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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(529) Inveja da Humanidade

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Vivemos com este perpétuo estado vago de alienação e disforia a zumbir no fundo da nossa consciência, porque não temos aqui raízes.

 

Estamos sempre à procura de algo diferente do que temos, seja mais dinheiro e mais posses ou um regresso à religião dos nossos avós ou à espiritualidade da Nova Era ou ao abuso de substâncias.

 

Num mundo que é cada vez mais falso e fraudulento, não nos podemos dar ao luxo de perder a Palestina.

 

 

 

 

O conhecido Rabi do culto Chabad, Manis Friedman, expressou em 2009 na influente revista judaica Moment, a sua visão de como a guerra contra os palestinos devia ser conduzida. Dizia ele:

 

Não acredito na moralidade ocidental, ou seja, não matar civis ou crianças, não destruir locais sagrados, não lutar durante as férias, não bombardear cemitérios, não disparar até que disparem primeiro, porque é imoral.

A única forma de travar uma guerra moral é o método judaico: destruir os seus locais sagrados. Matar homens, mulheres e crianças (e gado).

O primeiro primeiro-ministro israelita que declarar que seguirá o Antigo Testamento trará finalmente a paz ao Médio Oriente.”

 

Quinze anos depois, esta sua visão é agora maioritária aceite em Israel e nas comunidades judaicas em todo o mundo. É o que Israel tem estado a fazer em Gaza e não só, com o apoio dos EUA e dos europeus.

 

 

 

Dos inúmeros artigos que a australiana Caitlin Johnstone tem escrito, não posso deixar passar este (“I Envy The Palestinians”, 27 de março de 2025) por o considerar como o mais abrangente, porquanto toca-nos a todos nós. Ei-lo traduzido na sua versão integral:

 

 

       “Eu invejo os palestinianos. Não pelo que estão a passar, obviamente, mas pelo que têm. A sua cultura extremamente autêntica, com raízes profundas e ligação antiga à terra.

 

Uma das muito poucas coisas boas que o holocausto de Gaza trouxe a este mundo foi um dilúvio de imagens de palestinianos a viverem as suas vidas, interagindo uns com os outros e relacionando-se com os seus entes queridos enquanto encontram formas de sobreviver neste pesadelo. Ocidentais como eu têm assistido silenciosamente a estes videoclips nos nossos pequenos ecrãs nas nossas casas, e assistido aos vários filmes, documentários e programas que foram feitos sobre a vida palestiniana ao longo dos anos.

 

E é muito comovente. Os palestinianos são pessoas incrivelmente bonitas. Como são ternos uns para os outros. Quão real e orgânica é a sua espiritualidade. Quão profundamente amam a sua cultura em todas as suas expressões únicas. Quão profundamente íntimas são as suas ligações entre si, tanto entre indivíduos como com a comunidade como um todo.

 

Eu sou uma australiana branca. Nós simplesmente não experimentamos essas coisas. Os habitantes indígenas desta terra foram massacrados, roubados e deslocados, tal como os palestinianos são hoje, e os meus antepassados ​​foram trazidos da Irlanda e da Escócia para este continente por circunstâncias fora do seu controlo. Ora, na maior parte, é apenas esta civilização superficial e insípida, cuja identidade cultural primária consiste em não se preocupar demasiado com as coisas. Vivemos com este perpétuo estado vago de alienação e disforia a zumbir no fundo da nossa consciência, porque não temos aqui raízes.

 

O meu marido Tim é americano de ascendência irlandesa e teve praticamente a mesma experiência. É assim que acontece com os brancos no mundo colonizado. Não temos ligação. Sem profundidade histórica. Sem cultura real. Sem ligação à terra real. É por isso que estamos sempre à procura de algo diferente do que temos, seja mais dinheiro e mais posses ou um regresso à religião dos nossos avós ou à espiritualidade da Nova Era ou ao abuso de substâncias. A nossa experiência aqui simplesmente não parece certa. Não sentimos que pertencemos.

 

Depois olhamos para os palestinianos e para a forma como a sua sociedade contrasta fortemente com a nossa, e não podemos deixar de sentir uma sensação de saudade profunda. Vivem tão naturalmente e tão calorosamente. Parece certo.

 

E tenho a certeza de que os israelitas sentem o mesmo quando olham para os palestinianos. Aqui estão eles com esta cultura ridiculamente falsa de IA e música de dança eletrónica, falando uma estranha nova versão de uma língua morta que os sionistas reanimaram há algumas gerações atrás para que pudessem fazer LARP como habitantes do Médio Oriente e fingir que o “Israel” de hoje tem alguma coisa em comum com o Israel histórico dos tempos bíblicos. E depois olham para as pessoas que lá viveram antes deles, com as suas raízes profundas e autenticidade vibrante, e sentem inveja. E a inveja deles transforma-se em despeito. E o seu rancor transforma-se em ódio. E o ódio deles transforma-se em genocídio.

 

Existem outras razões para o ódio que os israelitas sentem pelos palestinianos, com certeza – todo o estado de apartheid depende de serem agressivamente doutrinados a ver os habitantes das camadas inferiores do país como menos que humanos. Mas o ciúme desempenha certamente um papel.

 

E espero que não consigam exterminar os palestinianos. Espero que não os consigam expulsar das suas terras. Seria uma grande perda para o mundo inteiro se algo de tamanha beleza fosse arrancado das suas raízes e lançado para o caixote do lixo da história. Para além de todas as outras razões para nos sentirmos desolados com os abusos que testemunhamos em Gaza e na Cisjordânia, há o facto de o nosso mundo estar a perder uma das coisas mais deslumbrantemente belas que alguma vez criou.

 

Se estes anormais conseguirem destruir a Palestina, penso que será realmente como perder um ente querido. Penso que muitas pessoas ao redor do mundo sentirão o mesmo.

 

Espero desesperadamente que isso não aconteça. Se eu fosse um diferente tipo de pessoa com um tipo de espiritualidade diferente, diria que rezo para que isso não aconteça. Num mundo que é cada vez mais falso e fraudulento, não nos podemos dar ao luxo de perder a Palestina.”

 

 

Nota:

Recomendo a leitura do blog de 5 de abril de 2023, “Em defesa de Benjamim Netanyahu”.

 

(528) Abençoados os idiotas

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

O único modo de nos aproximarmos da morte é convencermo-nos de que todos os outros são uns idiotas.

 

Alguém que aos vinte ou trinta anos pensa que todos os outros são uns idiotas, é ele próprio um idiota e nunca alcançará a sabedoria.

 

A sabedoria consiste em reconhecer no momento certo (nunca antes) que alguém que amamos e adoramos também era idiota.

 

 

 

 

 

Nestes tempos em que cada vez mais se sabe menos o que fazer à vida, relembro sempre com conforto o duque Jean Floressas des Esseintes. Segundo nos conta J.K. Huysmans, em 1884 o duque des Esseintes vivia só num grande palacete nos arredores de Paris, passando os seus dias a ler os clássicos, colecionando pensamentos sobre a humanidade.

Das poucas vezes que saíra para ir a uma aldeia vizinha, depressa começara a sentir um sentimento de repulsa, que o levara a não mais querer afastar-se de casa. “Para evitar a fealdade e a estupidez”. Até que, talvez por influência do que lera de Dickens, um dia acordou com o enorme desejo de conhecer Londres. Mandou os criados fazerem-lhe as malas, vestiu-se à inglesa, fato de tweed, chapéu de coco e capa de inverno, e eis que parte para Paris no primeiro comboio.

Dispondo de tempo até apanhar o transporte que o levaria para Londres, foi a uma livraria comprar o Guia de Londres de Baedeker, o que lhe permitiu sonhar com os passeios que procurava vir a fazer. À hora do almoço, entrou numa taberna inglesa da rua de Amsterdão, perto da Gare Saint Lazare. Local tipicamente inglês, escuro e cheio de fumo, um grande balcão e filas de torneiras de cerveja de barril, pequenas mesas de bancos corridos onde se sentavam “robustas inglesas de traços masculinos, com os seus dentes grandes como espátulas, as suas faces afogueadas como maçãs, e as mãos e os pés enormes”. Comeu sopa de rabo de boi, rosbife com batatas, dois pintos de cerveja e queijo de Stilton.

Quando por fim chegou a hora do transporte para Londres, Des Esseintes sentiu-se subitamente muito cansado só de antever que teria ainda de se pôr a caminho da estação, disputar um bagageiro, subir para o comboio, dormir numa cama estranha, apanhar frio, pôr-se em bichas só para visitar afinal os lugares que o Baedeker tão minuciosamente descrevia.

Para que se há-de mover quem pode fazer viagens maravilhosas sentado na sua cadeira? Não estaria ele já em Londres, cujos cheiros, clima, população, pratos de cozinha sem que faltassem sequer os talheres, o rodeavam? Que mais poderia esperar para além de tudo isso, a não ser novas deceções?

Des Esseintes pagou a conta, saiu da taberna, e com os seus baús, os seus sacos, os seus fatos emalados, guarda-chuvas e bengalas, apanhou o primeiro comboio de regresso, e nunca mais saiu de casa.

 

Como vida e morte têm andado sempre ligadas, sendo a morte aceite como o mais seguro que temos na vida (nem todos, pelo menos Um escapou, mas Esse mesmo para ressuscitar teve de morrer primeiro), seria bom que soubéssemos morrer. A partir da altura em se encarou a morte como inelutável, várias filosofias que se têm debruçado sobre o assunto, grande parte delas tranquilizadoras. Recorde-se, por exemplo, a de Epicuro, que explicava que não nos devíamos preocupar com a morte porque quando o momento chegar, nesse instante, já cá não estaremos. Outros, mais grandiloquentes, afirmam gravemente que a vida é uma preparação para a morte.

Mas leia-se antes um texto escrito em 2020  por Umberto Eco para La bustina di Minerva (Milão, Bompiani) intitulado “Como prepararsi serenamente alla morte”:

 

“Recentemente, um discípulo pensativo (um tal Críton) perguntou-me: «Mestre, como é que podemos preparar-nos bem para a aproximação da morte?» Respondi que o único modo de nos aproximarmos da morte é convencermo-nos de que todos os outros são uns idiotas.

Perante a estupefação de Críton, expliquei-lhe: «Vê», disse-lhe, «como é que te podes aproximar da morte, mesmo que sejas crente, se pensares que, enquanto tu morres, as discotecas estão cheias de jovens atrativos de ambos os sexos, que dançam e se divertem como loucos; que cientistas iluminados desvendam os últimos mistérios do cosmos; que políticos incorruptíveis estão a criar uma sociedade melhor; que os jornais e as televisões concordam em dar apenas notícias relevantes; que empresários responsáveis se esforçam para que os seus produtos não degradem o meio ambiente, restaurando uma natureza feita de ribeiros potáveis, encostas cobertas de bosques, céus limpos e serenos protegidos por ozono providencial, nuvens fofas que destilam novamente chuvas dulcíssimas? Se pensares que tens de te ir embora, enquanto todas estas coisas maravilhosas acontecem na Terra, a ideia da morte torna-se insuportável.

Mas tenta imaginar que, no momento em que te apercebes que estás a deixar este vale, tu tens a certeza inabalável de que o mundo (seis biliões de seres humanos) está cheio de idiotas; que todos os que estão a dançar na discoteca são uns idiotas; idiotas os cientistas que acham que resolveram os mistérios do Universo; idiotas os políticos que propõem uma panaceia como cura para todos os nossos males; idiotas aqueles que enchem páginas e páginas de jornais com insossos mexericos marginais; idiotas os empresários suicidas que destroem o planeta. Não ficarias então feliz, aliviado, satisfeito por ires abandonar este vale de idiotas?»

Críton perguntou-me então: «Mestre, e quando é que devo começar a pensar dessa maneira?» Respondi que não se deve fazê-lo demasiado cedo, porque alguém que aos vinte ou trinta anos pensa que todos os outros são uns idiotas, é ele próprio um idiota e nunca alcançará a sabedoria. É necessário começar por se pensar que os outros são todos melhores do que nós, depois evoluir pouco a pouco, ter as primeiras débeis dúvidas lá pelos quarenta, principiar a mudar de opinião entre os cinquenta e os sessenta, e mudá-la completamente quando já se vai a caminho dos cem, mas de modo a ter as contas fechadas assim que chegue o telegrama anunciando a nossa hora. A convicção de que toda a gente à nossa volta (seis biliões de pessoas) é idiota, é o resultado d uma arte subtil e sagaz, não está à disposição do primeiro Cebes com argolas nas orelhas (ou no nariz) que apareça por aí. Requer estudo e trabalho. Não é preciso acelerar o tempo. O que é preciso é chegar ao último momento docemente, mesmo a tempo de morrer serenamente. Mas no dia anterior ainda temos de pensar que existe uma pessoa, alguém que amamos e adoramos, que não é exatamente um idiota. A sabedoria consiste em reconhecer no momento certo (nunca antes) que essa pessoa também era idiota. Só então podemos morrer.

Por conseguinte, a grande arte consiste em estudar pouco a pouco o pensamento universal, esquadrinhar as vicissitudes dos costumes, monitorizar os media dia-a-dia, as afirmações dos artistas muito seguros de si, os apotegmas lançados aos quatro ventos pelos políticos, os aforismos dos heróis carismáticos, estudar as suas teorias, propostas, apelos, imagens, aparições. Só no fim de tudo isto é que terás a irresistível revelação de que são todos uns idiotas. Nessa altura, estás pronto para o teu encontro com a morte.

Deves resistir até ao último momento a esta insustentável revelação: obstina-te em pensar que alguém diz coisas sensatas, que há um livro que ainda vale a pena ler, que aquele político quer verdadeiramente o bem comum. É natural, é humano, é próprio da nossa espécie não querer acreditar que os outros sejam indistintamente uns idiotas; caso contrário, valeria apena viver? Mas quando, no fim, tiveres a certeza de que todos o são, terás compreendido porque é que vale a pena (aliás, é esplêndido) morrer.

Críton, disse-me então: «Mestre, não quero tomar decisões precipitadas, mas suspeito que você é um idiota.» «Vês», disse-lhe, «já estás no bom caminho.»”

(527) O mais importante não são as tarifas

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

O objetivo não é ensinar o público a pensar, mas sim o que pensar.

 

A história está a ser utilizada para justificar o poder das elites dominantes no presente pela deificação das elites dominantes do passado.

 

A América, sob a tutela dos seus governantes esclarecidos e quase exclusivamente brancos, é a vanguarda da “civilização ocidental”.

 

Os poderosos e os ricos são abençoados e escolhidos por Deus.

 

Aqueles que são pobres e oprimidos, que não têm o suficiente na terra da igualdade de oportunidades, merecem o destino que têm.

 

 

 

 

Culpabilizar exclusivamente Donald Trump pela aplicação das tarifas à escala mundial, inclusivamente recorrendo a todos aqueles nomes e adjetivos que tão bem a bem informada comunicação social sabe utilizar, não só não irá produzir qualquer resultado, como até impedirá a compreensão do acontecimento na sua totalidade, única forma para encontrar uma solução, mesmo que parcial, da situação.

Fundamental seria começar por se entender que estes cargos presidenciais ou idênticos, não passam, na maior parte dos casos, de meros intermediários: estão lá em representação das forças económicas, políticas e militares a quem devem prestar reconhecimento, contas, vassalagem, ou algo parecido. Com os seus conselheiros acontece o mesmo: representam os interesses dos que os escolheram, com a “missão” de não se rebelarem contra eles fazendo aprovar legislação que os prejudiquem.

Importante também entender que Donald Trump não é um arrivista. Faz parte da terceira geração de uma família da classe média alemã que emigrou para os EUA e que enriqueceu comungando dos valores mais notórios da sociedade americana, acabando por fazer parte da classe alta, especialmente da nova-iorquina.

É preciso ainda não esquecer que Trump ganhou a Presidência com a maioria do voto popular, a maioria da Câmara dos Deputados, a maioria do Senado, contando ainda com a maioria do Supremo Tribunal e a maioria dos grandes empreendedores, particularmente dos muito ricos.

Todas estas maiorias devem representar mais qualquer coisa do que uma simples maioria conjuntural, possivelmente representando até algo de intrínseco da maioria do povo americano. E atenção: essa maioria que se julga ter-se instalado só agora, há muito que se tem vindo a instalar. A questão é perceber como se veio instalando, o que representa e o que pretende.

 

Recentemente (2 de abril de 2025), Chris Hedges escreveu um artigo, intitulado “Restaurando as Mentiras e a Insanidade à História Americana”, que aqui deixo traduzido, e que nos pode dar uma visão sobre o assunto:    

 

 

  “A última ordem executiva do presidente Donald Trump intitulada “RESTAURANDO A VERDADE E A SANIDADE À HISTÓRIA AMERICANA” reproduz uma tática utilizada por todos os regimes autoritários. Em nome do combate ao preconceito, distorcem a história da nação convertendo-a numa mitologia egoísta que lhes serve a eles.

A história será utilizada para justificar o poder das elites dominantes no presente pela deificação das elites dominantes do passado. O sofrimento das vítimas do genocídio, da escravatura, da discriminação e do racismo institucional, desaparecerá. A repressão e a violência durante as nossas guerras laborais – centenas de trabalhadores foram mortos na luta pela sindicalização por bandidos armados, capangas de empresas, polícias e soldados de unidades da Guarda Nacional– serão incalculáveis. Figuras históricas, como Woodrow Wilson, serão arquétipos sociais cujas ações mais sombrias, incluindo a decisão de voltar a segregar o governo federal e supervisionar uma das campanhas de repressão política mais agressivas da história dos EUA, serão ignoradas.

 

Na América dos nossos livros de história aprovados por Trump – li os livros utilizados nas escolas “cristãs”, por isso isto não é conjetura – oportunidades iguais para todos existem e sempre existiram. A América exemplifica o progresso humano. Tem melhorado e aperfeiçoado constantemente sob a tutela dos seus governantes esclarecidos e quase exclusivamente brancos. É a vanguarda da “civilização ocidental”.

 

Os grandes líderes do passado são retratados como modelos de coragem e sabedoria, levando a civilização às raças inferiores da terra. George Washington, que com a sua mulher possuía e “alugou” mais de 300 escravos e supervisionou campanhas militares brutais contra os nativos americanos, é um modelo heroico a imitar. O desejo obscuro de conquista e riqueza — que está por detrás da escravização dos africanos e do genocídio dos nativos americanos — é posto de lado para contar a história da luta dos valentes pioneiros europeus e euro-americanos para construir a maior nação do planeta. O capitalismo é abençoado como a liberdade maior. Aqueles que são pobres e oprimidos, que não têm o suficiente na terra da igualdade de oportunidades, merecem o destino que têm.

 

Aqueles que lutaram contra a injustiça, muitas vezes à custa das suas próprias vidas, desaparecem ou, como aconteceu com Martin Luther King Jr., são transformados num cliché banal, congelado para sempre no tempo com o seu discurso “Eu tenho um sonho”. Os movimentos sociais que abriram espaço democrático na nossa sociedade – os abolicionistas, o movimento operário, as sufragistas, os socialistas e comunistas, o movimento pelos direitos civis e os movimentos antiguerra – desaparecem ou são ridicularizados juntamente com os escritores e historiadores, como Howard Zinn e Eric Foner, que documentam as lutas e conquistas dos movimentos populares. O status quo não foi desafiado no passado, de acordo com este mito, e não pode ser desafiado no presente. Sempre tivemos reverência pelos nossos líderes e devemos manter essa reverência.

 

“Prestem atenção ao que lhes dizem para esquecer”, alertou prescientemente a poetisa Muriel Rukeyser.

 

A ordem executiva de Trump começa assim:

 

“Ao longo da última década, os americanos têm assistido a um esforço concertado e generalizado para reescrever a história da nossa nação, substituindo factos objetivos por uma narrativa distorcida impulsionada pela ideologia e não pela verdade. Este movimento revisionista procura minar as notáveis ​​conquistas dos Estados Unidos, lançando os seus princípios fundadores e marcos históricos sob uma luz negativa. Ao abrigo desta revisão histórica, o legado incomparável da nossa nação na promoção da liberdade, dos direitos individuais e da felicidade humana é reconstruído como inerentemente racista, sexista, opressivo ou irremediavelmente falho de outra forma. Em vez de promover a unidade e uma compreensão mais profunda do nosso passado partilhado, o esforço generalizado para reescrever a história aprofunda as divisões sociais e promove um sentimento de vergonha nacional, desconsiderando o progresso que a América fez e os ideais que continuam a inspirar milhões de pessoas em todo o mundo.

 

Os autoritários prometem substituir o preconceito pela “verdade objetiva”. Mas a sua “verdade objetiva” é sobre sacralizar a nossa religião civil e o culto da liderança. A religião civil tem os seus locais sagrados – Monte Rushmore, Plymouth Rock, Gettysburg, Independence Hall em Filadélfia e Stone Mountain, o enorme baixo-relevo que representa os líderes confederados Jefferson Davis, Robert E. Lee e Thomas J. “Stonewall” Jackson. Tem os seus próprios rituais – Dia de Ação de Graças, Dia da Independência, Dia do Presidente, Dia da Bandeira e Dia da Memória. É patriarcal e híper patriótico. Fetichista a bandeira, a cruz cristã, os militares, as armas e a civilização ocidental, um código para a supremacia branca. Justifica o nosso excecionalíssimo e o nosso direito ao domínio global. Liga-nos a uma tradição bíblica que nos diz que somos um povo eleito, uma nação cristã, bem como os verdadeiros herdeiros do Iluminismo. Informa-nos que os poderosos e os ricos são abençoados e escolhidos por Deus. Alimenta o elixir negro do nacionalismo desenfreado, da amnésia histórica e da obediência inquestionável.

 

Existe uma proposta de legislação no Congresso que apela à escultura do rosto de Trump no Monte Rushmore, ao lado de George Washington, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e Theodore Roosevelt, tornando o aniversário de Trump um feriado federal, colocando o rosto de Trump em novas notas de 250 dólares, renomeando o Aeroporto Internacional Washington Dulles para Aeroporto Internacional Donald J. Trump e alterando a 22ª Emenda para permitir que Trump cumpra um terceiro mandato.

 

Um sistema educativo, escreve Jason Stanley em "Apagando a História: Como os Fascistas Reescrevem o Passado para Controlar o Futuro", é "a base sobre a qual uma cultura política é construída. Os autoritários há muito que compreenderam que quando desejam mudar a cultura política, devem começar por assumir o controlo da educação".

 

A captura do sistema educativo, escreve ele, "não visa apenas tornar uma população ignorante da história e dos problemas da nação, mas também fraturar esses cidadãos numa multiplicidade de grupos diferentes, sem possibilidade de compreensão mútua e, portanto, sem possibilidade de ação unificada em massa. Como consequência, a anti educação torna a população apática - deixando a tarefa de governar o país para outros, sejam eles autocratas, plutocratas ou teocratas".

 

Ao mesmo tempo, os déspotas mobilizam o grupo alegadamente lesado – no nosso caso, os americanos brancos – para realizar atos de intimidação e violência em apoio do líder e da nação e para exigir retribuição. Os objetivos duplos desta campanha anti educação são a paralisia entre os subjugados e o fanatismo entre os verdadeiros crentes.

 

As revoltas que varreram o país, desencadeadas pelos assassinatos policiais de George Floyd, Breonna Taylor e Ahmaud Arbery, não só condenaram o racismo institucional e a brutalidade policial, como também atacaram estátuas, monumentos e edifícios que comemoram a supremacia branca.

 

Uma estátua de George Washington em Portland, Oregon, foi pintada com spray com as palavras “colono genocida” e demolida. A sede das Filhas Unidas da Confederação, que liderou a construção de monumentos aos líderes confederados no início do século XX em Richmond, Virgínia, foi incendiada. A estátua do editor do jornal Edward Carmack, um defensor do linchamento que instou os brancos a matarem a jornalista afro-americana Ida B. Wells pelas suas investigações sobre o linchamento, foi derrubada. Em Boston, uma estátua de Cristóvão Colombo foi decapitada e as estátuas dos generais confederados, Robert E. Lee e Stonewall Jackson, juntamente com um dos racistas ex-presidente da câmara e chefe da polícia de Filadélfia, Frank Rizzo, foram removidas. A Universidade de Princeton, que durante muito tempo resistiu aos apelos para retirar o nome de Woodrow Wilson da sua escola de políticas públicas devido ao seu racismo virulento, acabou por ceder.

 

Os monumentos não são lições de história. São promessas de lealdade, ídolos do culto dos antepassados ​​brancos. Encobrem os crimes do passado para lavarem os crimes do presente. Ao assumir o nosso passado, o objetivo da teoria racial crítica, destrói o mito perpetuado pelos supremacistas brancos de que a nossa hierarquia racial é o resultado natural de uma meritocracia onde os brancos são dotados de inteligência, talento e civilização superiores, em vez de uma que é arquitetada e rigidamente aplicada. Os negros desta hierarquia racial merecem estar na base da sociedade devido às suas características inatas.

 

Só nomeando e documentando estas injustiças e trabalhando para as melhorar é que uma sociedade pode sustentar a sua democracia e avançar em direção a uma maior igualdade, inclusão e justiça.

 

Todos estes avanços em direção à verdade e à responsabilização histórica devem ser revertidos. Trump destacou exposições de ataque no Smithsonian Institution, no Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana e no Parque Histórico Nacional da Independência de Filadélfia. Promete “tomar medidas para restabelecer os monumentos, memoriais, estátuas, marcadores ou propriedades semelhantes pré-existentes”. Exige que os monumentos ou exposições que “depreciam inapropriadamente os americanos do passado ou que viveram (incluindo as pessoas que viveram nos tempos coloniais)” sejam removidos e que a nação “se concentre na grandeza das conquistas e no progresso do povo americano”.

 

A ordem executiva continua:

 

É política da minha administração restaurar locais federais dedicados à história, incluindo parques e museus, em monumentos públicos solenes e edificantes que recordem aos americanos a nossa extraordinária herança, o progresso consistente no sentido de nos tornarmos uma União mais perfeita e o histórico incomparável de avanço da liberdade, da prosperidade e do florescimento humano. Os museus da capital da nossa nação devem ser locais onde os indivíduos vão para aprender - e não para serem sujeitos a doutrinação ideológica ou a narrativas divisivas que distorcem a nossa história partilhada.

 

Os ataques a programas como a teoria racial crítica ou a diversidade, equidade e inclusão, como Stanley sublinha, “distorcem intencionalmente estes programas para criar a impressão de que aqueles cujas perspetivas estão finalmente a ser incluídas – como os negros americanos, por exemplo – estão a receber algum tipo de benefício ilícito ou uma vantagem ilícita. E assim têm como alvo os negros americanos que ascenderam a posições de poder e influência e procuram deslegitimá-los como indignos. O objetivo final é justificar a tomada das instituições, transformando-as em armas na guerra contra a própria ideia de democracia multirracial.”

 

Stanley, juntamente com outro estudioso de Yale sobre autoritarismo, Timothy Snyder, autor de On Tyranny e The Road to Unfreedom, está a deixar o país para o Canadá para lecionar na Universidade de Toronto.

 

Pode ver a minha entrevista com Stanley aqui (“Erasing History: How Fascism Works”).

 

O objetivo não é ensinar o público a pensar, mas sim o que pensar. Os alunos repetirão os slogans e os clichés entorpecentes utilizados para reforçar o poder. Este processo retira à educação qualquer independência, investigação intelectual ou autocrítica. Transforma as escolas e as universidades em máquinas de doutrinação. Aqueles que resistem a ser doutrinados são expulsos.

 

“O totalitarismo no poder substitui invariavelmente todos os talentos de primeira linha, independentemente das suas simpatias, por aqueles malucos e tolos cuja falta de inteligência e criatividade ainda é a melhor garantia da sua lealdade”, escreve Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo.

 

Os opressores apagam sempre a história dos oprimidos. Temem a história. Era um crime ensinar os escravos a ler. A capacidade de ler significava que podiam ter acesso às notícias da revolta de escravos no Haiti, a única revolta de escravos bem-sucedida na história da humanidade. Poderiam aprender sobre as revoltas de escravos lideradas por Nat Turner e John Brown. Podem ser inspirados pela coragem de Harriet Tubman, a impetuosa abolicionista que fez mais de uma dúzia de viagens clandestinas para sul para libertar pessoas escravizadas e, mais tarde, serviu como batedora do Exército da União durante a Guerra Civil. Poderiam ter acesso aos escritos de Frederick Douglass e dos abolicionistas.

 

A luta organizada, vital para a história das pessoas de cor, dos pobres e da classe trabalhadora para garantir a igualdade, juntamente com leis e regulamentos para os proteger da exploração, deve estar totalmente envolta em trevas. Não haverá novas investigações sobre o nosso passado. Não haverá novas evidências históricas. Não haverá novas perspetivas. Seremos proibidos de escavar a nossa identidade como povo e como nação. Esta calcificação destina-se a divinizar os nossos governantes, a destruir uma sociedade pluralista e democrática e a inculcar o sonambulismo pessoal e político.”

 

 

 

(526) Pequeno Manual do Candidato

Tempo estimado de leitura: 2 minutos.

 

As instruções para vencer as eleições que o irmão mais novo de Cícero escreveu em 64 a. C.

 

Deve apenas mostrar-se sedutor, fazendo favores a uns, prometendo-os a outros, sem nunca dizer não a ninguém, porque basta deixar a ideia de que se vai fazer alguma coisa.

 

Age de maneira a que surja alguma suspeita contra os teus adversários.

 

 

 

Corria o ano 64 a. C., quando o nosso conhecido orador Marco Túlio Cícero, entendeu concorrer ao Consulado de Roma, em despique contra Caio Antonio Híbrida e Lúcio Sérgio Catilina. Pediu então ao seu irmão mais novo, Quinto Túlio, que lhe escrevesse um pequeno panfleto em forma de carta para o ajudar a vencer a corrida.

São estas instruções que aparecem traduzidas e publicadas com o título Manualetto del Candidato, Instruzione per vincere le elezioni, que muito argutamente levou o recém desaparecido jornalista, escritor e político italiano, Furio Colombo, que também foi diretor do l’Unità, a refletir sobre a comparação entre essa primeira República e a atualmente existente.

Colombo relembra que foi no modelo dessa república romana que se inspiraram os autores dos Federalist Papers, que delinearam as linhas fundamentais daquela que viria a ser a democrática Constituição americana, a mesma que com mais realismo os neoconservadores adaptam mais à imagem da Roma imperial, daí as suas ideias de império e pax americana, alusão que continua explícita à pax romana.

Mas essas são construções ausentes nas poucas páginas do Manual. Ele debruça-se mais sobre as orientações práticas a seguir pelo candidato:

 

não se deve comprometer com nenhum problema político, de modo a não criar inimigos; deve apenas mostrar-se sedutor, fazendo favores a uns, prometendo-os a outros, sem nunca dizer não a ninguém, porque basta deixar a ideia de que se vai fazer alguma coisa. A memória dos eleitores é curta e, mais cedo ou mais tarde, vão esquecer-se das velhas promessas.” 

 

A campanha eleitoral não passa de um espetáculo puramente formal em que não conta a real personalidade do candidato, mas o modo como se apresenta perante os outros. Mas como apesar de tudo as qualidades naturais têm um certo peso, o problema é fazer com que a simulação possa sobrepor-se à natureza.

Por outro lado, “a adulação é detestável para o candidato cujo comportamento, rosto e maneira de se exprimir devem mudar de vez em quando, adaptando-se aos pensamentos e desejos de qualquer pessoa que se lhe depare pela frente”.

Naturalmente, é necessário proceder-se de modo a que “toda a tua campanha eleitoral seja solene, brilhante e esplêndida, e ao mesmo tempo popular […] Sempre que puderes, age de maneira a que surja alguma suspeita contra os teus adversários […] uma suspeita de malvadez, de devassidão ou de dissipação”.

 

Atento observador da sociedade, Umberto Eco faz as perguntas fundamentais: mas a democracia é apenas uma forma de conquista do favor público, baseada somente na aparência e na estratégia do engano?

E responde: Não haja dúvida de que em parte a democracia é isto e nem podia ser de outro modo, uma vez que se baseia num sistema que impõe que se chegue ao poder apenas através do consenso, e não graças à força e à violência.

Mas não nos esqueçamos que estes conselhos para uma campanha eleitoral surgem numa altura em que a democracia romana já se encontra em plena crise. Dentro em pouco, César vai tomar as rédeas do poder com o apoio das suas legiões, vai instituir o principado de facto, e Marco Túlio Cícero vai pagar com a vida a passagem de um regime fundado no consenso para um regime fundado no golpe de Estado.

 E conclui:

 

Não podemos deixar de pensar que a democracia romana começou a morrer quando os seus políticos perceberam que não precisavam de levar a sério os programas, bastava que se esforçassem por parecer simpáticos aos olhos dos seus telespectadores.

 

 

 

Nota:

A Gradiva editou em 2015 o pequeno manual de Quinto Túlio Cícero com o título Como Ganhar Eleições: Um Guia Clássico para Líderes Actuais.

(525) Vendedores de banha de cobra

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

À segunda-feira diz uma coisa e à terça precisamente o contrário; fala quando não deve falar; deixa escapar afirmações que é obrigado a negar no dia seguinte […], Umberto Eco.

 

Dispara em todas as direções, sem se preocupar com as contradições em que possa incorrer. Não pode é parar de falar, e com insistência, para evitar que alguém levante objeções.

 

A vitimização como um elemento típico de todas as formas de populismo.

 

 

 

 

A propósito deste tempo de eleições sempre programadas, seus atores principais, claques e demais público assistente, recordo um interessante artigo de Umberto Eco, publicado na MicroMega (revista de cultura, política, ciência e filosofia fundada em 1986) em setembro de 2003, “Diabolizar Berlusconi”, que julgo ser importante para não nos sentirmos desacompanhados nestes tempos em que vivemos. Dizia então ele:

 

“[…] Considera-se que, não sendo um estadista mas um líder de uma empresa cujo único objetivo é manter os equilíbrios precários dentro da sua coligação, Berlusconi não se apercebe que à segunda-feira diz uma coisa e à terça precisamente o contrário; que fala quando não deve falar; que deixa escapar afirmações que é obrigado a negar no dia seguinte; que confunde os assuntos privados com os públicos a tal ponto que já se permitiu fazer gracejos de péssimo gosto sobre a sua própria esposa na presença de ministros estrangeiros – e assim por diante. Neste sentido, a figura de Berlusconi predispõe-se à sátira; os seus adversários consolam-se muitas vezes pensando que ele perdeu o sentido das proporções, e esperam que ele vá correndo atrás da sua própria destruição sem se dar conta”.

 

Mas Eco não acredita nisso. Vê antes a prática de uma estratégia complexa, hábil e subtil, de um prodigioso instinto de vendedor. E para nos mostrar em que consiste esta técnica de vendedor, socorre-se de um vendedor de automóveis:

 

“Começará por nos dizer que o carro que nos quer vender é um verdadeiro bólide, basta um toquezinho no acelerador para chegarmos aos duzentos à hora, que foi idealizado para uma condução desportiva. Mas mal se dá conta que o cliente tem cinco filhos e uma sogra inválida passa, sem transição, à demonstração que aquele carro é ideal para uma condição segura, que mantém calmamente a velocidade de cruzeiro, um carro feito para a família. E logo a seguir oferece tapetes grátis. O vendedor não se preocupa com o facto de o cliente achar ou não o seu discurso coerente; o seu objetivo é que, no meio de tudo o que diz, o cliente se sinta tocado por um dos argumentos, e a partir daí se esqueça de todos os outros. Por isso, o vendedor dispara em todas as direções, sem se preocupar com as contradições em que possa incorrer. Não pode é parar de falar, e com insistência, para evitar que alguém levante objeções […] A sua força não estava nos argumentos que utilizava, estava no facto de usar muitos e de dispará-los em todas as direções.”

 

Mas Berlusconi tem de enfrentar não só um cliente, mas uma oposição, a opinião pública italiana e estrangeira e os media. O que faz?

 

 “A sua técnica consiste em fazer promessas que, sejam boas, más ou neutras aos olhos dos seus apoiantes, possam ser encaradas pelos seus críticos e opositores como uma provocação. E tem de produzir uma provocação diária, de preferência inconcebível e inaceitável. Consegue assim ocupar as primeiras páginas e as notícias de abertura dos media, mantendo-se sempre no centro das atenções. Em segundo lugar, a provocação deve ser de tal ordem que a oposição não possa deixá-la passar em claro e seja forçada a reagir energicamente. Conseguir provocar uma reação indignada das oposições permite a Berlusconi mostrar ao seu eleitorado que está a ser vítima de uma perseguição («vejam, seja o que for que eu diga, atacam-me sempre»).”

 

A vitimização como um elemento típico de todas as formas de populismo:

 

 “Mussolini fez com que fossem aplicadas sanções a Itália por causa do ataque que fez à Etiópia, mas depois veio invocar propagandisticamente a existência de uma conspiração internacional contra o nosso país […] Hitler lançou-se à conquista da Europa, dizendo que eram os outros países que estavam a negar ao povo alemão o seu espaço vital. Exatamente a mesma tática que o lobo usa com o cordeiro. A prevaricação tem de ser justificada pela denúncia de uma injustiça perpetrada contra a autointitulada vítima. A vitimização é um dos vários recursos que um regime tem para usar o chauvinismo como forma de assegurara a coesão interna: para engrandecer o nosso país, dizemos que são os outros que nos odeiam e que nos querem cortar as asas. Todos os tipos de exaltação nacionalista e populista pressupõem o cultivo de um estado de frustração contínuo.”

 

Por outro lado, o lamentar quotidiano de uma conspiração contra nós também nos ajuda a aparecer todos os dias nos media para denunciar o adversário. É uma técnica muito antiga, usada pelas próprias crianças:

 

 “Eu dou uma cotovelada ao meu colega de carteira, ele atira-me uma bolinha de papel e eus vou fazer queixa ao professor.”

 

Outra técnica consiste em lançar provocações, desmenti-las no dia seguinte («perceberam-me mal») e lançar imediatamente outra provocação, de modo a que a oposição tenha de reagir à segunda e as pessoas esqueçam de que a primeira era simplesmente flatus vocis. Este tipo de atuação permite ainda alcançar outros dois objetivos essenciais:

 

“O primeiro é que, por muito forte que uma provocação tenha sido, ela funciona sempre como um balão de ensaio. Se a opinião pública não reagiu com energia suficiente, isso significa que estão abertas as portas para todo o tipo de propostas que queiramos apresentar, mesmo as mais ofensivas. É neste momento que a oposição é forçada a reagir, apesar de saber que se trata de pura e simples provocação, porque, se nada disser, abre a porta a outras tentativas. Faz o que não pode deixar de fazer para impedir o golpe rasteiro, mas, ao reagir, acaba por corrobora-lo, porque se rende à sua lógica.

O segundo objetivo atingido é aquilo a que eu chamaria o efeito bomba. Se eu fosse um homem de poder envolvido em negócios obscuros, e me informassem que no dia seguinte os jornais iam revelar as minhas trafulhices, só tinha uma solução ao meu alcance: punha ou mandava pôr uma bomba na estação dos comboios, num banco, na praça à saída da missa. Assim teria a certeza de que, pelo menos durante quinze dias, as primeiras páginas dos jornais e as aberturas dos telejornais seriam dedicados ao atentado, e a notícia que me preocupava, mesmo que saísse, passaria despercebida no meio de tantas outras.”

 

Pelo que Eco aconselha:

 

“Devíamos reler todas as primeiras páginas dos jornais dos últimos dois anos e calcular o número de efeitos bomba que se produziram. Quando encontrarmos afirmações perfeitamente disparatadas, como aquela de que todos os magistrados precisam de ir ao psiquiatra, devemos perguntar-nos que outra iniciativa foi relegada para segundo plano por aquela bomba.”

É assim que Berlusconi “controla e dirige as reações dos seus opositores, distorce-as, usa-as para mostrar que o estão a tentar destruir, que todos os apelos à opinião pública são um golpe baixo ad hominem.”

 

 

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