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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(516) O admirável novo mundo (revisitado)

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Governar através do terror produz menos resultados que governar através da manipulação não violenta do ambiente, dos pensamentos e das sensações dos indivíduos, sejam eles homens, mulheres ou crianças, A. Huxley.

 

Tal como a religião, a droga tem o poder de consolar e compensar, induzindo-nos visões de um outro mundo melhor, oferecendo-nos esperança, fortalecendo a fé e promovendo a caridade.

 

As drogas fazem parte do arsenal das armas utilizadas pelos Controladores do Mundo para pacificar e distrair os cidadãos da sua existência triste e sem significado.

 

A monogamia encarada como o “inimigo da civilização” onde a “promiscuidade era a norma”.

 

 

 

 

Bem interessante é aquela imagem popular do burro a ser convencido a caminhar alternadamente com pau ou com cenoura, porque de certa forma ela encerra em si a nossa visão sobre as únicas possibilidades de movimentação da sociedade: a bem ou a mal.

Em qualquer dos casos, as mentes mais lúcidas até a extrapolam com vista ao futuro, curiosamente sempre através de distopias, ainda que distintas, como foram os casos de Aldous Huxley (1894-1963) com o Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, e de George Orwell (1903-1950) com o 1984, publicado em 1948.

 

Orwell, assentava a sua visão da sociedade do futuro no controle total obtido pela aplicação de penalizações e castigos, apoiado numa burocracia estatal centralizada e disseminada a todos os níveis, que nos escamoteava a verdade escondendo-nos os livros, não nos permitindo aceder à cultura, na tentativa de obter a uniformização de todos os cidadãos.

Já para Huxley, o controle da sociedade do futuro seria feito pela inoculação de doses de prazer através das quais a verdade desapareceria submersa num mar de irrelevância, onde não se necessitaria de esconder os livros porque ninguém os quereria ler, onde a informação não necessitaria de ser escamoteada porque era dada em quantidades tais que já ninguém ligava, ruído de fundo que nos tornava indiferentes, passivos e egoístas, e onde o aparecimento de tiranias era menorizado perante o quase infinito apetite dos homens por outras distrações.

 

Vinte e seis anos depois de ter escrito o Admirável Mundo Novo, Huxley publica em 1958 o Admirável Mundo Novo Revisitado, onde conclui que:

 

À medida que o tempo decorre, tornou-se claro que o controle dos comportamentos indesejáveis através da punição é menos efetivo que o controle dos comportamentos indesejáveis feito através do reforço de recompensas, e que o governo através do terror produz menos resultados que o governo feito através da manipulação não violenta do ambiente, dos pensamentos e sensações dos indivíduos, sejam eles homens, mulheres ou crianças “.

 

Recordemos, contudo, alguns condicionalismos previstos e seguidos para que esse Admirável Mundo Novo fosse possível. Por exemplo, uma das práticas correntes de controle da sociedade era a utilização da manipulação pré-natal, pela eugenia ou digenia. Todos as crianças eram incubadas em provetas, uns com esperma biologicamente superior para produzirem Betas, Alfas ou Alfas +, que seriam os futuros condutores desse Mundo, e outros com esperma biologicamente inferior, tratados com álcool e proteínas nocivas para retardarem o seu desenvolvimento, que seriam os futuros trabalhadores.

 

Estes seriam quase sub-humanos, mas seriam capazes de desempenharem trabalhos não especializados e que, quando devidamente condicionados, com a possibilidade do acesso frequente e gratuito ao sexo oposto, com o acesso constante a espetáculos gratuitos e a doses diárias de Soma (drogas), não representariam qualquer problema para os seus superiores”.

 

A utilização indiscriminada e doseada de Soma (drogas) que não teriam qualquer efeito “psicológico ou mental”, permitiria “fazer com que todos andassem bem-dispostos, retirando-lhes quaisquer constrangimentos que tivessem no trabalho e na vida familiar, sem com isso sacrificarem a saúde ou reduzirem a sua eficiência […] não constituía um vício privado, sendo antes a essência da Vida, Liberdade e da Via para a Felicidade garantidas na Declaração dos Direitos”.

 

O Soma era a religião do povo, pois, “como a religião, a droga tinha o poder de consolar e compensar, induzindo-nos visões de um outro mundo melhor, oferecendo-nos esperança, fortalecendo a fé e promovendo a caridade.”

O Soma era parte do arsenal das armas utilizadas pelos Controladores do Mundo para pacificar e distrair os cidadãos da sua existência triste e sem significado.

 

A euforia quimicamente induzida funcionava como substituto à satisfação de nos sentirmos livres e criativos […] alterando a química dos cérebros, usando tranquilizantes para acalmar os excitados, estimulantes para entusiasmar os indiferentes, alucinantes para distrair a atenção das misérias dos destroçados.”

 

Era assim que o sexo aparecia totalmente separado da emoção, funcionando apenas como uma compensação e distração prazenteira, e como indicador de estatuto ou sucesso. Pelo que a monogamia era encarada como o “inimigo da civilização” onde a “promiscuidade era a norma” e o “romance era considerado degenerado”.

A emoção, inteligência e família, eram vistos como travões ao desenvolvimento da individualidade. A escolha deveria ser sempre a de passar mais tempo consigo próprio.

 

Mas, mesmo este Admirável Mundo não era para todos. Fora desse Mundo onde todos viviam encantadoramente bem, nessa zona de consentimento, existia, noutros terrenos separados por muros eletrificados, uma zona de coerção, uma “reserva” onde viviam os pobres e povos indígenas não condicionados, onde se praticava o casamento e se fazia vida familiar, com “superstições monstruosas” como o Cristianismo e o culto dos antepassados.

Era um lugar onde, segundo os guias turísticos explicavam, “pululavam doenças infeciosas, padres e lagartos venenosos”. Contudo, esses selvagens estavam totalmente domados, como resultado de terem sido sujeitos à tortura e à fome. E não tinham escapatória: os aí nascidos estavam condenados a aí morrerem, seguindo o caminho dos corpos que se viam amontoados jazendo junto à fronteira ao tentarem escalar os muros de contenção.

 

Na realidade, esse Admirável Mundo só existia porque o consentimento de uns era obtido devido à coerção sempre presente de poderem vir a ser exportados para o outro mundo.

 

Quando Huxley escreve o Admirável Mundo Novo, situa-o no Estado Mundial de Londres, no ano 2540 (aliás, situa-o no ano AF 632, o que queria dizer 632 anos depois do aparecimento do primeiro modelo do Ford T de Henry Ford, o Ford que tanto o impressionara quando lera o My Life and Work e onde ele explicava o seu sistema de montagem em cadeia que serviria para o funcionamento de tudo).

 

Ainda lá não chegámos, faltam 400 anos e já quase tudo desse Admirável Mundo Novo está realizado. Daí a nossa felicidade. Além disso, tivemos a sorte de ficar do lado de cá, sermos brancos e homens.

 

 

 

 

 

(515) Quando o mandarim vestia de amarelo

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Poderes absolutos de bárbaros que hoje já não acontecem.

 

O Tratado de Tordesilhas foi um acordo internacional assinado em 1494, celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela para dividir as terras "descobertas e por descobrir" por ambas as Coroas fora da Europa.

 

A tradição medieval era a da supremacia política da Santa Sé, que reconhecia a Roma o direito de dispor de todas as terras e dos povos.

 

Incontestada no mar, a Grã-Bretanha adotou o papel de polícia global, um estado de coisas mais tarde conhecido como Pax Britannica.  

 

A chamada “ordem internacional baseada em regras” visa facilitar um mundo hegemónico, o que implica a substituição do “direito internacional”.

 

 

 

 

É dos Contos Orientais a história do mandarim dum poderoso reino da China que sempre que saía com o seu enorme séquito para as suas viagens, os súbditos desertavam de todos os locais públicos refugiando-se em casa, e isto porque se ele viesse vestido de amarelo e o seu olhar pousasse sobre um qualquer ou vários deles, os seus guardas lançavam-se de imediato sobre eles e degolavam-nos. Segundo nos dizem, poderes absolutos de bárbaros que hoje já não acontecem.

Há, evidentemente, histórias semelhantes contadas sobre emires de califados árabes, igualmente tidos como bárbaros, só não especificando as cores letais das vestimentas. Contudo, o degolar seguido de esquartejamento ainda hoje é tido como tradição, por vezes praticado em embaixadas.

 

 

O Tratado de Tordesilhas foi um acordo internacional assinado na povoação castelhana de Tordesilhas em 1494, celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela para dividir as terras "descobertas e por descobrir" por ambas as Coroas fora da Europa. Este tratado surgiu na sequência da contestação portuguesa às pretensões da Coroa de Castela, resultantes da viagem de Cristóvão Colombo, que um ano e meio antes chegara ao chamado Novo Mundo, reclamando-o oficialmente para Isabel, a Católica (1474-1504).

O tratado definia como linha de demarcação o meridiano 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão no arquipélago de Cabo Verde. Esta linha estava situada a meio caminho entre estas ilhas (então portuguesas) e as ilhas das Caraíbas descobertas por Colombo, no tratado referidas como "Cipango" e Antília. Os territórios a leste deste meridiano pertenceriam a Portugal e os territórios a oeste, a Castela. O tratado foi ratificado por Castela a 2 de julho e por Portugal a 5 de setembro de 1494.

 

No contexto das Relações Internacionais, esta assinatura ocorreu num momento de transição entre a hegemonia do Papado, poder até então universalista, e a afirmação do poder singular e secular dos monarcas nacionais – uma das muitas facetas da transição da Idade Média para aIdade Moderna.

 

Conforme o historiador brasileiro Delgado de Carvalho:

"(...) subsistia ainda a tradição medieval da supremacia política da Santa Sé, que reconhecia a Roma o direito de dispor das terras e dos povos: Adriano IV, papa inglês (1154-59), havia dado a Irlanda ao rei da Inglaterra e Sisto IV as Canárias ao rei de Castela (1471-84). Baseava-se isso, em parte, sobre o fato de um Édito de Constantino ter conferido ao Papa Silvestre a soberania sobre todas as ilhas do globo; ora, isso porque as terras a descobrir eram todas, então, supostas serem exclusivamente ilhas (LIMA, Oliveira. Descobrimento do Brasil. Livro do Centenário (v. III), Rio de Janeiro: 1900 apud: Carvalho, Delgado. História Diplomática do Brasil.)

 

 

 

Entre 1815 e 1914, um período referido como "século imperial britânico" por alguns historiadores, cerca de 26 000 000 km² de território e cerca de 400 milhões de pessoas eram governadas pelo Império Britânico. A vitória sobre Napoleão deixou a Grã-Bretanha sem qualquer rival internacional sério, além do Império Russo na Ásia Central. Incontestada no mar, a Grã-Bretanha adotou o papel de polícia global, um estado de coisas mais tarde conhecido como Pax Britannica.

Durante este tempo, a Europa desfrutou de uma paz relativamente estável, tendo o Império Britânico controlado as principais rotas navais e conquistado uma posição preponderante sobre os mercados estrangeiros, levando o Reino Unido quase a dominar os entrepostos chineses depois das guerras do ópio.

A presença da Marinha Real Britânica ligada à falta de poder dos restantes países europeus deram à Grã-Bretanha vários privilégios sobre o controle das principais rotas comerciais do globo. Bastava a presença da Marinha Real para acabar com qualquer disputa. Ainda no início do século XX, a Marinha Real tinha um poderio maior que quaisquer outras duas forças militares navais combinadas.

A Inglaterra manteve a supremacia económica até o início do século XX. A hegemonia inglesa perdurou desde meados do século XVIII até o final do século XIX. A época que abarca o boom da industrialização ficou conhecido como Pax Britannica.

 

 

É de Glenn Diesen, professor norueguês de ciência política, o artigo “The Case for Dismantling the Rules-Based International Order” de 23 de dezembro de 2024:

 

“A chamada “ordem internacional baseada em regras” visa facilitar um mundo hegemónico, o que implica a substituição do “direito internacional”. Enquanto o direito internacional tenha por base a soberania igual para todos os Estados, a ‘ordem internacional baseada em regras’ defende a hegemonia no princípio da soberania desigual.

 

A ‘ordem internacional baseada em regras’ é normalmente apresentada como direito internacional acrescido de direito internacional dos direitos humanos, o que em princípio parece bondoso e progressista. No entanto, isto implica a introdução de princípios e regras contraditórias. A consequência é um sistema desprovido de regras uniformes, em que “o poder faz o que é certo”. O direito internacional dos direitos humanos introduz um conjunto de regras para aumentar os direitos do indivíduo, mas a segurança centrada no ser humano contradiz frequentemente a segurança centrada no Estado como fundamento do direito internacional.

 

Os EUA, enquanto Estado hegemónico, podem então escolher entre a segurança centrada no ser humano e a segurança centrada no Estado, enquanto os adversários devem respeitar estritamente a segurança centrada no Estado devido à sua alegada falta de credenciais democráticas liberais. Por exemplo, a segurança centrada no Estado, enquanto fundamento do direito internacional, insiste na integridade territorial dos Estados, enquanto a segurança centrada no ser humano permite a secessão ao abrigo do princípio da autodeterminação.

 Os EUA insistirão, por isso, na integridade territorial em países aliados como a Ucrânia, a Geórgia ou a Espanha, apoiando ao mesmo tempo a autodeterminação em Estados adversários como a Sérvia, a China, a Rússia e a Síria. Os EUA podem interferir nos assuntos internos dos adversários para promover os valores democráticos liberais, mas os adversários dos EUA não têm o direito de interferir nos assuntos internos dos EUA. Para facilitar uma ordem internacional hegemónica, não pode haver soberania igual para todos os Estados.

 

A construção da ordem internacional hegemónica baseada em regras

 

O processo de construção de fontes alternativas de legitimidade para facilitar a desigualdade soberana começou com a invasão ilegal da Jugoslávia pela NATO em 1999, sem mandato da ONU. A violação do direito internacional foi justificada pelos valores liberais. Até a legitimidade do Conselho de Segurança da ONU foi contestada, argumentando-se que deveria ser contornado, uma vez que o veto da Rússia e da China ao intervencionismo humanitário foi alegadamente causado pela sua falta de valores democráticos liberais.

 

Os esforços para estabelecer fontes alternativas de autoridade continuaram em 2003 para ganhar legitimidade para a invasão ilegal do Iraque. O antigo Embaixador dos EUA na NATO, Ivo Daalder, apelou ao estabelecimento de uma “Aliança das Democracias” como um elemento-chave da política externa dos EUA [1]. Uma proposta semelhante sugeria o estabelecimento de um “Concerto de Democracias”, no qual as democracias liberais poderiam agir no espírito da ONU sem estarem limitadas pelo poder de veto dos Estados autoritários [2]. Durante as eleições presidenciais de 2008, o candidato presidencial republicano, o senador John McCain, defendeu o estabelecimento de uma “Liga das Democracias”. Em dezembro de 2021, os EUA organizaram a primeira “Cimeira para a Democracia” para dividir o mundo em democracias liberais versus Estados autoritários. A Casa Branca enquadrou a desigualdade soberana na linguagem da democracia: a interferência de Washington nos assuntos internos de outros Estados era “apoio à democracia”, enquanto defender a soberania do Ocidente implicava defender a democracia [3]. As iniciativas acima referidas tornaram-se a “ordem internacional baseada em regras”. Com uma mentalidade imperialista, existiria um conjunto de regras para o “jardim” e outro conjunto para a “selva”.

 

A ordem internacional baseada em regras criou um sistema de dois níveis: Estados legítimos e Estados ilegítimos. O paradoxo do internacionalismo liberal é que as democracias liberais exigem frequentemente que dominem as instituições internacionais para defender os valores democráticos do controlo da maioria. No entanto, um sistema internacional durável e resiliente, capaz de desenvolver regras comuns, é imperativo para a governação internacional e para a resolução de litígios entre Estados.

O direito internacional, de acordo com a Carta das Nações Unidas, baseia-se no princípio vestefaliano da igualdade soberana, pois “todos os estados são iguais”. Em contraste, a ordem internacional baseada em regras é um sistema hegemónico baseado na desigualdade soberana. Tal sistema de desigualdade soberana segue o princípio do Animal Farm de George Orwell que estipula que “todos os animais [estados] são iguais, mas alguns animais [estados] são mais iguais que outros”. No Kosovo, o Ocidente promoveu a autodeterminação como um direito normativo de secessão que devia ser priorizado acima da integridade territorial. Na Ossétia do Sul e na Crimeia, o Ocidente insistiu que a santidade da integridade territorial, tal como estipulada na Carta das Nações Unidas, deve ser priorizada em detrimento da autodeterminação.

 

Regras uniformes substituídas por um tribunal de opinião pública

 

Em vez de resolver conflitos através da diplomacia e de regras uniformes, existe um incentivo para manipular, moralizar e propagandear, uma vez que as disputas internacionais são decididas por um tribunal de opinião pública quando existem princípios concorrentes. O engano e a linguagem extrema tornaram-se assim comuns. Em 1999, os EUA e o Reino Unido apresentaram especialmente acusações falsas sobre crimes de guerra para legitimar o intervencionismo. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, disse ao mundo que as autoridades jugoslavas estavam “empenhadas num genocídio ao estilo de Hitler, equivalente ao extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Não é exagero dizer que o que está a acontecer é um genocídio racial.” [4]

 

A ordem internacional baseada em regras não consegue estabelecer regras unificadoras comuns sobre a forma de governar as relações internacionais, que é a função fundamental da ordem mundial. Tanto a China como a Rússia denunciaram a ordem internacional baseada em regras como um sistema duplo para facilitar os dois pesos e duas medidas. O Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Xie Feng, afirmou que a ordem internacional baseada em regras introduz a “lei da selva” na medida em que o direito internacional universalmente reconhecido é substituído pelo unilateralismo [5]. O Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, criticou de forma semelhante a ordem internacional baseada em regras por criar um quadro jurídico paralelo para legitimar o unilateralismo:

 

O Ocidente tem vindo a criar múltiplos formatos, como a Aliança Franco-Alemã para o Multilateralismo, a Parceria Internacional contra a Impunidade no Uso de Armas Químicas, a Parceria Global para Proteger a Liberdade dos Meios de Comunicação Social, a Parceria Global sobre Inteligência Artificial, o Apelo à Ação para Reforçar o Respeito pelo Direito Internacional Humanitário – todas estas iniciativas tratam de assuntos que já estão na agenda da ONU e das suas agências especializadas. Estas parcerias existem fora das estruturas universalmente reconhecidas, de modo a chegar a acordo sobre o que o Ocidente pretende num círculo restrito, sem quaisquer opositores. Depois disso, levam as suas decisões à ONU e apresentam-nas de uma forma que de facto equivale a um ultimato. Se a ONU não concorda, uma vez que impor o que quer que seja a países que não partilham os mesmos ‘valores’ nunca é fácil, tomam medidas unilaterais.” [6]

 

A ordem internacional baseada em regras não consiste em quaisquer regras específicas, não é aceite internacionalmente e não dá ordens. A ordem internacional baseada em regras deve ser considerada uma experiência falhada da ordem mundial unipolar, que deve ser desmantelada para restaurar o direito internacional como um requisito para a estabilidade e a paz.”

 

 

[1] I. Daalder e J. Lindsay, ‘An Alliance of Democracies’, The Washington Post, 23 de Maio de 2004.

 

[2] G.J. Ikenberry e A.M. Slaughter, ‘Forging a World of Liberty Under Law: U.S. National Security in the 21st Century’, Princeton, The Princeton Project on National Security, 2006.

 

[3] Casa Branca, ‘Summit for Democracy Summary of Proceedings’, The White House, 23 de dezembro de 2021.

 

[4] N. Clark, ‘Fools no more’, The Guardian, 19 de Abril de 2008.

 

[5] Global Times, “a ‘ordem internacional baseada em regras’ dos EUA é a ‘lei da selva’ para conter outros: disse o vice FM chinês ao enviado dos EUA”, Global Times, 26 de julho de 2021.

 

[6] S. Lavrov, ‘Comentários do Ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov na 29. ª Assembleia do Conselho de Política Externa e de Defesa (CFDP)”, Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, 2 de outubro de 2021.

 

Nota: Glenn Diesen é conhecido nos meios académicos como defensor de posições pró-russas, segundo a Wikipedia. Contudo, nem sempre veste amarelo.

(514) Semear dentes de dragão

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

O mito como fazendo parte integrante de todas as sociedades humanas.

 

A Demanda do Velo de Ouro.

 

Tudo o que me consigo lembrar é que o tipo estava a sorrir, R. Fisk.

 

Estamos a semear o Médio Oriente com dentes de dragão, C. Hedges.

 

 

 

 

É talvez de Carlos Eduardo de Soveral a definição mais abrangente sobre o que é “mito”, como sendo “narrativa, conto, história, ao princípio oral como a saga, e, como a saga, elaborada por sucessivas gerações, mercê de vários e afins mitologemas que já de si são fruto ou projeção na realidade de uma estrutura cognoscente que em especial vigora em faces primitivas ou primitivo-barbáricas, onde mais se vive tecnicamente despojado e onde, o âmbito do que na Vida é substantivo, mais se sofrem e advertem os impasses e limitações”.

Dela se pode extrair o mito como fazendo parte integrante de todas as sociedades humanas que aí, ao longo de muitos, mas mesmo muitos anos, encontraram uma “racionalidade” própria que lhes permitiu com um entendimento mínimo e, contudo, suficiente sobre o que lhes estava a acontecer, resistir e sobreviver às condições hostis em que viviam.

Um dos ciclos míticos mais importantes oriundos da Grécia Antiga é o que nos dá a conhecer a viagem por mar (e por isso “ultramarina”) do primeiro herói europeu (Jasão) a bordo do seu navio, o Argo (daí os navegadores serem conhecidos por Argonautas), em busca do Velo de Ouro.

Esse longo poema com as suas muitas peripécias (uma casa real com problemas de casamentos e sucessões, um oráculo que prevê a morte do tio usurpador às mãos dum pretendente com uma só sandália, a fuga dos noivos num carneiro mágico voador com velo de puro ouro, a queda ao mar da rapariga – Hela - que morre afogada no estreito do Helesponto – o mar de Hela -, a chegada do irmão à Cólquida no mar Desfavorável – o mar Negro – casamento com a filha do rei, sacrifício do carneiro, guardando-se a pele - o velo de ouro -, o aparecimento de Jasão com uma só sandália a instar o tio usurpador para lhe dar um reino, a promessa deste de que só lhe daria um reino se Jasão trouxesse o velo de ouro retido na Cólquida, a construção do barco mais veloz -Argo – e os companheiros de viagem -os Argonautas, entre eles Hércules, Orfeu, Peleu – o pai de Aquiles-, Castor e Pólux-, chegada à ilha de Lemnos, encontro com as Harpias, as cadelas de Zeus, os Rochedos Movediços em perpétuo movimento, encontro com as Amazonas, o Prometeu amarrado às rochas, finalmente a Cólquida, Medeia a filha do rei apaixona-se por Jasão, arar o campo com os bois com patas de bronze e bafo de línguas de fogo, semear nos sulcos dentes de dragão dos quais brotariam de imediato uma ceara de homens armados que Jasão teria de vencer, o bálsamo de invisibilidade, a traição de Medeia para com a família, a fuga com o velo) e que termina com o regresso dos heróis à Grécia, aparece escrito no século III por Apolónio de Rodes com o título de Demanda do Velo de Ouro.

Eurípides, grande poeta e dramaturgo do século V, vai-lhe acrescentar (Medeia) o posterior relato dos acontecimentos que levaram Jasão e Medeia nesse regresso atribulado.

 

 

 O jornalista britânico do The Times e do The Independent, Robert Fisk, diz-nos no seu livro A Grande Guerra pela Civilização, o seguinte:

 

Quando uma sociedade é despojada, quando as injustiças que lhe são impostas parecem insolúveis, quando o “inimigo” é todo-poderoso, quando o nosso próprio povo é bestializado como se tratasse de insetos, baratas, “bestas bípedes”, então a mente move-se para além da razão […] Fica fascinada em dois sentidos: pela ideia de uma vida após a morte e pela possibilidade de essa crença fornecer de alguma forma uma arma com mais potencial que a nuclear.

Quando os Estados Unidos estavam a transformar Beirute numa base da NATO em 1983, e a utilizar o seu poder de fogo contra guerrilheiros muçulmanos nas montanhas a leste, os Guardas Revolucionários Iranianos em Baalbek prometiam que Deus livraria o Líbano da presença americana. Escrevi na altura – não inteiramente em tom irónico – que esta seria provavelmente uma batalha titânica: tecnologia dos EUA versus Deus. Quem venceria?

Depois, no dia 23 de outubro de 1983, um bombista suicida solitário dirigiu um camião cheio de explosivos para o complexo da Marinha dos EUA no aeroporto de Beirute e matou 241 militares americanos em seis segundos.... Entrevistei mais tarde um dos poucos fuzileiros navais sobreviventes que viu o bombista suicida. ‘Tudo o que me consigo lembrar’, disse-me, ‘é que o tipo estava a sorrir’”.

 

 

Comentando esta situação, comparando-a com a que se vive hoje no Médio Oriente, Chris Hedges, vai escrever a 7 de janeiro de 2025 o artigo “Genocide: The New Normal”, onde se pode ler:

 

Estes atos de terrorismo, ou no caso de Gaza, da Cisjordânia, do Líbano e da resistência armada do Iémen, são usados ​​para justificar intermináveis ​​assassinatos em massa. Esta Via Dolorosa conduz a uma espiral mortal global, especialmente à medida que a crise climática reconfigura o planeta e os organismos internacionais, como as Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional, se tornam apêndices vazios.

 

Estamos a semear o Médio Oriente com dentes de dragão e, tal como no antigo mito grego, estes dentes estão a surgir do solo como guerreiros enfurecidos determinados a destruir-nos.”

 

 

Acontece que, embora esta interpretação de Hedges seja correta, ela não é completa. Quando Medeia dá a Jasão o bálsamo que lhe garante invisibilidade por 24 horas, diz-lhe também que para vencer a safra de guerreiros armados, Jasão teria de lhes atirar uma pedra para o meio do campo. Assim, eles voltar-se-iam una para os outros e atacar-se-iam. Nessa altura, Jasão poderia ceifá-los a todos, o que aconteceu.

Ou seja, os guerreiros foram todos mortos, contrariando as esperanças de Hedges …

 

Curiosamente, esta é uma das caraterísticas dos mitos: a sua plasticidade, que permite a sua divisão e aceitação em partes, bem como na sua totalidade sempre sem fim. Daí, talvez, a sua permanência quase eterna.

 

 

 

 

Notas:

Aconselho vivamente o blog de 13 de maio de 2020, “A bondade do homem, a maldade da mulher”, onde o relacionamento de Jasão e Medeia se encontra mais desenvolvido, e onde se pode encontrar referencia à “Máquina Infernal” de Jean Cocteau.

 

Carlos Eduardo de Soveral, “Mito, Tragédia e História”, Revista de Ciências do Homem da Universidade de Lourenço Marques, Vol. I, Série A, 1969.

 

 

(513) O “acordo de cavalheiros” impõe-se ao direito internacional

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

O juízo intelectual do Ocidente mostra incapacidade em distinguir factos de desejos, Emmanuelle Todd.

 

Dado o alegado compromisso do Ocidente com os direitos humanos e a prevenção do genocídio, seria de esperar que países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Alemanha tivessem travado o genocídio israelita, John Mearsheimer.  

 

É bastante provável que um dos gasodutos do Nord Stream abandonado, possa vir a ser ativado, desde que venha a ser comprado pelo investidor americano Stephen Lynch, o que permitiria que as sanções/objeções ocidentais fossem levantadas, TASS.

 

 

 

 

 

Em 1976, com apenas 25 anos, o historiador antropólogo e demógrafo francês Emanuelle Todd, tendo por base indicadores estatísticos como o aumento dos índices de mortalidade infantil, previu (La chute finale: Essais sur la décomposition de la sphère Soviétique) que a União Soviética estava a caminho do colapso.  

Em 2001, com base em indicadores sobre o desempenho económico, social e político, previu (Aprés l’Empire: Essai sur la décomposition du système américain) a queda dos EUA como superpotência hegemónica. Alguns pontos importantes que destacou:

 

- A economia dos Estados Unidos está a caminho de um crash e só é suportada por investimento estrangeiro. O défice comercial dos Estados Unidos é um desastre alimentado pelas empresas norte-americanas que empurram os seus empregos industriais para o estrangeiro e destroem a base industrial do país.

Cerca de 10% do consumo industrial dos Estados Unidos depende de bens estrangeiros para os quais não existe um equilíbrio correspondente nas exportações nacionais.

- Os Estados Unidos já não dispõem dos recursos económicos e financeiros para apoiar os seus objetivos de política externa.

- Os Estados Unidos estão a tornar-se uma sociedade não democrática e ultraconservadora dividida entre os muito ricos e o sector dos serviços.

- Os Estados Unidos são economicamente dependentes dos países que detêm os seus títulos e dívidas – China, Japão e Europa. Os EUA necessitam de uma certa dose global para compensar esta dependência, de forma a manter a presença político-militar dos EUA no Velho Mundo. Cada vez mais, o resto do mundo produz para que os Estados Unidos possam consumir.

- Nos Estados Unidos observam-se algumas tendências perturbadoras, como a crescente estratificação baseada em credenciais educacionais e a "obsolescência de instituições políticas irreformáveis".

 

Em 2024, Todd publica na Gallimard, La Défaite de l’Occident (“A Derrota do Ocidente”), onde, para além de acentuar a queda da liderança americana vai visar particularmente o juízo intelectual ocidental, com a sua incapacidade em distinguir factos de desejos, especialmente no que respeita à guerra na Ucrânia.

É muito interessante a entrevista que a propósito concede ao Corriere Di Bologna (seguem-se alguns excertos):

 

P: Defende que a Europa delegou a representação do Ocidente aos Estados Unidos e está agora a pagar o preço. Como acha que esta tendência pode ser alterada?

 

 R: “No estado atual não podemos fazer mais nada. Uma guerra começou. É o resultado desta guerra que decidirá o destino da Europa. Se a Rússia for derrotada na Ucrânia, a submissão europeia aos americanos prolongar-se-á por um século. Se, como acredito, os Estados Unidos forem derrotados, a NATO desintegrar-se-á e a Europa ficará livre.

 Mais importante ainda do que uma vitória russa será a contenção do exército russo no Dniepre e a relutância do regime de Putin em atacar militarmente a Europa Ocidental. Com 144 milhões de pessoas, uma população cada vez menor e 17 milhões de quilómetros quadrados, o Estado russo já luta para ocupar o seu território. A Rússia não terá nem os meios nem o desejo de se expandir quando as fronteiras da Rússia pré-comunista forem reconstituídas. A histeria da russofobia ocidental que fantasia sobre o desejo da expansão russa na Europa é simplesmente ridícula para um historiador sério.

 O choque psicológico que espera os europeus será perceber que a NATO não existe para nos proteger, mas para nos controlar.”

 

P: Acha que a Europa deu o passo final para esta subordinação [aos EUA] durante os conflitos nos Balcãs, e especialmente com a questão do Kosovo?

 

 R: “Não, tudo começou na Ucrânia. Durante a guerra do Iraque, depois do Kosovo, Putin, Schroeder e Chirac realizaram conferências de imprensa conjuntas. Isso aterrorizou Washington. Parecia que a América podia ser expulsa do continente europeu. A separação da Rússia da Alemanha tornou-se assim uma prioridade para os estrategas americanos. O agravamento da situação na Ucrânia serviu para esse propósito.

Forçar os russos a entrar em guerra para impedir a integração de facto da Ucrânia na NATO foi, inicialmente, um grande sucesso diplomático para Washington. O choque da guerra paralisou a Alemanha e permitiu que os americanos, na confusão geral, explodissem o gasoduto Nordstream, um símbolo do entendimento económico entre a Alemanha e a Rússia.

 É claro que, numa segunda fase, a da derrota americana, o controlo americano sobre a Europa será pulverizado. Alemanha e Rússia voltarão a encontrar-se. Este conflito é, em certo sentido, artificial. O que é natural, numa Europa de baixa fertilidade e com população envelhecida, é a complementaridade entre a indústria da Alemanha e a energia e recursos minerais da Rússia”.

 

 

Nota solta:

 

A agência portuguesa de notícias Lusa, publicou às 20:06 do dia 2 de janeiro de 2025, o seguinte:

 

Primeiro-ministro eslovaco acusa Zelenski de sabotar finanças da UE

"A decisão do presidente Zelenski só beneficia os EUA", acusou o primeiro-ministro eslovaco, após o fim do transporte de gás russo através de gasodutos na Ucrânia.

O primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico, acusou esta quinta-feira o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, de “sabotar” as finanças da União Europeia e ameaçou cortar apoios aos ucranianos residentes na Eslováquia. A acusação e a ameaça foram feitas na sequência do fim do transporte de gás russo para a Europa através da Ucrânia.

Fico avançou que a decisão unilateral de Zelenski representa uma perda anual de quase 500 milhões de dólares para a Eslováquia, receita esta proveniente dos direitos de passagem do gás russo pelo território eslovaco.

 

 

“A Bancarrota Moral do Ocidente”

 

 

A 26 de Janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça concluiu que era possível argumentar-se de forma plausível que Israel estava a cometer genocídio em Gaza.

A 21 de Novembro de 2024, o Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de detenção contra o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, e o antigo ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, por crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

A 5 de Dezembro de 2024, a Amnistia Internacional publicou um relatório de 296 páginas em que detalha o genocídio de Israel em Gaza.

A 19 de Dezembro de 2024, a Human Rights Watch publicou um relatório de 179 páginas que detalha o genocídio de Israel em Gaza.

 

Tudo isto levou o professor de Ciência Política da Universidade de Chicago, John J. Mearsheimer a escrever “The Moral Bankruptcy of the West, onde se pode ler:

 

Dado o alegado compromisso do Ocidente com os direitos humanos e especialmente com a prevenção do genocídio, seria de esperar que países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Alemanha tivessem travado o genocídio israelita.

 

Em vez disso, os governos destes três países, especialmente os Estados Unidos, sempre apoiaram o comportamento inimaginável de Israel em Gaza. Na verdade, estes três países são cúmplices deste genocídio.

 

 Além disso, quase todos os muitos defensores dos direitos humanos nestes países, e no Ocidente em geral, permaneceram em silêncio enquanto Israel executava o seu genocídio. A grande comunicação social quase não fez qualquer esforço para expor e desafiar o que Israel está a fazer aos palestinianos. Inclusivamente, alguns meios de comunicação importantes até apoiaram firmemente as ações de Israel.

 

Interrogamo-nos sobre o que se dizem as pessoas no Ocidente que apoiaram o genocídio de Israel ou permaneceram em silêncio para justificar o seu comportamento e para conseguirem dormir descansados à noite.

 

A história não os tratará bem.”

 

 

 

Nota:

Relembrar o blog de 26 de outubro de 2022, “Gasoduto ao fundo”.

 

Nota:

É bastante provável que um dos gasodutos do Nord Stream abandonado, possa vir a ser ativado, desde que venha a ser comprado pelo investidor americano Stephen Lynch (ou outro similar que se apresente, permitindo assim que as sanções/objeções “ocidentais” fossem levantadas), evidentemente com a concordância da empresa russa que fornece o gás. Um “acordo de cavalheiros” entre oligarcas em vez dos acordos de Minsk.

Entretanto morreram milhares de ucranianos, russos e outros, o gás e o combustível ficaram mais caros, a Europa central quase colapsou economicamente, as empresas de material militar (todas elas) exultam de braço dado com as de energia, e tudo volta aparentemente ao mesmo (embora mais caro, evidentemente).

 

 

(512) Em que lista estamos?

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

A Big Tech aliada ao Big Government tornou-se no Big Brother, John Whitehead.

 

Em 1924, a pessoa média é monitorizada, vigiada, espiada e rastreada por mais de 20 formas diferentes.

 

Podemos enfrentar um futuro em que os algoritmos prendam em massa pessoas por fazerem referência a descargas ilegais do “Game of Thrones”, Helen A.S. Popkin

 

Os leitores de matrículas de carros podem fotografar mais de 1.800 números de placas por minuto, tirar uma fotografia de cada placa que passar e armazenar o número da placa, a data, hora e local da foto.

 

O Serviço Postal dos EUA tem fotografado o exterior de cada correspondência em papel nos últimos 20 anos.

 

 

 

 

Na União Soviética a deslocação de pessoas entre as Repúblicas Socialistas só era possível mediante a apresentação de um passaporte interno, o que era considerado pelo mundo ocidental como indicação de falta de liberdade das pessoas e da existência de um estado policial.

À época, quase o mesmo acontecia nas colónias portuguesas em África, onde as deslocações entre províncias dentro da mesma colónia eram tratadas como se fossem para um país estrangeiro: polícia de fronteira (pela PIDE) e alfândega. Sentia-se que se vivia num estado muito vigiado.

Um amigo meu de Moçambique, filho de família abastada, foi tirar engenharia na Suíça. Quando voltou, acabou por se casar e para lua de mel resolveu ir passá-la à Suíça. Desembarca em Geneve, e segue com a mulher para o hotel. Mal acabara de desfazer as malas quando lhe batem à porta. Era a polícia de Geneve para lhe comunicar que ele tinha uma multa por estacionamento proibido feito três anos atrás quando ainda lá estava a estudar. País avançado tecnologicamente onde as pessoas nem se apercebem que são vigiadas. Temos um dito popular para isso: “Não há pior cego do que aquele que não quer ver”. 

 

Há um artigo de John e Nisha Whitehead, “You’d Better Watch Out: The Surveillance State Is Making a List, and You’re On It”, (É melhor tomar atenção: o Estado de Vigilância está a fazer uma lista e você está nela), publicado a 9 de dezembro de 1924, que nos vem dizer que a pessoa média é agora monitorizada, vigiada, espiada e rastreada de mais de 20 formas diferentes pelos olhos e ouvidos do governo e das empresas, quer tenha feito ou não algo de errado, o que os leva a concluir que a Big Tech aliada ao Big Government tornou-se no Big Brother.

Passam depois a explicar as várias maneiras que o Estado e as empresas utilizam para nos rastrear:

 

“Rastreando-o com base no seu DNA. A tecnologia do ADN nas mãos dos funcionários do governo completa a nossa transição para um Estado de Vigilância. Se tiver o azar de deixar vestígios do seu ADN em qualquer lugar onde um crime tenha sido cometido, passa logo a ter um ficheiro em alguma base de dados estadual ou federal – embora possa ser um ficheiro sem nome. Ao aceder ao seu ADN, o governo saberá em breve tudo o resto sobre si que ainda não sabe: o seu mapa familiar, a sua ascendência, a sua aparência, o seu historial de saúde, a sua inclinação para seguir ordens ou traçar o seu próprio rumo, etc. Uma impressão de ADN revela tudo sobre “quem somos, de onde viemos e quem seremos”. Também pode ser utilizado para prever a aparência física de possíveis suspeitos. É apenas uma questão de tempo até que a perseguição aos criminosos por parte da polícia do Estado se expanda para o perfil genético e para uma caça preventiva aos criminosos do futuro.

 

Rastreando-o com base no seu telefone e movimentos: Os telemóveis tornaram-se de facto informadores, oferecendo um fluxo constante de dados de localização digital sobre os movimentos e viagens dos utilizadores. Por exemplo, o FBI conseguiu utilizar dados de grelha geográfica para identificar no dia 6 de janeiro mais de 5.000 dispositivos móveis numa área de 4 hectares em redor do Capitólio. A utilização desta técnica de vigilância pode levá-lo à prisão por estar “no sítio errado à hora certa”. A polícia está também a utilizar simuladores de celulares para a vigilância de protestos em massa sem necessidade de mandado. Além disso, os agentes federais podem agora empregar uma série de métodos de espia (hacking) para obter acesso às atividades do seu computador e “ver” tudo o que está a ver no seu monitor. Os softwares de hackers maliciosos também podem ser utilizados para ativar remotamente câmaras e microfones, oferecendo outro meio de vislumbrar os negócios pessoais de um alvo.

 

Rastreando-o com base no seu rosto: O software de reconhecimento facial visa criar uma sociedade na qual cada indivíduo que apareça em público é rastreado e registado enquanto realiza as suas atividades diárias. Juntamente com câmaras de vigilância que cobrem todo o país, a tecnologia de reconhecimento facial permite ao governo e aos seus parceiros empresariais identificar e rastrear os movimentos de alguém em tempo real. Um programa de software particularmente controverso criado pela Clearview AI foi utilizado pela polícia, pelo FBI e pelo Departamento de Segurança Interna para recolher fotos em sites de redes sociais para inclusão numa enorme base de dados de reconhecimento facial. Da mesma forma, o software biométrico, que depende de identificadores únicos (impressões digitais, íris, impressões de voz), está a tornar-se o padrão para navegar nas linhas de segurança, bem como para contornar fechaduras digitais e obter acesso a telefones, computadores, edifícios de escritórios, etc. De facto, um número cada vez maior de viajantes está a optar por programas que dependem da sua biometria para evitar longas esperas na segurança aeroportuária. Os cientistas estão também a desenvolver lasers que podem identificar e vigiar indivíduos com base nos seus batimentos cardíacos, cheiro e microbioma.

 

Rastreando-o com base no seu comportamento: Os rápidos avanços na vigilância comportamental não estão apenas a possibilitar que os indivíduos sejam monitorizados e rastreados com base nos seus padrões de movimento ou comportamento, incluindo o reconhecimento da marcha (a forma como alguém anda), mas também deram origem a todas as indústrias que giram em torno da previsão do comportamento de alguém com base em dados e padrões de vigilância e que também moldam o comportamento de populações inteiras. Um sistema inteligente de vigilância “anti distúrbios” pretende prever tumultos em massa e eventos públicos não autorizados, utilizando inteligência artificial para analisar redes sociais, fontes de notícias, feeds de vídeo de vigilância e dados de transportes públicos.

 

Rastreando-o com base nos seus gastos e atividades de consumo: com cada smartphone que compramos, cada dispositivo GPS que instalamos, cada conta X/Twitter, Facebook e Google que abrimos, cada cartão de comprador frequente que utilizamos para compras – seja na mercearia, na loja de iogurtes, nas companhias aéreas ou nas lojas generalistas– e cada cartão de crédito e débito que utilizamos para pagar as nossas transações, estamos a ajudar a América Corporativa a construir um dossier para os seus homólogos governamentais sobre quem conhecemos, o que pensamos, como gastamos o nosso dinheiro e como gastamos o nosso tempo. A vigilância do consumidor, através da qual as suas atividades e dados nos domínios físico e online são rastreados e partilhados com os anunciantes, tornou-se um grande negócio, uma indústria de 300 mil milhões de dólares que recolhe rotineiramente os seus dados para obter lucro . Empresas como a Target não só acompanham e avaliam há anos o comportamento dos seus clientes, especialmente os seus padrões de compra, como também financiou uma grande vigilância em cidades de todo o país e desenvolveu algoritmos de vigilância comportamental que podem determinar se os maneirismos de alguém podem enquadrar-se no perfil de um ladrão.

 

Rastreá-lo com base nas suas atividades públicas: As empresas privadas, em conjunto com as agências policiais de todo o país, criaram uma rede de vigilância que abrange todas as grandes cidades, a fim de monitorizar grandes grupos de pessoas de forma integrada, como no caso de protestos e comícios. Estão também envolvidos numa ampla vigilância online, procurando qualquer indício de “grandes eventos públicos, agitação social, comunicações de gangues e indivíduos acusados ​​de crime”. Os empreiteiros de defesa têm estado na vanguarda deste mercado lucrativo. Os centros de fusão, centros de partilha de informações de 330 milhões de dólares por ano para agências federais, estaduais e de aplicação da lei, monitorizam e reportam comportamentos “suspeitos”, como pessoas que compram paletes de água engarrafada, fotografam edifícios governamentais e solicitam uma licença de piloto como “atividade suspeita”.

 

Rastreando-o com base nas suas atividades nas redes sociais: cada movimento que faz, especialmente nas redes sociais, é monitorizado, minerado de dados, analisado e tabelado para formar uma imagem de quem é, o que o motiva e qual a melhor forma de agir. Como noticiou o The Intercept, o FBI, a CIA, a NSA e outras agências governamentais estão cada vez mais a investir e a confiar em tecnologias de vigilância corporativa que podem minerar a liberdade de expressão constitucionalmente protegida em plataformas de redes sociais como o Facebook, o Twitter e o Instagram, de forma a identificar potenciais extremistas e prever que possam vir a envolver-se em futuros atos de comportamento antigovernamental. Esta obsessão pelas redes sociais como forma de vigilância terá algumas consequências assustadoras nos próximos anos. Como refere Helen A.S. Popkin, escrevendo para a NBC News, observou: “Podemos muito bem enfrentar um futuro em que os algoritmos prendam em massa pessoas por fazerem referência a downloads ilegais de ‘Game of Thrones’... o novo software que tem o potencial de ser lançado, ao estilo do Terminator, visando todos os utilizadores das redes sociais.”

 

Rastreando-o com base na sua rede social: não contentes em apenas espiar indivíduos através das suas atividades online, as agências governamentais estão agora a utilizar tecnologia de vigilância para rastrear a própria rede social de alguém, as pessoas com quem se pode ligar por telefone, mensagem de texto, e-mail ou através de mensagem social, de forma a descobrir possíveis criminosos. Um documento do FBI obtido pela Rolling Stone fala da facilidade com que os agentes conseguem aceder aos dados do catálogo de endereços do WhatsApp do Facebook e dos serviços iMessage da Apple a partir de contas de indivíduos visados ​​e de indivíduos não sob investigação que possam ter um indivíduo visado na sua rede. O que isto cria é uma sociedade de “culpa por associação”, na qual somos todos tão culpados como a pessoa mais culpada na nossa lista de endereços.

 

Rastreando-o com base no seu carro: Os leitores de matrículas são ferramentas de vigilância em massa que podem fotografar mais de 1.800 números de placas de matrícula por minuto, tirar uma fotografia de cada número da placa que passar e armazenar o número da placa e a data, hora e local da foto numa base de dados pesquisável e, em seguida, partilhar os dados com autoridades policiais, centros de fusão e empresas privadas para monitorizar os movimentos das pessoas nos seus carros. Com dezenas de milhares destes leitores de matrículas agora em funcionamento em todo o país, afixados em viadutos, carros da polícia e em setores comerciais e bairros residenciais, permite à polícia rastrear veículos e analisar as matrículas em bases de dados de aplicação da lei para crianças raptadas, carros roubados, pessoas desaparecidas e fugitivos procurados. É claro que a tecnologia não é infalível: houve inúmeros incidentes em que a polícia confiou erradamente em dados de matrículas para capturar suspeitos, apenas para acabar por deter pessoas inocentes sob a mira de uma arma.

 

Rastreando-o com base no seu correio: Quase todos os ramos do governo – desde os Correios às Finanças e todas as agências intermediárias – têm agora o seu próprio sector de vigilância, autorizado a espiar o povo americano. Por exemplo, o Serviço Postal dos EUA, que tem fotografado o exterior de cada correspondência em papel nos últimos 20 anos, também está a espiar mensagens de texto, e-mails e publicações nas redes sociais dos americanos. Liderado pela divisão de aplicação da lei dos Correios, o Programa de Operações Secretas da Internet (iCOP) está alegadamente a utilizar tecnologia de reconhecimento facial, combinada com identidades online falsas, para descobrir potenciais desordeiros com publicações “inflamatórias”. A agência afirma que a vigilância online, que está fora do âmbito convencional do processamento e entrega de correio em papel, é necessária para ajudar os trabalhadores dos correios a evitar “situações potencialmente voláteis”.

 

O governo quer que acreditemos que não temos nada a temer destes programas de espionagem em massa, desde que não tenhamos feito nada de mal.

 

Não acredite.”

 

 

Notas:

John W. Whitehead é advogado constitucional e autor, fundador e presidente do The Rutherford Institute. Os seus livros mais recentes são o best-seller Battlefield America: The War on the American People, o premiado A Government of Wolves: The Emerging American Police State e o romance de ficção distópica, The Erik Blair Diaries. Nisha Whitehead é a Diretora Executiva do Instituto Rutherford.

A tradução do artigo foi feita por máquina, com algumas correções.

 

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