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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(485) A semana que poderia ter corrido bem

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Os caminhos que o mundo vai percorrendo e que na maior parte são feitos tendo por base condições e objetivos económicos, têm por vezes pequenos deflagradores individuais que vêm inesperadamente alterar o que se esperava que viesse a acontecer.

 

We were going to, in fact, make them pay the price and make them, in fact, the pariah that they are, Joe Biden, sobre os governantes sauditas.

 

 

 

 

Por vezes, acontecem coisas assim: quando tudo parece estar a correr bem, de repente o caldo entorna. Naquela semana de junho em que tudo se tinha preparado para a Conferência para a Paz na Ucrânia ser um êxito (os convites feitos, os dinheiros garantidos, o comunicado muito recente dos G7 de Puglia expressando já “o suporte para os princípios chave e objetivos da Fórmula para a Paz do Presidente Zelensky”, a presença tutelar e garantida de Biden, etc.), e em que os rufares dos tambores vinham já em crescendo no sentido de um aumento muito maior de despesa militar para novos armamentos e sobretudo para novos recrutas com vista à preparação para uma guerra anunciada como certa, com muita probabilidade até nuclear, o “imprevisto” aconteceu.

Dos 160 convites enviados para estados e organizações internacionais, compareceram 92. A Rússia não foi convidada e a China não compareceu. O comunicado final (16 de junho) que acabou assinado por 84 das delegações (não foi assinado pelo Vaticano, Brasil, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, África do Sul e Emiratos Árabes Unidos), não fez qualquer referência ao plano de paz apresentado por Zelensky nem exige a retirada completa das tropas da Rússia, nem refere qualquer data para a realização de uma nova conferência. Foi o comunicado possível.

 

Tudo se começou a desmoronar quando a 9 de junho Mohammed bin Salman, o príncipe e de facto líder da Arábia Saudita, deixou expirar o acordo feito em 1974 entre os EUA e a Arábia Saudita relativo aos petrodólares.

Perante a instabilidade dos preços e a dificuldade da venda do petróleo à época, a Arábia Saudita e os EUA realizaram um acordo segundo o qual o preço do petróleo vendido pela Arábia Saudita seria obrigatoriamente feito só em dólares, sendo as mais-valias obtidas investidas em bilhetes do Tesouro norte-americano. Em contrapartida, os EUA providenciariam o apoio e a proteção militar necessários.

A Arábia Saudita ganharia estabilidade e previsibilidade económica e uma segurança garantida, os EUA ganhariam uma fonte estável de petróleo e um mercado cativo para as suas dívidas. Ganhou mais, pois passando as compras de petróleo a serem feitas em dólares, tal obrigou todos os compradores a precisarem de dólares para o fazerem, ou seja, teriam de se dirigirem ao mercado americano (único que produzia dólares) para os obterem, o que elevou a cotação do dólar a moeda de reserva mundial. Razão pela qual a dívida do estado americano não tenha qualquer problema de maior (já vai em 34 triliões de dólares) porque ela terá sempre compradores em busca dos preciosos dólares.

Um dólar forte significou também para os consumidores americanos importações mais baratas. Um afluxo de capital estrangeiro para a compra de bilhetes do Tesouro é o que essencialmente suporta as taxas de juro baixas e um mercado de ações robusto.

Outra grande vantagem para os EUA: a proteção militar garantida será sempre acompanhada pela venda de enormes quantidades de armamentos americanos, devidamente contabilizados e pagos à parte.

 

Assim, da mesma forma que o acordo sobre os petrodólares deu grandes vantagens aos EUA, a sua não continuação enfraquecerá o dólar e, consequentemente, os mercados financeiros americanos. Se o petróleo puder ser vendido noutras moedas que não o dólar, tal acabará por levar ao declínio da procura do dólar, o que resultará num aumento da inflação, mais altas taxas de juro e um mercado de ações mais fraco nos EUA. O domínio do dólar americano poderá começar a estar em causa.

 

Será que o príncipe saudita se esqueceu da data?

 

Acontece que dias antes, a 4 de junho, a Arábia Saudita tinha-se juntado ao banco central da China para a utilização de uma moeda digital com a finalidade de “diminuir a dependência das transações de petróleo serem feitas em dólares americanos”.

Segundo os especialistas, o banco central Saudita tornou-se “full participant” do Projeto mBridge, que é uma colaboração iniciada em 2021 entre os bancos centrais da China, Hong Kong, Tailândia e os Emiratos Árabes Unidos.

A entrada da Arábia Saudita, que é uma economia dos G20 e o maior exportador de petróleo do mundo, aponta para a formação de um grande acordo sobre mercadorias numa plataforma sem dólares, e com uma nova tecnologia. Curiosamente, assente na já usada pelos e-yuan da China.

 

Juntemos ainda o anúncio feito por Moscovo sobre a suspensão das trocas comerciais em dólares e euros a partir de 13 de junho tendo em vista a criação de um novo sistema de pagamentos (sem dólares) dos BRICS, e temos aquilo que parece ser um ataque concertado ao dólar nessa semana fatídica.

E Biden, conhecedor da situação, apesar de ter ali estado muito perto para a reunião dos G7, e numa altura da corrida presidencial em que não perderia uma ocasião para aparecer vitorioso na Conferência da Paz, partiu para os EUA sem lá pôr os pés.

 

Os caminhos que o mundo vai percorrendo e que na maior parte são feitos tendo por base condições e objetivos económicos, têm por vezes pequenos deflagradores individuais, pessoais, que vêm inesperadamente alterar o que se esperava que viesse a acontecer. Exemplos como o do assassinato de Carrero Blanco em Espanha que alterou toda a programação pós-franquista; os ataques às Torres Gémeas de New York; o efeito do ressentimento                       nas lutas anticolonialistas; o efeito da vingança sentida pelos judeus na sua perceção do mundo; e muitos outros.

Recordemos, por exemplo, que há cinco anos, a 9 de junho de 2022, Joe Biden, ainda candidato a Presidente, disse que não venderia mais armas aos governantes sauditas, e que eles iriam pagar pelo que fizeram reduzindo-os aos párias que eles eram, não havendo para eles qualquer redenção:

 

“And I would make it very clear we were not going to, in fact, sell more weapons to them. We were going to, in fact, make them pay the price and make them, in fact, the pariah that they are. There's very little social redeeming value of the - in the present government in Saudi Arabia.”

 

Mesmo que depois já como Presidente tenha alterado a sua posição, será que a Casa Real Saudita se esqueceu ou perdoou?

 

 

 

Notas:

 

Sobre o efeito da vingança nos judeus, ver blog de 19 de junho de 2024, “O pedido da mãe: “Não te esqueças…”

 

Sobre o ressentimento, ver o blog de 8 de janeiro de 220, “O ressentimento na história”.

 

 

 

(484) O pedido da mãe: “Não te esqueças…”

Tempo estimado de leitura: 12 minutos.

 

Da necessidade de vingança como um desejo persistente de justiça.

 

O antissemitismo como antropologia totalitária e prática industrial de genocídio do século XX.

 

Quando os palestinos passam a ser vistos como “a continuação natural do agressor anterior”.

 

 

 

 

Com o 7 de outubro, o Holocausto e a sua memória voltam a aparecer com centralidade no pensamento israelita e judaico, aliás da mesma forma como já aparecera na ligação entre o Holocausto e a Guerra Árabe-Israelita de 1948, que foi ao mesmo tempo a Guerra da Independência de Israel e a Nakba (“catástrofe”) dos Palestinianos.

 

O sentimento de vingança dos judeus europeus durante e após o Holocausto, continua a persistir ao longo dos anos, muitas vezes de formas complexas e deslocadas. Só que um dos problemas da vingança é que no desejo de vingar atos errados, o passado deve persistir. Como o desejo vingativo está direcionado para o futuro, ele ressoa no presente e contribui para preservar a memória do passado ao não o deixar ir.

Mas isso não nos impede de compreender que a memória é algo que escolhemos, que requer construção e cultivo. Não é apenas um atributo natural ou um espaço vazio à espera de ser preenchido. Pelo que também se pode perceber o sentido humano da necessidade de vingança como um desejo persistente de justiça e, portanto, como um elemento para fomentar a memória, tanto pessoal como coletiva, que parte de um imperativo judaico de “nunca esquecer” o que aconteceu no Holocausto.

 

O antissemitismo como antropologia totalitária e prática industrial de genocídio do século XX, só foi possível acontecer se desde há séculos não tivesse existido a polémica antijudaica (os judeus como responsáveis pela morte de Cristo) iniciada pelos Padres da Igreja, e o antissemitismo instalado entre o povo nos lugares onde existiam guetos.

 Particularmente no último século, a extrema violência perpetrada contra os judeus exacerbou-se, a começar com o pogrom de Kishinev no Império Russo czarista (1903), com os massacres de mais de cem mil judeus que ocorreram na Ucrânia (1918 e 1921) por os considerarem coniventes com a Revolução Soviética, com o massacre de Hebrom na Palestina em 1929, e com os 6 milhões de judeus eliminados no Holocausto, pelo que tal não pode ter deixado de influenciar, moldar, justificar, um brutal sentimento de vingança.

 

Uma das figuras centrais desta vingança judaica logo no pós-Holocausto é a protagonizada pelo grupo conhecido como os “Vingadores”, liderado por Abba Kovner, que propôs a matança indiscriminada de 6 milhões de alemães envenenando o abastecimento de água nas quatro principais cidades alemãs (este seria o Plano A, sendo o Plano B o matar todos os oficiais das SS e da Gestapo que se encontravam prisioneiros). Interessante a coincidência de nos tempos que correm terem aparecido o livro de Dina Porat, Nakam: The Holocaust Survivors Who Sought Full-Scale Revenge (2022) e o filme, Plano A (2021), contando a história dos Vingadores. Os escritos e a ideologia de Kovner expressam conceitos que são centrais na cultura judaica e israelita que surgiram após o Holocausto e nos anos que rodearam a fundação de Israel.

Apesar deste interesse renovado no grupo possa criar a impressão que os Vingadores foram os únicos intervenientes, tal não era o caso.

 

Dos 30 mil judeus que viviam na Palestina antes da criação do Estado de Israel (no Yishuv, o assentamento judeu na Terra Santa – Mandato da Palestina gerido pela Grã Bretanha ) que se ofereceram para lutar ao lado do exército britânico contra os nazis, merece relevo o grupo da Brigada Judaica, que compreendia um total aproximado de 5 mil homens.

É em 1945, que os soldados da Brigada Judaica se encontraram pela primeira vez no norte de Itália com sobreviventes do Holocausto e refugiados, bem como com o grupo de guerrilheiros e combatentes que Kovner acabara de reunir em Lublin, na Polónia (cerca de 50 jovens, homens e mulheres, que, como vimos, tinham o desejo ardente de se vingarem não só dos nazis, mas de todo o povo alemão).

 

Para além das diferenças sobre o tipo de resistência e ações a desenvolver que cada um destes dois grupos preconizava, o importante é perceber  que, historicamente, Kovner vai acabar por representar uma ponte entre os sobreviventes do Holocausto, a maioria dos quais falava, lia e escrevia em iídiche, e os judeus da Brigada Judaica, que representavam o Yishuv.

E que, contudo, foram estes últimos que moldaram o espírito do Estado de Israel, alguns dos quais mais tarde acabaram por servir em cargos importantes nas Forças de Defesa de Israel (FDI) e no aparelho de segurança de Israel. Esta vem a ser a mudança significativa que se vem a verificar no sentido da introdução da vingança como parte do discurso sionista do poder militar no contexto do conflito com os árabes na Palestina por volta de 1948 e do estabelecimento do Estado de Israel.

 

É preciso compreender as maneiras pelas quais, durante e após o Holocausto, o desejo judaico de vingança se foi deslocando dos atos diretos contra nazis ou alemães para outros menos diretos, como a procura dos nazis que se tinham escondido, a Lei (Punição) dos Nazis e dos Colaboradores Nazis promulgada pelo Estado de Israel em 1950 para levar a tribunal soldados SS e nazis, e pessoas como Simon Wiesenthal, conhecidos como “caçadores de nazis”, que tentaram recolher informações e localizar nazis em todo o mundo.

 

 

Mesmo antes de todas as dimensões do extermínio nazi dos judeus europeus terem sido totalmente reveladas, os judeus escreveram e envolveram-se em debates profundos sobre a questão da vingança. A maior parte dessa escrita está em iídiche. O iídiche é a língua histórica dos judeus da Europa Central e Oriental, que remonta a 1.000 anos. É uma língua germânica, mas funde componentes semíticas, bem como elementos eslavos e outros elementos do local onde os judeus viviam. É uma língua da diáspora. O sionismo e, mais tarde, Israel rejeitaram-no em favor do hebraico moderno como língua nacional. Apesar do facto de a maioria dos sionistas serem falantes de iídiche, foi a língua que deve ser esquecida na construção da sociedade e da cultura israelitas.

Existem diferenças fundamentais entre o que os sobreviventes e refugiados que chegaram à Palestina/Israel depois de 1945 escreveram em iídiche e o que as pessoas que não vivenciaram diretamente os horrores do Holocausto escreveram em hebraico.

Assim, escrever no final da Segunda Guerra Mundial, sobre vingança em hebraico, adquiriu um novo significado. Em vez dos nazis ou dos alemães, a vingança contra os árabes serviu como núcleo emocional da literatura da guerra de 1948. Durante as “guerras das fronteiras de Israel”, entre 1949 e 1956, que foram essencialmente uma cadeia de “operações de represália” dominadas pela Unidade de Comando 101, a vingança continuou a ser uma força motriz.

 

Talvez, melhor que todos, o pequeno conto em iídiche de Avrom Karpinovitsh, “Don’t Forget” (1951), seja a charneira que nos consiga dar a entender como se dá essa sobreposição progressiva em que os palestinos passam a ser vistos como “a continuação natural do agressor anterior”.

O conto é sobre um soldado judeu vindo diretamente de um campo de deslocados chega à Palestina para ir logo para as batalhas de 1948, dando assim voz aos refugiados que imigraram para a Palestina/Israel tentando assimilar imediatamente a cultura israelita após sofrerem os horrores da Segunda Guerra Mundial.

 

 

 

Não te esqueças

 

1.

Numa batalha por uma pequena escarpa rochosa entre as montanhas bíblicas, um soldado judeu capturou um soldado inimigo. Durante muito tempo, o cativo disparou como um lagarto entre as passagens tortuosas em busca de um lugar para desaparecer, até que o seu perseguidor o ameaçou com uma baioneta e o obrigou a levantar os braços em sinal de rendição.

 

Tanto o vencedor como o vencido respiravam pesadamente, mas com o suor empoeirado a escorrer em gotas pesadas sobre os olhos, não conseguiam olhar diretamente um para o outro. O medo do que estava armado não era menos pronunciado e forte que o medo do cativo, que durante a perseguição tinha deitado fora a sua espingarda com os carregadores vazios. Esta foi a primeira batalha do soldado e ele nem sabia onde estava. Apenas uma semana atrás, ainda se encontrava em Chipre ocupado a cavar o último metro de um túnel sob a cerca de arame farpado. Há poucos dias, tinha chegado de barco à costa do país cuja guerra travava agora. Enquanto ouvisse a voz áspera e confiante de seu comandante, que conhecia cada pequeno trilho ao redor dessas áreas, ele não tinha motivos para se atemorizar— além da ordem de avançar para atacar. Colocar a responsabilidade da sua própria vida nas mãos desse jovem alto e com bigode, acalmou os medos confusos e agudos de que ele pudesse vir a acabar caído no chão, atingido por uma bala aleatória e covarde. Mas agora, no calor da batalha, tinha-se afastado do resto da sua unidade, para trazer de volta um prisioneiro vivo. Ele queria provar que ele, um soldado recém-chegado que não nascera aqui, também poderia ser um verdadeiro soldado de Israel – mas agora ele permanecia indefeso e congelado.

De repente, viu-se num mundo estranho de blocos de terra derrubados que se estendiam até o horizonte, em colinas rochosas e pontiagudas. As linhas duras e escarpadas da paisagem circundante aumentaram a sua ansiedade. Os seus olhos estavam acostumados a ver caminhos verdes abertos e suavemente ondulados, campos de centeio amarelo, trilhos ressequidos e algumas camponesas descalças carregando potes de leite.

 

Mesmo depois de muitos anos de peregrinação por vários países, ainda não resistia ao desejo de ver a paisagem da sua terra natal por todo o lado, embora essa saudade estivesse sempre ligada a recordações dolorosas da sua casa arruinada. Mas aqui tudo parecia novo e estranho – desde o pátio do kibutz, onde a sua unidade tomava o pequeno-almoço antes de partir para as montanhas, até aos espinhos pontiagudos enrolados aos seus pés.

 

O cativo ainda estava de pé, com o rosto pressionado contra a rocha, os braços para cima, sem ousar fazer qualquer movimento. Depois de um certo tempo, o soldado judeu começou a revistar o cativo, cutucando as suas costas com a ponta afiada da baioneta. Por um minuto o cativo prendeu a respiração. Mesmo não encontrando armas no cativo, o soldado deixou-o imóvel nessa posição. Que fazer a seguir? Deu outra olhadela minuciosa ao redor. A quietude do rescaldo da batalha tinha desaparecido no ar do início do outono. Agora, cada arranhão das botas com pregos no solo pedregoso obrigava o soldado a virar-se em busca de algo invisível, algo escondido entre as fendas nas rochas. Tentou novamente fixar o olhar no sopé da colina. Talvez houvesse alguma esperança ali, alguma orientação para a sua estranha situação. Mas, como antes, a paisagem não mostrava sinais de vida.

 

“Eles devem ter voltado para o kibutz, ou talvez se tenham posicionado em algum outro lugar e não quisessem denunciar-se se se mudassem”, pensou consigo mesmo. Mas a ideia não tornou as coisas mais fáceis. Em vez disso, apenas ficou mais irritado consigo mesmo e com o que tinha acontecido.

“Eu não deveria ter ido para tão longe sem conhecer a área… Deveria ter atirado – se o tivesse atingido, ótimo, e se não, quem se importa?” Ali parado, com a sua última esperança de encontrar até mesmo o menor vestígio de humanidade agora extinto, avistou de repente à distância uma coluna de fumaça cinza-escura subindo entre as rochas no sopé das montanhas. Olhou para a fumaça com mais atenção e um sorriso de alívio estendeu-se nos seus lábios secos. Só agora viu onde estava. Ficou chocado por não ter reconhecido o local antes: a sua unidade tinha começado a escalada mais cedo. A rocha pontiaguda e cónica e as outras duas rochas maciças revelaram-se familiares amigas.

 

“Se eles iniciaram o incêndio, então devem ter perseguido os árabes para lá das montanhas.” Tentou acalmar-se, mas estava com medo de avançar em direção aos seus companheiros, preocupado que o inimigo estivesse escondido em algum lugar atrás das rochas. Aqui, na ampla ravina, escondido atrás de um muro alto de pedra, sentia-se a salvo de qualquer perigo. Um passo à frente expô-lo-ia à bala de um franco-atirador. Tendo considerado várias opções, decidiu esperar até ao escurecer para então seguir em frente com o cativo à sua frente. Virou o prisioneiro com a baioneta até que os dois ficassem frente a frente e então fez-lhe sinal para que ele se sentasse numa pedra próxima. Ele sentou-se na rocha em frente ao cativo, segurando a arma carregada na mão.

 

2.

 

Sentados, ficaram os dois absortos nos seus pensamentos, tentando planear como poderiam restaurar o pequeno pedaço do mundo do qual cada um deles tinha sido acidentalmente expulso. O cativo apertou as mãos entre os joelhos e enterrou o olhar no chão, como se esperasse submissamente para saber qual o seu destino. Mas o seu rosto bonito e coberto de poeira e o seu ocasional olhar de lobo ao redor traíam que ele estava a pensar, planeando alguma coisa. O seu comportamento desconfortável, sentado na rocha, não correspondia ao fatalismo árabe comum que desencorajava qualquer movimento desnecessário. O cativo não suspirou, não cantou a melodia monótona e prolongada de bajulação e mendicância, não implorou e não fez votos de inocência, de “Eles enviaram-me e eu fui”. Permaneceu teimosamente quieto e apertou as mãos. As suas roupas não tinham nada daquele desleixo oriental específico. As calças estavam limpas de manchas de azeite. A camisa inglesa estava abotoada, caindo bem sobre seus ombros ossudos. Os sapatos bem ajustados ainda eram brilhantes e rígidos, apesar da corrida pela rocha e pela areia. “Provavelmente um oficial. Isso seria bom…"

 

O soldado sentia já o sabor do triunfo ao rever o seu povo. Sentou-se na rocha com bastante calma e ficou mais atento à coluna de fumaça que diminuía gradualmente do que ao cativo. A visão de encontrar os seus camaradas e comandante despertou a sua imaginação. A princípio, o comandante faria um esforço para manter o tom oficial, mas depois esquecer-se-ia, daria um toque no ombro do soldado e anunciaria com espanto infantil: “Você é mesmo um verdadeiro Palmachnik!” Sorvendo uma tigela de sopa quente, o comandante pedir-lhe-ia para contar toda a história desde o início. Todos ficavam de boca aberta, interrompendo-o com aplausos entusiasmados e aprovadores. E a rapariga do telégrafo, aquela sabra, não mais iria olhar através dele como se ele fosse invisível…ela não deveria pensar que eles eram os únicos que……sim, e o principal é que ele pediria um dia de folga para ir a Tel Aviv, pelo menos para conhecer a cidade.

As pessoas dizem que é tão bonita. Há quase dois anos que ele não ia ao cinema nem andava na rua. Durante todo esse tempo – apenas arame farpado e torres de vigia…E talvez fosse visitar Hanna, que lhe tinha dado a sua morada antes de partir…Rua Ben Yehuda…

 

A sua imaginação pintou uma fantasia do amanhã com cores fortes e ousadas. Tudo parecia agora mais próximo e mais feliz – a rua que ele conhecia apenas pelo nome, os meninos e meninas confiantes falando hebraico, os kibutzniks de óculos que sabem tudo e desprezavam os forasteiros, assim como hoje faziam na sala de jantar comunitária, e até mesmo as montanhas ameaçadoras e sombrias.

 

“Assim que a guerra terminar, irei trabalhar em algum lugar, estabelecer-me, talvez até num kibutz, por que não?”

 

De vez em quando, nuvens esparsas e passageiras obscureciam o sol de outono. Elas moviam-se lentamente pelo céu como enormes bolsas de ar prestes a explodir e a voar para longe. As montanhas azul-escuras misturavam-se com o horizonte escurecido e apagavam a fronteira entre a terra e o céu. Novas nuvens flutuaram e tomaram conta de todo o céu. O ar ficou tenso. Era difícil respirar, como se todo o corpo estivesse envolto num vapor húmido, como trapos quentes e húmidos.

 

“A chuva está a chegar…”

 

O soldado judeu olhou para o céu por um segundo. Nesse momento, o cativo, com agilidade felina, agarrou uma pedra. Antes que o captor pudesse olhar para trás, o cativo já estava com o braço levantado. O soldado, imerso em pensamentos, não teve tempo para puxar o gatilho. A espingarda na sua mão era como um pedaço de ferro inútil. Mas a sua hesitação foi momentânea: moveu-se mais rápido que o cativo, que tentou levantar-se da rocha e arremessar a pedra com mais força. O soldado já pairava sobre o prisioneiro, segurando a arma. O rosto pálido do cativo, contorcido numa careta de raiva animalesca, afrouxou instantaneamente com um medo mortal. O cativo deixou a pedra cair da mão, e quando o soldado ficou diante dele com os olhos arregalados, pronto para esfaqueá-lo com a baioneta brilhante, o cativo deu um passo para trás, estendeu as mãos e disse com uma voz rouca e sem fôlego: “Zi hobn kayn rekht, ikh bin krigsgefa

 

Ambos permaneceram congelados nesta posição, um na expectativa de um golpe mortal e o outro com uma surpresa terrível. Uma avalanche de fogo vermelho-carmesim inundou a mente do soldado judeu e quase o derrubou. O murmúrio rouco do cativo transportou-o mais uma vez para a cabana de barro no meio da floresta, onde ele e a sua mãe se esconderam após fugirem do gueto – “Não te esqueças, meu filho, e reza o Kadish pelo teu falecido pai. Mesmo que, Deus me livre, fiques sozinho, nunca te esqueças…” E mais tarde, durante a operação, quando o nazi, sob os gritos selvagens dos outros, bateu na cabeça de sua mãe com um revólver até que os seus cabelos grossos se tornassem sangrentos, o seu último grito perfurou as paredes de barro da cabana e cortou a floresta nevada para o mundo inteiro – “Não te esqueças…”

 

E quando eles, bêbados e cheios de comida, o perseguiram, seminu como estava, da cabana para o frio, ele ainda ouvia, enquanto corria, o uivo da mãe.

 

Não foi um pedido. Foi uma exigência. Ela certamente não se estava a referir apenas à oração do Kadish. Ela exigiu que ele não esquecesse aquele soldado inteligente, instigado pelos seus camaradas relinchantes, que conseguiu bater-lhe com a coronha do revólver, de modo que o seu cérebro ficasse todo espalhado como suco de uma fruta madura.

 

Este é ele… Aquele mesmo rosto pálido do Anjo da Morte. O mesmo olhar frio e cruel, lá na floresta, e aqui – com a pedra. As mesmas mãos do assassino com os dedos longos que a estrangularam com tanta força enquanto ela gritava… e talvez este não seja o mesmo homem?… É tudo a mesma coisa – um alemão…

 

A baioneta perfurou a barriga do cativo com tanta força que o seu corpo quase foi erguido no ar. O homem esfaqueado segurou o cano da arma com as duas mãos e tentou desesperadamente arrancá-la da carne viva. Isso enfureceu o captor. Ele puxou a arma e mais uma vez a enfiou sob as costelas do cativo; quanto mais este se contorcia a seus pés como um verme dissecado, mais fortes e persistentes eram os golpes. O soldado queria saciar a sua sede de vingança com o sangue desprezível que escorria entre as pedras. A cada estocada, a cada veia rasgada, a cada pedaço de carne cortada, ele buscava reparação. Mas a reparação não veio. Quanto mais ele cortava e cortava, quanto mais tentava usar o cano da espingarda para encontrar a fonte do mal que se escondia no coração do desprezível cativo, mais sentia uma sensação de repulsa. O corpo dilacerado e os intestinos cortados faziam o ar cheirar mal como um poço de lixo aberto. Ele teve que virar a cabeça.

 

“Teria sido melhor ter atirado nele…”

 

Deu um passo para o lado e sentou-se numa pedra, exausto. Algo corroia o seu coração: uma sede insatisfeita de vingança. Ele pôs a cabeça quente entre as palmas das mãos.

 

De repente, a imagem da mãe, com o rosto fresco numa noite de sexta-feira, surgiu diante dos seus olhos. Ela nunca mais voltaria para ele, nem mesmo com mil mortes deste homem assassinado. Sentiu vontade de se aconchegar em alguém próximo, alguém seu, para poder desabafar toda a sua indignação pela vida desperdiçada, para sentir a carícia suave de uma mão. Os seus ombros largos começaram a tremer com pequenos murmúrios de soluços infantis: Mame... mame.... Levantou a cabeça, encostou-a contra o lado do penhasco e deixou as lágrimas correrem livremente.

 

Um relâmpago cortou o céu escuro, seguido imediatamente por um trovão percorrendo toda a extensão da cordilheira. A chuva abria caminho através das nuvens espessas, como se uma represa tivesse sido rompida, e jorrava sobre a terra em chuvas densas. Ele permaneceu sentado imóvel sobre a rocha, deixando que as enormes gotas que salpicavam o seu rosto lavassem as suas lágrimas salgadas. A água parecia uma mão gentil acariciando-lhe a cabeça e acalmando as marteladas do sangue nas suas têmporas.

 

A chuva parou tão abruptamente quanto havia começado. Uma brisa fresca e suave moveu as nuvens, permitindo que o sol se despedisse do dia antes de derreter na vermelhidão acobreada atrás das montanhas. O crepúsculo começou a espalhar-se entre as falésias. Os riachos de água enxaguaram o sangue seco das rochas. A paisagem surgiu diante dele, como se fosse nova na Criação. As pedras limpas que antes o ameaçavam com as suas arestas afiadas agora pareciam tão familiares e próximas quanto animais domésticos. Os trilhos retorcidos e recém-lavados entre as rochas já não o assustavam mais. O céu escurecido abraçou-o calorosamente como um xale de mãe. Olhou em volta em todas as direções. As pedras curvaram para ele os seus corpos curvos e cheios de cicatrizes, com amizade.

 

Consolado e encorajado por cada pedra do solo da sua nova pátria, desceu a montanha com passos confiantes.

 

 

Notas:

 

É no blog de 21 de outubro de 2015, “Atecedentes consequentes”,https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/antecedentes-consequentes-7888, que aparece citado Amaury, Abade de Citeaux, que em 1209 não se coíbe de dizer: “Matem os a todos, o Senhor saberá quais são os seus”,

 

Sobre a colonização sionista da Palestina, blog de 31 de maio de 2020, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/261-a-colonizacao-sionista-da-palestina-69427 

 

Sobre o problema das matanças dirigidas, o blog de 27 de abril de 2022, “Intolerância”.

 

Sobre Netanyahu, como cumpridor dos imperativos religiosos e legais judaicos do Estado de Israel, o blog de 5 de abril de 2023, “Em defesa de Netanyahu”.

(483) Mil maneiras de olhar

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Nesta sociedade, o custo da sanidade é um certo nível de alienação, Terence McKenna.

 

Pode-se acreditar que tudo o que nos foi ensinado na escola sobre a nossa nação, o nosso governo, a nossa sociedade e o nosso mundo, é verdade.

 

Pode-se acreditar que somos governados por uma aliança internacional de plutocratas e de agências governamentais secretas que usam os governos como instrumentos para fazerem avançar as suas agendas de poder global.

 

Pode-se acreditar que na verdade, ninguém está no comando!

 

Pode-se acreditar que os humanos se encontram apenas numa estranha fase de transição evolutiva.

 

 

 

 

 

A aparente “confusão” em que o mundo em que vivemos - ou melhor dito, em que o “nosso” mundo em que vivemos, mesmo que a muito custo o identifiquemos como sendo também dos outros –, tem vindo a conduzir, na melhor das hipóteses, a formulações como a de Terence McKenna, quando nos diz que:

 

Nesta sociedade, o custo da sanidade é um certo nível de alienação”.

 

Ou, recorrendo também há muito recente formulação de David Mamet (Everywhere an Oink Oink, Simon & Schuster, Nova Iorque, dez. 2023), quando escreve que:

 

Todos sabemos que os nossos verdadeiros adversários são os suínos que se aproveitam da nossa boa natureza feita estupidez. Defendemo-nos contra as ameaças óbvias, mas os agressores estudam-nos para atacarem os nossos pontos sem defesa. É lógico.”

 

Mas tudo isto não é de estranhar porquanto vivemos mesmo num mundo em que, por exemplo, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas, de 15 de dezembro de 2022, passou uma resolução com vista a estabelecer uma moratória para abolir em todo o mundo a pena de morte, ela, apesar de aprovada por 125 votos a favor e 37 contra, com 22 abstenções, teve como votos contra os Estados Unidos (EUA), a Arábia Saudita, o Irão e a Coreia do Norte.

Num mundo em que assistimos às várias tentativas de ataque e defesa de um mundo unipolar entre os principais países, o que pode inclusivamente vir a implicar uma confrontação global entre potências com armamento nuclear, mas onde os salários estagnam e as desigualdades aumentam desabridamente, tendo como pano de fundo um colapso ambiental, há quem ligeiramente defenda intencionalmente a utilização de “pequenas armas nucleares”, dizem os espertos que táticas, como se não se lhe seguissem em resposta imediata as nucleares intercontinentais.

Estamos num tempo em que talvez seja avisado recordar aquela frase do filme Jogos de Guerra (WarGames) de 1983:

 

 “É um jogo estranho. A única coisa que se pode fazer para ganhar é não jogar”.

 

 

Uma maneira que temos de olhar para tudo isto que se está a passar é acreditarmos que tudo o que nos foi ensinado na escola sobre a nossa nação, o nosso governo, a nossa sociedade e o nosso mundo, seja verdade, e que certamente os nossos meios de comunicação nunca nos mentiriam. E que o mundo está uma confusão apenas porque as pessoas continuam a votar em líderes políticos errados e a fazerem escolhas pessoais erradas. Este é talvez o tipo de visão dominante neste nosso mundo em que vivemos, e onde se inclui também toda a doutrinação que nos tem sido inculcada pelas grandes e pequenas religiões.

 

Outra forma que temos para olhar para o que se está a passar é acreditarmos que o mundo está numa confusão porque somos governados por uma aliança internacional de plutocratas e de agências governamentais secretas que usam os governos como instrumentos para fazerem avançar as suas agendas de poder global, que escondem os seus governos através da propaganda e da ilusão de democracia. E é assim que estamos a ser conduzidos para guerras sem fim, exploração, ecocídio e arrogância nuclear, porque um bando de sociopatas acredita que a sua riqueza e poder são mais importantes que a vida humana, uma sociedade saudável e um planeta são.

 

Outra forma que temos para olhar para o que se está a passar é acreditarmos que na verdade ninguém está no comando , e isto porque não existe um  eu separado (o eu separado é uma alucinação causada por uma falha na cognição humana), que o organismo humano é um redemoinho de padrões de condicionamento que está inseparavelmente entrelaçado com o mundo material, que o livre arbítrio é um conto de fadas que contamos a nós mesmos, e porque os oligarcas e os gestores de impérios são apenas a ponta de um cristal de gelo caindo no chão, agindo de acordo com o seu próprio condicionamento inconsciente, sem nenhuma agência real ou controle próprio, como todos os outros. E que o mundo está uma confusão devido ao desdobramento de padrões de condicionamento cujas origens remontam ao início da vida neste planeta.

 

Outra forma que temos para olhar para o que se está a passar é acreditarmos que o mundo está uma confusão porque os humanos se encontram numa estranha fase de transição evolutiva, onde estes nossos cérebros recentemente evoluídos ainda não conseguiram entrar numa relação madura com a sua capacidade de pensamento abstrato. Que agora parecemos estranhos e parvos, da mesma forma que os pássaros provavelmente pareciam estranhos e estúpidos em algum daqueles momentos antes de conseguirem encontrar o jeito de voar. Que a única razão pela qual somos capazes de ser flagelados pela propaganda e convencidos a consentir em sistemas baseados na competição que estão a causar guerras e a destruir a nossa biosfera, é porque a nossa relação imatura com o pensamento faz com que, por medo e desejo por segurança, nos agarremos a narrativas mentais. E que um dia nos adaptaremos para além da maneira disfuncional como temos criado egos psicológicos e agendas de ego e tornar-nos-emos uma espécie plenamente consciente, ponto em que não mais será possível sermos atingidos pela propaganda e começaremos a mover-nos em harmonia com a vida terrestre, em vez de competir com ela.

 

Outra forma que temos para olhar para o que se está a passar é a de acreditarmos que o universo é como uma entidade que está apenas a tentar ver-se a si próprio. Que o alvorecer da vida neste planeta permitiu que o universo se experimentasse a si mesmo com os órgãos dos sentidos, que a chegada da humanidade lhe permitiu pensar e aprender sobre si mesmo, que a chegada da ciência humana lhe permitiu olhar cada vez mais profundamente para dentro de si mesmo com cada vez com mais detalhes, que a chegada de disciplinas internas lhe permitiu trazer consciência para o funcionamento anteriormente inédito da psicologia humana, e que a chegada do jornalismo e da internet lhe permitiu ver aspectos da dinâmica social e das estruturas de poder que costumavam serem muito pouco iluminados. Que o mundo está uma confusão apenas porque ainda há muita coisa que permanece invisível — em termos de percepção tecnológica, em termos de percepção sociopolítica e em termos de visão psicológica coletiva.

 

 

Muitas outras formas de olhar sobre o que se está a passar existem, inclusivamente aquelas em que nem se apercebem que algo se passa, mas na pobreza de espírito com que herdarei o Reino do Céu, quero crer que  quanto mais se descer (ou se subir) nessa procura de entendimento, menos espaço se encontra para a culpa e o ódio, e mais inocente tudo parece. Isto não contradiz o facto óbvio de que existem pessoas neste mundo cujo comportamento é muito destrutivo e que devem ser imobilizadas para a segurança de todos os outros, significa apenas que há uma inocência inata subjacente a tudo. Uma inocência que existirá mesmo se nos exterminarmos e levarmos toda a vida terrestre connosco.

 

 

(482) As escolhas do mexilhão

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Os estados tornam-se genocidas quando se organizam por forma a excluírem parte dos seus cidadãos.

 

Normalmente, não consideramos que os atos de um governo para com os seus próprios cidadãos justifiquem a nossa intervenção, Robert Jackson.

 

 

 

Os conflitos internacionais têm-nos sido sempre apresentados como uma batalha travada entre as Democracias Livres e as Autocracias do Mal. Mas qual é a diferença que há entre uma Democracia Livre e uma Autocracia do Mal? *

O que está a acontecer em Gaza talvez ajude a compreender essa distinção. Vejamos:

 

Nas Autocracias do Mal, os líderes cometem genocídios por questões de ódio e racismo, enquanto que nas Democracias Livres os líderes cometem genocídios por razões nobres e justas.

 

Nas Autocracias do Mal, a polícia é chamada para acabar com os protestos dos estudantes, para garantir a segurança do governo, enquanto que nas Democracias Livres, a polícia é chamada para acabar com os protestos dos estudantes, para garantir a segurança dos estudantes. **

 

Nas Autocracias do Mal, o governo monitoriza o discurso político nos campos universitários para suprimir a dissidência, enquanto que nas Democracias Livres o governo monitoriza o discurso político nos campos universitários para suprimir o “antissemitismo”.

 

Nas Autocracias do Mal, o governo controla os meios de comunicação e garante que estes apenas divulguem informações que sirvam os seus interesses, enquanto que nas Democracias Livres são os multimilionários que o fazem.

 

Nas Autocracias do Mal, os jornalistas que relatam factos inconvenientes são presos, enquanto que nas Democracias Livres os jornalistas que relatam factos inconvenientes são presos, só que na maioria das vezes também os matam com ataques aéreos.

 

Nas Autocracias do Mal, massacram civis com balas e facas, enquanto que nas Democracias Livres, como pessoas civilizadas, massacram civis com explosivos e cercos militares.

 

Nas Autocracias do Mal, o discurso político é fortemente restringido pelo governo, enquanto que nas Democracias Livres o discurso político é fortemente restringido pelas empresas de Silicon Valley em colaboração com o governo.

 

Nas Autocracias do Mal, matam civis desobedientes e enterram-nos em valas comuns, enquanto que nas Democracias Livres matam civis desobedientes e enterram-nos em valas comuns, mas depois os seus aliados vêm dizer solenemente que estão à espera de mais informações sobre essas muito graves alegações.

 

Nas Autocracias do Mal, bombardeiam hospitais, escolas e centros religiosos, assassinam líderes culturais e jornalistas e atacam deliberadamente infraestruturas civis em nome de infligir morte e terror, enquanto que nas Democracias Livres bombardeiam hospitais, escolas e centros religiosos, assassinam líderes culturais e jornalistas e atacam deliberadamente infraestruturas civis em nome da autodefesa.

 

Nas Autocracias do Mal, o direito internacional é flagrantemente desrespeitado, enquanto que nas Democracias Livres, desrespeitam flagrantemente o direito internacional.

 

Nas Autocracias do Mal, lançam bombas em áreas cheias de civis por causa de uma sede genocida de sangue, enquanto que nas Democracias Livres lançam bombas em áreas cheias de civis por causa dos “escudos humanos”.

 

Nas Autocracias do Mal, você será preso se for à TV e falar contra o governo, enquanto que nas Democracias Livres ninguém que se manifeste contra o governo poderá ter um emprego na TV.

 

Nas Autocracias do Mal, as pessoas têm medo de falar contra os crimes de guerra, a injustiça e a opressão porque serão punidas, enquanto que nas Democracias Livres as pessoas têm medo de falar contra os crimes de guerra, a injustiça e a opressão porque serão acusadas de odiar os Judeus.

 

Nas Autocracias do Mal, armam os terroristas com AK-47 e RPGs para os ajudar a infligir violência e sofrimento aos inocentes, enquanto que nas Democracias Livres armam os terroristas com aviões de guerra e bombas de 2.000 libras para os ajudar a infligir violência e sofrimento aos inocentes.

 

Nas Autocracias do Mal, as pessoas são mantidas demasiado brutalizadas e intimidadas para que não se levantem contra os seus governantes, enquanto que nas Democracias Livres as pessoas são mantidas demasiado sujeitas à propaganda e doutrinadas para que não se levantem contra os seus governantes.

 

Nas Autocracias do Mal, os meios de comunicação alimentam o público com um dilúvio ininterrupto de propaganda e as pessoas sabem que é propaganda, enquanto que nas Democracias Livres os meios de comunicação alimentam o público com um dilúvio ininterrupto de propaganda e as pessoas pensam que são notícias.

 

 

Referências:

 

*  Ver Caitlin Johnstone, “Gaza Shows Us The Difference Between Evil Autocracies And Free Democracies”,  30 de abril de 2024.

 

** Ver Michael Gould-Wartofsky, “Repress U., Class of 2024”, 28 de maio de 2024.

 

 

Notas:

 

RPG: Produzida no início de 1960, primeiro como arma anti-blindagens, a RPG-7 (Rocket-Propelled Grenade) é uma granada soviética impulsionada por foguete, disparada ao ombro, com um tubo reutilizável pronto a disparar outras RPG’s. As RPG-7 são baratas, fáceis de usar e com mais de nove milhões feitas, facilmente se encontram no mercado mundial de armamento.

 

Genocídio: para se tentar entender o que é “genocídio”, ver o blog de 29 de setembro de 2021, “Genocídios maus, os assim-assim, e os outros”, e o blog de 19 de abril de 2017, “Matar, mas com ética”.

 

Mexilhão: para melhor se entender o que é ser mexilhão, sugiro o blog de 20 de junho de 2018, “O que é ser mexilhão?”, e o de 27 de junho de 2018, “A saga do mexilhão virtual”.

 

(481) A bota que nos pisa é sempre uma bota

Tempo estimado de leitura: 2 minutos.

 

 

Canção da roda hidráulica (B. Brecht, 1934)

 

1

 

Poemas épicos dão-nos notícias

dos grandes deste mundo:

eles sobem como estrelas,

como estrelas caem.

É consolador e convém sabê-lo.

Mas para nós, aqueles que temos que alimentá-los,

Sempre foi, infelizmente, mais ou menos o mesmo.

Eles sobem e descem, mas à custa de quem?

A roda continua a girar.

O que hoje está em cima nem sempre continuará em cima.

Mas para a água de baixo, ai, isso significa apenas

que se tem de continuar a empurrar a roda.

 

2

 

Tivemos muitos senhores,

tivemos hienas e tigres,

tivemos águias e porcos.

E a todos eles alimentamos.

Melhores ou piores, era a mesma coisa:

A bota que nos pisa é sempre uma bota.

Já entendeste o que quero dizer:

não mudar de senhores, mas não ter nenhum.

A roda continua a girar.

O que hoje está em cima nem sempre continuará em cima.

Mas para a água de baixo, ai, isso significa apenas

que se tem de continuar a empurrar a roda.

 

3

 

Eles investem brutalmente,

lutam pelo saque.

Os demais, para eles, são tipos gananciosos

e a si mesmos consideram-se boas pessoas.

Incessantemente os vemos enfurecerem-se

e lutar entre si. Só apenas

quando não queremos mais continuar a alimentá-los

se põem rapidamente de acordo.

A roda já não gira mais,

e termina a farsa divertida

quando a água, por fim, liberta a sua força,

e se dedica a trabalhar apenas para ela.

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