A noção de que foram as armas nucleares através da dissuasão que impediram a guerra nuclear é uma correlação vazia sobre um absurdo.
A crença na dissuasão nuclear não é mais do que a crença de que é bom ameaçar aniquilar toda a vida.
Brandir a ameaça de aniquilação mútua na expectativa de que esta manterá um país seguro é o exemplo máximo de uma postura que põe em perigo tanto os ameaçadores como os ameaçados, David Barash.
Um dos livros recomendáveis para se tentar perceber este mundo em que vivemos é o de David P. Barash, Threats: Intimidation and Its Discontents, onde ele estuda as várias situações em que as pessoas se ameaçam entre si ou se sentem ameaçadas pela sociedade, conduzindo muitas vezes a respostas que acabam por ameaçar a estabilidade social.
A dinâmica de ameaça e resposta permite compreender dilemas humanos como: o medo da morte e como ele tem sido manipulado por muitas religiões organizadas; o medo de estranhos e supostos inimigos, que deu origem a uma cultura americana de armas que, por sua vez, ameaça aqueles que procuram evitar tais ameaças; os medos primários do “outro”, que promoveram o populismo nacionalista de direita, que tem piorado as coisas não só para a própria democracia como para aqueles que se sentem ameaçados em primeiro lugar; e como a pena capital, que destinada a conter a ameaça de criminosos assassinos, agravou este problema.
Mas ainda mais importante e preocupante é verificarmos a forma como os países transmitem a derradeira ameaça uns contra os outros: pela dissuasão. Brandir a ameaça de aniquilação mútua na expectativa de que esta manterá um país seguro é o exemplo máximo de uma postura que põe em perigo tanto os ameaçadores como os ameaçados.
Na década de 1920, o governo dos EUA mandou envenenar propositadamente o álcool como forma para que deixasse de ser consumido. O princípio era que ninguém arriscaria a morte por uma bebida. Contudo, estima-se que em resultado dessa operação morreram 10.000 pessoas.
Na década de 1970, os mesmos argumentos foram utilizados para tentarem envenenar a marijuana e, como temos verificado, a dissuasão fracassou em grande parte.
Os mesmos argumentos são ainda utilizados pelos Estados que têm pena de morte, alegando que tal é um elemento dissuasor, e isto apesar de existirem provas de que a pena capital não é um elemento dissuasor eficaz. Pode dissuadir alguém de cometer algum crime, mas não dissuade a maioria das pessoas.
Têm-nos vindo também a vender a noção de que foram as armas nucleares através da dissuasão que impediram a guerra nuclear. Tal é uma correlação vazia sobre um absurdo. O absurdo é a ideia de se necessitar de armas nucleares para evitar a guerra nuclear, porquanto ela poderia muito bem ser evitada através da abolição das armas nucleares. A correlação vazia é a ideia de que, porque ainda não tivemos um apocalipse nuclear, a dissuasão nuclear funcionou. Isto não constitui uma prova causal, mas apenas uma correlação vazia com muitas provas contra ela.
Por exemplo, é perfeitamente aceite que as armas nucleares não dissuadem ataques não nucleares, nem de terroristas, nem de nações não nucleares, nem de nações nucleares. Num estudo de 348 disputas territoriais citado por Barash, as nações com armas nucleares tiveram menos, e não mais, sucesso do que as nações sem armas nucleares, e não tiveram mais sucesso do que antes de obterem armas nucleares. É um salto no escuro concluir que as armas nucleares, que não conseguem dissuadir todos os outros tipos de ataques, conseguiram dissuadir os ataques nucleares. A posse de armas nucleares pelas nações não as torna mais propensas a ganhar guerras.
Contra os terroristas que não possuem uma nação territorial, a ameaça não tem qualquer sentido e não pode sequer ser tentada. Mas contra as nações, a ameaça é difícil de tentar porque exige exemplos, demonstrações. É por isso que lemos artigos nos jornais a sugerir que o uso de uma “pequena” arma nuclear ensinaria a todos o que são. Mas se o propósito de usar uma arma nuclear fosse impedir que alguém usasse mais armas nucleares, e se se pudesse viver com a ignomínia de se ter usado aquela, e se – ao contrário das previsões de todos – usar uma não resultasse em ter de usar muitas mais, alguém mesmo assim acreditaria na ameaça de as poder vir a usar todas ou de usar mais?
O que é perfeitamente credível, depois de ler todos os quase acidentes, nos livros de Barash e de muitos outros, é que temos tido uma sorte incrível. É improvável que essa sorte se mantenha por muito tempo. Muitos dos quase acidentes envolveram salvadores individuais. Mas o que acontece quando a pessoa colocada na posição de evitar uma guerra nuclear não for sábia ou heroica, como a maioria das pessoas não o é? Mas mais, como não há nenhuma empresa que possa ser considerada como livre de ter desastres, porque é que a utilização das armas nucleares deveria ser considerada como caso único?
Nunca se poderá contar com que todos desobedecessem a ordens ilegais. Aliás, sempre se tem verificado que obedecer a ordens ilegais é uma prática corrente nas forças armadas. E para acrescentar mais um elemento de intranquilidade, o Supremo Tribunal dos EUA acabou agora por declarar legais todas as ordens presidenciais.
Exemplo esclarecedor (que não tranquilizador) foi o recente debate presidencial Trump-Biden onde vimos dois anciãos mentalmente instáveis a discutirem sobre quem faria melhor a Europa pagar pelo Armagedão e quem teria um melhor jogo de golfe.
A fantasia de abater mísseis com mísseis como proteção contra a guerra nuclear alimentou a corrida aos armamentos, criou armas que um dos lados pode chamar de defensivas e o outro de ofensivas, ameaçou o perigo de um ataque por parte de qualquer nação que se convença de que está protegida contra retaliações e que falhou dramaticamente em fornecer algo mais do que a possibilidade de proteção parcial, o que significa nenhuma proteção quando se estiver a falar de bombas nucleares.
Curiosamente, Barash inclui no seu livro um levantamento dos dados sobre como as pessoas que sofrem, incluindo as que sofrem a violência da guerra, e incluindo as que sofrem a incerteza da segurança, tendem a acreditar mais na religião. A crença no céu ou no inferno pode resultar de um trauma, mas não tende a alimentar diretamente o trauma. A crença na dissuasão nuclear, por outro lado, não é mais do que a crença de que é bom ameaçar aniquilar toda a vida. Este pensamento cria o medo e o horror que podem tornar alguém mais suscetível a acreditar na dissuasão nuclear. Acreditar em anjos é muito mais inofensivo e causa muito menos danos.
A partir do Dia 1 acabarei com o mandato sobre os veículos elétricos, Donald Trump.
Os milagres são permitidos por Deus e realizados pela fé, não por encantamentos e feitiços, Agostinho.
A cada passo e movimento, a cada entrada e saída, ao vestir, ao calçar os sapatos, ao tomar banho, à mesa, ao acender velas, ao deitar ou sentar, façamos o que fizermos, marcamos a testa com o sinal [da cruz], Tertuliano.
No recente discurso de aceitação de Donald Trump na Convenção Nacional Republicana, ouvimo-lo dizer que “a partir do Dia 1 acabarei com o mandato sobre os veículos elétricos (VE)”, porquanto assim os triliões de dólares alocados para “os esquemas sem sentido da Economia verde”, passariam antes a serem gastos com a infraestrutura do país.
Trump estava a referir-se ao “mandato” da administração Biden que fixava como meta a atingir em 2032 que os veículos elétricos constituíssem 56% do mercado. Acabar com essa imposição seria a “salvação da indústria auto do EUA […] salvando também aos clientes americanos milhares e milhares de dólares por carro”.
Curiosamente esta promessa contra os VE foi feita apenas poucos dias depois do CEO da Tesla, Elon Musk, ter oferecido a quantia mensal de 45 milhões de dólares à campanha para a eleição de Trump.
Pelo que mais à frente, ainda nesse seu discurso, Trump não se coibiu de dizer:
“And by the way, I’m all for electric. They have their application. But if somebody wants to buy a gas-powered car, gasoline-powered car, or a hybrid, they’re going to be able to do it. And we’re going to make that change on Day 1.”
Conciliar as estruturas que nos pré-existem com as nossas próprias estruturas que existem, tem sido e continua a ser uma tarefa árdua, quer ao nível pessoal quer ao nível das instituições que criámos e que também nos vão criando.
“Porque é que o paganismo está em crescendo na Escócia?” é o título de um recente artigo da BBC (11 de julho de 2024) onde se pode ler que “o paganismo é hoje a quarta maior religião da Escócia, de acordo com o mais recente censo escocês. Há 19.113 pagãos registados, mais do que o número de adoradores do judaísmo, do sikhismo e do budismo.
A quantidade de pagãos quase quadruplicou desde o último censo em 2011, enquanto outras religiões registaram uma queda ou um aumento modesto no número de seguidores. Embora não tenha uma doutrina ou visão singular, os académicos definem o Paganismo como um termo genérico para um conjunto de religiões e tradições espirituais que partilham a reverência pela natureza, a crença numa pluralidade de deuses e a crença na magia.”
Observação: Conciliar as estruturas que nos pré-existem com as nossas próprias estruturas que existem, tem sido e continua a ser uma tarefa árdua, quer ao nível pessoal quer ao nível das instituições que criámos e que também nos vão criando.
Breves notas soltas sobre a luta do Cristianismo para se impor
A luta do Cristianismo para se impor como única religião legítima no então mundo romano foi extremamente difícil e levou muito tempo. A Igreja teve de enfrentar um sistema cultural antigo perfeitamente estabelecido, com provas dadas e aceites, em que a magia e os demónios faziam parte integrante.
Os Demónios
Comecemos pelos demónios que, quer para as ideologias pagãs quer para as cristãs, desempenhavam papéis proeminentes. Para os pagãos, os demónios podiam ser bons e maus, assemelhando-se a divindades no sentido em que partilhavam da imortalidade, embora também estivessem sujeitos a desejos pouco agradáveis e irracionais.
Os demónios encontravam-se hierarquicamente posicionados entre os humanos e os deuses, podendo atuar como anjos da guarda. Tinham corpo, feito de um material muito mais leve e superior ao da forma humana; podiam mover-se mais depressa que os mortais, ler pensamentos e entrar e sair de espaços impossíveis de serem ocupados pelo corpo humano.
Eis como em meados do século II o pensamento cristão explicava o aparecimento e papel dos demónios (Justino Mártir): Os filhos de Deus sucumbiram às relações sexuais com mulheres humanas e geraram filhos, os chamados Nefilim (gigantes); a descendência dos Nefilins eram os demónios. Estes demónios escravizaram a raça humana, semeando guerras, adultérios, licenciosidade e todo o tipo de maldade. Segundo Justino, todos os deuses pagãos não passavam de demónios que assombram a terra.
Agostinho vai propor uma genealogia diferente: demónios, tal como os anjos rebeldes, são os que lutaram ao lado de Lúcifer (também conhecido como Belial, Belzebu, o Diabo, Satanás e a ‘Estrela da Manhã’) e que sofreram o mesmo destino, o de serem expulsos do Céu depois da sua rebelião falhada.
Para a Igreja, todos os demónios eram malévolos. Os cristãos viam os demónios como metamorfos (transformações, metamorfoses) que “penetram no corpo das pessoas e atacam secretamente as suas entranhas, destruindo a sua saúde, provocando doenças, assustando as suas inteligências com sonhos, perturbando as suas mentes com a loucura.” (Lactâncio, séc. IV)
Até à Alta Idade Média (c1050-1200), Satanás ou “o Diabo”, era apenas mais um demónio, embora particularmente desagradável.
Milagres e magia
É Agostinho quem vai particularmente clarificar a relação/separação entre o ser humano e os demónios, começando pela identificação/caraterização de milagre e magia.
Segundo ele, os milagres são permitidos por Deus e realizados pela fé, não por encantamentos e feitiços. Maravilhas que não são realizadas para a honra de Deus, são feitiçaria ilícita realizada através de truques enganosos de demónios malignos. A magia apareceu quando os humanos traficavam com demónios para realizar atos específicos, como adivinhação, lançar feitiços, magia do amor, criar tempestades e astrologia.
Os demónios festejavam com o fumo, o incenso e o odor de sangue dos sacrifícios de animais que subia para as nuvens. Ansiavam por sangue, por isso, para os atrair, as pessoas misturavam sangue coagulado com água ou ofereciam sacrifícios queimados. Esta troca criou um contrato pelo qual os humanos podiam recrutar demónios para cumprirem as suas ordens.
Banquetear-se com carne sacrificial em cerimónias de culto não era a única forma de atrair demónios. Qualquer atividade ritual que se assemelhasse à adoração pagã, como honrar ídolos, lançar feitiços ou adorar ao ar livre – independentemente da intenção – era mágica. O clero cristão tinha, portanto, de estar sempre vigilante para que as pessoas sob os seus cuidados não interagissem inadvertidamente com os demónios.
Cristãos como charlatães
Para além desta vigilância permanente para com os demónios e a magia, os primeiros cristãos tiveram ainda de enfrentar as acusações contra Jesus e os seus apóstolos: os pagãos acusavam os cristãos de não passarem de charlatães que se aproveitavam da disposição supersticiosa dos ignorantes e por fazerem passar truques por milagres. O filósofo pagão do século II, Celso, referiu-se aos milagres cristãos como palhaçadas de “truques”, menos impressionantes do que as acrobacias dos malabaristas que se exibiam no mercado.
Igrejas e santuários
A diferenciação progressiva que foi aparecendo entre o cristianismo e o paganismo, começa a aparecer melhor refletida pela importância que o cristianismo vai atribuir ao lugar e à forma de expressar o seu ritual.
Os pagãos procuravam significado no mundo natural. A identidade cristã, por outro lado, manifestou-se em estruturas consagradas feitas pelo homem, como igrejas e santuários.
O novo local de culto tinha de ser aquele onde os demónios não se sentissem bem-vindos. Quando os cristãos estabeleciam locais consagrados (locais de ritual), competiam frequentemente com locais sagrados pagãos que abundavam no mundo da natureza – locais perto de lagos, debaixo de árvores, em rochas sagradas e em florestas. Embora as religiões do Próximo Oriente e do Mediterrâneo estivessem orientadas para o templo, com um conceito sofisticado de cerimonial fechado, a pessoa comum, por norma, não entrava no domínio sagrado, e a atividade religiosa ritualística mais popular tinha lugar nos campos ou fora do recinto do templo – em suma, ao ar livre.
Os cristãos criaram um novo tipo de espaço onde os demónios não ousavam pisar e no qual se frustrava a continuidade dos antigos ritos e da visão do mundo que armazenavam. O edifício tornou-se um símbolo da nova religião. Era mais do que apenas um local diferente daqueles frequentados pelos celebrantes pagãos e habitados pelas suas divindades demoníacas. Era um novo conceito de lugar específico do Cristianismo – limpo de demónios, consagrado àquele deus criador especial que não é inerente à sua criação (árvores, rochas, fontes) e não deveria ser adorado através dela.
Nada mais enchia os demónios de pavor e os mantinha afastados do que uma igreja santificada. O motivo dos demónios fugirem aterrorizados de um bispo consagrador era já familiar no final da antiguidade, quando a luta contra a idolatria era uma questão de confrontar abertamente os cultos pagãos. No século III, as estruturas cristãs eram já fortificações contra os demónios.
Também as abordagens cristãs e pagãs da morte divergiam radicalmente relativamente aos santuários dos mortos que se encontravam nos cemitérios fora das muralhas da cidade. Para os pagãos, o túmulo era um espaço temido, poluído e assombrado, do qual os vivos recuavam. Os primeiros cristãos criaram um novo tipo de lugar sagrado onde os mortos e os vivos se misturavam, e estes santuários estavam protegidos da infiltração dos insidiosos poderes demoníacos que giravam em torno dos túmulos, porque estavam protegidos pela supervisão da Igreja.
Relações com a morte
Já na abordagem das relações com a morte (a necromancia e a revivificação), apesar das diferenças radicais das noções pagãs e cristãs de mortalidade, existiam, contudo, semelhanças.
A necromancia no mundo antigo referia-se à prática de chamar os mortos de volta à vida com o propósito de aprender o futuro. As obras pagãs, embora retratem o contacto com os mortos como macabro e repugnante, concordam que se abordado com cautela e realizado para fins desejáveis, poderia ser justificado.
Por exemplo, no seu romance O Asno de Ouro, o filósofo pagão do século II, Apuleio, relata a história do cadáver de Thelyphron, a quem o profeta egípcio Zatchlas revive temporariamente para que o defunto possa resolver um mistério relacionado com a sua morte súbita. Thelyphron tinha casado recentemente, mas morrera pouco depois. À medida que o seu cortejo fúnebre passava pelas ruas da cidade, corre o rumor que a sua mulher o matara através do uso de veneno e das “artes malignas”.
Ela protesta, e a multidão resolve a questão pedindo a Zatchlas que retire o espírito do túmulo por um breve período e reanime o corpo tal como estava antes da sua morte. Zatchlas concorda. Inicia a ressurreição colocando uma erva na boca e no peito do cadáver. Depois o sacerdote vira-se para Oriente e reza silenciosamente ao Sol, pedindo que seja concedido ao cadáver um adiamento momentâneo. O morto, irritado, ganha vida e queixa-se que já estava a ser transportado pelo rio Estige; pergunta porque fora arrastado de volta para o meio dos vivos e implora para ser deixado a descansar. A sombra confirma então que a sua mulher o assassinara.
Neste caso, o motivo da interação com os mortos era considerado digno e realizado com um rito simples, cuidadoso, e com uma oração silenciosa.
Era por cuidados como estes cuidados, que os pagãos consideravam as práticas cristãs quase como canibais. Segundo eles, os cristãos pareciam saborear os mortos. Frequentavam os cemitérios, celebravam os dias de morte, apresentavam os mártires como modelos (valorizando partes dos seus corpos) e divulgavam histórias de Jesus como figura heroica porque podia tirar os falecidos da sepultura. Esta busca de intimidade com os mortos repelia os pagãos. Suspeitavam que os iniciados na nova religião se dedicavam a comer carne humana quando, durante o ritual eucarístico, consumiam o corpo e o sangue de Jesus morto.
Muitas pessoas no final da antiguidade viam Jesus e os seus seguidores como necromantes. Esta perceção gerou negações persistentes por parte de algumas das melhores mentes da era patrística.
De certa forma, os pagãos tinham razão. Os cristãos abordavam os falecidos de forma diferente dos seus vizinhos politeístas.
Enquanto a maioria dos cultos pagãos temia, evitava e queimava os mortos, os cristãos formavam relações ternas e mutuamente benéficas com os espíritos (e, em alguns casos, os restos materiais) daqueles que deixaram de existir num plano mortal. Em vez de ostracizarem os mortos para além dos limites da cidade, no século II, os cristãos procuraram os restos mortais dos seus entes queridos.
A ideia de que os mortos poderiam voltar a viver era um princípio central da crença cristã. Após a sua ressurreição, Jesus garantiu à humanidade que poderiam ter vida eterna. No Evangelho de Mateus, Jesus confere aos discípulos o poder de imitar os seus milagres, incluindo ressuscitar os mortos. No Evangelho de João, Jesus revivifica Lázaro que estava ausente há quatro dias:
[Ele] gritou em alta voz: ‘Lázaro, sai.’ O morto saiu, com as mãos e os pés amarrados com faixas de pano e o rosto envolto num pano. Jesus disse-lhes: ‘Desamarrai-o; deixe-o ir.'
Para os cristãos, a ressurreição que Jesus empreendeu foi carinhosa e altruísta.
Apesar do mesmo se poder dizer do ritual realizado por Zatchlas, no entanto pode-se fazer uma distinção entre a revivificação de Jesus e a do sacerdote pagão. Zatchlas trouxe o morto à vida com o propósito de prever o futuro, e o motivo era justo, mas, segundo o cálculo cristão, o ato era demoníaco, porque o sacerdote procurava informação para além do alcance humano. Por outro lado, o favor de Jesus a Lázaro, foi um milagre feito pelo Senhor – Jesus não esperava nada em troca.
A magia é antípoda ao milagre por causa da fonte de poder que conduz cada um dos atos. No entanto, as distinções entre ressurreição milagrosa e revivificação necromântica não eram claras.
Os milagres constituíam uma componente vital da reivindicação de autenticidade do Cristianismo, e o facto de muitos homens santos pagãos alegarem trazer pessoas de volta da sepultura alimentou a rivalidade entre a fé incipiente e os cultos pagãos dominantes. Os relatos de revivificação não-cristã atormentavam os religiosos cristãos.
No início do século IV, um governador provincial chamado Hiérocles, procurando difamar Jesus e o movimento cristão, escreveu um tratado sobre Apolónio de Tiana, um mago pitagórico que viveu no século I e tinha a reputação de ter poderes milagrosos para curar os doentes, predizer o futuro e ressuscitar os mortos. Hiérocles comparou Apolónio e Jesus, com desvantagem para Jesus. Classificou os milagres de Jesus como conjurações e exibições baratas – do tipo que qualquer mágico de rua poderia realizar.
No seu tratado, Hiérocles descreve uma ressurreição de Apolónio que se assemelha muito ao milagre de Jesus. Numa ocasião, Apolónio faz renascer uma donzela que estava a ser levada para o túmulo, simplesmente tocando-a e pronunciando algumas palavras, muito à semelhança da forma como Jesus ressuscitou Lázaro.
Nem os atos de Apolónio nem os de Jesus exigiam ritos grandiosos ou substâncias rituais como saliva, sangue ou cabelo. Judeus e pagãos representavam Jesus rotineiramente como um mágico, e os não-cristãos comparavam vulgarmente as maravilhas de Apolónio com as de Jesus. Ainda no século IV, Agostinho aludiu ao facto de alguns elogiarem os milagres de Apolónio juntamente com os de Cristo. O problema na comparação foi que os cristãos consideravam os poderes de Apolónio demoníacos e os de Jesus milagrosos.
Os autores cristãos trabalharam incansavelmente para defender Jesus especificamente e os cristãos em geral contra as acusações de maleficium (magia maligna). Ao longo da Alta Idade Média (c500-1000), os escritores cristãos insistiam que o poder dos seus homens e mulheres santos não se baseava em demónios que se escondiam entre a Lua e a Terra, nem em ritos elaborados, mas na fé, em simples rituais cristãos, e, em última análise, apenas em Deus. Rituais elaborados eram equiparados ao demonismo.
Num texto cristão primitivo chamado ClementineRecognitions, os apóstolos encontram-se repetidamente em situações em que são forçados a defender Jesus e a si próprios contra acusações de magia. De acordo com uma história do texto, Tiago envia Pedro a Cesareia para refutar Simão, o Mago, que afirma ser Jesus Cristo.
Uma das personagens, Niceta, questiona como seria possível distinguir entre os milagres de Jesus e as reivindicações de divindade apresentadas nos Evangelhos daquelas que Simão, o Mago e os falsos profetas, geralmente oferecem.
A resposta à pergunta de Niceta vai ser encontrada em Mateus e Lucas: o nascimento virginal demonstra a autoridade preeminente e singular de Jesus sobre os outros pregadores e curandeiros itinerantes.
De acordo com a interpretação patrística destas duas passagens evangélicas, a virgindade de Maria foi o sinal crítico de que Jesus não era apenas mais um profeta, mas o Cristo chamado Emanuel. O facto de Jesus ter nascido de uma virgem, cumprindo assim a profecia do Antigo Testamento, foi a demonstração mais evidente da sua divindade.
Os cristãos promoveram este argumento, pelo menos em parte, porque o mundo antigo estava cheio de homens santos, profetas e mágicos que podiam realizar maravilhas, incluindo ressuscitar pessoas da sepultura. O cumprimento de uma antiga profecia que envolvia o nascimento virginal separou a religião da feitiçaria comum.
Quanto à questão da revivificação, os cristãos encontraram-se muito manietados. E isto porque os primeiros teólogos cristãos estavam em harmonia com os pagãos sobre os males de usar (ou tentar usar) o falecido, quer para adivinhação, quer para explorar o poder do estado liminar da morte para fins nefastos.
Lidar com cadáveres reanimados envolvia o pior tipo de tráfico com demónios. No entanto, Jesus e os seus seguidores mais próximos ressuscitaram os falecidos, e todos os cristãos honraram os espíritos e os restos mortais dos santos que partiram e promoveram relações amigáveis com estes mortos especiais. Por fim, através de sermões no púlpito e de ensinamentos privados no confessionário, os intelectuais cristãos conseguiram convencer os convertidos de que a ressurreição cristã era diferente da necromancia.
O ritual da cruz
Ao mesmo tempo que o clero expressava ambivalência em relação aos ritos devido à sua associação com o paganismo, a Igreja estava a desenvolver o seu próprio vocabulário de ritos piedosos que todos os cristãos poderiam empregar para substituir os costumes pagãos que comungavam com o demoníaco. Traçar o sinal da cruz, o batismo e o exorcismo tinham a virtude específica de manter os demónios afastados.
Um dos símbolos mais fáceis de manipular era a assinatura ritual da cruz. De acordo com o preconceito geral da Igreja primitiva contra os ritos elaborados, assinar com a cruz era simples e empregado casualmente. A cruz como sinal ou símbolo era uma referência à ressurreição de Cristo e à salvação da humanidade, e não deixava espaço para a infiltração demoníaca como outros sinais poderiam fazer.
Muito pelo contrário; o ato de assinar com a cruz tinha como objetivo afastar os demónios, e desde muito cedo os cristãos foram instados a afastar o mal e a garantir a proteção das pessoas e dos bens assinando com o símbolo da cruz, em vez de empregar outros procedimentos supersticiosos., Tertuliano, do século III escreve:
“A cada passo e movimento, a cada entrada e saída, ao vestir, ao calçar os sapatos, ao tomar banho, à mesa, ao acender velas, ao deitar ou sentar, façamos o que fizermos, marcamos a testa com o sinal [da cruz].”
Nas suas palestras para a Quaresma, o Bispo Cirilo de Jerusalém, do século IV, diz que a cruz é “um terror para os demónios… Pois quando veem a Cruz, lembram-se do Crucificado; temem Aquele que “esmagou as cabeças dos dragões”.
O ritual do batismo
O rito iniciático básico do Cristianismo era o batismo, que funcionava como contraponto à infiltração demoníaca e era rico em rituais evocativos e introspetivos. Uma componente central do “voltar a nascer” inerente ao batismo foi a renúncia aos demónios. Os demónios residiam na água e frequentavam os locais aquáticos, pelo que o poder purificador da fonte desafiava os demónios. O sacramento batismal incorporou um exorcismo, uma renúncia explícita a Satanás e uma ordem para que “todos os demónios malignos partam”.
O repúdio equivalia ao abandono do ritual errado; o catecúmeno deveria dizer: ‘Eu renuncio a ti, Satanás, e a todos os teus serviços [exibições ou rituais] e a todas as tuas obras.’
Em vez de recorrerem ao poder demoníaco, estes usos cristãos combatiam-no. Eram paliativos e um contraponto aos ritos pagãos cheios de magia, enquanto as cerimónias exorbitantes e as maquinações complicadas com objetos vistosos (todos ausentes do batismo) eram ofensivas para o sentido dos primeiros cristãos da abordagem adequada a Deus.
O discurso da cura
Os primeiros escritos cristãos usam o discurso da cura para descrever os benefícios da nova religião e classificam Jesus ou a Igreja como “médico”. Em alguns contextos, esta caracterização era metafórica, mas também muitas vezes literal. A oração, a penitência, a súplica aos santos e a vida piedosa eram consideradas genuinamente curativas. Agostinho escreveu:
“Tal como os medicamentos físicos, aplicados pelos humanos a outros humanos, só beneficiam aqueles em quem a restauração da saúde é efetuada por Deus, que pode curar mesmo sem eles.”
Afirmou que tanto a mente como o corpo podem ser melhor “purificados” por Cristo, que é melhor médico do que os médicos ou os feiticeiros. O próprio nome de Jesus, quando pronunciado, venceu demónios e garantiu a cura.
Em latim, a palavra “saúde” (salus) também pode significar salvação e, uma vez que a saúde do corpo e da alma estavam interligadas, o bem-estar espiritual e físico continuou a ser expresso na linguagem da cura. Pensava-se que o clero e os santos administravam os remédios mais eficazes sob a forma de orações, bênçãos e curas milagrosas. Os médicos seculares eram uma segunda escolha adequada, mas a magia nunca foi uma opção aceitável para a cura.
Receber curas corporais através da magia colocava a alma em perigo e era, em última análise, autodestrutivo, mesmo que funcionasse a curto prazo. A Igreja primitiva era particularmente sensível à ligação fácil pagã com a medicina porque os pastores achavam que era fundamental que os seus rebanhos compreendessem que, embora outros deuses (demónios) pudessem curar o corpo, somente Cristo, trabalhando através dos seus vigários designados, poderia fazer com que toda a pessoa fosse saudável – corpo e alma – e perpetuar esse bem-estar no outro mundo.
No campo da terapêutica, a luta cristã contra as superstições mágicas durou muito tempo. Não foi fácil para a nova religião suprimir remédios antigos que eram geralmente aplicados em ambientes íntimos e quase privados: o lar e o mosteiro. A sensação consagrada pelas curas pagãs tradicionais e os textos que as transmitiram acrescentaram legitimidade aos ritos que mantiveram as pessoas seguras durante gerações.
A procurada apropriação da saúde pela Igreja provocou uma rivalidade com os cultos pagãos, porque algumas das divindades foram sempre curadoras. A mais famosa das divindades curativas foi o deus grego Asclépio. De todos os cultos de cura, a sua seita representava um desafio particularmente competitivo para os cristãos na feroz rivalidade pela cura. Justino Mártir afirmou que os demónios introduziram o “mito” de Asclépio para desafiar a capacidade de Jesus como curador. Justino afirmou que o Diabo temia tanto a popularidade de Jesus que o “Maligno” criou Asclépio para imitar os evangelhos e enganar os homens quanto à sua salvação.
Observação:
Conciliar as estruturas que nos pré-existem com as nossas próprias estruturas que existem, tem sido e continua a ser uma tarefa árdua, quer ao nível pessoal quer ao nível das instituições que criámos e que também nos vão criando.
A existência só tem significado quando por “nós” for apercebida.
A maneira inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro de opiniões aceitáveis, mas permitir um debate muito vivo dentro desse espectro limitado, Noam Chomsky.
Porque é que a Índia compra agora várias vezes mais petróleo e outros bens à Rússia do que comprava antes da guerra na Ucrânia?
Todos os países têm o dever de respeitar os direitos humanos, independentemente da raça, género, língua ou religião, Carta da ONU.
Há muito que se diz que o povo acredita que a avestruz, quando perante um inimigo, esconde a cabeça na areia, porque assim, ao deixar de ver o inimigo é como se ele tivesse desaparecido. Em sentido idêntico usamos a expressão do “gato escondido com o rabo de fora”, em que ele por não nos ver julga que está escondido deixando, contudo, o rabo de fora à vista.
Mais elaboradamente, filosofámos sobre a questão que é o “existir”, que é o verdadeiro problema. E tanto fomos pensando que acabámos por distinguir entre existência e significado, chegando à conclusão que a existência só tem significado quando por “nós” for apercebida. Exemplo clássico é o do planeta Plutão, que só em 1930 foi descoberto: até essa data, ele existia, mas como ninguém tinha disso conhecimento, era como se não existisse.
Esta aprendizagem foi rapidamente transportada para a “nossa” vida prática, dando lugar a estudos que confirmaram que a repetição de um motivo, conceito, o que for, leva-nos a aceitar tudo isso que nos é repetidamente dito, visto, mostrado, como sendo o correto para a sociedade em que vivemos. Possivelmente, por o cérebro ser preguiçoso, sempre pronto a aceitar o mais fácil, por desígnio providencial ou por qualquer outra razão que os donos da IA nos acabarão por convencer.
Aplicando este mesmo princípio da venda de produtos (é sempre disso que se trata) ao contrário, ou seja, ignorando completamente a concorrência, reduzindo-a a menos que zero, negando-lhe a existência, é outra das formas para que os nossos produtos se acabem por impor. Não compras o que te não é mostrado. Mesmo que exista, não tem significado.
Mas, a sociedade em que vivemos, pioneira e herdeira desses conhecimentos, tem ainda uma outra maneira muito mais sofisticada para alcançar os mesmos fins, segundo Noam Chomsky:
“A maneira inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro de opiniões aceitáveis, mas permitir um debate muito vivo dentro desse espectro limitado — encorajar mesmo até as opiniões mais críticas e dissidentes. Isso dá às pessoas a sensação de que existe um pensamento livre, ao mesmo tempo que os pressupostos do sistema saem reforçados pelos limites impostos à amplitude do debate.”
No mesmo dia (8 de julho) que se iniciou em Washington a Conferência para comemorar os 75 Anos da OTAN, o Primeiro Ministro da Índia, Narendra Modi, iniciava conversações em Moscovo com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, com uma agenda onde discutiram não apenas as trocas comerciais e os investimentos mútuos, mas a utilização de sistemas de pagamento nas suas próprias moedas.
Após a maior parte dos Bancos russos, a seguir à invasão da Ucrânia em 2022, terem sido excluídos de usar o sistema financeiro belga de mensagens (SWIFT), é cada vez maior número de países que manifesta reservas relativamente ao SWIFT, e isto porque se tornou óbvio que se tratava de uma tentativa para isolar a Rússia do resto de sistema financeiro internacional feito de acordo com os desejos de dominação dos EUA, o que constituía um atentado contra a independência do sistema, o que poderia vir a possibilitar que o mesmo possa a vir ser aplicado “aleatoriamente” (sempre que os EUA o quisessem) a qualquer um dos participantes.
Entende-se as preocupações de Modi. Mas, as declarações de Modi para acelerar a criação de um sistema de pagamentos com base nas suas próprias moedas, veio também demonstrar a falsidade da tese do isolamento da Rússia, e mais, que a Índia que muitos pensavam estar no bolso dos EUA, tinha um pensamento e posicionamento próprio anti hegemónico.
Se a isto juntarmos os acordos sobre desenvolvimento e produção conjunta de armamento, petróleo, fertilizantes, centrais nucleares, exatamente numa altura em que do outro lado, em Washington, se desenvolvia uma conferência tendo como alvo a derrota da Rússia na guerra da Ucrânia, não espanta que alguns estudiosos considerem que se está num novo período de relações entre a Rússia e a Índia.”
Veja-se a declaração que Modi proferiu na cerimónia no Grande Palácio do Kremlin, após ser agraciado com a Ordem de St André, o Apóstolo:
“A nossa relação é extremamente importante não só para os nossos dois países, mas é também de grande importância para o mundo inteiro. No atual contexto global, a Índia e a Rússia, bem como a sua parceria, assumiram uma nova importância. Ambos estamos convencidos de que são necessários mais esforços para garantir a estabilidade e a paz globais. No futuro, continuaremos a trabalhar em conjunto para atingir estes objetivos.”
E a declaração conjunta de Putin-Modi, para nos apercebermos da importância das relações militares e do seu progresso:
“Respondendo à procura da Índia pela autossuficiência, a parceria está atualmente a reorientar-se para a investigação e desenvolvimento conjuntos, codesenvolvimento e produção conjunta de tecnologia e sistemas de defesa avançados. As Partes confirmaram o compromisso de manter a dinâmica das atividades conjuntas de cooperação militar e de alargar o intercâmbio de delegações militares.”
Como todas estas coisas não são fortuitas ou pensamentos de ocasião, recomendo a leitura do importante discurso de Sergey Lavrov, no X Fórum Internacional “Leituras de Primakov”, a 26 de junho em Moscovo. Aqui deixo as respostas por ele dadas, relativamente às relações com a Índia:
“[…] Pergunta: O primeiro-ministro da Índia [Narendra] Modi chegará a Moscovo dentro de alguns dias, no dia 8 de julho. Quão importante é isso para a Rússia?
Também ouvi dizer, aqui nas “Leituras de Primakov”, bem como noutros locais em Moscovo, que vocês acreditam, que a Rússia acredita que a Índia está a inclinar-se muito mais para os Estados Unidos. Assim, quero ouvir o que tem a dizer sobre este assunto. E também, embora também o ouça, e o senhor próprio, há poucos minutos falou sobre a Rússia e a China e a sua parceria muito estreita com a China, tenho um pensamento que me vem à cabeça, que é o de que nos últimos anos, a relação económica EUA-China aumentou realmente. O comércio entre os EUA e a China, o comércio entre a China e a União Europeia só tem aumentado, especialmente à medida que saímos da pandemia. Ora, o que é que isto significa para a relação entre a Rússia e a China? Tem consciência disso – bem, claro que está, mas – como encara esta parceria crescente entre a China e os seus parceiros no Ocidente?
Sergey Lavrov: Está a pedir-me que partilhe a nossa visão sobre a situação no triângulo Rússia-Índia-China.
A visita do Presidente indiano Narendra Modi enquadra-se perfeitamente na nossa linha estratégica de política externa. A Índia é um dos nossos parceiros prioritários e a nossa relação está devidamente qualificada em documentos bilaterais oficiais. Inicialmente documentada como uma parceria estratégica, foi posteriormente redefinida como uma parceria estratégica privilegiada em resposta à proposta dos nossos amigos indianos. Mais tarde ainda, também por iniciativa de Nova Deli, as relações bilaterais foram elevadas ao nível de uma parceria estratégica especial e privilegiada. Gostaríamos que este termo, esta fórmula continuasse a descrever a essência do nosso trabalho conjunto e interação.
A Índia é um dos nossos parceiros estratégicos mais antigos. Estabelecida quando o país conquistou a independência, a nossa interação continuou enquanto a Rússia ajudava a desenvolver o Estado, a economia e as forças armadas indianas, e fazia todos os esforços para ajudar a aliviar as tensões entre a Índia e o Paquistão.
Referi hoje que, se considerarmos um período mais recente, foi na verdade ideia de Yevgeny Primakov que o triângulo Rússia, Índia e China (RIC) se deveria tornar o símbolo do mundo multipolar e o seu núcleo. No entanto, houve pouca menção ao RIC após a inauguração do BRICS, porque o BRICS é certamente uma entidade muito mais impressionante. Mas, por mais estranho que possa parecer, a arquitetura de intercâmbios do RIC continuou a funcionar, incluindo as reuniões dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Na verdade, reunimo-nos cerca de 20 vezes, mas o nosso trabalho conjunto abrandou um pouco nos últimos tempos – primeiro devido à situação do coronavírus e, mais tarde, aos problemas bem conhecidos na fronteira entre a Índia e a China.
Ainda achamos ser muito mais útil conversarmos em momentos tão tensos. Há cerca de um ano, propusemos a criação de um formato RIC trilateral. Recentemente, revisitámos novamente a ideia. Mas até agora, os nossos amigos indianos acreditam que a situação fronteiriça tem de ser totalmente resolvida primeiro. Nós entendemos. De qualquer modo, tanto Pequim como Nova Deli demonstram um claro interesse em preservar o formato de cooperação trilateral. Estou certo de que cada um dos três beneficiará da elaboração de abordagens partilhadas e da tomada de posições alinhadas sobre questões-chave da agenda euro-asiática e global.
Aponto sem rodeios que o Ocidente quer que aconteça exatamente o contrário. O Ocidente procura impedir que o RIC reforce a sua solidariedade e negoceie a partir de uma posição partilhada. O Ocidente quer-nos em desacordo porque pode tirar partido disso.
Referiu que a China está a aumentar o comércio com o Ocidente, com os Estados Unidos. Na verdade, a China está agora a reduzir gradualmente as suas reservas cambiais denominadas em dólares. No entanto, estes são aspetos técnicos. Podemos discuti-los separadamente mais tarde. É também óbvio que os Estados Unidos estão a tentar arrastar a Índia para o seu projeto anti China. Toda a gente sabe a que estou me referindo.
Conversei muito com o meu colega e amigo indiano, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Subrahmanyam Jaishankar. Os jornalistas perguntaram-lhe repetidamente porque é que a Índia compra agora várias vezes mais petróleo e outros bens à Rússia do que comprava antes da guerra na Ucrânia. Ele sempre respondeu publicamente que, caros amigos, é melhor contarem o dinheiro nos vossos próprios bolsos e observarem a quantidade de petróleo russo que estão a comprar. Permita-me responder pelo meu país. É importante fazer o que é melhor para a nossa economia. Se todos neste planeta adotassem esta abordagem, penso que a pressão de Washington nunca alcançaria os resultados que por vezes consegue.
No que diz respeito ao comércio da China, tanto a China como a Índia (sejamos sinceros) querem ver a situação económica global acalmar, mas não estão dispostas a questionar os fundamentos e os mecanismos da globalização que foram estabelecidos pelos americanos, ou o papel do dólar, no qual muitos ainda estão dispostos a confiar. Os pagamentos que cobrem 90% do nosso comércio com a China são feitos em rublos ou yuans. Cerca de 60% do comércio com a Índia é liquidado em moedas nacionais. Esta é uma escolha séria. Tanto a República Popular da China como a Índia estão muito mais profundamente envolvidas no sistema ocidental de globalização em termos do volume de acordos financeiros, de investimento e comerciais e de muitas outras coisas. Mas a verdade é que, tal como nós, a República Popular da China e a Índia estão plenamente conscientes da natureza discriminatória daquilo que o Ocidente está a fazer.
Citei exemplos de como vocês, os chineses ou outros membros do BRICS não estão autorizados a assumir posições no FMI que refletissem o peso económico e financeiro real dos seus respetivos países, e como a OMC tem bloqueado durante 13 anos a operação de um órgão que foi criado especificamente para julgar litígios e proferir decisões justas.
Não tenho dúvidas de que, tal como a maioria dos outros países, a China e a Índia estão plenamente conscientes disso. Não estamos a pedir à Índia que reveja as suas prioridades de política externa. Aquele país quer alcançar resultados mutuamente benéficos nos seus contactos com todos os países. Nós também queremos isso. Uma vez que fomos trazidos para este sistema. Depois, em resposta aos nossos alertas de longa data sobre a política falaciosa e trágica que procura expandir a NATO e nela envolver a Ucrânia. Não nos restou outra escolha senão iniciar uma operação militar especial para garantir a nossa segurança, os nossos interesses fundamentais e a segurança das pessoas cujos antepassados viveram em Donbass e Novorossiya durante séculos, à medida que desenvolviam estas terras e construíam cidades, fábricas, portos e navios. Alguém lá fora queria apagar tudo isto.
Seria negligente se não encerrasse a discussão da questão da Ucrânia com o que o Ocidente está agora a dizer sobre tudo o que surgiu recentemente, incluindo a conferência suíça, e depois outra conferência. Vários países árabes estão a tentar organizar um novo “khural”. Vá em frente e leia o que têm a dizer sobre todos os que respeitam os direitos internacionais, a Carta das Nações Unidas e a integridade territorial da Ucrânia. Porquê apenas integridade territorial? Já abordei o direito das nações à autodeterminação. Há muito que se discute a harmonização dos princípios da integridade territorial e do direito de uma nação à autodeterminação. Em 1970, após anos de conversações, a Assembleia Geral adotou, por unanimidade, a Declaração sobre Relações Amistosas, um documento de várias páginas. A parte em causa diz que todos os países têm o dever de respeitar a integridade territorial dos países cujos governos respeitam o princípio da autodeterminação dos povos e representam todo o povo pertencente ao território.
Estou farto de trazer este assunto à tona em vários eventos públicos. Aqueles que chegaram ao poder após o golpe disseram que a língua russa seria abolida e declararam os residentes da Crimeia e do Donbass como terroristas. Considerando isto, será que o “governo” ucraniano formado pelos golpistas representava os interesses do povo do leste da Ucrânia? Claro que isso não aconteceu. Tenhamos em mente o facto de que, desde então, a Ucrânia aprovou leis que proibiram tudo o que é russo, incluindo a educação e os meios de comunicação em língua russa. Os eventos culturais foram proibidos. Mesmo numa situação quotidiana como é o fazer compras, um vendedor, se assim o desejar, pode denunciá-lo se falar russo com ele. Digo isto para deixar claro que todos aqueles conspiradores que fervilham pela Ucrânia estão a apelar a todos para que respeitem a Carta das Nações Unidas, mas concentram-se exclusivamente na integridade territorial, deixando de fora as questões que acabei de mencionar. Também não incluem o artigo 1.º da Carta sobre os direitos humanos, que é tão apreciado por aqueles que lideram estas reuniões na Ucrânia.
Isto está a ser dito num contexto que eles consideram absolutamente inaceitável. Afirma que todos os países têm o dever de respeitar os direitos humanos, independentemente da raça, género, língua ou religião. Isto também faz parte da Carta da ONU. Poucas pessoas pensam sobre isso. As questões de língua e religião são como uma faca na garganta do Ocidente. Ocasionalmente, temos contactos informais com politólogos. Tentaram vender-nos a ideia de parar a guerra e explorar o cenário coreano. Os nossos politólogos perguntaram-lhes o que aconteceria se, em teoria, se chegasse a um compromisso sobre o fim das hostilidades. O que se faria em relação às leis na Ucrânia que determinam a destruição de tudo o que é russo e glorificam os nazis? A resposta deles foi bastante reveladora. Disseram que não iriam interferir nos assuntos internos do Estado ucraniano, o que significa que os nazis teriam licença para continuar a destruir tudo o que fosse Rússia.
Isto significa que os países que são convidados, ou melhor, atraídos, a participar em tais reuniões deveriam colocar tais questões. Muitos dos nossos amigos estão lá. Alguns estão presentes apenas para se verem livres do assédio dos organizadores e não lhes é pedido que imponham sanções à Rússia, o que não estão dispostos a fazer e nunca farão. Outros vão para lá com o desejo sincero de colocar o processo de volta nos carris. Dizem que não adotarão nada sem a Rússia e recusam-se a assinar o que quer que seja. Tudo isto mostra a natureza importante dos desenvolvimentos em curso e o facto de a Maioria Global compreender que se trata de uma questão de princípio.
Gostaria de aproveitar esta oportunidade para vos encorajar a ir lá da próxima vez que forem convidados, mas façam-lhes estas perguntas sobre os princípios da Carta da ONU, que o Ocidente e, por razões óbvias, a junta nazi de Kiev, estão a ignorar descaradamente. […]”
Desvio de 77 milhões de dólares de fundos da assistência pública para amigos e familiares do Governador, por Anna Wolfe.
Mais de 10 anos depois, o relatório sobre tortura continua secreto.
Aprovado voto para esconder o número de mortos em Gaza.
Os relatórios de Assange.
Anna Wolfe é uma jornalista de investigação vencedora do Prémio Pulitzer que obteve reconhecimento nacional pela série de artigos publicados no Mississippi Today onde expôs a forma como as autoridades desviaram 77 milhões de dólares de fundos da assistência pública que deviam ter ido para famílias carenciadas, tendo ido antes para amigos e familiares do então Governador de Mississippi, Phil Bryant, e para projetos favoritos de atletas famosos (como por exemplo para um centro de volleyball na Universidade de Southern Mississippi que custou mais de 5 milhões, projeto liderado pelo antigo jogador de futebol americano Brett Favre, cuja filha jogava na equipa de volleyball).
Um ano depois da sua publicação, Anna Wolfe foi surpreendida por um pedido judicial para que entregue todos os apontamentos, ficheiros e nomes das suas fontes confidenciais, devido a uma ação por difamação intentada por Phil Bryant.
Eis o que a este propósito disse Anna à NBC (5 de julho de 2024): “Se eu for para a prisão [por não nomear as minhas fontes de informação], vou ser a primeira pessoa a ir presa no escândalo do serviço social do Mississippi”, enquanto os outros oitos indiciados no processo continuam sem qualquer sentença.
O The Intercept publicou a 27 de junho de 2024, um artigo (“Mais de 10 anos depois, o relatório do Senado sobre tortura continua secreto “) onde se pode ler que “A Comissão Especial de Inteligência do Senado apresentou à Casa Branca o seu “relatório sobre tortura” de 6.700 páginas sobre a CIA, mas mais de 10 anos passados, o relatório completo permanece secreto depois de um tribunal federal de recurso ter rejeitado uma ação movida na esperança de forçar a sua divulgação.
O documento “inclui detalhes abrangentes e dolorosos” sobre o “programa de detenção secreta indefinida e o uso de técnicas de interrogatório brutais” da CIA, escreveu num resumo de 2014, a falecida senadora Dianne Feinstein, que presidia na altura à Comissão de Inteligência do Senado.
“O relatório completo detalha como a CIA mentiu ao público, ao Congresso, ao presidente e a si própria sobre as informações produzidas pelo programa de tortura”, disse Tom Blanton, diretor do Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, que lutou para obter os registos da CIA. “Precisamos de conhecer a nossa história real para não repetirmos os seus crimes.”
Se os tribunais continuarem a recusar-se a abordar o assunto, o Congresso poderá também tomar medidas para disponibilizar o relatório sobre a tortura antes de 2029.” Aguardemos.
“Na quinta-feira, os legisladores aprovaram por 269-144 uma alteração que proíbe o Departamento de Estado de citar estatísticas do Ministério de Saúde de Gaza. A medida faz parte do projeto de lei anual de dotações do Departamento de Estado. Foi liderado pelos deputados democratas Jared Moskowitz, Florida, e Josh Gottheimer, NJ, e pelos deputados republicanos Joe Wilson, SC; Mike Lawler, Nova Iorque; e Carol Miller, W.V. No total, 62 democratas juntaram-se a 207 republicanos no apoio à alteração.
Mohammed Khader, gestor de políticas da Campanha dos EUA pela Acção pelos Direitos dos Palestinos, disse ao Intercept que a alteração faz parte de uma tendência do sentimento anti-palestiniano no Congresso desde o início das atrocidades cometidas por Israel em Gaza. “Ao impedir qualquer reconhecimento do número de palestinianos mortos desde outubro, esta alteração é um exemplo claro de negação do genocídio e não é diferente do que foi feito em relação às vítimas de genocídios no Ruanda e na Arménia.”
[…] Moskowitz e Gottheimer estão entre vários democratas que têm trabalhado repetidamente para minar o movimento pelos direitos palestinos e pelo discurso pró-palestino.
Em abril, a dupla juntou-se aos republicanos para liderar uma resolução condenando a frase “do rio ao mar, a Palestina será livre” como antissemita. Em dezembro, a dupla juntou-se aos deputados republicanos Elise Stefanik e Steve Scalise, para liderar uma resolução que condenava os reitores das universidades e apelava às suas demissões por alegadamente tolerarem o antissemitismo no campus. Em novembro, os dois democratas juntaram-se a outros 20 na censura a Tlaib [congressista pró-Palestina], por razões que incluíram a publicação de um vídeo apelando a um cessar-fogo que continha a frase “do rio ao mar”.
Gottheimer foi ainda mais longe, chamando “cancros” aos democratas que não apoiam Israel e sugerindo que os muçulmanos na América são “culpados” pelo ataque do Hamas a 7 de outubro. Falou ainda com os curadores da universidade sobre como pressionarem o FBI a assumir um papel maior na investigação dos protestos nos campus. Durante esta chamada, Lawler sugeriu que os protestos estudantis pela Palestina foram o tipo de atividade que inspiraram a proibição do TikTok.
A dupla também se juntou a outros 60 democratas para expressarem a sua “repulsa” pelo processo de 84 páginas levantado pela África do Sul acusando Israel de genocídio, e elogiando o porta-voz da Casa Branca, John Kirby, por o ter chamado de “sem mérito, contraproducente e completamente desprovido de quaisquer factos básicos”.
Assange, foi processado por a WikiLeaks ter exposto crimes de guerra dos EUA no Iraque, no Afeganistão e em Guantánamo. Em 2010, o analista de informações do Exército dos EUA, Chelsea Manning, que tinha uma autorização de segurança máxima dos EUA, forneceu à WikiLeaks 700.000 documentos e relatórios, muitos dos quais foram classificados como “Secreto”.
Estes documentos incluíam os “Registos da Guerra do Iraque”, 400.000 relatórios de campo que documentam 15.000 mortes não declaradas de civis iraquianos, bem como violações sistemáticas, tortura e assassinatos depois de as forças dos EUA transferirem detidos para um notório esquadrão de tortura iraquiano.
Continham também o “Diário de Guerra do Afeganistão”, composto por 90.000 relatórios que documentavam mais vítimas civis pelas forças da coligação do que os militares dos EUA tinham relatado. E incluíam ainda os “Arquivos de Guantánamo” – 779 relatórios secretos contendo provas de que 150 pessoas inocentes estiveram detidas na Baía de Guantánamo durante anos. Os relatórios explicam como os quase 800 homens e rapazes foram torturados e abusados, o que violou as Convenções de Genebra e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Manning, também forneceu à WikiLeaks o vídeo “Collateral Murder” de 2007, que mostra em Bagdad a tripulação de um helicóptero de ataque Apache do Exército dos EUA a matar 12 civis desarmados, incluindo dois jornalistas da Reuters, bem como um homem que veio socorrer os feridos. Duas crianças ficaram feridas no ataque. Um tanque do Exército norte-americano passou por cima de um dos corpos, cortando-o em dois. Numa conversa após o ataque, um piloto disse: “Olhem para aqueles sacanas mortos”, e o outro respondeu: “Porreiro”. O vídeo revela provas de três violações das Convenções de Genebra e do Manual de Campanha do Exército dos EUA.
Os “Registos da Guerra do Iraque”
Os “Registos da Guerra do Iraque” continham extensas provas de crimes de guerra dos EUA. Vários relatos de abuso de reclusos foram suportados por provas médicas. Os prisioneiros eram vendados, algemados e pendurados pelos tornozelos ou pulsos. Foram sujeitos a socos, chicotadas, pontapés, eletrocussão, berbequins elétricos e dedos cortados ou queimados com ácido. Seis relatórios documentam as aparentes mortes de detidos.
Relatórios secretos de campo do Exército dos EUA revelaram que as autoridades norte-americanas se recusaram a investigar centenas de relatos de assassinatos, tortura, violações e abusos cometidos por soldados e polícias iraquianos. A coligação tinha uma política formal de ignorar estas alegações, marcando-as como “não é necessária investigação”.
Embora as autoridades dos EUA e do Reino Unido sustentassem que não existiam registos oficiais de vítimas civis, os registos documentam entre 2004-2009, a existência de 66.081 mortes de não combatentes entre 109.000 vítimas mortais.
O registo descreve imagens de vídeo de oficiais do exército iraquiano a executarem um prisioneiro em Tal Afar. Diz: “As imagens mostram aproximadamente 12 soldados do exército iraquiano [IA]. Dez soldados do IA conversavam entre si enquanto dois soldados detinham o detido. O detido tinha as mãos amarradas… As imagens mostram os soldados da IA a moverem o detido para a rua, empurrando-o para o chão, esmurrando-o e disparando contra ele.”
O “Diário da Guerra do Afeganistão”
O “Diário de Guerra do Afeganistão” revelou também provas de crimes de guerra dos EUA entre 2004-2009. Os relatórios descrevem como uma unidade secreta “negra” composta por forças de operações especiais, perseguiu os líderes talibãs acusados de “matar ou capturar” sem julgamento. As unidades de comando secretas – grupos classificados de agentes especiais da Marinha e do Exército – utilizaram uma “lista de captura/morte”, que resultou na morte de civis, irritando o povo afegão.
Além disso, a CIA expandiu as operações paramilitares no Afeganistão, realizando emboscadas, ordenando ataques aéreos e realizando ataques noturnos. A CIA financiou a agência de espionagem afegã, considerando-a como uma subsidiária.
Uma reunião de 2007 entre as autoridades distritais afegãs e os oficiais de assuntos civis dos EUA foi documentada nos relatórios. As autoridades afegãs terão dito: “O povo do Afeganistão continua a perder [sic] a confiança no governo por causa da grande quantidade de funcionários governamentais corrompidos. A opinião geral dos afegãos é que o atual governo é pior [sic] do que os talibãs.”
Os registos registaram numerosas vítimas civis resultantes de ataques aéreos, tiroteios nas estradas, em aldeias e em postos de controlo; muitos foram apanhados no fogo cruzado. As vítimas não eram bombistas suicidas ou insurgentes. Várias mortes não foram comunicadas ao público.
Os “Arquivos de Guantánamo”
Os “Arquivos de Guantánamo” referem que apenas 220 das 780 pessoas detidas no campo de prisioneiros desde 2002 foram classificadas como “terroristas internacionais perigosos”. Dos restantes, 380 foram classificados como soldados de infantaria de baixa patente e 150 foram considerados civis ou agricultores inocentes afegãos ou paquistaneses.
Muitos detidos foram mantidos em Guantánamo durante anos com base em provas insignificantes ou confissões extraídas através de tortura e abusos. Entre os detidos, por exemplo, estava um aldeão afegão de 89 anos com demência senil e um rapaz de 14 anos que fora vítima inocente de um rapto.
Os ficheiros documentam um sistema que visava mais extrair informação do que deter terroristas perigosos. Um homem foi transferido para Guantánamo porque era um mulá com conhecimentos especiais sobre os talibãs. Um taxista foi enviado para o campo de prisioneiros porque tinha conhecimentos gerais sobre certas zonas do Afeganistão. Um jornalista da Al Jazeera foi detido em Guantánamo durante seis anos para ser interrogado sobre a cadeia de notícias.
Quase 100 reclusos foram classificados com perturbações depressivas ou psicóticas. Vários aderiram a greves de fome para protestar contra a sua detenção por tempo indeterminado ou como tentativa de suicídio, revelaram os ficheiros.”
Assim é a Civilização que os humanos têm vindo a construir. Em todos os locais. Desde sempre. Casos únicos? Caso único.
Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade para nos destruirmos, Noam Chomsky.
O poder de destruição dos 12 submarinos da classe Columbia será aproximadamente 30.000 vezes maior que o das duas bombas que destruíram Hiroxima e Nagasáqui.
A “independência energética” significa para os donos da economia terem mais um século para maximizar a utilização de combustíveis fósseis e contribuir para a destruição do mundo, Noam Chomsky.
Até 1945, o apocalipse tinha sido propriedade da Bíblia, em que o “fim dos tempos” era domínio de Deus (e talvez de um ramo emergente da literatura popular chamado ‘ficção científica’). Desde então temos agido sempre de forma apocalíptica, estranhamente por razões não ligadas à posse da milagrosa arma atómica e que até mesmo agora continuam difíceis de compreender.
A Marinha dos EUA encomendou à General Dynamics Electric, 12 submarinos nucleares da Classe Columbia por 126,4 biliões de dólares. Estes submarinos terão aproximadamente 170 metros de comprimento, deslocando 20.810 toneladas de água. Cada um deles será equipado com 16 tubos de lançamento para os mísseis balísticos nucleares lançados de submarinos (SLBM) Trident II D5, cada um deles com a capacidade de transportar 12 ogivas nucleares independentes, conhecidas como W88s, cada uma delas custando 150 milhões de dólares, e com uma força termonuclear de 455 kilotoneladas.
Algumas contas simples: multiplicando 12 vezes 16 vezes 12, obteremos 2.304. Multiplicando-o depois pela força termonuclear de 455 kilotoneladas, chegamos a mais de um milhão de kilotoneladas! As bombas atómicas que arrasaram Hiroxima e Nagasáqui, a “Fat Man” e a “Little Boy”, possuíam 21 e 15 kilotoneladas! Ou seja, o poder de destruição dos 12 submarinos será aproximadamente 30.000 vezes maior que o das duas bombas que destruíram Hiroxima e Nagasáqui.
Segundo o Congressional Research Service, a “missão básica” destes submarinos será a de “permanecerem escondidos no mar com os seus SLBM, para impedirem um ataque nuclear aos Estados Unidos por um outro país, ao demonstrarem aos outros países que os Estados Unidos têm uma segunda capacidade de ataque garantida, ou seja, que têm um sistema de sobrevivência assegurado capaz de conduzir em retaliação um ataque nuclear”.
Ou seja, centenas de biliões de dólares são colocados no fundo do mar para que quando venham pela única vez à superfície cumprir a sua missão, será para destruir totalmente o mundo várias vezes.
Evidentemente, isso só aconteceria apenas como retaliação. Acontece que a Nuclear Posture Review de 2022, veio alterar a política dos Estados Unidos relativa à utilização das armas nucleares ao prever que as armas nucleares podiam ser usadas unilateralmente e ofensivamente (first strike).
São estas e outras “pequenas”, mas importantes contradições teóricas ou operacionais, que se verificam em todas as nações que operam armas nucleares (as doutrinas militares de todas essas nações passaram também a prever a sua utilização unilateral), que fazem duvidar das garantias das seguranças apresentadas, levantando antes a possibilidade de um apocalipse garantido, programado ou não.
Parece-me importante relembrar aqui, uma entrevista em vídeo (“Humanity Imperiled. The Path to Disaster”) de Noam Chomsky feita a 27 de agosto de 2023 por Javier Navarro da What, e onde Chomsky explana os seus pensamentos sobre um futuro perigoso que continua a estar dependente das nossas ações. Eis a sua adaptação e tradução:
Humanidade em Perigo: o Caminho para o Desastre
O que é que provavelmente o futuro nos reserva? Um ponto de partida razoável para responder à interrogação talvez fosse o tentar-se olhar de fora para a espécie humana. Imagine então que é um observador extraterrestre que está a tentar descobrir o que está a acontecer aqui ou imagine que é um historiador daqui a 100 anos - supondo que haja algum historiador daqui a 100 anos, o que não é óbvio - e que está a olhar para o que hoje está a acontecer. Veria algo bastante notável.
Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade para nos destruirmos. Isto tem sido verdade desde 1945. E por fim, está agora a ser reconhecido que existem mais processos a longo prazo, como a destruição ambiental, que vão na mesma direção, conduzindo talvez não para a destruição total, mas pelo menos para a destruição da capacidade para uma existência decente.
E há outros perigos, como as pandemias, que têm a ver com a globalização e com a interação. Portanto, há processos em curso e instituições em funcionamento, como os sistemas de armas nucleares, que poderão levar a uma séria destruição, ou ao fim de uma existência organizada.
Como Destruir um Planeta Sem Realmente o Querer Fazer
A questão é: relativamente a isso, o que é que as pessoas estão a fazer? Nada disso é segredo. Está tudo perfeitamente claro. Na verdade, você tem mesmo que se esforçar para não perceber.
Tem havido uma série de reações. Há aqueles que se têm esforçado para fazer algo a respeito dessas ameaças e outros que estão a agir para as aumentar. Se se olhar para ver quem são eles, esse futuro historiador ou observador extraterrestre veriam algo realmente estranho. Tentando mitigar ou superar essas ameaças estão as sociedades menos desenvolvidas, as populações indígenas, ou os remanescentes delas, as sociedades tribais e as primeiras nações do Canadá. Elas não falam de guerra nuclear, mas de desastre ambiental, e estão realmente a tentar fazer algo a esse respeito.
Na verdade, em todo o mundo — Austrália, Índia, América do Sul — há batalhas a acontecer, por vezes guerras. Na Índia, trata-se de uma grande guerra pela destruição ambiental direta, com sociedades tribais a tentar resistir às operações de extração de recursos que são extremamente prejudiciais a nível local, mas também pelas suas consequências gerais. Nas sociedades onde as populações indígenas têm influência, muitos estão a tomar uma posição firme. O país mais forte no que diz respeito ao aquecimento global é a Bolívia, que tem uma maioria indígena e requisitos constitucionais que protegem os “direitos da natureza”.
O Equador, que também tem uma grande população indígena, é o único exportador de petróleo que conheço onde o governo procura ajuda para conseguir manter esse petróleo no solo, em vez de o produzir e exportar – e o solo está onde deveria estar.
Assim, num extremo temos as sociedades indígenas e tribais que tentam conter a corrida para o desastre. No outro extremo, as sociedades mais ricas e poderosas da história mundial, como os Estados Unidos e o Canadá, que avançam a toda velocidade para destruir o ambiente o mais rapidamente possível. Ao contrário do Equador e das sociedades indígenas de todo o mundo, eles querem extrair do solo cada gota de hidrocarbonetos o mais rápido possível.
Ambos os partidos políticos, o Presidente Obama, os meios de comunicação social e a imprensa internacional, parecem estar a aguardar com grande entusiasmo o que chamam de “um século de independência energética” para os Estados Unidos. A independência energética é um conceito quase sem sentido, mas deixemos isso de lado. O que querem dizer é: teremos um século para maximizar a utilização de combustíveis fósseis e contribuir para a destruição do mundo.
E isso passa-se praticamente em todos os locais. É certo que, quando se trata de desenvolvimento de energias alternativas, a Europa está a fazer alguma coisa. Enquanto isso, os Estados Unidos, o país mais rico e poderoso da história mundial, são a única nação entre talvez 100 países relevantes que não tem uma política nacional para restringir o uso de combustíveis fósseis, que nem sequer tem metas de energia renovável. Não porque a população não queira. Os americanos estão muito próximos da norma internacional na sua preocupação com o aquecimento global. São as estruturas institucionais que bloqueiam a mudança. Os interesses empresariais não o querem e são esmagadoramente poderosos na determinação de políticas, pelo que existe uma grande lacuna entre a opinião e a política em muitas questões, incluindo esta.
Então é isso que o futuro historiador – se houver – veria. Ele também pode ler as revistas científicas de hoje. Quase todas as que você abre têm uma previsão pior do que a anterior.
“O Momento Mais Perigoso da História”
A outra questão é a guerra nuclear. Há muito que se sabe que se houvesse um primeiro ataque por parte de uma grande potência, mesmo sem retaliação, provavelmente destruiria a civilização apenas por causa das consequências do inverno nuclear que se lhe seguiria. Pode-se ler sobre isso no Bulletin of Atomic Scientists. Está lá tudo bem escrito. Portanto, o perigo sempre foi muito pior do que pensávamos.
Acabámos de passar o 50º aniversário da crise dos mísseis cubanos, que foi chamado de “o momento mais perigoso da história” pelo historiador Arthur Schlesinger, conselheiro do presidente John F. Kennedy. E que foi mesmo. Foi por um triz, e também não foi a única vez. De certa forma, porém, o pior aspeto destes acontecimentos sombrios é que as lições não foram aprendidas.
O que aconteceu na crise dos mísseis em outubro de 1962 foi embelezado para fazer parecer que abundaram atos de coragem e de consideração. A verdade é que todo o episódio foi quase insano. Houve uma altura, quando a crise dos mísseis estava a atingir o seu auge, em que o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev escreveu a Kennedy oferecendo-se para resolver a situação através de um anúncio público da retirada dos mísseis russos de Cuba e dos mísseis norte-americanos da Turquia. Na verdade, na altura Kennedy nem sabia que os EUA tinham mísseis na Turquia. Eles estavam a ser retirados, para serem substituídos por submarinos nucleares Polaris, mais letais, que eram invulneráveis.
Então a oferta foi essa. Kennedy e os seus conselheiros consideraram-na – e rejeitaram-na. Na altura, o próprio Kennedy estimava que a probabilidade de uma guerra nuclear oscilava entre um terço e metade. Assim, Kennedy estava disposto a aceitar um risco muito elevado de destruição maciça, a fim de estabelecer o princípio de que nós - e apenas nós - temos o direito a mísseis ofensivos para além das nossas fronteiras, na verdade, em qualquer lugar que quisermos, independentemente do risco para os outros - e para nós mesmos, se as coisas ficarem fora de controle. Nós temos esse direito, mas mais ninguém tem.
Entretanto, Kennedy acabou por aceitar um acordo secreto para retirar os mísseis que os EUA já estavam a retirar da Turquia, desde que tal nunca fosse tornado público. Por outras palavras, Khrushchev, teve de publicamente retirar os mísseis russos de Cuba enquanto os EUA retiravam secretamente os seus mísseis obsoletos; isto é, Khrushchev teve de ser humilhado e Kennedy teve de manter a sua imagem machista. Por isso, ele é muito elogiado: coragem e frieza sob ameaça, e assim por diante. O horror das suas decisões nem sequer é mencionado – tente encontrá-lo oficialmente.
E para acrescentar um pouco mais, alguns meses antes da crise explodir, os Estados Unidos enviaram mísseis com ogivas nucleares para Okinawa. Estes apontavam para a China durante um período de grande tensão regional.
Bem, quem se importa? Temos o direito de fazer o que quisermos em qualquer lugar do mundo. Essa foi uma lição sombria daquela época, mas outras viriam.
Dez anos depois, em 1973, o Secretário de Estado Henry Kissinger convocou um alerta nuclear de alto nível. Foi a sua forma de alertar os russos para não interferirem na guerra Israelo-árabe em curso e, em particular, para não interferirem depois de ter informado os israelitas de que poderiam violar um cessar-fogo que os EUA e a Rússia tinham acabado de acordar. Felizmente, nada aconteceu.
Dez anos depois, o presidente Ronald Reagan estava no poder. Logo depois de entrar na Casa Branca, ele e seus conselheiros fizeram com que a Força Aérea começasse a penetrar no espaço aéreo russo para tentar obter informações sobre os sistemas de alerta russos, a Operação Able Archer 83. Essencialmente, estes foram ataques simulados. Os russos não tinham a certeza de que assim eram, e alguns altos funcionários temiam que isso fosse um passo em direção a um primeiro ataque verdadeiro. Felizmente, eles não reagiram, embora tenha sido por pouco. E assim continua.
O que Fazer com as Crises Nucleares Iraniana e Norte-Coreana
Neste momento, a questão nuclear dos casos da Coreia do Norte e do Irão aparece regularmente nas primeiras páginas. Existem maneiras de lidar com estas crises contínuas. Talvez não funcionassem, mas pelo menos poder-se-ia tentar. No entanto, não estão sequer a serem consideradas, nem sequer comunicadas.
Vejamos o caso do Irão, que é considerado no Ocidente – não no mundo árabe, nem na Ásia – a mais grave ameaça à paz mundial. É uma obsessão ocidental e é interessante investigar as razões para isso, mas para já deixarei isso de lado. Existe uma maneira de lidar com a suposta mais grave ameaça à paz mundial? Na verdade, existem algumas. Uma forma, bastante sensata, foi proposta há alguns meses numa reunião dos países não-alinhados em Teerão. Na verdade, estavam apenas a reiterar uma proposta que existe há décadas, especialmente apresentada pelo Egipto, e que foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU.
A proposta é avançar-se no sentido da criação de uma zona livre de armas nucleares na região. Isso não seria a resposta para tudo, mas seria um avanço bastante significativo. E havia maneiras de proceder. Sob os auspícios da ONU, iria realizar-se uma conferência internacional na Finlândia, em dezembro passado, para tentar implementar planos nesse sentido. O que aconteceu?
Você não vai ler sobre isso nos jornais porque não foi noticiado – apenas em revistas especializadas. No início de novembro, o Irão concordou em participar na reunião. Alguns dias depois, Obama cancelou a reunião, dizendo que não era o momento certo. O Parlamento Europeu emitiu uma declaração apelando à sua continuação, tal como fizeram os estados árabes. Nada resultou. Portanto, avançaremos para sanções cada vez mais duras contra a população iraniana – isso não prejudica o regime – e talvez para a guerra. Quem sabe o que irá acontecer?
No Nordeste da Ásia, a mesma coisa. A Coreia do Norte pode ser o país mais louco do mundo. É certamente um bom concorrente para esse título. Mas faz sentido tentar descobrir o que se passa na mente das pessoas quando elas agem de maneira louca. Porque se comportariam eles daquela maneira? Imaginemo-nos na situação deles. Imaginem o que significou para eles nos anos da Guerra da Coreia, no início da década de 1950, em que o seu país fosse totalmente arrasado, tudo destruído por uma enorme superpotência, que além disso se regozijava com o que estava a fazer. Imagine a marca que isso deixaria para trás.
Tenha em mente que é provável que a liderança norte-coreana tenha lido os jornais militares públicos dessa superpotência naquela altura explicando que, uma vez que tudo o resto na Coreia do Norte já tinha sido destruído, a força aérea foi enviada para destruir as barragens da Coreia do Norte, enormes barragens que controlava o abastecimento de água - um crime de guerra, aliás, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberga. E esses jornais oficiais falavam com entusiasmo sobre como era maravilhoso ver a água escorrendo, escavando os vales e os asiáticos correndo por aí tentando sobreviver. Os jornais exultavam com o que isto significava para aqueles “asiáticos”, horrores para além da nossa imaginação. Significou a destruição da sua colheita de arroz, o que por sua vez significou fome e morte. Que magnífico! Não está na nossa memória, mas está na memória deles.
Voltemos ao presente. Há uma história recente interessante. Em 1993, Israel e a Coreia do Norte caminhavam para um acordo no qual a Coreia do Norte deixaria de enviar quaisquer mísseis ou tecnologia militar para o Médio Oriente e Israel reconheceria esse país. O presidente Clinton interveio e bloqueou. Pouco depois, em retaliação, a Coreia do Norte realizou um pequeno teste de mísseis. Os EUA e a Coreia do Norte chegaram então a um acordo-quadro em 1994 que interrompeu o seu trabalho nuclear e foi mais ou menos honrado por ambos os lados. Quando George W. Bush assumiu o cargo, a Coreia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e comprovadamente já não produzia mais nenhuma.
Bush lançou imediatamente o seu militarismo agressivo, ameaçando a Coreia do Norte – “eixo do mal” e tudo mais – e a Coreia do Norte voltou a trabalhar no seu programa nuclear. Quando Bush deixou o cargo, eles tinham de oito a dez armas nucleares e um sistema de mísseis, outra grande conquista neoconservadora. Nesse meio tempo, outras coisas aconteceram. Em 2005, os EUA e a Coreia do Norte chegaram efetivamente a um acordo no qual a Coreia do Norte deveria pôr fim a todas as armas nucleares e ao desenvolvimento de mísseis. Em troca, o Ocidente, mas principalmente os Estados Unidos, deveria fornecer um reator de água leve para as suas necessidades médicas e pôr fim às declarações agressivas. Eles então formariam um pacto de não agressão, seguindo em direção à acomodação.
Era bastante promissor, mas quase imediatamente Bush minou-o. Retirou a oferta do reator de água leve e iniciou programas para obrigar os bancos a deixarem de lidar com quaisquer transações norte-coreanas, mesmo as perfeitamente legais. Os norte-coreanos reagiram reavivando o seu programa de armas nucleares. E é assim que tem acontecido.
É bem conhecido. Você pode lê-lo em estudos académicos americanos diretos e convencionais. O que dizem é que é um regime bastante louco, mas que segue uma espécie de política de olho por olho. Você faz um gesto hostil e nós responderemos com algum gesto doido da nossa autoria. Você faz um gesto de acomodação e nós retribuiremos de alguma forma.
Ultimamente, por exemplo, têm havido exercícios militares sul-coreanos-americanos na península coreana que, do ponto de vista do Norte, devem parecer ameaçadores. No decurso desses exercícios, os bombardeiros mais avançados da história, Stealth B-2 e B-52, estão a realizar ataques simulados de bombardeamentos nucleares mesmo nas fronteiras da Coreia do Norte. Se eles estivessem no Canadá fixados em nós, pensaríamos que eles nos estavam a ameaçar.
Isto certamente faz disparar alarmes do passado. Eles lembram-se desse passado, então estão a reagir de uma forma muito agressiva e extrema. Bem, o que resulta de tudo isto para o Ocidente é a verificação do quão loucos e terríveis são os líderes norte-coreanos. Sim, eles são. Mas isso não é tudo, e é assim que o mundo vai indo.
Não é que não haja alternativas. As alternativas simplesmente não estão a serem tomadas. Isso é perigoso. Então, se você perguntar como será o mundo, não será uma imagem bonita. A menos que as pessoas façam algo a esse respeito. O que podemos sempre.