alemães e para evitar confusões aos alunos.

 O Instituto do Reich para o Estudo da Questão Judaica fundado em Frankfurt, tinha a dirigi-lo Wilhelm Grau.

Para além de considerar a história judaica como uma narrativa do mal, apresentava a luta através dos tempos dos vários povos Europeus contra os judeus criando como que um pedigree para o antissemitismo nazi, desde os tempos dos imperadores romanos passando por Martinho Lutero e Goethe.

Livros em luxuosas encadernações, manuais, livros de bolso e posters, disseminavam as mais recentes ‘descobertas’ antissemitas, desde “as origens do nariz Judeu” até às suas inúmeras faces sob as quais se escondiam (judeus a conduzirem automóveis caros num ghetto da Palestina, ou a acompanharem a modelo e dançarina erótica negra americana Josefina Baker).

 A mensagem que pretendiam transmitir era a de que os judeus tinham rejeitado todas as oportunidades concedidas para serem alemães, mantendo-se inassimiláveis. A paciência alemã esgotara-se. “A Alemanha foi a primeira nação a resolver legalmente a Questão Judaica”.

Assim, a partir da altura em que as pessoas aceitassem que havia uma “questão Judaica”, estavam lançadas as bases para a aceitação da morte civil dos judeus. Estavam abertos os caminhos para os devastadores ataques de 1938 aos judeus na Áustria após a ocupação pelas tropas alemãs e ao pogrom que se lhe seguiu em novembro de 1938.

 O Instituto para o Estudo e Irradicação da Influência Judaica na Vida Religiosa Alemã foi criado em 1939 por influentes pastores Protestantes, com o fim de purgar o “espírito judaico” do Volk Cristão, dando a possibilidade aos cristãos de se defenderem das influências judaicas.

 ‘Demonstraram’ que os pais de Jesus eram arménios e não judeus, que o “judeu Paulo” pervertera os ensinamentos de Cristo, qual fora a influência nefasta do Judaísmo sobre o Cristianismo, qual era a história do culto Cristão Teutónico, e outros.

Na realidade, o objetivo era não só separar os cristãos dos judeus, mas apresentar o cristianismo como uma religião pura que poderia enquadrar-se na nova ordem nazi.

 

Todas estas ‘descobertas’ destes Institutos eram profusamente incorporadas em livros de texto e em artigos de divulgação dos média que, juntamente com a enorme atenção dedicada à participação não só nos seus congressos, mas à participação em congressos internacionais, faziam crer da aceitação generalizada das suas propostas.

 

 Aliás, a própria imprensa internacional, era disso exemplo. É assim que o The New York Times publica em 1935 artigos de Schmitt em louvor das Leis da Raça de Nuremberga como sendo “genuinamente Alemãs”, de Gercke a advogar a pureza da raça, de Alfred Baeumler a louvar Hitler por ter tirado a Alemanha da estagnação medieval, Walter Gross a justificar a segregação das crianças que não fossem arianas, de Fischer a louvar a participação de Hitler no Congresso da População Mundial, e até um artigo da mulher do então reconhecido historiador Hermann Oncken em que dizia que “tinham sido os Judeus os responsáveis pela sua própria perseguição”.

 

Antes dos exércitos alemães atacarem e ocuparem a Europa Oriental, estas autênticas centrais de propaganda que foram os Institutos, prepararam o público para o tratamento agressivo e violento dos “inferiores”, única forma para lidar com a “ameaça judaica”: a violência nazi era a adequada perante o perigo que representava a ameaça demoníaca dos judeus, ciganos e eslavos.

 Ao retirarem aos judeus qualquer possibilidade de poderem ser considerados seres humanos morais, estes professores e intelectuais deram a Hitler as armas ideológicas que qualquer movimento necessita para o seu sucesso.

 

 Hoje, passados noventa anos, muitos dos conceitos então ‘estudados’, continuam bem presentes na nossa sociedade: o que se aplicava aos povos “inferiores” são agora utilizados para caracterizar os povos do Sul, os desempregados, os trabalhadores, os alentejanos, os ilhéus, os pobres (que “só o são porque o querem”), os eternos pretos, homossexuais, etc.

 

 É assim que, quando entrevistada em 1960, a filha do professor Eugen Fischer, continuava a afirmar que o pai e os seus colegas não eram antissemitas, porque nunca os ouvira dizer que os judeus eram maus, e sim que eram apenas “diferentes”.

Claro que eram a favor da segregação pois “não nos podemos esquecer que em 1927 quando viemos para Berlim, o cinema, os teatros, a literatura, tudo estava nas mãos deles”. É esta incapacidade para identificar o antissemitismo das suas opiniões que é reveladora da permanência destes conceitos nazis.

 A permanência destes conceitos deve-se ao esforço da propaganda nazi para conseguir fazer com que as suas posições ideológicas aparecessem como naturais para mais facilmente serem aceites.

 Quando hoje nos aparece como óbvio que na sociedade tudo, mesmo tudo, incluindo os cuidados de saúde e a educação, deve ser gerido como se tratasse de um negócio, tal deve-se ao sucesso com que de há cinquenta anos para cá, as Novas Direitas conseguiram impor a sua visão do mundo, a sua “ontologia do negócio”.

Nesta “ordem natural” tudo é apresentado como necessário e inevitável. Fora desta ordem natural só existe o impossível.

 

Nota: Esta é uma revisitação do blog de 10 de maio de 2017, “A ‘ordem natural’ do negócio”.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub