A sociedade da transparência significa o final da narração e da recordação.
Nenhuma narração é transparente. A única coisa transparente são as informações e os dados.
A vida narrada ou recordada tem forçosamente buracos.
O eu não é uma quantidade, mas uma qualidade. «Autoconhecimento por meio de cifra» é uma quimera.
Byung-Chul Han, coreano que estudou Filosofia e Teologia na Alemanha, é dos primeiros a desmontar, com a publicação em 2012 do seu livro A Sociedade da Transparência, aquele discurso público muito em voga da necessidade da transparência, em que a transparência vem apenas relacionada à corrupção e à liberdade de informação. É que essa exigência e aceitação da transparência vai muito para além desses campos, acabando por se manifestar numa sociedade em que a confiança desaparece e que aposta na vigilância e no controle. Pelo que a ser assim entendida, trata-se de um imperativo meramente económico, não moral nem biopolítico. “As coisas tornam-se transparentes quando se expressam na dimensão do preço, despojando-se da sua singularidade. A sociedade da transparência é um inferno do igual”.
Onze anos depois, em 2023, publica A crise da narração, onde mais sinteticamente nos vem falar desta sociedade que estamos a criar. Eis a reprodução de um excerto do capítulo “A vida narrada” contido nessa obra:
“[…] A memória humana é seletiva. E nisso se diferencia do banco de dados. É narrativa, ao passo que a memória digital trabalha somando e acumulando. A narração baseia-se em selecionar e abraçar acontecimentos. Procede seletivamente. Procede seletivamente. Nela só se incorporam acontecimentos selecionados. A vida narrada ou recordada tem forçosamente buracos. As plataformas digitais, pelo contrário, aquilo que procuram é precisamente protocolar a vida sem deixar buracos. Quanto menos se narra, mais dados e informações se produzem e se acumulam. Para as plataformas digitais os dados são mais valiosos que as narrações. As reflexões narrativas estão mal vistas.
Algumas plataformas digitais permitem formatos narrativos, mas então devem configurar-se de modo a que se ajustem ao banco de dados, para que assim aí possam descarregar a maior quantidade possível de dados. As stories configuram-se para carrear informação. Provocam a desaparição do sentido próprio da narração. As plataformas digitais configuram-se para alcançarem uma protocolização total da vida. Trata-se de transferir a vida a jogos de dados. Quantos mais dados se compilarem acerca de uma pessoa, tanto melhor se a poderá vigiar, manejar e explorar economicamente […]”
Mais à frente, dá-nos alguns exemplos do que se verifica no nosso dia-a-dia, começando por se socorrer da tese que Walter Benjamin expõe (A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica) sobre as possibilidades técnicas da máquina de filmar quer em câmara lenta quer em câmara rápida, podendo com isso descobrir e analisar a partir dos nossos movimentos o «inconsciente ótico», tal como o psicanalista faz com o «inconsciente pulsional»:
“…] Se tomarmos o Data Mining como uma técnica análoga à máquina de filmar, diremos que opera como uma câmara lenta digital, por detrás do espaço que ocupa a consciência, descobre e analisa outro espaço ocupado pelo inconsciente, que podemos nomear como inconsciente digital. Assim, a inteligência artificial pode aceder a aqueles desejos e às nossas inclinações de que não somos conscientes. A psicopolítica, que trabalha com dados, estaria, portanto, em condições de se assenhorear do nosso comportamento a um nível ainda pré-consciente.
No chamado Self-trackhing ou «autosseguimento», a narração é completamente substituída pela contagem. A única coisa que gera são puros dados. O lema do Quantified Self ou o «Eu quantificado», é um autoconhecimento através de números. Os seguidores desse movimento tratam de alcançar o autoconhecimento não através da narração, da recordação ou da reflexão, mas através de contagens e cifras. Para isso, aplicam ao corpo diversos censores que geram automaticamente dados sobre o ritmo cardíaco, a pressão sanguínea, a temperatura corporal, os perfis do movimento ou do sono. Os estados de saúde e de ânimo são registados regularmente. Protocolizam-se minuciosamente todas as atividades diárias. Fica registado inclusivamente o dia em que deu pelo seu primeiro cabelo branco. Nada deve escapar. Contudo, nada aí se narra, é tudo meramente medido. Os sensores e as aplicações recolhem automaticamente dados a um nível prévio à representação linguística e à reflexão narrativa. Os dados recompilados agrupam-se em forma de gráficos e de atrativos diagramas. Mas nada contam sobre quem eu sou. O eu não é uma quantidade, mas uma qualidade. «Autoconhecimento por meio de cifra» é uma quimera. As cifras não narram nada. O termo narrativas numéricas é um oximóron. A vida não se pode narrar em forma de acontecimentos quantificáveis.
O terceiro episódio da primeira temporada de Black Mirror intitula-se «Toda a tua história». Nessa sociedade da transparência em que se passa a ação, cada pessoa leva atrás da orelha um implante que regista absolutamente tudo o que essa pessoa viu e viveu, de modo que tudo o que se viveu e percebeu se pode reproduzir integralmente nos olhos e em monitores externos. Por exemplo, nos controles de segurança dos aeroportos pedem ás pessoas que reproduzam os acontecimentos vividos durante um determinado período de tempo. Já não há segredos. Os criminosos já não podem ocultar as suas malfeitorias. Ou seja, a pessoa está apanhada nas suas recordações. Se todo o vivido se pode recuperar integralmente, então, num sentido estrito, as recordações já não são possíveis.
A recordação não é uma repetição mecânica do vivido, mas antes uma narração a que continuamente há que voltar a ser contada de novo. As recordações têm forçadamente buracos. Pressupõem uma proximidade e um afastamento. Quando todo o vivido está presente sem distanciamento, quer dizer, quando está disponível, a recordação desaparece. Uma reprodução integral do vivido também não é uma narração, mas uma informação ou um protocolo. Quem quer narrar ou recordar deve poder esquecerou omitir muitas coisas. A sociedade da transparência significa o final da narração e da recordação. Nenhuma narração é transparente. A única coisa transparente são as informações e os dados. «Toda a tua história» termina com aquela cena em que o protagonista arranca o seu implante com uma lâmina de barbear.”
Quem prevarica tenta sempre encontrar uma forma de legitimaçãoe,se a legitimação é negada, o prevaricador opõe à retórica o argumento da força.
Nós temos o direito a prevaricar porque somos os melhores.
“Meu caro, ou comes ou levas”.
Comam merda, os milhões de moscas que o fazem não podem estar enganadas.
Em maio de 2004, Umberto Eco proferiu uma conferência na Universidade de Bolonha, que abriu do seguinte modo:
“Não sei se o que vou dizer serve para alguma coisa, porque tenho a clara consciência de que me estou a dirigir a uma massa de idiotas com o cérebro liquefeito e sei que não vão perceber absolutamente nada”.
Sabendo perfeitamente que com este início iria predispor a audiência contra o orador, escolheu fazê-lo como demonstração das várias possibilidades da retórica como técnica de persuasão que nos ensina a usar a linguagem mais apropriada para convencer a audiência dos méritos da nossa proposta, a elaborar raciocínios que sejam dificilmente contestados, para despertar na audiência emoções que propiciem o triunfo da nossa argumentação.
Temos de a conhecer para a saber desmontar. Eco vai apresentar-nos alguns exemplos, a começar por aquele anúncio imaginário que é usado para demonstrar que as maiorias nem sempre têm razão, e que diz «comam merda, os milhões de moscas que o fazem não podem estar enganadas».
Este argumento pode ser rebatido perguntando-se se as moscas têm essa predileção por razões de gosto ou por razões de necessidade. E se espalhássemos caviar e mel pelos campos, será que as moscas se sentiriam mais atraídas por isto? Recorde-se ainda a premissa que diz que «cada um come aquilo que gosta» é contrariada por inúmeras situações que levam as pessoas a comer coisas de que não gostam, como acontece nas prisões, nos hospitais, no exército, nos períodos de fome, ou quando se faz dieta.
Vejamos agora o exemplo clássico contado na fábula do lobo e do cordeiro, de Esopo/Fedro:
“Um lobo e um cordeiro, movidos pela sede, dirigiram-se ao mesmo riacho. O lobo parou no alto, o cordeiro muito mais abaixo. Então, o velhaco do lobo, invadido por uma desenfreada gulodice, procurou um pretexto para entrar em litígio.
- Porque é que – disse – turvas a água que eu estou a beber? – Cheio de temor, o cordeiro respondeu-lhe: -Desculpa, mas como é que eu posso turvá-la? A água que eu bebo passa primeiro por ti.
A refutação astuciosa do cordeiro visa apoiar-se na opinião das pessoas de bom senso, o que leva o lobo a recorrer a outro argumento:
E aquele, vencido pela evidência do facto, disse: - Há seis meses disseste mal de mim. E o cordeiro replicou: - Mas há seis meses ainda nem sequer tinha nascido!
Ao que o lobo apresenta uma nova justificação:
-Por hércules, então foi o teu pai que disse mal de mim – disse o lobo. E saltou de repente para cima do cordeiro, despedaçando-o e matando-o injustamente. Esta fábula foi escrita para aqueles homens que oprimem os inocentes com falsos pretextos.
Dois ensinamentos: quem prevarica tenta sempre encontrar uma forma de legitimação e que se a legitimação é negada, o prevaricador opõe à retórica o argumento da força.
A falsidade dos argumentos do lobo é evidente aos olhos de toda a gente, mas em muitos casos os argumentos que os prevaricadores usam são mais subtis, porque dão a impressão de assentarem numa opinião generalizada a partir da qual o prevaricador constrói toda a sua argumentação, usando como elemento probatório a tese que se pretendia demonstrar, ou rebatendo um argumento usando como prova o que esse mesmo argumento pretendia refutar:
“De vez em quando, os jornais ilustrados expõem aos olhos do pequeno-burguês […] uma notícia: aqui ou ali, um negro tornou-se pela primeira vez advogado, professor, pastor ou qualquer coisa semelhante. Enquanto a burguesia néscia recebe a notícia com grande espanto, cheia de respeito por esta prodigiosa adaptação, o malicioso judeu sabe aproveitar a situação para dela tirar uma nova prova da justiça da igualdade dos homens, uma teoria que o judeu quer a todo o custo impingir ao povo.
O nosso decadente mundo burguês não suspeita que, na realidade, está a pecar contra a razão: que é uma loucura censurável treinar indivíduos que são quase macacos de maneira a que pareça que saibam fazer o papel de um advogado, enquanto milhões e milhões de pessoas que pertencem à raça civilizada permanecem em postos indignos e incivilizados. É um pecado contra a vontade do Eterno Criador deixar centenas e centenas das mais nobres criaturas a definhar no actual pântano do proletariado, enquanto se treinam Hotentotes, Cafres e Zulus para as profissões intelectuais. Porque estamos a falar de um autêntico treino, como se treinam cães, e não de um «aperfeiçoamento» científico. Se concentrássemos esta diligência e trabalho nas raças inteligentes, faríamos com que cada pessoa executasse essas tarefas de forma mil vezes mais eficaz. […] Sim, é insuportável pensar que todos os anos há cem mil indivíduos sem qualquer espécie de talento que são considerados dignos de um a educação elevada, enquanto muitas outras centenas de milhar, dotadas de boa qualidade, são privadas de uma educação superior. As perdas que a nossa nação vai sofrendo com esta atitude são incalculáveis.”
O texto acima é do Mein Kampf de Adolf Hitler, e com ele pretende rebater o argumento da não existência de raças inferiores como parece sugerir o facto de um africano com boas condições de aprendizagem ser tão capaz como um europeu. Para Hitler, como não é possível que um ser inferior aprenda alguma coisa, tal só será possível se for submetido a um treino mecânico, como o dos animais do circo. Ou seja, o argumento que visava demonstrar que os negros não eram animais, é rebatido através da opinião (que certamente os seguidores de Hitler partilhavam) de que os negros são animais.
Votando ao conto do lobo, é claro que ele procura um argumento para devorar o cordeiro, procura um casus belli, tentando convencer o cordeiro, os presentes e a si mesmo, que vai comer o cordeiro porque este o afrontou. Esta procura de uma razão para a guerra tem sido utilizada ao longo da História, como por exemplo a que deu origem à Primeira Guerra Mundial.
A Áustria, país civilizado e iluminado, precisava de um pretexto forte. O seu príncipe herdeiro tinha sido morto, e o seu assassinato não tinha certamente sido um acto isolado, mas um acto executado a mando do governo sérvio. Argumento indemonstrável, mas fortemente emotivo: estava-se perante uma conspiração.
Um dos primeiros argumentos invocados para desencadear uma guerra ou para começar uma perseguição, é a ideia de que é necessário reagirmos a uma conspiração que está a ser urdida contra nós, contra o nosso grupo, o nosso país, a nossa civilização.
O caso dos Protocolos deSião, o panfleto que serviu de justificação para o extermínio dos judeus, é o exemplo típico da síndrome da conspiração. Eis o que Karl Popper escreveu em “Para uma Teoria Racional da Tradição”:
[…] esta teoria (social da conspiração), mais primitiva que muitas formas de teísmo, é similar à visão que encontramos em Homero. A sua concepção do poder dos deuses permitia explicar tudo o que acontecia na planície de Troia como simples reflexo de mil e uma conspirações maquinadas no Olimpo. A teoria social da conspiração é, na realidade, uma versão deste teísmo, da crença em divindades que tudo controlam através dos seus caprichos e vontades. A diferença é que a teoria social da conspiração é a consequência da ausência de uma referência a Deus, e da pergunta subsequente: «Quem é que ocupa o seu lugar?» Hoje em dia, esse lugar é ocupado por diferentes pessoas ou grupos – sinistros grupos de pressão, a quem podemos atirar as culpas da Grande depressão e de todos os males que nos afetam. A teoria social da conspiração está bastante difundida, mas não contém quase nada de verdadeiro. Só quando os teóricos da conspiração chegam ao poder é que a teoria passa efetivamente a descrever factos reais. Por exemplo, quando Hitler conquistou o poder, acreditando no mito da conspiração dos Sábios do Sião, esforçou-se por desmascarar essa conspiração, criando a sua própria contraconspiração.
Em geral, as ditaduras precisam de manter o consenso popular em relação às suas decisões, e por isso denunciam a existência de um país, de um grupo, de uma raça ou de uma sociedade secreta que conspiram contra o povo dominado pelo ditador. Todas as formas de populismo procuram obter o consenso através de uma suposta ameaça, que tanto pode vir do exterior como se grupos internos.
Outro hábil manipulador da casus belli e da teoria da conspiração foi Mussolini, exemplarmente pasmado no seu discurso de 2 de outubro de 1935 onde o Duce anunciou o início da invasão e conquista da Etiópia. É aí que aparece claramente a ideia da legitimação da decisão através da vontade popular: Mussolini decidiu tudo por conta própria, mas a legada presença de vinte milhões de italianos nas praças de Itália transfere para essas pessoas a decisão do conflito. A legitimação da decisão pela roda do destino: o Duce, e com ele os italianos, agem deste modo porque interpretam os desígnios do Fado. A legitimação como vontade de reagir a um roubo: eles querem tirar-nos o nosso lugar ao sol. A legitimação pela frustração nacionalista porque apesar de ganharem uma guerra mundial não lhes foi dado (pelas conspirações das plutocracias judaico-democráticas) aquilo a que tinham direito (a Itália tinha entrado na guerra para recuperar Trento e Trieste, o que lhes foi devolvido).
Este tipo de argumentação permite a Mussolini alcançar o efeito pretendido, levar a multidão a explodir em gritos de satisfação: como é que este povo perseguido e desprezado, que tem qualidades de espírito e força de caráter, e é por excelência um “Povo, ao qual a Humanidade deve algumas das suas maiores conquistas, […] Povo de poetas, artistas, heróis, santos e navegadores”, não eram suficientes para legitimar a invasão da Etiópia?
Sintetizando o que Mussolini disse: “nós temos o direito a prevaricar porque somos os melhores”.
Mas há situações em que os casos são criados sem quaisquer antecedentes, como foi, por exemplo e sem querer entrar na discussão, o facto de Saddam possuir ou não as armas de destruição maciça que serviram de justificação para o ataque ao Iraque. O que interessa a Eco são os textos daqueles grupos de pressão norte-americanos ditos neoconservadores, que defendem, não sem alguma razão, que sendo os Estados Unidos o país mais poderoso do mundo, tem não só o direito como o dever de intervir para garantir aquilo a que comummente se chama a pax americana.
Eis um excerto da carta enviada ao presidente Clinton a 26 de janeiro de 1998 pelos maiores representantes do Project for the new American Century, o expoente máximo da ideologia neoconservadora, assinada, entre outros, por Francis Fukuyama, Robert Kagan e Donald Rumsfeld:
“Já não podemos contar com os nossos aliados para continuar a fazer respeitar as sanções nem para punir Saddam, quando bloqueia ou se esquiva às inspeções das Nações Unidas. A nossa capacidade de assegurar que Saddam Hussein não está a produzir armas de destruição maciça diminuiu consideravelmente. Mesmo que pudéssemos recomeçar as inspeções […] a experiência tem demonstrado que é difícil, para não dizer impossível, controlar a produção iraquiana de armas químicas e bacteriológicas […] A única estratégia aceitável consiste em eliminar as possibilidades de o Iraque se tornar capaz de usar armas ou de ameaça-lo fazer. A curto prazo, isto implica a nossa disponibilidade para encetar uma campanha militar […9 A longo prazo, significa destruir Saddam Hussein e o seu regime. Acreditamos que os Estados Unidos estão autorizados, à luz das resoluções da ONU existentes, a tomar as medidas necessárias, inclusivamente no plano militar, para proteger os nossos interesses vitais no Golfo.”
Em síntese: para proteger os nossos interesses no Golfo, temos de intervir; para intervir seria necessário provar que Saddam tem armas de destruição maciça; isto nunca será provado com certeza absoluta; portanto, vamos intervir de qualquer maneira. A carta não diz que as provas devem ser inventadas, porque os signatários são homens honrados.
Como a carta a Clinton não produziu os efeitos desejados, três anos mais tarde, a 20 de setembro de 2001, os mesmos signatários (com excepção de Rumsfeld que se tinha tornado ministro da Defesa), escreveram outra carta a Bush:
“É possível que o governo iraquiano tenha fornecido alguma espécie de assistência aos recentes ataques aos estados Unidos. Mas, mesmo que não houvesse provas que ligassem diretamente o Iraque ao atentado, qualquer estratégia que tenha como objetivo a erradicação do terrorismo e dos seus apoiantes deve passar pela destituição de Saddam Hussein.”
Ou seja, três anos mais tarde, foi usado o duplo pretexto das armas e da assistência ao fundamentalismo muçulmano para se invadir o Iraque, apesar da clara consciência de que, a existirem armas, não se podia provar a sua existência, e de que o regime ditatorial de Saddam era laico e não fundamentalista.
Há um célebre discurso de Péricles no início da guerra do Peloponeso (História da Guerra do Peloponeso, II, 60-4, Tucídides) que tem sido entendido e citado como um elogio da democracia (como uma nação subsiste garantindo a felicidade dos seus cidadãos, o intercâmbio de ideias, a livre deliberação das leis, o respeito pelas artes e educação, a luta pela igualdade), esquecendo que Péricles o utilizou para legitimar a hegemonia ateniense sobre os seus vizinhos gregos e povos estrangeiros, ou seja, para legitimar o direito de Atenas a impor a sua própria hegemonia: nós temos o direito de impor a nossa força aos outros porque encarnamos a melhor forma de governo que existe.
Mas Tucídides vai mais longe na justificação para a conquista ateniense à colónia espartana da ilha de Milo que tinha optado por se manter neutra. Como se poderia então justificar o ataque?
Os atenienses enviam uma delegação a Milo, avisando os habitantes que não os iam destruir, desde que se submetessem ao seu poder. Os habitantes de Milo recusam, por orgulho e por sentido de justiça (hoje diríamos: do direito internacional) e, em 416 a. C., após um longo assédio, a ilha é conquistada. “Os Atenienses mataram todos os homens adultos que encontraram e reduziram à escravidão as mulheres e as crianças”.
Sintetizando: os Atenienses limitam-se a convidar os habitantes de Milo a negociar, revelando-lhes desde início as intenções que os movem, porque os princípios da justiça só são tidos em consideração quando há uma relação de igualdade entre as partes, caso contrário “os mais poderosos fazem tudo o que podem fazer e os mais fracos têm de se adaptar”.
Na realidade o que estão a explicar aos habitantes de Milo é que os vão atacar porque o poder só é legitimado pela força.
E eis como Eco termina a sua conferência:
“É lícito suspeitar que Tucídides, apesar de representar com honestidade intelectual o conflito entre justiça e força, quer dar a entender que o realismo político está do lado dos Atenienses. Em todo o caso, descreveu-nos a única verdadeira retórica da prevaricação, porque não procura quaisquer justificações exteriores. A persuasão identifica-se com a captatio malevolentiae: «Meu caro, ou comes ou levas.»
A História foi e continuará a ser uma longa, fiel e obstinada imitação deste modelo, mesmo que nem todos os prevaricadores tenham a lucidez e a indubitável sinceridade dos Atenienses.”
Deram-lhes a escolher ser reis ou mensageiros dos reis. À maneira das crianças, todos quiseram ser mensageiros – o resultado foi que não existem senão mensageiros, Kafka.
Em tempos difíceis e incertos, a procura de refúgio na nostalgia ou no anacronismo, é o que normalmente acontece na moda, Georgina Ripley.
O desenvolver uma atividade frenética para impedir que uma coisa real aconteça, não passa de uma falsa atividade: pensamos estar ativos, mas estamos a ser passivos relativamente à realidade.
Perante uma situação em que “só as moscas mudam”, nada nos obriga a escolher.
Georgina Ripley, curadora chefe de design moderno e contemporâneo no Museu Nacional da Escócia (Edinburgh), observou que a tendência que se vem verificando na moda feminina atual, tendo em vista por exemplo os vestidos exibidos nos principais circuitos badalados como nos Óscares onde proliferaram os despidos atrás, revela que a moda tem a ver não só com a sua própria estética mas com o que se passa no ambiente sociopolítico da sociedade e do tempo em que se vive.
Para Ripley, em tempos difíceis e incertos, a procura de “refúgio na nostalgia ou no anacronismo”, é o que normalmente acontece na moda: os vestidos sem costas apareceram pela primeira vez nos anos trinta do século passado, na época da Grande depressão e da ascensão do fascismo.
Uma empresa de biotecnologia dos EUA modificou geneticamente ratos para terem algumas características do extinto mamute-lanoso. Investigadores da Colossal Laboratories and Biosciences dotaram os seus ratos com a pelagem grossa e despenteada do mamute e com o seu eficiente metabolismo de gordura que o ajudou a sobreviver na Idade do Gelo.
O objetivo da Colossal é introduzir estas características juntamente com outras que foram perdidas devido à extinção do mamute-lanoso nos elefantes modernos, ressuscitando-as.
Desde que foi fundada em 2021 pelo empreendedor Bem Lamm e pelo geneticista da Universidade de Harvard, George Church, a Colossal já arrecadou 430 milhões de euros.
A ideia é libertar posteriormente estes novos-velhos animais talvez na Gronelândia (tudo bate certo) porque parece que ao vaguearem pelo Ártico, ao comprimirem a neve e o musgo que isolam o solo diminuirão o degelo do permafrost e a libertação de carbono, ao mesmo tempo que fertilizam o solo com os excrementos.
Este processo de ressurreição de espécies extintas tornou-se conhecido como “de-extinção”. E se inicialmente não passava de uma simples aspiração ou noção, está hoje assente em tecnologia científicas de topo como a “clonagem” (cloning), a “transferência nuclear de células” (SCNT, somatic cell nuclear transfer), e outras.
Recordemos que uma das primeiras tentativas para trazer de novo à vida animais que já estavam extintos foi a aplicada no início do século XX pelos zoologistas alemães Lutz e Heinz Heck aos bois e vacas com vista a obterem o boi primogénito aurocaense (aurochs, Bos primigenius), utilizando o habitual processo de reprodução seletivo ao contrário, ou seja, em vez de cruzarem animais para obterem um apuramento da espécie, usaram o mesmo processo de cruzamento para obterem uma regressão.
Só após se conseguir isolar e analisar o DNA dos ossos, pelo e outros tecidos de animais mortos é que foi possível pela combinação in vitro reproduzir animais morfologicamente e geneticamente similares aos auroques.
Independentemente das considerações éticas que possam ser levantadas, permanece aquela questão incómoda: criámos em grande parte dos casos as condições para as suas extinções e agora queremos criar as condições para os seus regressos mesmo para aqueles que não têm quaisquer condições de sobrevivência na atualidade?
E aquele medo: se detêm a tecnologia para alterar para trás, não a poderão também aplicar para a frente (que aliás é o que já estão a fazer aos poucos, ver blog de 7 de agosto de 2019, “Pré-viventes ou pré-sobreviventes”)?
Herman Melville, o consagrado autor de Moby Dick, foi também um excelente contador de pequenas histórias, como a que escreveu em 1853, Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street (Bartlleby, o escriturário: uma história de Wall Street). Sem grande sucesso na altura, este conto publicado no Putnam’s Magazine, é hoje considerado como sendo o precursor da literatura do absurdo, na linha de temas mais tarde desenvolvidos por Franz Kafka. Só que não apenas Kafka não teve qualquer contacto com essa obra, como só depois da sua morte é que este conto de Melville começou a ser conhecido e apreciado. Até nisto temos um absurdo: o de um percursor só “aparecer” depois daquilo de que ele fora precursor.
Bartleby trabalhava como escriturário no consultório de um advogado em Manhattan. Embora inicialmente fosse considerado como um excelente empregado que produzia uma enorme quantidade de trabalho de grande qualidade, quando um dia foi chamado pelo patrão para colaborar no estudo e execução de um documento importante, disse calmamente, sem levantar a voz: “Preferiria não”. A partir daí, o seu rendimento foi diminuindo, até que acabou por não fazer nada. Apesar das várias tentativas de conciliação do advogado, a resposta era sempre a mesma: “Preferiria não”. Despedido, Bartleby não saiu do edifício, passando o dia sentado nas escadas e dormindo à noite na entrada do edifício. Condoído, o advogado tentou demovê-lo daquela posição, chegando até a oferecer-lhe a sua casa para viver. Ao que Bartleby respondia com o irredutível “Preferiria não”. Forçado a sair do edifício, Bartleby acabou por ser preso por vagabundagem. O advogado deslocou-se à prisão para ver se ele estava a ser bem tratado, levando-lhe comida. Quando dias depois lá voltou, Bartleby tinha morrido de fome, tendo preferido não comer.
Muitas das tentativas para a explicação deste texto têm recaído em considerações sobre problemas de depressão clínica, sobre teorias do livre arbítrio e do determinismo, ou ainda sobre as más críticas ou o fracasso de vendas que foram Moby-Dick (1851) e especialmente Pierre (1852), que poderiam ter levado o autor a optar por escrever pequenos contos, começando pelo Bartleby, em que aparentemente se revia. Tudo explicações individuais para aquilo que tem a ver com um problema bastante mais geral e abrangente.
Filosoficamente, a frase irredutível de Bartleby não significa que ele não quisesse copiar ou escriturar, ou que não quisesse deixar o escritório – simplesmente ele preferiria não o fazer. Esta formulação que não é nem afirmativa nem negativa, em que não aceita, mas também não recusa, abre uma zona de indefinição entre o sim e o não, o preferido e o não-preferido.
É Aristóteles que vai comparar o espírito, intelecto ou pensamento puro em potência, a uma tábua (grammatéion) onde nada está ainda escrito (no século quatro a. C., na Grécia escrevia-se a tinta sobre uma folha de papiro, ou mais vulgarmente, sobre uma tabuinha coberta por uma fina camada de cera onde se gravava com um estilete). Mais tarde, a quando da tradução latina das obras de Aristóteles, grammatéion dá origem à tabula rasa, aparecendo em Locke como “folha branca” (“suponhamos que no início o espírito não passava de uma folha branca, virgem de qualquer inscrição, sem qualquer ‘ideia’”).
Estamos assim perante uma tradição filosófica que atribui à escrita a importância de desvendar o pensamento. A utilização da imagem da tábua coberta de cera permitia a Aristóteles tentar explicar o problema da pré-existência do pensamento como ‘pura potência’, e de como ele passaria a ‘ato’ assim que nela se escrevesse. Idealmente, o pensamento não teria qualquer forma (não seria evidentemente uma tábua coberta de cera), porque se o pensamento tivesse já uma forma, ou seja, se já fosse qualquer coisa, tal iria interferir, condicionar a perceção, o entendimento, de qualquer objeto inteligível.
É esta ideia sobre o que é a mais pura potência que leva Aristóteles a concluir que toda a potência de ser ou fazer qualquer coisa terá de ser também a potência de não ser ou de não fazer, porque se toda a potência acabasse por se transformar em ato, acabaria por se confundir com ele. Daí o espírito, o intelecto ou o pensamento puro existir como uma potência de pensar e de não pensar.
Mas o próprio Aristoteles tinha algumas dúvidas: “O problema do pensamento implica certas aporias. O pensamento parece ser o mais divino dos fenómenos, mas o seu modo de existência é problemático. Com efeito, se ele não pensa nada (ou seja, se ele se atém à sua potência de não pensar), que dignidade será essa? É como se estivesse adormecido. Mas, se pelo contrário, ele pensa qualquer coisa em ato, ficar-lhe-á subordinado a partir do momento em que a sua essência não é já um ato de pensamento, mas uma simples potência; deixará de ser a substância mais nobre, uma vez que que a sua excelência lhe virá de ser potência em ato.”
A aporia a que ele se referia tinha, pois, a ver com o facto de o pensamento supremo não poder nem pensar em nada nem pensar alguma coisa, nem permanecer em potência nem passar ao ato, nem escrever nem não escrever. Para ultrapassar esta aporia, Aristóteles elaborou a tese segundo a qual o pensamento se pensa a si próprio, sendo como que uma média entre o não pensar e o pensar qualquer coisa, entre a potência e o ato. O pensamento que se pensa a si próprio não pensa num objeto, nem pensa em nada: pensa uma pura potência (de pensar e de não pensar). De certa maneira, Bartleby, como o escriba que deixou de escrever é o protótipo da tábua de cera onde nada está escrito; é a figura extrema do nada de onde vem toda a criação, do nada como pura potência.
Claro que surge logo outro problema: como é que uma pura potência se pode pensar em ato? Como é que uma tábua de cera, onde nada está impresso, se pode impressionar a ela própria?
Na nossa cultura só muito raramente se assiste a este equilíbrio entre a afirmação e a negação, entre a aceitação e a recusa, o dar e o tirar. Os céticos propunham-se alcançar uma condição de suspensão, que era a condição em que nós não podíamos estar nem negar, nem aceitar nem recusar. Não se tratava de uma condição de indiferença, mas antes de uma experiência de possibilidade ou de potência. De certa forma, a procura de uma abertura luminosa.
Aristóteles já tinha também chamado a atenção para algo muito interessante. Dizia ele: “é necessário que toda a coisa seja ou não seja, que ela será ou não será; contudo, encarando separadamente as duas possibilidades, não poderemos dizer com certeza que uma ou outra sejam necessárias. Por exemplo, se eu disser que amanhã vai haver uma batalha naval ou que amanhã não vai haver uma batalha naval, tal não significa necessariamente que se verifique uma batalha naval ou que ela não se verifique.” Ou seja, só a tautologia (proposição que é impenetrável às condições de verdade, uma vez que são sempre verdadeiras) “amanhã vai haver ou não uma batalha naval” é que é necessariamente sempre verdadeira para além da realização de uma ou da outra possibilidade, ao passo que cada uma das outras duas alternativas possíveis passam a serem contingentes, pois podem ser ou podem não ser. De igual modo, a frase de Bartleby pode ser aplicada a qualquer coisa, podendo ao mesmo tempo ser verdadeira e não verdadeira.
Fica assim completo e aberto o quadro de todas as possibilidades, a tal abertura luminosa de que falavam os céticos. É agora claro que a própria criação, para o ser, tem sempre de conter em si a possibilidade da não criação. E não só no momento da criação, mas em todos os momentos que se lhe seguem. Há sempre a hipótese de uma segunda criação. A interrupção da escritura poderá ser um desses momentos em que se concentra toda a potência de não-ser, ponto de indiferença entre a potência e a impotência.
Talvez agora se consiga compreender melhor Leibniz quando ele nos fala sobre um mausoléu onde estão guardadas séculos e séculos das imagens de tudo aquilo que não foi, mas que poderia ter sido, “os possíveis contidos de toda a eternidade”. E foi desse imenso mausoléu que Deus escolheu o “melhor dos mundos possíveis” que, de vez em quando vem visitar, “para se dar o prazer de recapitular as coisas e de renovar a sua própria escolha”.
Com o seu “preferia não”, Bartleby restitui-nos integralmente o universo infinito da possibilidade, mantendo-o em equilíbrio entre o poder ser e o não poder ser, entre o que vai ser e o que não vai ser, batalha eterna entre os vários “melhores” dos mundos possíveis.
Politicamente, o conceito por detrás da expressão de Bartleby é muito mais do que uma simples resistência ativa ao poder. Bartleby deixa de sonhar com o poder, o que é muito mais radical. O poder, como subordinação de muitos a um, não é algo que exista desligado das coisas e que continuaria a existir independentemente da participação dos súbditos. Ele só persiste através da nossa assistência ativa. Colaboramos com o opressor não por ele ser muito poderoso, mas, exatamente por ele nos parecer poderoso é que o tratamos como tal. Então porque é que lhe obedecemos?
Porque “Os sujeitos obedecem não só devido à coerção física (ou à ameaça dela) e à mistificação ideológica, mas também porque investem libidinalmente no poder”. Ou seja, o poder, o seu exercício, como que provoca um êxtase que envolve não só quem o detém, mas também todos aqueles que não o tendo se sentem bafejados pelos salpicos das ondas de gozo que dele emanam e onde eles se banham, enrolam, rebolam. Como uma adrenalina viciante, é assim que o “poder” os suborna e mantém sob o seu jugo.
O que Bartleby faz é deixar de sonhar com o poder, o que implica dissolver a relação entre as estruturas do poder e o êxtase babado dos que o consentem e promovem. O que Bartleby nos diz é que nos devemos focalizar, não sobre a realidade, mas sobre os nossos próprios sonhos.
O desenvolver uma atividade frenética para impedir que uma coisa real aconteça, não passa de uma falsa atividade: pensamos estar ativos, mas estamos a ser passivos relativamente à realidade. Quando nos desdobramos em manifestações, petições, grandes oratórias, etc., mas simultaneamente entregamos o verdadeiro trabalho de assistência, educação, ajuda, acompanhamento, às inócuas Misericórdias do poder político instituído, não estamos certamente a criar condições que não sejam as da perpetuação de um poder político daltónico. Perante uma situação em que “só as moscas mudam”, nada nos obriga a escolher. É mesmo melhor nada fazer do que contribuir para a reprodução da ordem existente.
Lembremos Kafka nos “Mensageiros”:
“Deram-lhes a escolher ser reis ou mensageiros dos reis. À maneira das crianças, todos quiseram ser mensageiros – o resultado foi que não existem senão mensageiros. Galopam mundo fora gritando-se mensagens que, uma vez que não existem reis, se tornaram sem sentido. Alegrá-los-ia pôr fim à sua existência miserável, mas não se atrevem a fazê-lo, tendo em conta os deveres do seu serviço”.
O problema básico […] não é como os revolucionários chegam ao poder, mas como é que eles passam a ser aceites, não apenas como os novos dirigentes políticos, mas como exemplos e leaders, Gramsci.
A burguesia desenvolve uma cultura hegemónicautilizando a ideologia em vez da violência, da força económica ou da coerção, Gramsci.
O Ocidente dominou o mundo não por causa da superioridade das suas ideias ou valores ou religião […] mas antes pela sua superioridade na utilização da violência organizada. Os ocidentais muitas vezes esquecem este facto; mas os não-ocidentais nunca o esquecem, Samuel Huntington.
No Largo de Santo António da Sé, em Lisboa, há um café/pastelaria que tem à porta uma tabuleta apenas em inglês que adverte para a necessidade de esperar para ser sentado (“Please wait to be seated”), conforme nos relata Fernanda Câncio (DN, 3 de Nov 2024), num interessante artigo intitulado “Please wait to be seated, a Lisboa que só fala inglês e está a violar a lei”:
“Há na capital cada vez mais estabelecimentos que ostentam comunicação exclusivamente em inglês. Dir-se-ia o Algarve dos anos 1980. Se alguém questiona, sai um atónito “qual o problema?”. A ideia, garantem, não é ofender ou afastar os portugueses, até porque “vocês são muito bons em línguas”. Quem diria que é ilegal?”
O nome desse café é “Dear Breakfast”. Tão vulgar em português como “McDonald”, “Starbucks”, “Oracle”, “Netflix”…
“Socialismo” não significa, por muito fundamental que isso seja, apenas a socialização da produção, mas acima de tudo socialização no sentido sociológico do termo, no estabelecimento de novas relações humanas e de estruturas genuinamente populares, com vista à dissolução das barreiras entre o estado e a sociedade civil.
É por ter este entendimento daquilo que socialismo é, que para Gramsci (1891-1937) “a luta para derrotar o capitalismo e construir o socialismo era vista essencialmente como um continuum no qual a transferência atual do poder era apenas um momento”. E mais tarde, isso leva-o a acrescentar:
“O problema básico […] não é como os revolucionários chegam ao poder, muito embora esta questão seja muito importante. É como é que eles passam a ser aceites, não apenas como os novos dirigentes políticos, mas como exemplos e leaders”.
Antonio Gramsci esteve preso de 1926 a 1937, durante os quais escreveu mais de 30 cadernos de apontamentos, os famosos Cadernos do cárcere (PDF 500 pp) que continuam a constituir uma das contribuições mais importantes para a teoria política.
É neles que vai desenvolver a sua teoria da hegemonia cultural, que descreve a forma como o Estado e a classe dominante utilizam as instituições culturais para manter a riqueza e o poder.
Segundo Gramsci, a burguesia desenvolve uma cultura hegemónica utilizando a ideologia em vez da violência, da força económica ou da coerção.
Ou seja, o problema básico que se punha seria o da hegemonia, que tinha de ser conquistada não apenas antes e durante, mas depois da revolução, e que só poderia ser alcançada através da participação das massas e da sua educação consensual, “a escola de uma nova consciência, uma humanidade mais completa para o futuro socialista”.
Para Gramsci, a política era mais do que o exercício do poder, porque as sociedades não eram apenas estruturas de domínio económico ou de força política, pois possuíam uma certa coesão social mesmo quando envolvidas em antagonismos de classe.
Recordemos que após a vitória da revolução Russa e o colapso dos impérios dos Ausburgo e Hohenzollern na Europa central, os teóricos comunistas passaram a acreditar que após o rescaldo da Primeira Guerra Mundial, a tomada do poder pelo proletariado fazia parte da agenda imediata em cada um dos estados dos países imperialistas, porque pensavam que o mundo tinha definitivamente entrado na época histórica da revolução socialista.
Lukács escrevia que se vivia numa “atualidade universal da revolução proletária” determinada pelo estado geral do desenvolvimento do capitalismo, que tinha entrado na sua crise mortal.
Ou seja, confundiam as precondições concretas necessárias para uma situação revolucionária com a afirmação abstrata do caráter revolucionário do tempo, da época em si. Daí preconizarem como tática a seguir a ação armada parcial contra o estado capitalista.
Era a teoria da “ofensiva revolucionária”: uma vez que a época era revolucionária, a única estratégia era a da ofensiva, através de uma série de repetidos golpes contra o estado capitalista, que deveriam de ser realizados mesmo se a classe trabalhadora não se encontrasse numa disposição imediatamente revolucionária, servindo nestes casos para “acordarem” o proletariado do seu torpor reformista.
Sabemos o que aconteceu a essa ofensiva revolucionária.
“O Ocidente dominou o mundo não por causa da superioridade das suas ideias ou valores ou religião […] mas antes pela sua superioridade na utilização da violência organizada. Os ocidentais muitas vezes esquecem este facto; mas os não-ocidentais nunca o esquecem”.
A ser assim, o facto de o domínio ocidental estar historicamente enraizado na violência organizada e não na superioridade cultural ou ideológica, mina as alegações de que valores universais como a democracia ou os direitos humanos são os principais impulsionadores da sua influência global.
A afirmação de Huntington explica porque é que as alianças militares globais como a NATO, a aliança "Cinco Olhos", o diálogo de segurança quadrilateral (o Quad) entre os EUA, o Japão, a Índia e a Austrália e as bases militares mundiais, as intervenções armadas na crise da Ucrânia, no Médio Oriente e no Afeganistão, bem como a contenção da China, são parte integrante da estratégia geopolítica dos Estados Unidos no nexo entre as "dimensões internas e externas da sua confiança na violência expansionista organizada como a sua ferramenta de política externa".
Eis George Kennan, um diplomata dos EUA, explanar:
"Temos 50 por cento da riqueza do mundo, mas apenas 6,3 por cento da sua população... Nesta situação, não podemos deixar de ser objeto de inveja e ressentimento. A nossa verdadeira tarefa no próximo período é conceber um padrão de relações que nos permita manter esta posição de disparidade. Deveríamos deixar de falar sobre objetivos vagos e... irreais, como os direitos humanos, a elevação dos padrões de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos que lidar com conceitos diretos de poder. Quanto menos formos prejudicados por slogans idealistas, melhor.”
Qual o pensamento da esquerda social democrata sobre isso? Como atuar?
Como parte do princípio que o sistema é mantido por consentimento e não por coerção, conclui que a principal tarefa dos militantes socialistas não é o combate contra um estado armado mas antes o intentar a conversão ideológica da classe trabalhadora para a libertar da submissão das mistificações capitalistas.
Acredita que apesar da classe trabalhadora ter acesso ao estado (através das eleições), o socialismo só não é alcançado devido à doutrinação a que é submetida pelos meios de comunicação social. E assim vamos votando.