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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(507) Jura, perjura, mas não reveles o segredo!

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Jura, perjura, mas não reveles o segredo! Prisciliano.

 

O Priscilianismo pretendia constituir-se como um conhecimento que tinha como finalidade fornecer uma explicação total do mundo, do homem e de Deus, por processos racionais ou extrarracionais.

 

Os concílios, feitos a vários níveis hierárquicos, serviam essencialmente para resolver questões relacionadas com a pureza ortodoxa da religião e da fé.

 

É do Concílio de Niceia (325) que vão sair o que se consideram ser a partir daí, as verdades dogmáticas da Igreja.

 

Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica, o Credo.

 

 

 

Devido à sua dependência totalmente judaica, um dos problemas com que o Cristianismo se deparou desde o seu início foi o da formação de um corpo próprio de doutrina, ensinamentos e vivências culturais separadas da tradição judaica. O que o levou, por um lado à aceitação de certas heranças (escolhidas) do judaísmo, contidas no que apelidaram de Antigo Testamento, e por outro lado à criação pelos seus próprios aderentes, de novos conceitos, normas e narrativas, que vieram a formar o que apelidaram de Novo Testamento.

Eis o que nos diz Frederico Lourenço, Bíblia, volume I, sobre a prevalência do judaísmo:

 

 “É a partir da versão grega do Antigo Testamento que o judeu Jesus Cristo, pela mão dos evangelistas, cita a escritura judaica […] Na verdade, a primeira Bíblia das primitivas comunidades cristãs foi justamente a versão grega (recorde-se que o latim só passou a ser a língua da Igreja romana a partir do final do século II, quando pela primeira vez houve um bispo de Roma falante de latim)”.

 

E sobre as incongruências dos Evangelhos:

 

Dos quatro textos que apareceram na segunda metade do século I versando acima de tudo a vida de certo homem, filho de carpinteiro nazareno, que não tendo cometido qualquer crime acabou por morrer crucificado, textos que “apesar de terem sido lidos, copiados à mão durante séculos e depois impressos milhões de vezes […] falta-nos saber, ainda hoje, quase tudo. Falta-nos saber quem os escreveu. Falta-nos saber o quando e onde foram escritos. Também não sabemos até que ponto cada evangelista conhecia o trabalho dos seus colegas. Habitualmente referimo-nos aos quatro autores pela sequência «Mateus, Marcos, Lucas e João» e é assim que os seus textos estão dispostos em todas as Bíblias em todas as casas e igrejas do mundo. Raros, porém, serão hoje os estudiosos do Novo Testamento que admitem como possível que os Evangelhos possam ter sido escritos por essa ordem”.

Quanto á data de nascimento de Jesus, também muitas dúvidas se põem. O mesmo relativamente à data em que morreu. “Há, talvez, só um acontecimento da vida de Jesus para o qual poderíamos definir uma data precisa: o regresso da Sagrada família, após a permanência no Egito. Só Mateus nos fala desse episódio da vida de jesus, que (a ser verídico) ocorreu no ano da morte de Herodes, o Grande. Sobre esse ano não há qualquer dúvida: é de 4 a.C.

Também “as dúvidas sobre as circunstâncias em que ocorreu o nascimento de Jesus são mais que muitas.  Mateus e Lucas são os dois evangelistas que oferecem um relato sobre como aconteceu a gravidez de maria e o subsequente nascimento de seu filho, Jesus (Marcos e João omitem quaisquer informações sobre este tema). Contudo, a Natividade narrada por Mateus suscita o problema de ser incompatível com a narrada por Lucas. A história, tal como é contada por Mateus, tem caraterísticas que não aparecem em Lucas: só em Mateus é que encontramos os magos, a «estrela de Belém», o Massacre dos Inocentes e a fuga para o Egito. Em Mateus, fica subentendido que José e Maria são naturais de Belém; só depois do regresso do Egito é que se mudam para Nazaré. Lucas vê a situação ao contrário: José e Maria são naturais de Nazaré, mas têm de se deslocar a Belém para a formalidade de um recenseamento romano […]. Dado que, em Mateus, tudo leva a crer que Jesus nasceu […] na morada belenense de maria e de José, neste Evangelho não há manjedoura nem adoração dos pastores. O evangelista do Presépio é Lucas”.

 

Pelo que para resolver questões como estas e outras relacionadas com a pureza ortodoxa da religião e da fé, “para evitar que cada um dos presentes trabalhe de forma distinta nas suas igrejas”, onde se debatiam os dogmas religiosos e as correntes heterodoxas (as heresias), onde se julgavam os bispos e o clero em geral, por ações e queixas apresentadas mesmo por paroquianos, a Igreja cristã instituiu os concílios feitos a vários níveis hierárquicos.

 Não existindo carreiras de transporte, hotéis, serviço de correios, telefone, etc., a única forma para se decidir algo em conjunto exigia a presença conjunta num mesmo local, o que implicava quase sempre uma deslocação demorada, difícil e perigosa.

É correto afirmar que a principal missão dos concílios era preparar o combate às heresias, que para além de preconizarem desvios ao dogma instituído, podiam provocar cismas graves no interior da Igreja. Com fins idênticos, embora com outros meios, temos nos tempos atuais a versão político-económica nos “concílios” de Davos.

Na península Ibérica, o Cristianismo entrou desde muito cedo, crê-se mesmo que possivelmente o tenha feito no tempo dos apóstolos. Ao certo, o que sabemos é que o primeiro Concílio ibérico se efetuou entre 300 e 304 em Elvira (na região de Granada), local onde se reuniram mais de trinta e seis episcopais, o que atesta bem já da expansão e estruturação do cristianismo na península, especialmente tendo em conta que ele se realizou naqueles anos que foram os das maiores perseguições aos cristãos (303 a 311) ordenadas pelo Imperador Diocleciano.

 

A propagação das heresias fazia-se normalmente pelos caminhos das peregrinações (a internet da época). Os peregrinos, que partiam em busca da Terra Santa, regressavam com relíquias sagradas, obras literárias, filosóficas, teológicas, nem sempre ortodoxas, influências de contactos com personagens e culturas greco-orientais, algumas nitidamente heréticas.


Uma das heresias mais expandida era o Arianismo, doutrina de Ário de Alexandria (c. 250 – c. 336). Embora compartilhasse uma teologia trinitária, negava a identidade substancial das três Pessoas, considerando apenas que eram semelhantes.

Para Ario, quer o Filho quer o Espírito Santo tinham substâncias diferentes do Pai: o Filho fora criado por Deus antes do tempo e da criação do mundo a partir do nada, por um ato de vontade divina. Assim, ao criá-lo, o Pai não lhe dava a sua natureza, visto que se o fizesse diminuir-se-ia pela perda de algo. E da mesma forma como Deus cria o Filho/o Verbo, cria também o Espírito Santo, o mundo e os entes.

 Daqui conclui que se o Filho não tem a mesma natureza do Pai, então não é verdadeiro Deus, mas uma criatura entre as outras, sendo apenas um exemplo moral; e ao encarnar num corpo, sem o intermédio da alma, tem apenas uma natureza divina. Cristo encontra-se, portanto, perfeitamente subordinado ao Pai, sendo Filho por adoção. Logicamente também não crê na virgindade de Maria, nem na linhagem divina de Jesus.

 

Outra das heresias, o Origenismo, foi trazida para a Península por dois irmãos de Braga, os Avitos, após as peregrinações que efetuaram a Roma e à Terra Santa. Doutrina preconizada por Orígenes (c. 185 – c. 254), um dos primeiros teólogos cristãos, nascido em Alexandria em 185 e falecido em Tiro em 254, e segundo a qual Deus criou toda a eternidade, sendo Cristo ou o Verbo eternamente gerado do Pai, mantendo com ele uma relação de subordinação.

 O mundo inicialmente criado por Deus era um mundo espiritual, habitado por espíritos, incluindo as almas humanas. Como esses espíritos eram livres, usando dessa liberdade, uns permaneceram bons e outros pecaram. Os primeiros são os anjos, os segundos foram castigados e encerrados em corpos invisíveis (os demónios) e em corpos visíveis (almas humanas). Como Deus é bom, pretende que todos regressem ao estado inicial, o que só será possível após um longo período de purificação. A redenção dos espíritos caídos em pecado é feita por Cristo que se une a uma alma virgem de pecado e, por ela, a um corpo humano.


Outra heresia importante, e esta oriunda da Galiza ou da Lusitânia, foi o Priscilianismo. A doutrina de Prisciliano (345 – 385) negava a Trindade divina, negava a criação do mundo, negava o nascimento de Cristo, negava a sua carnalidade, negava a ressurreição, condenava o matrimónio, abstinham-se de comer carnes das aves e outros animais, e acreditavam na astrologia e matemáticas como algo que se encontrava para além da Divina Trindade. Afirmava ainda que fora o Pai e não o Filho que sofrera na cruz e que a alma humana era uma parcela da divindade que fora possuída pelos espíritos do mal e metida à força no corpo.


Na sua explicação do mundo, o Priscilianismo reconhecia a existência de dois princípios únicos e iguais em luta constante, o princípio do Mal ou das Trevas, e o princípio do Bem ou da Luz. Embora considerasse Deus como força perfeita, princípio dos princípios, vai colocar ao seu lado a força do Mal. Considerava que o mundo e a matéria tivessem sido criados pelo princípio do Mal, como criação de Satã, sendo habitados pelo Mal, e que o mundo espiritual, o mundo do Bem, fora criado por Deus. Assim sendo, toda a matéria seria oriunda de uma criação maléfica, não podendo ser reconduzida ao princípio do Bem: a matéria e o Bem são substâncias que se rejeitavam mutuamente.


Segundo estes princípios, o Mal tem, tal como o Bem, capacidade de criar a partir do nada, havendo, portanto, uma equiparação do Mal ao Bem. O princípio do Mal é também o de um ser espiritual com poder criador, mas que não fora criado por Deus, tendo sua origem sido o caos e as trevas. Assim, é autossuficiente, basta-se a si mesmo. Sendo ele que cria a matéria, esta será essencialmente má. O corpo sendo matéria, será também mau: é o cárcere da alma.

E explicam: as almas habitavam um lugar celestial, mas porque pecaram, foram conquistadas pelo império do Mal, metidas por castigo nos corpos materiais. Cabe a Cristo resgatar as almas, por isso desce à terra. Mas Cristo não pode ter natureza humana, o seu corpo não passa de ilusão, de aparência ou fantasma, pois não poderia ter nada a ver com a matéria criação do Mal.


Esta negação da materialidade de Cristo vem contrariar a doutrina católica da Encarnação, da Ressurreição de Cristo, e da ressurreição final da carne.
O ascetismo dos Priscilianos é o processo que utilizam para se libertarem da matéria e da ascensão para Deus. Pelas mesmas razões (a carne é má), condenam o matrimónio, aconselham a total abstinência sexual, são contra a geração de crianças (as crianças no ventre materno são obra demoníaca), e contra a ingestão de carne por ser alimento impuro.


Mas, porque era o Priscilianismo considerado tão perigoso para a Igreja? Fundamentalmente porque se pretendia constituir como um conhecimento que tinha como finalidade fornecer uma explicação total do mundo, do homem e de Deus, por processos racionais ou extrarracionais. Ou seja, o Priscilianismo era um gnosticismo ao considerar que o homem era capaz de atingir, por si só, pela racionalidade, a divindade.


Curiosamente, na obra escrita por Prisciliano, nada se encontra de heterodoxia, sendo até profundamente ortodoxa. Há quem diga que tal não passava de uma máscara para as atividades que desenvolvia. É dele o lema “Jura, perjura, mas não reveles o segredo!”. Outros dizem que como ele se dirigia a um público rude, gente sem instrução, era preciso recorrer à alegoria e à parábola, num certo desvio das palavras das Escrituras, para que a pudessem entender.


Seja como for, as suas pregações chamaram a atenção da Igreja, tendo Prisciliano e dois bispos seus seguidores sido condenados no concílio de Saragoça em 380. O que de nada serviu, pois, estes bispos, logo de seguida, elegeram Prisciliano, que era leigo, para bispo de Ávila!


Apresentada queixa ao Imperador, este decreta a expulsão de Prisciliano da cátedra episcopal. Prisciliano resolve ir a Roma para se defender da acusação. Durante o longo trajeto, vai convertendo grande número de crentes. A fama de práticas dionisíacas e bacanais durante os seus ensinamentos precederam a sua chegada a Roma.

O Papa recusa recebê-lo, mas Prisciliano suborna um chanceler imperial que lhe dá a confirmação do bispado de Ávila. O Papado reage e consegue que o Imperador Máximo o leve a tribunal, onde é acusado, não de heresia, mas de práticas mágicas e atentados ao pudor: é condenado à morte por decapitação juntamente com alguns dos seus companheiros.

 Contrariamente à expectativa da Igreja, essa morte vai convertê-lo num mártir para a Península, impulsionando o desenvolvimento e enraizamento do Priscilianismo.

 

Em 325 é realizado o primeiro grande Concílio da Igreja, o Concílio de Niceia (atual Turquia), presidido pelo Imperador Constantino, recém-convertido ao cristianismo que via no monoteísmo cristão uma indicação divina justificativa do seu cargo imperial, razão porque havia que acabar com a dissidência ariana dentro da Igreja para que a Igreja pudesse ser forte e una. Pontificava na altura o Papa Silvestre I, tendo nomeado para principal organizador do concílio o bispo de Córdova, Hossius.


Para os conciliares, assoberbados pelas heresias que cada vez surgiam em maior número, tratava-se de conseguir produzir um documento normativo que acabasse de vez com quaisquer dúvidas sobre o presente e futuro do que era ser cristão, assentes no conceito teológico fundamental de se considerar a identidade das três Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) como sendo a “mesma substância”.

Assim, o Filho não estaria subordinado ao Pai, sendo da mesma substância. O Verbo não seria criado, mas gerado e consubstancial ao Pai. Cristo teria natureza humana, não sendo um mero exemplo moral, pois tal comprometeria o plano divino da salvação.


Do Concílio de Niceia vão sair o que se consideram ser a partir daí, as verdades dogmáticas da Igreja, expressando-as através de um credo, ainda hoje recitado pelos católicos, e que resume toda a doutrina:

 

Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.


Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos; Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas.


E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem.
Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai.


E de novo há-de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim.


Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho e com o Pai é adorado e glorificado: Ele que falou pelos profetas.
Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica.


Professo um só batismo para a remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir. Ámen.”

 

 

Independentemente do valor de crença e expressão religiosa que cada um lhe queira atribuir, trata-se de um documento de síntese excecional, onde se reúne de uma forma sucinta e clara toda uma doutrina. É o pilar político de toda uma organização.

 

 

 

 

(506) O esquecimento seletivo e a impaciência

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Sofremos ironias, insultos, agressões e pancadas infligidas de manhã, à tarde e à noite, apenas porque éramos negros, Patrice Lumumba.

 

Quem se esquecerá que éramos tratados por “tu”, não por sermos considerados como amigos, mas porque o “vós” estava reservado apenas para os Brancos? Patrice Lumumba.

 

Caminhamos a passo de tartaruga para a conquista do direito de beber uma chávena de café ao balcão de um snack-bar da esquina, Martin Luther King.

 

Papá, porque é que os brancos tratam tão mal as pessoas de cor? Martin Luther King.

 

 

 

A 22 de janeiro de 2024, foi apresentado no Festival de Cinema de Sundance, N Y, o documentário “Soundtrack to a Coup d’Etat, realizado e escrito por Johan Grimonprez, onde ao longo de 150 minutos a pouca memória coletiva ainda restante vai sendo relembrada através de imagens e sons de alguns episódios já anteriormente filmados e documentados do “fim” daquele colonialismo dos anos 60, em que alguns muito bons intérpretes de jazz foram utilizados, contrariadamente ou não,  pelo governo americano para neutralizar a campanha que se vinha formando contra o racismo e colonialismo nos EUA.

Recorde-se que 1960 foi, pela primeira vez, o ano em que 16 nações africanas recentemente independentes foram admitidas nas Nações Unidas, votos suficientes para que a maioria das votações fosse retirada às antigas nações coloniais.

Para manter o controlo sobre as riquezas do “seu” Congo Belga, o rei Balduíno da Bélgica “encontrou” um aliado na administração Eisenhower, que justificadamente temia perder o acesso a um dos maiores fornecedores mundiais de urânio, mineral vital para a fabricação de bombas atómicas. O Congo ocupava assim o centro das atenções tanto na Guerra Fria como no esquema de controlo da ONU.

O Departamento de Estado dos EUA entra em ação: o embaixador do Jazz, Louis Armstrong, é enviado para conquistar os corações e as mentes dos africanos. Involuntariamente, Armstrong torna-se numa cortina de fumo para desviar a atenção do primeiro golpe pós-colonial em África que levou ao assassinato de Patrice Lumumba, primeiro líder democraticamente eleito do Congo.

Os embaixadores negros do jazz que atuam no meio de agentes secretos da CIA, como Armstrong, Nina Simone, Duke Ellington, Dizzy Gillespie e Melba Liston, enfrentam o dilema de como representar um país onde a segregação continuava a ser lei. Mas isso é outra história.

 

A 30 de junho de 1960 a independência do Congo é efetiva. Em Léopoldville (agora Kinshasa), perante o Rei Balduíno da Bélgica (nação colonizadora) e demais altos representantes das nações creditadas para o acontecimento, o então Primeiro-ministro Patrice Emery Lumumba, profere um dos mais notáveis discursos sobre o colonialismo.

Eis esse Discurso da Proclamação da Independência do Congo na sua versão integral:

 

“Congoleses e Congolesas. Combatentes da Independência hoje vitoriosa. Saúdo-vos em nome do governo congolês.

A todos vós, meus amigos, que lutaram connosco sem desfalecimento, peço-vos para que façam deste 30 de junho de 1960 uma data ilustre que fique indelevelmente gravada nos vossos corações, uma data cuja significação ensinarão com orgulho aos vossos filhos, para que estes por sua vez a deem a conhecer aos seus filhos e aos seus netos, a da história da nossa luta gloriosa pela conquista da liberdade.


Porque se esta Independência do Congo é hoje proclamada em acordo com a Bélgica, país amigo que tratamos de igual para igual, nenhum Congolês digno desse nome poderá jamais esquecer que foi pela luta que ela foi conquistada, numa luta de todos os dias, numa luta ardente e idealista, numa luta onde não escamoteámos as nossas forças, nem os sofrimentos, nem o nosso sangue.


Foi uma luta de lágrimas, de fogo e de sangue à qual nos mantivemos fiéis até ao mais profundo dos nossos seres, porque foi uma luta nobre e justa, uma luta indispensável para pôr fim à humilhante escravidão que nos foi imposta pela força.


Aquilo que nos aconteceu durante 80 anos de regime colonialista, as nossas feridas estão ainda tão frescas e são tão dolorosas que não as podemos afastar da nossa memória. Nós sofremos o trabalho impiedoso e exaustivo em troca de salários miseráveis que não nos permitia dar de comer à nossa fome, nem de nos vestir ou de nos alojar decentemente, nem de educar os nossos filhos como entes queridos.


Nós sofremos ironias, insultos, agressões e pancadas infligidas de manhã, à tarde e à noite, apenas porque éramos negros. Quem se esquecerá que éramos tratados por “tu”, não por sermos considerados como amigos, mas porque o “vós” estava reservado apenas para os Brancos?


Sofremos a espoliação das nossas terras em nome de textos pretensamente legais que o único que faziam era reconhecer o direito do mais forte.
Sofremos a desigualdade de tratamento perante a lei que não era nunca a mesma conforme se tratasse de um Branco ou de um Negro: flexível e acomodatícia para uns, cruel e desumana para os outros.


Sofremos atrozmente pelas nossas opiniões políticas ou religiosas; exilados dentro da nossa própria pátria, num destino mais cruel que a própria morte.
Sofremos o vexame de vermos a existência nas nossas cidades de casas magníficas para os Brancos e de palhotas decrépitas para os negros; que um Negro não podia entrar nem nos cinemas, nem nos restaurantes, nem nas grandes lojas; que um Negro viajava sempre na parte de trás, ficando reservada a cabine de luxo para os Brancos.


Quem se esquecerá dos disparos das espingardas com que muitos dos nossos irmãos foram mortos, das jaulas para onde foram brutalmente metidos todos aqueles que não se queriam submeter à justiça de um regime de opressão e exploração?


Tudo isto, meus irmãos, nós sofremos profundamente.


Mas também vos dizemos, que tudo isso que sofremos no nosso corpo e no nosso coração durante a opressão colonialista, nós que o voto dos vossos representantes elegeu para dirigir o nosso querido país, tudo isso acabou.
A República do Congo foi proclamada e o nosso querido país está agora na mão dos seus próprios filhos.


Juntos, meus irmãos, minhas irmãs, iremos começar uma nova luta, uma luta sublime que conduzirá o nosso país à paz, à prosperidade à grandeza.
Juntos, iremos estabelecer a Justiça social e assegurar que cada um receba a justa remuneração pelo seu trabalho.


Juntos iremos mostrar ao mundo aquilo que o homem negro pode fazer quando ele trabalhar pela liberdade, fazendo do Congo o centro de irradiação para toda a África inteira. Juntos iremos assegurar que as terras da nossa pátria sejam utilizadas a favor dos seus filhos. Juntos iremos rever todas as leis do passado e fazer novas leis que sejam justas e nobres.
Juntos iremos pôr fim à opressão do pensamento livre e tudo faremos para que os cidadãos possam gozar plenamente das liberdades fundamentais previstas na declaração dos Direitos do Homem.


Juntos iremos suprimir eficazmente todo o resquício de discriminação seja ela qual for e dar a cada um o seu justo lugar que lhe assegure a sua dignidade humana, o seu trabalho e a sua devoção ao país.


Juntos iremos fazer reinar, não a paz das armas e das baionetas, mas a paz dos corações e das boas vontades.


E para que tudo isto se cumpra, caros compatriotas, estejam certos que iremos poder contar, não somente com as nossas enormes forças e com as nossas imensas riquezas, mas também com a assistência de numerosos países estrangeiros que connosco querem colaborar lealmente sem nos quererem impor uma política, seja ela qual for.


Neste domínio, a Bélgica que, compreendendo enfim o sentido da história, não tentou opor-se à nossa independência, está pronta a conceder-nos a sua ajuda e a sua amizade, pelo que já assinámos um tratado entre os nossos dois países iguais e independentes. Esta cooperação, estou seguro, será vantajosa para os dois países. Pela nossa parte, embora nos mantenhamos vigilantes, saberemos respeitar os compromissos livremente assumidos.


Assim, tanto internamente como exteriormente, o Congo novo, a nossa querida República que o meu governo vai criar, será um país rico, livre e próspero. Mas para conseguirmos alcançar sem demora estes objetivos, peço-vos a todos vocês legisladores e cidadãos congoleses, que me ajudem com todas as vossas forças.


Peço-vos a todos que esqueçam as querelas tribais que só nos esgotam e que nos fazem parecer não respeitáveis aos olhos estrangeiros. Peço à minoria parlamentar que ajude o meu governo através de uma oposição construtiva, mantendo-se estritamente dentro das vias legais e democráticas.


Peço-vos a todos que não enjeitem qualquer sacrifício por forma a garantir este empreendimento grandioso.


Peço-vos por fim que respeitem incondicionalmente a vida e os bens dos vossos concidadãos e dos estrangeiros estabelecidos no nosso país. Se a conduta desses estrangeiros não se conformar com as nossas leis, a nossa justiça prontamente os expulsará do território da República; se pelo contrário a sua conduta for boa, devem ser deixados em paz, porque eles também trabalham para a prosperidade do nosso país.

A Independência do Congo marca um passo decisivo na libertação de todo o continente africano.


Eis, pois, Excelências, Senhoras e Senhores, caros compatriotas, meus irmãos de raça, meus irmãos de luta, o que eu vos quis dizer em nome do meu governo neste dia magnífico da nossa Independência completa e soberana.
O nosso governo, forte, nacional, popular será o orgulho deste povo.
Honra aos combatentes da liberdade nacional!


Viva a Independência e a Unidade Africana!


Viva o Congo independente e soberano.”



Seis meses e meio depois de ter proferido este discurso, Patrice Lumumba foi preso e assassinado por mercenários catangueses a soldo de Moisés Tshombe (e de outros) a 17 de janeiro de 1961. O seu corpo foi desmembrado, regado com ácido e os pedaços espalhados por vários locais.
Coisa de pretos.

 

 

Ainda sobre colonialismo/racismo/humanismo, vale a pena recordar a “Carta da Prisão de Birmingham” de Martin Luther King.

Embora o discurso de Luther King sobre o sonho que teve (“I have a dream”) seja a sua peça mais conhecida, não é, contudo, a mais importante sob o ponto de vista da perceção social da oportunidade do momento. É essa “Carta da Prisão de Birmingham” escrita em 1963, que vai, meses depois, desencadear a célebre Marcha sobre Washington. Diz assim:



“Aprendemos pela nossa dolorosa experiência que o opressor nunca concede voluntariamente a liberdade àqueles que oprime. Os oprimidos são obrigados a reclamá-la. Francamente, nunca estive envolvido numa campanha de ação direta que parecesse “oportuna” aos que nunca sofreram do excesso de segregação.

 Há anos que ouço dizer: “Esperem!”, e esta palavra soa aos ouvidos de um negro com uma familiaridade lancinante. Este famoso “esperem” foi quase sempre sinónimo de “nunca”. Tem sido como que um tranquilizante para a gestação, que nos liberta momentaneamente do stress emocional, para engendrar depois uma criança doente, enformada de frustração. Assim chegamos à conclusão, como diz um dos nossos distintos juristas, que demorar tempo demais a fazer justiça, é recusá-la”.


Há mais de trezentos e quarenta anos que esperamos para poder usufruir dos nossos direitos constitucionais e dos simples direitos humanos que Deus nos deu. Nações da África e da Ásia caminham a velocidade estonteante para a sua independência política, enquanto nós ainda caminhamos a passo de tartaruga para a conquista do direito de beber uma chávena de café ao balcão de um snack-bar da esquina. Para os que nunca sentiram os dardos acerados da segregação, talvez seja fácil dizer: “Esperem”.

 Mas quando a populaça cheia de ódio enforca o vosso pai e a vossa mãe e afoga os vossos irmãos e irmãs ao sabor da sua fantasia; quando polícias medonhos, com a injúria na boca, brutalizam e por vezes até matam os vossos semelhantes com toda a impunidade; quando a imensa maioria dos vossos vinte milhões de irmãos negros vive esmagada pela miséria no meio de uma sociedade opulenta; quando as palavras vos faltam subitamente e começais a gaguejar ao procurardes explicar à vossa filha de seis anos porque não pode ir ao novo parque de atrações sobre o qual acabou de ver uma reportagem na televisão e quando os seus pequeninos olhos se marejam de lágrimas quando lhe explicais que esse parque (Funtown) é proibido às crianças de cor; quando as nuvens sombrias de um complexo de inferioridade tomam forma no seu espírito infantil e a sua pequena personalidade se altera ao desenvolver um rancor inconsciente em relação aos brancos; quando tende de encontrar uma resposta para o vosso filho de cinco anos que vos pergunta num sofrimento agonizante: “Papá, porque é que os brancos tratam tão mal as pessoas de cor?; quando, durante uma viagem fora da cidade, tendes de dormir noite após noite nos assentos desconfortáveis do vosso carro porque nenhum motel vos aceitará; quando sois humilhados dia e noite pela visão de painéis com as inscrições: “brancos” e “pessoas de cor”; quando sois invariavelmente chamados de “negro” seja qual for o vosso nome, quando sois tratados por “meu velho” mesmo se fordes jovem e quando o vosso apelido é sempre “John” e os nomes da vossa mulher e da vossa mãe nunca são antecedidos pela elementar forma de cortesia “senhora”, e quando sois assediados e assombrados toda a noite pelo fato de serdes um negro, vivendo constantemente sobressaltado e sem saber aquilo que vos espera; quando o medo e o rancor se instalam dentro de vós e tendes de lutar continuamente contra o sentimento degradante de “não ser alguém”; nesse caso, sim, compreenderíeis porque não podemos esperar mais.

 Chega um tempo em que a taça da paciência transborda e o homem recusa que o mergulhem num abismo de injustiça onde vive a frialdade do desespero corrosivo. Espero, Senhores, que compreendereis o que há de legítimo e inevitável na nossa impaciência.”

 

Como se sabe, Martin Luther King acabou também assassinado, a 4 de abril de 1968 em Memphis, Tennessee. Coisa de brancos.



 

 

 

(505) A “Bíblia da Mulher” (revisitada)

Tempo estimado de leitura: 11 minutos.

 

“Os homens nascem ignorantes, mas não estúpidos. É a educação que os torna estúpidos”, Bertrand Russel.

 

 “Como todas as religiões à face da terra degradam a mulher, sempre que a mulher aceitar ficar nessa posição em que a colocam, a sua emancipação torna-se impossível”, Elizabeth Cady Stanton, 1895.

 

“O casamento para ela não passa de uma condição de servidão, a maternidade de um período de sofrimento e angústia, e tem ainda de desempenhar em silêncio e sujeição o papel de dependente dos desejos do homem para todas as suas necessidades materiais”, E. C. Stanton.

 

“A principal distinção na potência intelectual entre os dois sexos é o homem poder alcançar uma mais alta eminência, seja no que se proponha, do que se fosse mulher”, C. Darwin.

 

“Tem-nos sido dito pela gestão de topo que aquilo que temos feito é o que é, económica e moralmente, o mais correto, mas isso não passa de uma ideologia velada de esquerda que tem irreparavelmente prejudicado a Google”, James Damore.

 

 

 

 

 

Na Introdução que a ativista e escritora americana Elizabeth Cady Stanton (1815-1902) fez em 1895 para A Bíblia da Mulher, obra em dois volumes publicada em 1895 e 1898 (com a colaboração de mais 26 escritores), como desafio à ortodoxia religiosa e à Versão Revista da Bíblia empreendida pela Igreja da Inglaterra em 1881, 1885 e 1894, sem a participação de qualquer mulher, e que continuava a colocar a mulher como subserviente do homem, pode ler-se:

 

 

A Bíblia tem sido usada para manter a mulher na ‘esfera divinamente ordenada’ que lhe foi atribuída, de acordo com o prescrito no Antigo e no Novo Testamento.

O cânone e a lei civil; a igreja e o estado; os padres e os legisladores; todos os partidos políticos e as variadas congregações religiosas concordam em que a mulher foi feita depois do homem, a partir do homem, e para o homem, um ser inferior, sujeito ao homem. Credos, códigos, Escrituras e estatutos, todos tomam por base esta ideia. As modas, formas, cerimónias e costumes da sociedade, ordenações da igreja e disciplina, todas emanam desta ideia. […]

 

A Bíblia ensina que foi a mulher que trouxe o pecado e a morte ao mundo, que foi ela que precipitou a decadência da raça, tendo sido arrastada perante o julgamento do Céu, julgada, condenada e sentenciada. O casamento para ela não passa de uma condição de servidão, a maternidade de um período de sofrimento e angústia, e em que ela tem ainda em silêncio e sujeição de desempenhar o papel de dependente dos desejos do homem para todas as suas necessidades materiais, bem como para todas as informações sobre as questões do dia a dia que ela possa julgar pertinentes e que, obrigatoriamente, terá primeiro de perguntar ao marido. Em resumo, esta é a posição da mulher segundo a Bíblia […]

 

A lei canónica, os ensinamentos da igreja e Escrituras, são homogéneas, e todas elas refletem o mesmo espírito e sentimentos. Todos estes textos familiares são referidos pelos padres nos seus púlpitos, pelos políticos nas suas assembleias, pelos advogados nos tribunais, reproduzidos pela imprensa de todas as nações civilizadas, e aceites pelas próprias mulheres como sendo “A Palavra de Deus”.

A natureza do elemento religioso está tão pervertida, que com a fé e orações as mulheres acabam por ser o principal suporte da igreja e do clero; exatamente os mesmos poderes que tornam a sua emancipação impossível. Quando no início do século XIX as mulheres começaram a protestar contra a sua degradação civil e política, foram aconselhadas a encontrarem uma resposta na Bíblia. Quando protestaram contra o seu tratamento desigual pela igreja, foram aconselhadas e encontrarem resposta na Bíblia.

Isto conduziu a um estudo geral e crítico das Escrituras. Alguns, acreditando que elas eram mesmo a verdadeira “Palavra de Deus”, fizeram traduções liberais, interpretações, alegorias e símbolos, branqueando as características mais objetáveis das várias Escrituras, editando-as como sendo inspiradas divinamente. Outros, vendo as semelhanças familiares entre a Lei Mosaica (a lei Mosaica começa com os Dez Mandamentos dados por Deus aos Israelitas através de Moisés, e inclui ainda preceitos de conduta religiosa incluídos nos primeiros cinco livros do Velho Testamento; no Judaísmo, livros conhecidos como Tora, ou “a Lei”), a lei canónica, e a antiga lei civil Inglesa, concluíram que todos eles eram semelhantes e emanavam da mesma fonte […].

Outros ainda, baralhados entre as suas dúvidas e medos, não chegaram a qualquer conclusão. Enquanto os seus clérigos lhes dissessem por um lado que elas deviam todas as suas bênçãos e liberdades à Bíblia, e por outro lado lhes diziam que era exatamente por isso que as suas esferas de ação estavam circunscritas: que os pedidos respeitantes a direitos civis e políticos eram irreligiosos, perigosos para a estabilidade do lar, do estado e da igreja.

Eram frequentes os apelos do clero para que os fiéis das suas igrejas não participassem em movimentos contra a escravatura ou em movimentos sufragistas femininos, fazendo notar que nesses casos estariam a serem infiéis para com as suas tendências, minando o próprio fundamento da sociedade. Não é de admirar que a maioria das mulheres se mantivesse quieta, de cabeça baixa, aceitando a situação.

 

Após ouvir as opiniões de mulheres, comecei a pensar que seria interessante e proveitoso trazê-las a conhecimento público através da sua publicação em livro. Foi assim, que há seis anos propus a uma comissão de mulheres o projeto da ‘Bíblia para a Mulher’, onde seriam vertidos os nossos comentários sobre a posição das mulheres no Antigo e no Novo Testamento […]

Contudo, várias distintas professoras versadas em estudos bíblicos e em hebreu e grego, embora interessadas, não participaram com receio que as suas reputações académicas pudessem vir a ser afetadas dado o que consideraram ser um projeto impopular.

Outras receiam que possam comprometer a sua fé evangélica se acolherem visões mais liberais que não olham para a Bíblia como “Palavra de Deus”, mas como um qualquer outro livro, que deva ser julgado pelos seus méritos próprios. Se a Bíblia prega a igualdade da Mulher, porque é que a igreja recusa a ordenação de mulheres para poderem pregar, preencher os cargos de diácono, administrar os sacramentos, ou não as admite nem que seja como delegada aos Sínodos, Assembleias Gerais e outras Conferências? Porque nunca convidaram uma mulher para participar nas Comissões de Revisão […]

 

Recebemos um grande número de cartas muito apreciativas sobre a obra e a intenção que presidiu ao seu aparecimento. Recebemos também as usuais objeções esperadas. Uma delas convidava-nos a suspender a obra, uma vez que era “ridículo” que as “mulheres se atrevessem a rever as Escrituras”. Pergunto-me se algum homem escreveu à última comissão da revisão dos Divinos para que a suspendessem por serem homens a reverem a Bíblia […]

Outras referem que não é “político” demonstrar oposição religiosa. Este tipo e política não passa de “cobardia”. Como é que se pode alterar a posição de subordinação da mulher para uma de igualdade, sem oposição, sem a discussão o mais alargada possível de todas as questões que dão origem a essa degradação? […]

Outras dizem-nos que o nosso trabalho é um dispêndio inútil de força num livro que já tem pouco a ver com o espírito humano. Dizem que a maior parte das mulheres inteligentes o veem como uma história de um povo rude de uma época de barbárie, e que têm tanta reverência para com a Bíblia como para um outro qualquer livro. Só que, enquanto dezenas de milhar de Bíblias forem impressas todos os anos, e postas a circular por todo o mundo, e enquanto os povos de todas as nações de fala inglesa o reverenciarem como a palavra de Deus, não vale a pena diminuir-lhe a sua importância. […]

 

Os únicos pontos em que me diferencio relativamente aos ensinamentos eclesiásticos é que não acredito que algum homem tenha alguma vez visto ou falado com Deus, não acredito que Deus tenha inspirado o código Mosaico, ou tenha dito aos historiadores da Bíblia o que eles dizem sobre as mulheres. Como todas as religiões à face da terra degradam a mulher, e desde que a mulher aceite esta posição em que a colocam, a sua emancipação torna-se impossível.

 

[…]. Há alguns princípios gerais nos livros sagrados de todas as religiões que ensinam amor, caridade, liberdade, justiça e igualdade para todos os seres humanos, há muitas e belas passagens, cuja regra de ouro têm ecoado à volta do mundo. Há muitos exemplos de homens e mulheres verdadeiros e bons, todos eles dignos da nossa aceitação e imitação, cujo brilho não pode ser diminuído por sentimentos falsos e indignos exibidos por outros no mesmo volume. A Bíblia não pode ser aceite ou rejeitada como um todo, os seus ensinamentos são variados e as suas lições diferem bastante umas das outras […]. Ao criticarmos a lei Mosaica não questionamos a sabedoria da regra de ouro e do quinto Mandamento. Mais uma vez a igreja reserva consagração especial para as suas catedrais e clérigos, partes dessas igrejas aristocráticas são demasiado sagradas para permitirem a entrada de mulheres, uma das razões invocadas para a introdução de rapazes nos coros, e em que as mulheres cantavam num canto obscuro obrigatoriamente velado.

 

[…] A lei canónica, as Escrituras, os credos e os códigos e a disciplina da igreja das principais religiões, todas eles têm a impressão falível do homem, e não da nossa primeira causa ideal, “o Espírito de Todo o Bem”, que deu movimento ao universo da matéria e do espírito […].

 

 

 

Mas Cady Stanton foi também a fundadora (1869) e presidente da National Woman Suffrage Association (NWSA) que se batia pela concessão do direito de voto às mulheres, o que só veio a acontecer em 1920 (51 anos depois) quando foi finalmente ratificada a Décima Nona Emenda à Constituição dos E.U.A., onde se dizia que “O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos não pode ser negado ou limitado pelos Estados Unidos ou por qualquer Estado mediante a invocação de género (sexo).”

 

Muitas e variadas são as Associações de mulheres que têm existido nos EUA. Aliás, os vários tipos de associações e grupos que aí pululam, têm sido cruciais para o desenvolvimento desse país desde a época da colonização: não foi por acaso que ao primeiro governo das treze colónias se chamou “A Associação”.

Ainda hoje nos EUA, as Igrejas continuam a ser associações voluntárias privadas e podemos constatar que, desde que o vínculo entre a Igreja e o Estado se rompeu com a Revolução Americana, a maioria das reformas mais importantes, como a abolição da escravatura, a instituição dos direitos das mulheres, a reforma penal e penitenciária, a educação, a proteção dos nativos americanos e dos direitos civis, têm sido ‘conseguidas’ através da defesa e combatividade dessas associações de pessoas.

 

É sabido que só após muitas lutas e muitos anos é que os direitos políticos vieram a ser reconhecidos. O direito ao voto não foi exceção. Mesmo quando na maior parte dos países europeus ele foi ‘concedido’, foi só para os homens que possuíssem uma determinada quantidade de bens, o que fazia, por exemplo, que em 1830, na França, onde existiam cerca de trinta milhões de habitantes, o eleitorado fosse apenas de noventa mil votantes.

 Mas não só a falta de riqueza era limitativa do direito ao voto. A confissão religiosa também o era: na Grã-Bretanha, os católicos só puderam votar após 1829, e os judeus após 1858.

Quanto às mulheres, o seu direito de voto foi vindo a ser sempre protelado: quando após a guerra civil americana julgavam conquistar, juntamente com os escravos negros, o direito de votar, foram preteridas, elas que não os escravos negros.

 

Anteriormente, já Kant, ao pressupor a independência do sujeito como critério para a capacidade de votar, concluía que “qualquer um que não pudesse conservar a sua existência (o seu sustento e proteção) por si mesmo, dependendo dos demais” seria excluído de votar. Assim, os serventes, as crianças e as mulheres ficam excluídas por não terem “personalidade civil e a sua existência é, digamos, só de inerência”. 

Em França, no Código Civil de Napoleão, as mulheres, juntamente com os menores, os delinquentes e os deficientes mentais, viram-se excluídos dos direitos jurídicos; as mulheres casadas estavam impedidas de vender, doar, hipotecar ou comprar propriedades, e até 1965 necessitavam de autorização expressa dos maridos para trabalharem.

Em Inglaterra, talvez devido ao papel que desempenharam durante a Primeira Guerra, começaram a poder votar a partir de 1918. Na Bélgica, França, Itália e Japão, só após a Segunda Guerra é que foi concedido o voto às mulheres. Na avançada Suíça, só a partir de 1971 é que as mulheres puderam participar nas eleições federais.

 

Mais: não se julgue que uma vez ‘conquistados’ esses direitos, eles viessem a permanecer para sempre. Exemplo claro foi o que aconteceu em Espanha em 1931 e 1932, quando se concedeu o voto às mulheres e se despenalizou o aborto. Em 1939, com a chegada de Franco ao poder, tudo isso acabou e apenas as mulheres que fossem casadas e mães de família podiam votar nos referendos. Só a partir de 1976 é que as espanholas voltaram a ter direito a exercer o voto em liberdade e o direito de acesso a cargos públicos.

 

Hoje em dia, com o regresso a um novo autoritarismo, parece que a ênfase do século XX na liberdade associada à proliferação dos movimentos sociais e revoluções, como o feminismo, os movimentos a favor dos direitos civis nos EUA, a Primavera de Praga, o Maio de 68 em Paris, se tem vindo a eclipsar.

 

 

Em julho de 2017, o engenheiro James Damore da Google americana, enviou um memorando, “A Câmara de Eco Ideológica da Google” (Google’s Ideological Echo Chamber), como resposta a um programa sobre diversidade que a empresa estava a implementar para ver se aproximava o desnível funcional e salarial existente entre os sexos.

Segundo o engenheiro, a Google deveria acabar com esse programa de diversidade, sugerindo que a desigualdade entre géneros na indústria tecnológica era em parte devido às diferenças biológicas existentes entre homens e mulheres, sendo, portanto, um problema do posicionamento da própria empresa que, com a sua conceção liberal de administração de pessoal criara.

Socorrendo-se de gráficos e tabelas, doutas opiniões de estudos científicos, James Damore demonstrava que a biologia estava por trás das razões da existência de tão poucas mulheres nas ciências tecnológicas. Razão tinha afinal aquele meu colega de liceu, respondendo á pergunta sobre quem era mais inteligente, se o homem ou a mulher, disse na ingenuidade dos seus quinze anos: “O homem, porque todos os grandes homens foram homens”.

 

O próprio Darwin escrevera em 1871 no Descent of Man:

 

“A principal distinção na potência intelectual entre os dois sexos é o homem poder alcançar uma mais alta eminência, seja no que se proponha, do que se fosse mulher”,

assumindo assim a inferioridade biológica da mulher, atribuindo a essa razão o pequeno número de mulheres cientistas, arquitetas e políticas, sem pensar que vivia numa sociedade que não permitia que as mulheres votassem, que as mulheres casadas pudessem ter propriedades ou que as mulheres fossem para as universidades.

 

Fácil de imaginar a celeuma e os artigos, contra e a favor, que apareceram na comunicação americana, esgrimindo argumentos e contra-argumentos, socorrendo-se da notoriedade (como a de Darwin) ou de artigos científicos publicados.

Contudo, nenhum abordou aquilo que parece ser o fundo do problema, que é o tipo de raciocínio falacioso de James Damore, que se entende melhor quando ele explicita as razões porque a Google tem falhado nas suas tentativas de diminuir a descriminação entre os sexos. Diz ele:

 

“[…]. Tem-nos sido dito pela gestão de topo que aquilo que temos feito é o que é o mais económica e moralmente correto, mas isto não passa de uma ideologia velada de esquerda que tem irreparavelmente prejudicado a Google.  

E, passa a explicar:

 

O comunismo prometeu ser simultaneamente superior moral e economicamente ao capitalismo, mas todas as suas tentativas deram em corrupção moral e falhanço económico. Quando se tornou claro que a classe trabalhadora das democracias liberais não iria “correr com os seus opressores capitalistas”, os intelectuais marxistas passaram da luta de classes para as políticas raciais e de género. A dinâmica opressor-oprimido manteve-se, só que agora o opressor é o “patriarcado branco, hétero e cisgénero.

(cisgénero: termo utilizado para se referir às pessoas cujo género é o mesmo que o designado no seu nascimento, por oposição a transgénero.)

 

Se aplicássemos este tipo de raciocínio como base para compreensão da existência e do desenvolvimento, certamente a possibilidade de progressão do capitalismo não teria passado do século XIV. Foram muitas, ao nível de centenas ou milhares, as tentativas que o capitalismo foi fazendo ao largo de vários séculos (a começar no século XIV com as revoltas da burguesia e o seu papel nas tomadas de poder, ou na contribuição monetária para as revoluções, como por exemplo aqui em Portugal aconteceu com o apoio concedido a D. João I), até que finalmente se conseguiu impor.

Ou seja, o falhanço do comunismo e do nazismo neste último século, não constitui razão suficiente para os considerar arredados da história, da mesma forma que os sucessivos e variados falhanços do capitalismo não foram razão suficiente para o considerar como desqualificado.

 

Este tipo de raciocínio baseia-se na consideração de que a sociedade é o que os dados do momento nos transmitem, extrapolando-os depois para o futuro. Sobre esses dados não se exerce qualquer mediação crítica do seu valor, na medida em que eles são aceites como parte do sistema que se impõe na altura.

É como se por exemplo cortássemos uma fatia da história onde verificássemos que as mulheres não trabalhavam fora de casa, só trabalhando em casa, aí desempenhando todas as funções domésticas, e onde existisse a escravatura de negros, pudéssemos concluir que, independentemente do que antes pudesse ter acontecido, essa era a realidade existente, e a partir dessa realidade elaborássemos para o futuro como se ela fosse a real.

É como se concluíssemos ao analisar o que se passou no campeonato de futebol de 2016-2017 em que o Benfica foi tetracampeão, que, mantendo-se as mesmas condições, passaria a ser o campeão no futuro.  Ou, ao analisarmos os casamentos pelo estado de satisfação e amor que existem em ambas as partes a quando da sua realização, daí concluir-se que no futuro permanecerão casados para sempre.

 

É um raciocínio falacioso que, ao extrapolar as suas conclusões para o futuro, poderá vir a ser perigoso, na medida em que para escamotear a sua falta de critica, vai pretender substitui-la (depreciando-a até) pelo enorme aumento de dados obtidos (dados que são os próprios que decidem que esses é que são os dados válidos), com o argumento de quanto mais dados se tiver mais correto será o sistema, o que irá fazer com que no limite não exista qualquer causalidade, qualquer tipo de raciocínio: só existem dados.

Tudo não serão mais do que conjuntos de dados, ‘coisas’ que aí estão prontas a serem controladas, conduzidas, inalteráveis a partir do momento em que são decididas por serem o que se diz serem, e introduzidas no sistema.

 

Trata-se de uma visão da história muito restrita que, virada para o futuro construído a partir dela, virá a alterar radical e nefastamente a humanidade, conduzindo-a a uma nova submissão nunca vista, uma nova escravatura, que pelo menos esperamos que seja divertida dados os meios de entretenimento de que virá a dispor e que nos porá à disposição. Como humanos docilmente refugiados e ignorantes de humanidade, estaremos por tudo.

 

Curiosamente, um mês depois, o engenheiro Damore foi despedido pela Google. Ele, que julgava que a Google era uma empresa com valores de esquerda, não entendeu nada: é que a Google é mesmo uma empresa defensora avançada dum sistema capitalista, mesmo que pareça defender outros valores. Só aparenta defender outros valores enquanto tal lhe for mais rentável. Acima de tudo não quer nada que lhe transtorne as vendas, que lhe crie problemas.  Tal como a maior parte dos americanos não percebeu que o O. J. Simpson foi absolvido não por ser negro, mas por ser rico: o sistema a funcionar para os seus!

Agora que a sentiu no pelo, espero que o engenheiro Damore interprete a frase predileta do seu mais alto representante “You’re fired!”, não como um ataque pessoal, mas como algo necessário para o progresso e evolução da sociedade.

 

 

Nota:

Este artigo é a revisitação com pequenas correções ortográficas do blog de 23 de agosto de 2017.

 

 

 

 

 

 

 

(504) O que é ser americano?

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A procriação seletiva e a restrição da imigração proveniente da Ásia e do sul da Europa como forma para purificar a população americana, Madison Grant.

 

Se a tendência atual não mudar, nós, brancos, estaremos todos condenados, Lothrop Stoddard, 1920.

 

 O Terceiro Reich usou o livro que Harry Laughlin escreveu em 1922, Eugenical Sterilization in the United States, que incluía um capítulo sobre as leis-tipo da esterilização a serem aplicadas, como modelo para a implementação das suas leis.

 

A América deve permanecer americana, presidente Calvin Coolidge quando sancionou a Lei da Imigração de 1924.

 

Tive um tio que estudou no MIT e é um excelente professor. O Dr. John Trump. Um génio. Está-me no sangue. Eu sou inteligente, Trump, 2020.

 

 

 

 

 

Em 1963, o cantor e ativista dos direitos civis americano Oscar Brown, escreveu, “The Snake” (A Cobra):

 

‘Eu salvei-te’, gritou aquela mulher.

'E até me mordeste, porquê'

 ‘Sabes que a tua picada é venenosa e agora vou morrer.’

 'Oh, cala-te, mulher tola', disse o réptil com um sorriso,

 ‘Sabias muito bem que eu era uma cobra antes de me acolheres.’

 

Ao arrepio da intenção de Brown, este poema tem vindo a ser repetidamente utilizado por Trump nos seus comícios, querendo com ele chamar a atenção para os perigos da imigração, na medida em que os imigrantes depois de serem bem acolhidos acabam por se voltarem contra os americanos.

 

 

Passam pouco mais de cento e cinquenta anos, desde que em 1860, o cientista britânico Francis Galton, primo de Charles Darwin, desenvolveu a teoria da eugenia (teoria de que algumas pessoas, e até mesmo algumas raças, são geneticamente superiores a outras), que de imediato ganhou grande aceitação nos EUA e na Grã-Bretanha.

Ela define a identidade racial, e especialmente a identidade branca, como sendo a mais desejável e digna.

Não é de assim estranhar que no início de 1900, grande parte dos estudos americanos sobre a eugenia menosprezasse os imigrantes vindos de qualquer outro lugar que não fosse da Escandinávia (“Nordicism”).

No final do século XIX e início do século XX, a imigração para os EUA atingia o seu auge. Em 1890, 14,8% das pessoas que viviam nos EUA eram imigrantes., o que levou a que muitas pessoas se preocupassem com isso. A solução parecia-lhes ser o eugenismo, defendido por dois dos mais famosos teóricos da época: Madison Grant (The Passing of the Great Race) e Lothrop Stoddard.

 

 Grant advogava a restrição da imigração proveniente da Ásia e do sul da Europa. Ao mesmo tempo que preconizava esforços para purificar a população americana através de procriação seletiva.

 Foi vice-presidente da Liga de Restrição de Imigração de 1922 até à sua morte em 1937. Atuando como especialista em dados raciais mundiais, Grant também forneceu estatísticas para a Lei de Imigração de 1924 para estabelecer quotas para imigrantes oriundos de certos países europeus. Ajudou também na aprovação e no processamento de várias leis anti miscigenação, nomeadamente a Lei de Integridade Racial de 1924 no estado da Virgínia, onde procurou codificar a sua versão particular da "regra de uma gota" em lei.

 

 

Stoddard atacou as políticas de imigração dos Estados Unidos no seu livro de 1920, “The Rising Tide of Color: The Threat Against White World-Supremacy”, onde escreveu:

 

Se a tendência atual não mudar, nós, brancos, estaremos todos condenados. (…) Sabemos agora que os homens não são nem nunca serão iguais. Sabemos agora que o ambiente e a educação só podem desenvolver aquilo que a hereditariedade traz.”

 

O The New York Times recomendou o livro:

 

"Lothrop Stoddard evoca um novo perigo, o de uma eventual submersão sob vastas vagas de homens amarelos, homens castanhos, homens negros e homens vermelhos, que os nórdicos têm dominado até agora […] com o bolchevismo a ameaçar-nos, por um lado, e a extinção da raça através da guerra, por outro, não é improvável que muitas pessoas deem uma consideração respeitosa [ao livro de Stoddard]."

 

Grant e Stoddard eram ambos assumidos supremacistas brancos que defendiam o racismo científico. Escreveram livros amplamente lidos que ajudaram a moldar a legislação americana e alemã nas décadas de 1920 e 1930. Hitler chegou mesmo a enviar uma missiva particular a Grant, considerando o livro como a (sua) “minha Bíblia”.

Juntamente com outros teóricos americanos abraçaram a eugenia como forma de justificar a segregação racial, restringir a imigração, impor a esterilização e defender outras desigualdades sistémicas.

 

Veja-se o caso de outro importante eugenista, Harry H. Laughlin, educador e superintendente do Eugenics Record Office, um grupo de investigação que reunia informações biológicas e sociais sobre a população americana.

Em 1922, Laughlin escreveu o influente livro, “Eugenical Sterilization in the United States”, que incluía um capítulo sobre as leis-tipo da esterilização a serem aplicadas. O Terceiro Reich usou o seu livro e as suas leis como modelo ao implementá-los na Alemanha durante o auge do período nazi.

Laughlin também foi chamado a testemunhar regularmente perante o Congresso dos EUA. O seu testemunho de 1922 é representativo da mensagem que enviava aos legisladores:

 

 “A imigração é essencial e fundamentalmente um problema racial e biológico. Há muitos fatores a considerar, mas, do ponto de vista do futuro, a imigração é principalmente um investimento nacional de longa data nas reservas familiares humanas.”

 

Os eugenistas, há muito que se preocupavam especificamente com a genética norueguesa – acreditando que a América ficava sob ataque quando a imigração ocorria a partir de países não nórdicos.

É de Laughlin esta declaração de novembro de 1922: “Alguns dos nossos melhores e mais desejáveis ​​imigrantes são da Noruega”.

Em 1924, o Congresso aprovou a Lei da Imigração (Immigration Act), que limitou severamente a imigração para os EUA, estabeleceu quotas para imigrantes com base na nacionalidade e proibiu os imigrantes da Ásia.

Foi o presidente Calvin Coolidge que sancionou essa fortemente restritiva Lei da Imigração de 1924, declarando: “A América deve permanecer americana”.

Recorde-se que foi Calvin Coolidge que concorreu às eleições com a plataforma America First” em 1924, slogan que caiu em desuso depois de grupos como o Ku Klux Klan o terem adotado na mesma altura.

A ideia de America First, na altura, expressava o nacionalismo e o excecionalismo americanos – mas estava também ligada a movimentos anti-imigração e fascistas.

 

 

Portanto, estes receios de que os imigrantes estrangeiros enfraquecessem os EUA e o da ‘América para os americanos’ eram já populares há um século e Trump e muitos dos seus seguidores não fazem mais do que os seguir:

 

Trump prometeu realizar deportações em massa de imigrantes que vivem ilegalmente nos EUA, detendo à força imigrantes em campos e removendo 1 milhão de pessoas por ano.

Em abril de 2024, Trump usou uma linguagem desumanizante para expressar a sua aparente crença de que os imigrantes não são dignos de empatia:

 

 “Os democratas dizem: ‘Por favor, não lhes chamem animais. São humanos.’ Eu disse: ‘Não, não são humanos, não são humanos, são animais.’”

 

Promoveu também a obsessão dos eugenistas pela Escandinávia e pela superioridade dos brancos.

Em 2018, falando sobre os imigrantes do Haiti, El Salvador e África, disse: “Porque é que todas estas pessoas de países de merda vêm para cá?

Na mesma reunião, Trump terá também sugerido que os EUA deveriam, em vez disso, atrair mais pessoas de países como a Noruega.

Em abril de 2024, Trump voltou a abraçar esta ideia de superioridade escandinava, dizendo querer imigrantes de “bons países. Sabe, como a Dinamarca, a Suíça? Temos alguém a vir da Dinamarca? Que tal a Suíça? Que tal a Noruega?

No início de outubro de 2024, Trump vai mais longe nos seus comentários quando questionou os genes defeituosos dos imigrantes, dizendo que “muitos deles assassinaram muito mais do que uma pessoa e agora vivem felizes nos Estados Unidos. Sabe, agora um assassino, acredito nisso, está nos seus genes. E temos muitos genes maus no nosso país agora.”

Não foi a primeira vez que Trump invocou a eugenia. Em 1988, por exemplo, Trump disse a Oprah Winfrey durante uma entrevista: “É preciso nascer com sorte no sentido em que é preciso ter os genes certos”.

 

Em 2016, Trump disse que as suas raízes alemãs são a razão da sua grandeza:

 

Sempre disse que ganhar é algo, talvez, inato. Talvez seja apenas algo que tem; tem o gene vencedor. Francamente, seria maravilhoso se o pudesse desenvolver, mas não tenho a certeza se o conseguirá. Sabe, tenho orgulho em ter este sangue alemão, não há dúvida sobre isso. Ótima coisa.”

 

E em 2020, Trump voltou a aludir à sua crença de que as linhagens transmitem excelência:

 

Tive um tio que estudou no MIT e é um excelente professor. O Dr. John Trump. Um génio. Está-me no sangue. Eu sou inteligente.”

 

Os repetidos e inúmeros comentários de Trump sobre a superioridade racial dos brancos em relação às pessoas de cor suscitaram algumas comparações com os nazis e a sua ideologia de superioridade racial.

Os nazis são, de facto, os maiores crentes da ideia de que as pessoas brancas, de olhos azuis e de cabelo loiro eram superiores às outras – e que a população humana deveria ser seletivamente gerida para originar pessoas brancas.

 

Mas não foram os nazis que originaram estas ideias. Na verdade, os nazis ficaram tão impressionados com muitas das ideias eugénicas americanas que as incorporaram nas suas leis racistas e antissemitas.

Parece, pois, que não adianta definir Trump como fascista ou nazi. O que está em causa é a definição do que é ser americano. E europeu. E …

 

 

 

 

 

 

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