A forma como pensamos é a forma com que os poderosos nos treinaram para pensar.
Aqueles para quem a socialização se acredita dever ser genética, opõem-se a essa socialização.
O ocidental típico habita um universo mental completamente divorciado da realidade. As atrocidades são cometidas apenas por Estados estrangeiros dos quais o seu governo não gosta.
Se perguntarmos à grande maioria dos nossos conhecidos qual é a percentagem atual de afroamericanos (pretos) na população dos EUA, o número mais citado será à volta de 40%, o que de certa maneira é o reflexo que está de acordo com as componentes culturais mais apregoadas, desde a fala coloquial generalizada – com os “bros”(manos) e outros que tais – aos vários apertos de mão – os distintos “take five” em cima e em baixo –o andar bamboleante, os ténis desapertados, os enormes capuchos (hoodies), as canções e danças, aos atletas e desportistas mais nomeados, etc.
Acontece que, segundo o censo de 2022 da ACS (American Community Survey) a população americana rondava os 330 milhões, dos quais os brancos ainda constituíam a maioria com 60%, seguidos pelo grupo dos hispânicos (que não incluem espanhóis) com 19%, só depois vindo o grupo dos afroamericanos (pretos) com 12%, asiáticos com 6%, e nativos americanos índios e do Pacífico com 1%.
Segundo as projeções (a manterem-se as condições atuais), a população branca deixa de ser maioritária dentro de cinco anos, a hispânica crescerá bastante, a africana manter-se-á ou decrescerá, a asiática crescerá ligeiramente.
Alguém gosta de perder a maioria? Que fazer para a manter?
Uma das surpresas que os Democratas tiveram nestas últimas eleições presidenciais, foi o voto dos hispânicos ser fortemente favorável a Trump. Constituído essencialmente por imigrantes, com baixos rendimentos, sujeitos à retórica anti-imigração por parte dos Republicanos, o “normal” para os Democratas seria que votassem por eles.
Não previram que para esses imigrantes paupérrimos o seu Sol era o país capitalista por excelência: os EUA.O eldorado para onde imigravam. E uma vez lá chegados, por mais miseráveis que venham a estar, não querem que mais nenhum dos imigrantes venha. Tal como os trabalhadores das fábricas de armamento (e outros) não querem que as guerras acabem, não querem que as “suas” fábricas fechem, porque isso lhes garante o emprego. Qualquer resquício de bondade social é inexistente: o indivíduo (eles) acima de tudo.
Aliás, o mesmo se passa nesta Europa cume dos valores sociais: os trabalhadores servem-se de todos os argumentos devidamente explicados e propagandeados pelos seus donos para se oporem à vinda de imigrantes, não lhes vá faltar o emprego, a cultura que tanto os distingue, a segurança, alterar a cor da pele que qual estrela de David os distingue, etc. Aqueles para quem a socialização se acredita devia ser genética, opõem-se a essa socialização, o que democraticamente tem de ser respeitado. Evidentemente, enquanto for necessário. Para esta perceção, jogadores de futebol e outros artistas não contam (o espetáculo fica fora, “o circo” sempre esteve aparte).
Perdidas que foram as eleições para Trump, não tendo por enterro político para quem se voltar, os Democratas e seus apoiantes olham agora com saudade para o reinado Obama. Moralmente exemplar. Um novo velho Messias. “Barack Obama never did anything bad”.
Mas nada disto importa para o democrata médio. Só estão interessados nos sentimentos que Barack Obama lhes fez sentir em relação à sua fação política favorita. É apenas nisso que foram treinados para se concentrarem.
O ocidental típico habita um universo mental completamente divorciado da realidade. As atrocidades são cometidas apenas por Estados estrangeiros dos quais o seu governo não gosta. A propaganda é algo que só acontece com pessoas de outros países ou com pessoas com ideologias políticas diferentes. Os escândalos são quaisquer controvérsias que os meios de comunicação imperiais decidam focar e inflamar. As coisas reais que estão a acontecer no nosso mundo não são registadas.
Como diz C. Johnstone, “Isto acontece porque vivemos numa distopia controlada pela mente, onde o pensamento, a fala e o comportamento públicos são agressivamente manipulados por operações psicológicas em grande escala ao serviço dos poderosos. A notícia é propaganda. Os algoritmos de pesquisa são extremamente encaminhados. As plataformas de redes sociais arrebanham-nos em câmaras de eco ideológicas isoladas. Ninguém que desafie significativamente os interesses informativos dos poderosos pode ascender à fama e à influência. Hollywood é apenas uma máquina de relações públicas para o império (veja aqui os 410 filmes feitos debaixo da supervisão do Pentágono).”
A forma como pensamos é a forma com que os poderosos nos treinaram para pensar.
Amplamente noticiado, Trump disse que Zelenski era um “ditador”! E por aí ficamos, ditador não, ditador sim, está ao serviço de Putin, etc. Dos grandes meios de comunicação, nenhum procurou investigar ou enquadrar o acontecido. E era importante.
A pequena história:
Zelenski rejeitou o que considerou ser uma “oferta” de chantagem de Trump para obter 50% de todos os rendimentos futuros da Ucrânia a partir dos seus recursos. (Relembremos que oferecer aos EUA acesso aos recursos ucranianos constava do “plano de vitória” de Zelenski). Assumiu também uma posição hostil em relação às conversações com a Rússia e disse que não aceitaria os seus resultados.
E fez mais: imediatamente antes das negociações EUA-Rússia, os militares ucranianos atacaram interesses dos EUA na Rússia, a saber, um complexo petrolífero (Kropotinskaya Pumping Station, em Kuban) pertencente a empresas americanas. Tal só podia ter sido feito com autorização de Zelenski.
Acreditando-se Trump como máximo defensor dos interesses americanos, não tardou a responder à que efetivamente fora uma provocação, e na conferência de imprensa seguinte não se coibiu de dizer que Zelenski era “um ditador sem eleições” que tinha falhado ao evitar uma guerra que “não podia ser ganha” e que agora recusava conversações para a paz.
Se quiserem uma resposta mais diplomática, podem encontrá-la na conferência de imprensa do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov.
Tão mal que se dão. Tão pouco elegantes. Mas acabaremos por os ver a todos sorridentemente sentados à mesma mesa, elogiando-se mutuamente. A nós cabe-nos enviar os nossos filhos para a guerra. “Os que vão morrer te saúdam!”
Parafraseando Henry Miller (The Times of the Assassins), os monstros estão soltos, vagueando pelo mundo, fugiram do laboratório, estão ás ordens de quem quer que tenha a coragem de os contratar.
Notas:
É no blog de 10 de maio de 2017, “A ordem natural do negócio”, que refiro que quando foi do Katrina (Nova Orleães), “todas as informações, relatórios, imagens de televisão que descreveram a violência que se instalou, deram origem a histórias que circularam e chegaram a todos os lares. Subjacente a todas elas, muito embora fossem verdadeiras, encontrava-se sempre um elemento patológico e racista, para que no fim se pudesse dizer: “Veem? Os pretos são assim!”.
Como diz Zizek, trata-se de “mentir a coberto da verdade”. Ou seja, ainda que o que se diga seja verdadeiro, os motivos porque o faço são falsos.”
Mais à frente, pergunto: “Será que os seres humanos são de si racistas, xenófobos, antissemitas, ou será que temos sido conduzidos perante um processo de ‘domesticação’ (dir-se-á hoje ‘formatação’) social?”
Exemplifico com a tomada do poder pelos nazis em 1933, em que grande parte dos intelectuais e professores universitários se manifestaram, agradecendo a Hitler por ter livrado a Alemanha da tripla ameaça da revolução russa, da decadência cultural e do declínio económico […] Heidegger diz:
“Não são proposições e conceitos que garantem as leis do Ser. Apenas o Führer e só ele é a Realidade na Alemanha hoje e no futuro”.
D. Vance (e outros), querem tentar convencer o mundo que os seus modelos de IA fechados e por eles monopolizados, e que incluem uma camada de censura nos EUA, são o único caminho viável.
A IA deve permanecer livre de preconceitos ideológicos, J. D, Vance.
A IA é uma “arma perigosa nas mãos erradas, mas é uma ferramenta incrível para a liberdade e a prosperidade nas mãos certas”, idem.
As mãos certas são os Estados Unidos da América, idem.
A DeepSeek, ao ser um modelo de código aberto, pode ser replicada sem implantar a sua camada de censura chinesa.
Na cimeira sobre Inteligência Artificial que recentemente ocorreu em Paris, o vice-presidente dos EUA, JD Vance, veio tentar impor a adoção exclusiva dos modelos de IA (fechados) que os EUA monopolizam.
O seu bem articulado discurso (que pode ver aqui) mostra claramente que para os EUA a IA é uma ferramenta geopolítica que pretendem utilizar como uma arma.
A IA é uma “arma perigosa nas mãos erradas, mas é uma ferramenta incrível para a liberdade e a prosperidade nas mãos certas”.
As mãos certas serão "os Estados Unidos da América que são os líderes em IA e a nossa administração planeia mantê-la assim".
Para o fazer, os EUA continuarão a restringir o acesso a “todos os componentes de toda a produção de IA” para “garantir que os sistemas de IA mais poderosos sejam construídos nos EUA”. Os EUA “fecharão todos os caminhos para impedir que os adversários consigam alcançar capacidades de IA” com o mesmo nível dos EUA.
Seria “um erro terrível para os seus próprios países” se eles “apertassem as porcas das empresas tecnológicas dos EUA”.
À assembleia, essencialmente composta por muitos dos líderes mundiais, disse para desistirem dos seus esforços para a adoção de uma abordagem multilateral colaborativa à IA (no entanto, os EUA foram o único país, com o Reino Unido, que não assinou a declaração de encerramento na cimeira).
Explicou ainda à assistência que precisarão da energia dos EUA para alimentar a IA e ridicularizou os esforços que têm feito para tentarem ser autossuficientes em termos energéticos.
Além disso, elucidou que “a IA deve permanecer livre de preconceitos ideológicos”, o que significa que deve difundir uma ideologia com a qual se sinta confortável (e todas as outras são “tendenciosas”). Experimentem perguntar à IA chinesa sobre Tiananmen.
Conclusão: A IA americana é que é boa, não tendenciosa, não vale a pena tentarem outra nem que seja por não possuírem energia própria suficiente para o fazer, e que deve, portanto, ficar nas “boas mãos” americanas.
Mas será assim?
Se acredita que os modelos de IA dos EUA estão isentos de preconceitos ideológicos, pergunte a uma interfaceOpenAI sobre o conflito no Médio Oriente e o papel desempenhado pelo governo de Israel. A resposta será um disparate com pouca relação com as realidades históricas. Ou sobre as armas nucleares no Iraque, ou o ataque aos navios americanos em Tonquim, ou …
Mas também de igual modo, um modelo da DeepSeek alojada na China evitará responder a perguntas sobre o acontecimento de 1989 na praça Tiananmen. A grande diferença é que a DeepSeek ao ser um modelo de código aberto, pode ser replicada sem implantar a sua camada de censura chinesa.
O cientista de computadores americano Peter Lee, experimentou e verificou os resultadosda DeepSeek. Indignado com a cruzada em curso contra a DeepSeek da China, escreveu:
O esforço mais cínico para combater a DeepSeek foi a ressurreição daquele fiável perene que ataca a China: Tiananmen!
Tipo, a DeepSeek não iria apresentar resultados de uma tarefa no massacre de Tiananmen. Mentira vergonhosa!
Bem, que vergonha para o New York Times, para o Bloomberg, para o Wall Street Journal e para o The Guardian por acolherem e prosseguirem com esta mentira – um sinal, penso eu, de que a ordem veio do alto para implantar a wunderwaffe de Tiananmen, a fim de atenuar o apelo desta grande vitória do soft power (poder suave) e do poder tecnológico chinês.
É mentira porque, como os principais meios de comunicação do G7 sem dúvida sabiam bem, apenas as consultas feitas ao próprio servidor da DeepSeek na China produziriam este resultado. Com a IA do DeepSeek instalada em todo o mundo, a DeepSeek fora da China regurgitará alegremente a triste história de Tiananmen em 1989.
Na transcrição, encontrará uma captura de ecrã do resultado que o DeepSeek R1 entregou para a minha consulta sobre o Massacre de Tiananmen através de um serviço baseado nos EUA, o Perplexity. Tem descrições, números de vítimas e até o precioso Homem do Tanque está lá!
Vance, Musk e outros ainda estão a tentar convencer o mundo de que os seus modelos fechados e monopolizados de IA, que incluem uma camada de censura nos EUA, serão o único caminho viável.
A concorrência, no entanto, resumir-se-á à utilidade e ao preço. É aí que os modelos chineses estão destinados a vencer:
Os Estados Unidos continuam agarrados ao pensamento de “pequeno pátio com muros altos”. O código fechado é o pensamento dominante. Por um lado, controla a direção e a velocidade do desenvolvimento da inteligência artificial e, por outro lado, monopoliza os benefícios económicos da inteligência artificial.
Mas com alternativas de código aberto e de baixo custo, o “muro alto do pátio” pode tornar-se um beco sem saída, pelo menos um ramal.
Uma vez que as melhores tecnologias de código aberto vêm da China, a comunidade de desenvolvimento dos EUA construirá os seus sistemas baseados nestas tecnologias e tornar-se-á parte do ecossistema de inteligência artificial liderado pela China. A atividade e a inclusão do código aberto irão expandir ainda mais a influência do ecossistema de inteligência artificial, fazendo da China o centro das novas tecnologias no mundo - este é um enorme perigo para a hegemonia americana.
A IA de código aberto é de facto um perigo para a hegemonia dos EUA no campo da IA, e é por isso que Vance veio tentar assustar amigos e impressionar alguns políticos idiotas da Europa. Bem pode fazê-lo durante o tempo que quiser.
Mas num mercado global livre a solução mais eficiente provavelmente vencerá. Como uma empresa chinesa desenvolveu a DeepSeek e a publicou como um modelo de código aberto, os modelos melhores, mais baratos e mais abertos serão os que irão dominar.
A maior purga de funcionários públicos “desleais” na história dos EUA foi iniciada por John Foster Dulles em 1953.
Em 1946, o Presidente Harry S. Truman assinara a Ordem Executiva 9835, para que a Comissão da Função Pública examinasse os antecedentes de cada funcionário federal atual e a entrar, em busca de provas de “deslealdade”.
Ogoverno tinha todo o direito de despedir funcionários, “sem conceder a esse funcionário qualquer audiência”, Seth Richardson.
Nem um único espião foi descoberto pelo programa.
Pode-se dizer que o caso Hiss, em que Alger Hiss, um alto funcionário do Departamento de Estado dos EUA acabou em 1950 condenado (e posteriormente ilibado em parte) por aparente espionagem a favor da União Soviética, constituiu a ponta do iceberg que levou o Partido Republicano a acusar a Administração Democrata de imprudência na defesa da segurança nacional, por transformar os departamentos do estado em refúgio para espiões e simpatizantes comunistas.
Foi essa “perceção” pública que levou John Foster Dulles a 22 de janeiro de1953, primeiro dia como secretário de Estado, a dizer no discurso de abertura aos novos e futuros colaboradores que, embora fosse ele o seu chefe, não estava ao lado deles, anunciando que a partir daquele dia, esperava não só lealdade, mas também “lealdade positiva”, deixando claro que despediria qualquer pessoa cujo compromisso com o anticomunismo fosse menos do que zeloso.
Assim começou aquela que – até agora – foi a maior purga de funcionários públicos “desleais” na história dos EUA.
Embora o Departamento de Estado tenha sido o ponto zero para as purgas anticomunistas, os agentes do FBI acabaram por vasculhar os ficheiros de milhares de funcionários de todo o governo federal.
E isso porque em abril de 1953, Dwight D. Eisenhower, o primeiro presidente eleito republicano em duas décadas, emitira a Ordem Executiva10450, que deu início a uma musculada campanha para investigar milhares de potenciais ameaças à segurançaem todo o governo.
Nos quatro meses seguintes, 1.456 funcionários federais foram despedidos, apesar de nunca ter sido encontrado nenhum envolvido em espionagem. Muitos foram afastados simplesmente por serem homossexuais, o que a Ordem definia explicitamente como um risco para a segurança. O tenente da Força Aérea Milo Radulovich foi forçado a renunciar à sua comissão simplesmente porque a sua irmã era suspeita de ser comunista. Outros, como o cartógrafo Abraham Chasanow, foram expulsos com base em rumores frágeis de crenças políticas suspeitas.
As purgas políticas generalizadas do início da década de 1950 ainda hoje têm eco. Há setenta anos, o pretexto razoável de caçar agentes soviéticos abriu caminho a uma campanha que durou anos, motivada por teorias da conspiração bizarras, que destruiu inúmeras carreiras, mas pouco fez para melhorar a segurança da América.
Numa época de intensa competição geopolítica, os Estados Unidos afastaram milhares de funcionários valiosos e forçando aqueles que permaneciam a uma conformidade infeliz.
A caça aos funcionários públicos desleais não começou com Eisenhower e Dulles. Após as eleições intercalares de 1946, nas quais os republicanos assumiram o controlo tanto da Câmara como do Senado com uma campanha baseada em ataques anticomunistas, o Presidente Harry S. Truman assinou a Ordem Executiva 9835.
Ordenou que a Comissão da Função Pública examinasse os antecedentes de cada funcionário federal atual e a entrar, bem mais de um milhão de pessoas, em busca de provas de “deslealdade”, um termo que foi deixado ameaçadoramente indefinido. A triagem baseou-se em arquivos de todo o governo, bem como de departamentos de polícia, antigos empregadores e até históricos escolares.
Truman instruiu ainda o seu procurador-geral, Tom Clark, para elaborar uma lista de organizações “subversivas” em que a adesão atual ou anterior a apenas uma delas constituiria uma bandeira vermelha.
Se surgisse algo suspeito no ecrã inicial, mesmo a mais pequena dúvida, o FBI conduziria uma investigação de campo completa, investigando todos os cantos da vida de uma pessoa. Qualquer informação depreciativa ia para um arquivo. Cabia então ao departamento ou agência envolvida decidir o que fazer com o funcionário. Em teoria, isto pode significar disciplina ou transferência, embora na prática a maioria das pessoas que chegaram a este ponto tenham perdido o emprego.
As falhas eram evidentes para qualquer pessoa que dedicasse tempo a ler o pedido em si. Escrevendo no The New York Times, quatro professores de Direito de Harvard temiam que o programa “deixasse passar os verdadeiros culpados, vitimaria pessoas inocentes, desencorajaria a entrada no serviço público e deixaria tanto o governo como o povo americano com uma sensação de ressaca de futilidade e indignidade”.
E foi isso que aconteceu. O primeiro diretor do programa de fidelização, Seth Richardson, insistiu que o governo tinha todo o direito de despedir funcionários, “sem conceder a esse funcionário qualquer audiência”. Num dos casos, James Kutcher, que perdera as duas pernas na Segunda Guerra Mundial, foi despedido da Administração dos Veteranos porque, uma década antes, tinha sido membro do Partido Socialista dos Trabalhadores, uma organização anti estalinista que Clark tinha, no entanto, acrescentado à sua lista de subversivos.
Dezenas de funcionários negros foram sujeitos a investigações invasivas e de assédio porque, fora do trabalho, estavam envolvidos em atividades de direitos civis, que foram consideradas potencialmente subversivas. O mesmo aconteceu com os funcionários pró-sindicalistas.
Durante os seus cinco anos e meio de funcionamento, o programa de fidelização de Truman realizou 4,76 milhões de verificações de antecedentes, incluindo 2 milhões de funcionários atuais e 500.000 novas contratações a cada ano. Os ecrãs resultaram em 26.236 investigações do FBI. Destas, 6.828 pessoas renunciaram ou retiraram as candidaturas e 560 foram demitidas.
Nem um único espião foi descoberto pelo programa. Os seus defensores argumentaram que conseguiram dissuadir potenciais subversivos. Mas provavelmente também dissuadiram muitas pessoas brilhantes e talentosas de se candidatarem, especialmente se se tivessem envolvido em política progressista na faculdade. O mesmo se aplicava aos então atuais funcionários federais: a ordem premiava a submissão e aumentava o preço da expressão individual.
Nas suas memórias, Truman defendeu a lógica por detrás do programa, mas admitiu que era profundamente falho na prática. Considerou o programa o melhor que conseguiu fazer “sob o clima de opinião que então existia”. Aos amigos, admitiu: “Sim, foi terrível”.
Entre os alvos de Truman estavam funcionários governamentais homossexuais e lésbicas, especialmente do Departamento de Estado. No espírito imediato do pós-guerra, a homossexualidade foi associada à fraqueza, à feminilidade e ao progressismo.
No que mais tarde ficou conhecido como Lavender Scare, o Congresso ordenou às agências governamentais – desde o Estado até à Comissão Americana de Monumentos do Campo de Batalha – que investigassem qualquer funcionário suspeito de ser homossexual, uma categoria mal definida que podia significar qualquer coisa, desde o celibato na meia-idade até, paradoxalmente, o “Don Juanismo”, ou um impulso sexual enérgico.
Outro alvo eram também os chamados China Hands, um grupo de académicos e funcionários do Serviço do Estrangeiro com uma profunda experiência na China. À medida que durante a Guerra Civil Chinesa os nacionalistas pró-Ocidente apesar do apoio maciço dos EUA perdiam terreno para os comunistas sob o comando de Mao Zedong, os China Hands recomendavam cautela, argumentando que a vitória de Mao era inevitável e que a política dos EUA poderia explorar as fissuras entre ele e Moscovo. Em retrospetiva, era um conselho sábio – mas após a vitória de Mao em 1949, foi entendido como prova de que as China Hands não só tinham sido “brandas com o comunismo”, mas também tinham sido o núcleo de uma conspiração pró-comunista dentro do Departamento de Estado.
Um a um, os China Hands caíram: diplomatas estimados como John Stewart Service, John Paton Davies e O. Edmund Clubb foram expulsos do Serviço de Relações Exteriores, alguns sob Truman, outros sob Eisenhower. John F. Melby foi demitido simplesmente porque teve um caso com Lillian Hellman, uma dramaturga progressista que se recusou a “citar nomes” perante a Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara.
Os China Hands eram relativamente poucos em número, mas a dizimação das suas fileiras enviou um sinal claro ao resto do establishment da política externa: a dissidência é por sua conta e risco; a retribuição será rápida.
Embora seja impossível quantificar, o custo das purgas anticomunistas dos anos 50 foi claramente enorme e teve repercussões não só nos anos subsequentes, mas ao longo de décadas. Por exemplo, se a experiência não tivesse sido expurgada e a dissidência não tivesse sido punida tão severamente em todo o governo durante o início da década de 1950, cabeças mais sábias poderiam muito bem ter levantado as objeções certas ao anticomunismo míope da América na Ásia Oriental, acima de tudo à sua pressa em intervir no Vietname.
Haverá diferenças entre o que se passou então com a atualidade? O Perigo Vermelho, embora seja hoje agitado como sendo o Perigo Russo, finalmente terminou. O jornalista Edward R. Murrow ajudou a virar a maré, incluindo uma longa reportagem sobre o caso do tenente Radulovich. O Supremo Tribunal em 1956 impôs limites à ordem executiva de Eisenhower. Em meados da década de 1950, os eleitores, satisfeitos com a estabilidade conservadora forjada por Eisenhower, deixaram de apoiar candidatos que concorriam em plataformas radicais. Joseph McCarthy, que durante anos captou a imaginação política americana, viu o seu apoio desmoronar-se em 1954, durante o seu confronto televisivo e imprudente com o Exército dos EUA por causa de um dentista militar alegadamente subversivo. E Eisenhower, apesar – ou por causa – dos seus esforços anteriores, foi capaz de expulsar os conspiradores anticomunistas radicais que, por um breve momento, capturaram a imaginação americana.
Mas não saíram em silêncio. Homens como Alfred Kohlberg, um magnata textil e um dos principais apoiantes de McCarthy, e Robert Welch Jr., o fundador da John Birch Society, viam Eisenhower como um prisioneiro da cabala comunista que esperavam derrotar. Se se mantivessem à margem da política americana, seria ainda assim uma amostra considerável: None Dare Call It Treason, o livro de John Stormer de 1964, que alega a continuação de uma conspiração pró-comunista no topo do governo dos EUA, vendeu milhões de cópias.
Com o tempo, a crença de que a ala liberal da política americana e a burocracia federal eram controladas por um “inimigo interno” tornou-se um teste decisivo para os demagogos da extrema-direita, ligando a era do Pânico Vermelho, através da insurreição de Pat Buchanan dos anos 90, aos dias de hoje. Quando o Presidente Trump declarou uma moratória sobre as despesas federais para erradicar os elementos “marxistas” do governo, baseava-se numa obsessão com 75 anos.
Pode ser tentador dizer que, tal como o Red Scare desapareceu, o mesmo acontecerá com a atual caça a elementos “desleais”. Mas, apesar de todos os paralelos, há uma diferença importante: a lealdade significava então lealdade para com os Estados Unidos; hoje Trump exige lealdade a si próprio e à sua agenda. Mas, se se vir isso de um ponto de vista histórico mais amplo, talvez essa lealdade tenha apenas que ver com a sobrevivência do próprio sistema.
“Doença mortal” – o entorpecimento da alma pelo desespero que leva à degradação moral e física, Søren Kierkegaard.
A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo. Já não interessa o que é verdade. Importa apenas o que é “correto”, Chris Hedges.
Quanto pior se torna a realidade, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela, Chris Hedges.
O presidente eleito Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Ele é o sintoma, não a doença, Chris Hedges.
A extensão da vitória de Trump é de tal maneira grande que ultrapassa a mera conjuntura de acontecimento local, podendo vir a ser um indicador de uma alargada transformação social latente mesmo fora dos EUA.
Importa, portanto, tentar perceber algumas das suas origens, única forma para nos precavermos, mesmo que sem resultados práticos, do seu futuro anunciado.
Foi o que fez o pensador político americano Chris Hedges ao publicar a 18 de janeiro de 2025 o artigo “How Fascism Came”. Seguem-se excertos:
Ao longo de duas décadas, eu e um punhado de outros - Sheldon Wolin, Noam Chomsky, Chalmers Johnson, Barbara Ehrenreich e Ralph Nader - alertamos que a crescente desigualdade social e a erosão constante das nossas instituições democráticas, incluindo os meios de comunicação social, o Congresso, a organização do trabalho, a academia e os tribunais, conduziriam inevitavelmente a um Estado autoritário ou fascista cristão […]. Não sinto alegria em estar certo.
“A raiva daqueles que foram abandonados pela economia, os medos e preocupações de uma classe média sitiada e insegura, e o isolamento entorpecente que acompanha a perda da comunidade, seriam o estímulo para um movimento de massas perigoso”, escrevi em “American Fascists” em 2007. “Se estes despossuídos não fossem reincorporados na sociedade dominante, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar empregos bons e estáveis e oportunidades para si e para os seus filhos - em suma, a promessa de um futuro melhor - o espectro de um fascismo na América assolaria a nação. Este desespero, esta perda de esperança, esta negação de um futuro, lançou os desesperados para os braços daqueles que prometiam milagres e sonhos de glória apocalíptica.”
“Trump e o seu círculo de bilionários, generais, idiotas, fascistas cristãos, criminosos, racistas e desviantes morais desempenham o papel do clã Snopes em alguns dos romances de William Faulkner”, escrevi em “America: The Farewell Tour”. “Os Snopes preencheram o vazio de poder do Sul decadente e tomaram implacavelmente o controlo das degeneradas elites aristocráticas esclavagistas. Flem Snopes e a sua família alargada – que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende bilhetes para testemunhar a bestialidade – são representações fictícias da escumalha agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Personificam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo desenfreado.”
“[…] Deixemos um mundo entrar em colapso, no Sul ou na Rússia, e aparecerão figuras de ambição grosseira a subir da base social, homens para quem as reivindicações morais não são tão absurdas como incompreensíveis, filhos de bushwhackers ou muzhiks vindos de lado nenhum e assumindo o controlo através da sua ultrajante força monolítica”, escreveu Irving Howe. “Tornam-se presidentes de bancos locais e presidentes de comités regionais do partido e, mais tarde, um pouco mais espertos, conseguem chegar ao Congresso ou ao Politburo. Necrófagos sem inibição, não têm de acreditar no código oficial em ruínas da sua sociedade; só precisam de aprender a imitar os seus sons.”
O filósofo político Sheldon Wolin chamou ao nosso sistema de governação “totalitarismo invertido”, um sistema que manteve a antiga iconografia, símbolos e linguagem, mas que entregou o poder às corporações e aos oligarcas. Passaremos agora para a forma mais reconhecível do totalitarismo, dominada por um demagogo e por uma ideologia baseada na diabolização do outro, na hipermasculinidade e no pensamento mágico.
O fascismo é sempre filho bastardo de um liberalismo falhado.
“Vivemos num sistema jurídico de dois níveis, onde as pessoas pobres são assediadas, detidas e encarceradas por infrações absurdas, como a venda de cigarros avulsos – o que levou Eric Garner a ser sufocado até à morte pela polícia de Nova Iorque em 2014 – enquanto crimes de magnitude terrível cometidos por oligarcas e empresas, desde derrames de petróleo a fraudes bancárias de centenas de milhares de milhões de dólares, que destruíram 40 por cento da riqueza mundial, são tratados através de controlos administrativos mornos, multas simbólicas e simples admoestações que dão a estes ricos perpetradores imunidade contra processos criminais”, escrevi em “America: The Farewell Tour”.
A ideologia utópica do neoliberalismo e do capitalismo global é uma vasta golpada. A riqueza global, em vez de ser distribuída de forma equitativa, como prometeram os proponentes neoliberais, foi canalizada para cima, para as mãos de uma elite voraz e oligárquica, alimentando a pior desigualdade económica desde a era dos barões ladrões. Os trabalhadores pobres, cujos sindicatos e direitos foram retirados e cujos salários estagnaram ou diminuíram ao longo dos últimos 40 anos, foram lançados na pobreza crónica e no subemprego. As suas vidas, como Barbara Ehrenreich narrou em “Nickel and Dimed”, são uma emergência longa e cheia de stress. A classe média está a evaporar-se. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam emprego nas fábricas são terrenos baldios fechados com tábuas. As prisões estão lotadas. As empresas orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo-lhes esconder 1,42 biliões de dólares em lucros em bancos estrangeiros para evitar o pagamento de impostos.
O neoliberalismo, apesar da sua promessa de construir e difundir a democracia, destruiu rapidamente as regulamentações e esvaziou os sistemas democráticos para os transformar em leviatãs corporativos. Os rótulos “liberal” e “conservador” não têm qualquer significado na ordem neoliberal, conforme evidenciado por um candidato presidencial democrata que se vangloriou do apoio de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de 13 por cento. A atração de Trump é que, embora vil e bufão, troça da falência da charada política.
“A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo”, escrevi em “America: The Farewell Tour”:
“Já não interessa o que é verdade. Importa apenas o que é “correto”. Os tribunais federais estão repletos de juízes imbecis e incompetentes que servem a ideologia “correta” do corporativismo e os rígidos costumes sociais da direita cristã. Desprezam a realidade, incluindo a ciência e o Estado de direito. Procuram banir aqueles que vivem num mundo baseado na realidade, definido pela autonomia intelectual e moral. O governo totalitário eleva sempre a brutalidade e os estúpidos. Estes idiotas reinantes não têm filosofia nem objetivos políticos genuínos. Utilizam clichés e slogans, muitos dos quais absurdos e contraditórios, para justificar a sua ganância e desejo de poder. Isto é tão verdade para a direita cristã como para os corporativistas que pregam o mercado livre e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein.”
As ilusões vendidas nos nossos ecrãs – incluindo a persona fictícia criada para Trump em “O Aprendiz” – substituíram a realidade. A política é burlesca, como ilustrou a campanha insípida e repleta de celebridades de Kamala Harris. É fumo e espelhos criados pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, procuradores, argumentistas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de guarda-roupa, preparadores físicos, investigadores, locutores públicos e personalidades do noticiário televisivo. Somos uma cultura inundada de mentiras.
“O culto do eu domina a nossa paisagem cultural”, escrevi em “Império da Ilusão”:
“Este culto contém os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e autoimportância; necessidade de estímulo constante, tendência para mentir, enganar e manipular e incapacidade de sentir remorso ou culpa. Esta é, obviamente, a ética promovida pelas empresas. É a ética do capitalismo sem restrições. É a crença errada de que o estilo pessoal e o progresso pessoal, confundidos com individualismo, são o mesmo que igualdade democrática. Na verdade, o estilo pessoal, definido pelos bens que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter tudo o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até menosprezar e destruir aqueles que nos rodeiam, incluindo os nossos amigos, para ganhar dinheiro, para sermos felizes e para nos tornarmos famosos. Uma vez alcançada a fama e a riqueza, elas tornam-se a sua própria justificação, a sua própria moralidade. Como se chega lá é irrelevante. Quando se lá chegar, estas perguntas já não serão mais feitas.”
O meu livro “Empire of Illusion” começa no Madison Square Garden numa digressão da World Wrestling Entertainment. Eu compreendia que a luta livre profissional era o modelo para a nossa vida social e política, mas não sabia que iria produzir um presidente.
“As lutas são rituais estilizados”, escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump:
“São expressões públicas de dor e de um desejo fervoroso de vingança. As sagas sinistras e detalhadas por detrás de cada luta, e não as lutas em si, são o que leva as multidões ao frenesim. Estas batalhas ritualizadas proporcionam aos que estão amontoados nas arenas uma libertação temporária e inebriante das vidas mundanas. O fardo dos problemas reais é transformado em material para uma pantomima de alta energia.”
Não vai melhorar. As ferramentas para acabar com a dissidência foram consolidadas. A nossa democracia desmoronou há anos. Estamos nas garras daquilo a que Søren Kierkegaard chamou “doença mortal” – o entorpecimento da alma pelo desespero que leva à degradação moral e física. Tudo o que Trump tem de fazer para estabelecer um estado policial nu é carregar num botão. E ele fá-lo-á.
“Quanto pior se torna a realidade, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela”, escrevi no final de “Império da Ilusão”, “e mais se distrai com pseudoacontecimentos esquálidos de colapsos de celebridades, mexericos e curiosidades. Estas são as folias trocistas de uma civilização moribunda.”