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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(480) Oportunidade para a Paz

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

Deus criou os homens para desfrutar, e não para destruir, os frutos da terra e do seu próprio trabalho, D. Eisenhower.

 

Cada arma fabricada, cada navio de guerra lançado, cada foguete disparado significa, no sentido final, um roubo de quem tem fome e não se alimenta, de quem tem frio e não está vestido, D. Eisenhower.

 

A paz pode ser fortalecida, não por armas de guerra, mas pelo trigo e pelo algodão, pelo leite e pela lã, pela carne e pela madeira e pelo arroz., D. Eisenhower.

 

 

 

Tenho para mim que a grande maioria dos militares de carreira são contra as guerras (com a exceção de alguns poucos com ligações à indústria de armamentos ou em fim de carreira com outras ambições políticas bem definidas). Ao fim e ao cabo eles sabem (por estudos, profissão, e em muitos casos por participação direta e vivência) o que é a destruição física e moral que uma guerra, qualquer que ela seja, provoca.

Daí que as opiniões mais pró-militaristas (no sentido de advogarem o emprego das forças militares como único meio para resolver conflitos) sejam normalmente de civis armados em generais (alguns até se vestem à militar) com grande facilidade para falarem e convocarem outros para as guerras em que eles só participarão nas cadeiras rotativas dos gabinetes do poder. Já os militares terão de as fazer.

 

Em 16 de abril de 1953, o general Dwight D. Eisenhower, presidente dos EUA desde janeiro, proferiu um discurso perante a American Society of Newspaper Editors (Sociedade Americana de Editores de Jornais), a quando da sua convenção anual que se realizava no Statler Hotel, em Washington, que intitulou The Chance for Peace (Oportunidade para a Paz).

Com a recente morte de Estaline a 5 de março e o consequente vácuo de poder, Eisenhower vai elaborar a sua visão para os tempos mais próximos e futuros, partindo do princípio de que os acontecimentos permitiam uma sincera ocasião para a paz no mundo e para a melhoria das condições de vida, especialmente através de um decréscimo dos gastos com as forças militares. Era para ele claro que qualquer corrida aos armamentos implicaria sempre grandes sacrifícios domésticos.

Esta sua visão revelou-se não ser apenas conjuntural, porquanto, oito anos depois, a quando do seu discurso de despedida ao povo americano nos finais de 1961, Eisenhower atribuiu o sorvedor de grande fatia da riqueza do país, inteligência, energias e liberdades, ao que passou a reconhecer como o “complexo militar-industrial”.

 

 A Oportunidade para a Paz (The Chance for Peace)                                             

 

“NESTA PRIMAVERA de 1953, a questão que o mundo livre pondera acima de todas as outras é a da possibilidade de uma paz justa para todos os povos.

Ponderar esta oportunidade é evocar instantaneamente um outro momento recente de grande decisão. Chegou com aquela primavera ainda mais esperançosa de 1945, brilhante com a promessa de vitória e de liberdade. A esperança de todos os homens justos naquele momento era também uma paz justa e duradoura.

Os 8 anos que se passaram viram essa esperança vacilar, diminuir e quase morrer. E a sombra do medo novamente se alongou sombriamente por todo o mundo.

Hoje, a esperança dos homens livres permanece teimosa e corajosa, mas é severamente disciplinada pela experiência. Ela evita não apenas todo o conselho grosseiro de desespero, mas também o autoengano da ilusão fácil. Pesa a possibilidade de paz com o conhecimento claro e seguro do que aconteceu à vã esperança de 1945.

Naquela primavera de vitória, os soldados dos Aliados Ocidentais encontraram-se com os soldados da Rússia no centro da Europa. Eles eram então camaradas de armas triunfantes. Os seus povos partilhavam a alegre perspetiva de construir, em honra dos seus mortos, o único monumento adequado – uma era de paz justa. Todos esses povos cansados ​​da guerra partilhavam também este propósito concreto e decente: proteger-se vigilantemente contra a dominação de qualquer parte do mundo por um poder agressivo único e desenfreado, nunca mais.

Este propósito comum durou um instante e pereceu. As nações do mundo dividiram-se para seguir dois caminhos distintos.

Os Estados Unidos e os nossos valiosos amigos, as outras nações livres, escolheram um caminho.

Os líderes da União Soviética escolheram outro.

O caminho escolhido pelos Estados Unidos foi nitidamente marcado por alguns preceitos claros, que regem a sua conduta nos assuntos mundiais.

 

Primeiro: Nenhum povo na terra pode ser considerado, como povo em si, como inimigo, pois toda a humanidade partilha a fome comum de paz, de companheirismo e de justiça.

Segundo: A segurança e o bem-estar de nenhuma nação podem ser alcançados de forma duradoura isoladamente, mas apenas em cooperação eficaz com outras nações.

Terceiro: O direito de qualquer nação a uma forma de governo e a um sistema económico da sua própria escolha é inalienável.

Quarto: A tentativa de qualquer nação de ditar a outras nações a sua forma de governo é indefensável.

E Quinto: a esperança de uma nação a uma paz duradoura não pode basear-se em qualquer corrida armamentista, mas sim em relações justas e na compreensão honesta com todas as outras nações.

 

À luz destes princípios, os cidadãos dos Estados Unidos definiram o caminho que propunham seguir, após a guerra, em direção à verdadeira paz.

 

Esta forma foi fiel ao espírito que inspirou as Nações Unidas: proibir conflitos, aliviar tensões, banir medos. Esta é a forma para controlar e reduzir os armamentos. Esta forma permitiria que todas as nações dedicassem as suas energias e recursos às grandes e boas tarefas de curar as feridas da guerra, de vestir, alimentar e alojar os necessitados, de aperfeiçoar uma vida política justa, de desfrutar dos frutos do seu próprio trabalho.

 

O governo soviético tinha uma visão muito diferente do futuro.

No mundo em que foi concebido, a segurança devia ser encontrada, não na confiança mútua e na ajuda mútua, mas na força: exércitos enormes, subversão, domínio de nações vizinhas. O objetivo era a superioridade de poder a todo custo. A segurança deveria ser alcançada negando-a a todos os outros.

 

O resultado foi trágico para o mundo e, para a União Soviética, também foi irónico.

A acumulação do poder soviético alertou as nações livres para um novo perigo de agressão. Obrigou-os, em legítima defesa, a gastar dinheiro e energia sem precedentes em armamentos. Forçou-os a desenvolver armas de guerra agora capazes de infligir castigos instantâneos e terríveis a qualquer agressor.

Incutiu nas nações livres – e que ninguém duvide disso – a convicção inabalável de que, enquanto persistir uma ameaça à liberdade, devem, a qualquer custo, permanecer armadas, fortes e preparadas para o risco de guerra.

Inspirou-os – e não deixemos que ninguém duvide disso – a alcançar uma unidade de propósito e de vontade que ultrapassa o poder da propaganda ou da pressão para quebrar, agora ou sempre.

 

Permaneceu, no entanto, uma coisa essencialmente inalterada e não afetada pela conduta soviética: a disponibilidade das nações livres para acolher sinceramente qualquer evidência genuína de objetivos pacíficos que permitisse a todos os povos retomar novamente a sua busca comum de uma paz justa.

As nações livres, da forma mais solene e repetida, garantiram à União Soviética que a sua firme associação nunca teve qualquer propósito agressivo. Os líderes soviéticos, no entanto, pareceram persuadir-se a si próprios, ou tentaram persuadir o seu povo, do contrário.

E assim aconteceu que a própria União Soviética partilhou e sofreu os mesmos receios que fomentou no resto do mundo.

Este tem sido o modo de vida forjado por 8 anos de medo e força.

 

O que pode o mundo, ou qualquer nação nele, esperar se não for encontrada nenhuma curva nesta terrível estrada?

O pior a ser temido e o melhor a ser esperado podem ser simplesmente declarados.

 

O pior é a guerra atómica.

 

O melhor seria isto: uma vida de medo e tensão perpétuos; um fardo de armas que drena a riqueza e o trabalho de todos os povos; um desperdício de força que desafia o sistema americano ou o sistema soviético ou qualquer sistema para alcançar a verdadeira abundância e felicidade para os povos desta terra.

 

Cada arma fabricada, cada navio de guerra lançado, cada foguete disparado significa, no sentido final, um roubo de quem tem fome e não se alimenta, de quem tem frio e não está vestido. Este mundo em armas não gasta dinheiro sozinho.

Está a gastar o suor dos seus trabalhadores, o génio dos seus cientistas, as esperanças dos seus filhos.

O custo de um bombardeiro pesado moderno é este: uma escola moderna de tijolos em mais de 30 cidades.

São duas fábricas de energia elétrica, cada uma fornecendo uma cidade de 60 mil habitantes.

São dois hospitais excelentes e totalmente equipados. São cerca de 80 quilómetros de rodovia de concreto.

Pagamos por um único avião de combate com meio milhão de alqueires de trigo.

Pagamos por um único contratorpedeiro com novas casas que poderiam abrigar mais de 8.000 pessoas.

 

Este, repito, é o melhor modo de vida que se pode encontrar no caminho que o mundo tem tomado.

Este não é um modo de vida, em nenhum sentido verdadeiro. Sob a nuvem da ameaça de guerra, é a humanidade pendurada numa cruz de ferro.

 

Estas verdades claras e cruéis definem o perigo e apontam a esperança que vem com isso nesta primavera de 1953.

Este é um daqueles momentos nos assuntos das nações em que as escolhas mais graves devem ser feitas, se quisermos que haja uma viragem em direção a uma paz justa e duradoura.

É um momento que apela aos governos do mundo para que expressem as suas intenções com simplicidade e honestidade.

Exorta-os a responder à pergunta que mexe com os corações de todos os homens sãos: não há outra maneira de o mundo viver?

 

O mundo sabe que uma era terminou com a morte de Joseph Stalin. O extraordinário período de 30 anos do seu governo viu o Império Soviético expandir-se para alcançar desde o Mar Báltico até ao Mar do Japão, para finalmente dominar 800 milhões de almas.

O sistema soviético moldado por Estaline e pelos seus antecessores nasceu de uma Guerra Mundial. Sobreviveu com uma coragem obstinada e muitas vezes espantosa à Segunda Guerra Mundial. Viveu para ameaçar uma terceira.

Agora, uma nova liderança assumiu o poder na União Soviética. As suas ligações ao passado, por mais fortes que sejam, não podem ligá-la completamente. O seu futuro depende, em grande parte, da sua responsabilidade.

Esta nova liderança confronta um mundo livre desperto, como raramente na sua história, pela vontade de permanecer livre.

Este mundo livre sabe, pela amarga sabedoria da experiência, que a vigilância e o sacrifício são o preço da liberdade.

Sabe que a defesa da Europa Ocidental exige imperativamente a unidade de objetivos e de ação tornada possível pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, abrangendo uma Comunidade Europeia de Defesa.

Sabe que a Alemanha Ocidental merece ser um parceiro livre e igual nesta comunidade e que este, para a Alemanha, é o único caminho seguro para a unidade plena e final.

Sabe que as agressões na Coreia e no Sudeste Asiático são ameaças a toda a comunidade livre que devem ser enfrentadas através de uma ação unida.

 

Este é o tipo de mundo livre que a nova liderança soviética enfrenta. É um mundo que exige e espera o mais pleno respeito dos seus direitos e interesses. É um mundo que sempre concederá o mesmo respeito a todos os outros.

Assim, a nova liderança soviética tem agora uma oportunidade preciosa de despertar, juntamente com o resto do mundo, para o ponto de perigo atingido e de ajudar a inverter a maré da história.

E fará isso?

Ainda não sabemos. Declarações e gestos recentes dos líderes soviéticos dão algumas provas de que podem reconhecer este momento crítico.

Acolhemos com satisfação todo ato honesto de paz.

Não nos importamos com mera retórica.

Defendemos apenas a sinceridade de propósitos pacíficos atestados por ações. As oportunidades para tais ações são muitas. A execução de um grande número deles não depende de protocolos complexos, mas da simples vontade de realizá-los. Mesmo alguns desses atos claros e específicos, como a assinatura pela União Soviética de um tratado austríaco ou a libertação de milhares de prisioneiros ainda detidos da Segunda Guerra Mundial, seriam sinais impressionantes de intenções sinceras. Eles carregariam um poder de persuasão que não seria igualado por qualquer quantidade de oratória.

Isto nós sabemos: um mundo que começa a testemunhar o renascimento da confiança entre as nações pode encontrar o seu caminho para uma paz que não seja parcial nem punitiva.

Com todos os que trabalharem de boa fé para alcançar essa paz, estamos prontos, com determinação renovada, a esforçar-nos para redimir os que estão quase perdidos.

O primeiro grande passo neste caminho deve ser a conclusão de um armistício honroso na Coreia.

Isto significa a cessação imediata das hostilidades e o início imediato de discussões políticas que conduzam à realização de eleições livres numa Coreia unida.

Deve significar, não menos importante, o fim dos ataques diretos e indiretos à segurança da Indochina e da Malásia. Pois qualquer armistício na Coreia que apenas libertasse exércitos agressivos para atacar noutros lugares seria uma fraude.

Procuramos, em toda a Ásia e em todo o mundo, uma paz verdadeira e total.

Disto pode surgir uma tarefa ainda mais ampla – a obtenção de acordos políticos justos para outras questões sérias e específicas entre o mundo livre e a União Soviética.

Nenhuma destas questões, grandes ou pequenas, é insolúvel – dada apenas a vontade de respeitar os direitos de todas as nações.

Novamente dizemos: os Estados Unidos estão prontos para assumir a sua justa parte.

Já fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para acelerar a conclusão de um tratado com a Áustria, que libertará aquele país da exploração económica e da ocupação por tropas estrangeiras.

Estamos prontos não só para avançar com os atuais planos para uma unidade mais estreita das nações da Europa Ocidental, mas também, com base nessa base, para nos esforçarmos por promover uma comunidade europeia mais ampla, propícia à livre circulação de pessoas, de comércio e de Ideias.

A sua comunidade incluiria uma Alemanha livre e unida, com um governo baseado em eleições livres e secretas.

Esta comunidade livre e a total independência das nações da Europa Oriental poderão significar o fim da atual divisão antinatural da Europa.

À medida que o progresso em todas estas áreas fortalece a confiança mundial, poderemos prosseguir simultaneamente com a próxima grande obra – a redução do fardo dos armamentos que agora pesa sobre o mundo. Para este fim, saudaríamos e celebraríamos os acordos mais solenes. Isso poderia incluir adequadamente:

 

  1. A limitação, por números absolutos ou por uma proporção internacional acordada, do tamanho das forças militares e de segurança de todas as nações.
  2. Um compromisso de todas as nações para estabelecer um limite acordado para a proporção da produção total de certos materiais estratégicos a ser dedicada a fins militares.
  3. Controlo internacional da energia atómica para promover a sua utilização apenas para fins pacíficos e para garantir a proibição de armas atómicas.
  4. Limitação ou proibição de outras categorias de armas de grande poder destrutivo.
  5. A aplicação de todas estas limitações e proibições acordadas através de salvaguardas adequadas, incluindo um sistema prático de inspeção no âmbito das Nações Unidas.

 

Os detalhes de tais programas de desarmamento são manifestamente críticos e complexos. Nem os Estados Unidos nem qualquer outra nação podem afirmar possuir uma fórmula perfeita e imutável. Mas a fórmula importa menos do que a fé – a boa fé sem a qual nenhuma fórmula pode funcionar de forma justa e eficaz.

O fruto do sucesso em todas estas tarefas apresentaria ao mundo a maior tarefa e a maior oportunidade de todas. É isto: a dedicação das energias, dos recursos e da imaginação de todas as nações pacíficas a um novo tipo de guerra. Esta seria uma guerra total declarada, não contra qualquer inimigo humano, mas contra as forças brutais da pobreza e da necessidade.

A paz que procuramos, baseada na confiança decente e no esforço cooperativo entre as nações, pode ser fortalecida, não por armas de guerra, mas pelo trigo e pelo algodão, pelo leite e pela lã, pela carne e pela madeira e pelo arroz. Estas são palavras que se traduzem em todos os idiomas do planeta. Estas são necessidades que desafiam este mundo em armas.

 

Esta ideia de um mundo justo e pacífico não nos é nova nem estranha. Inspirou o povo dos Estados Unidos a iniciar o Programa de Recuperação Europeia em 1947. Esse programa foi preparado para tratar, com igual e igual preocupação, as necessidades da Europa Oriental e Ocidental.

Estamos preparados para reafirmar, com as provas mais concretas, a nossa disponibilidade para ajudar a construir um mundo em que todos os povos possam ser produtivos e prósperos.

Este Governo está pronto a pedir ao seu povo que se junte a todas as nações na consagração de uma percentagem substancial das poupanças conseguidas pelo desarmamento para um fundo de ajuda mundial e de reconstrução. Os objetivos deste grande trabalho seriam ajudar outros povos a desenvolver as áreas subdesenvolvidas do mundo, estimular o comércio mundial lucrativo e justo, ajudar todos os povos a conhecer as bençãos da liberdade produtiva.

 

Os monumentos a este novo tipo de guerra seriam estes: estradas e escolas, hospitais e casas, comida e saúde.

 

Em suma, estamos prontos para dedicar as nossas forças ao serviço das necessidades, e não dos medos, do mundo.

 

Estamos prontos, através destas e de todas as outras ações, para fazer das Nações Unidas uma instituição que possa efetivamente proteger a paz e a segurança de todos os povos.

Não sei de nada que possa acrescentar para tornar mais claro o propósito sincero dos Estados Unidos.

Não conheço nenhum caminho, além daquele marcado por estas e outras ações semelhantes, que possa ser chamado de estrada da paz.

Conheço apenas uma questão que aguarda o progresso. É esta:

 

O que está a União Soviética pronta para fazer?

 

Seja qual for a resposta, deixe-a ser dita claramente.

Mais uma vez dizemos: a fome de paz é demasiado grande, a hora na história é demasiado tardia para qualquer governo zombar das esperanças dos homens com meras palavras, promessas e gestos.

O teste da verdade é simples. Não pode haver persuasão senão por meio de ações.

Estará a nova liderança da União Soviética preparada para usar a sua influência decisiva no mundo comunista, incluindo o controlo do fluxo de armas, para trazer não apenas uma trégua conveniente na Coreia, mas também uma paz genuína na Ásia?

Está a Comissão disposta a permitir a outras nações, incluindo as da Europa Oriental, a livre escolha das suas próprias formas de governo?

Está preparada para agir em concertação com outros sobre propostas sérias de desarmamento, que serão tornadas firmemente eficazes através de controlo e inspeção rigorosos da ONU?

Se não, onde estão então as provas concretas da preocupação da União Soviética pela paz?

O teste é claro.

Existe, diante de todos os povos, uma oportunidade preciosa de inverter a maré negra dos acontecimentos. Se não tentássemos aproveitar esta oportunidade, o julgamento das eras futuras seria duro e justo.

Se nos esforçarmos, mas fracassarmos e o mundo continuar armado contra si mesmo, pelo menos não será necessário continuar dividido no seu claro conhecimento de quem condenou a humanidade a este destino.

O objetivo dos Estados Unidos, ao apresentar estas propostas, é simples e claro.

Estas propostas surgem, sem propósitos ocultos ou paixão política, da nossa calma convicção de que a fome de paz está nos corações de todos os povos – tanto os da Rússia e da China como os do nosso próprio país.

Elas estão em conformidade com a nossa firme fé de que Deus criou os homens para desfrutar, e não para destruir, os frutos da terra e do seu próprio trabalho.

 

A isto aspiram: levantar, das costas e do coração dos homens, o peso das armas e dos medos, para que possam encontrar diante de si uma época de ouro de liberdade e de paz.”

 

 

(479) Útil, para quem?

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Sobre a procura do saber sem objetivo prático imediato como forma de preservar a dignidade humana.

 

Os “homens livres” são os que não têm problemas de tempo e não têm de prestar contas a ninguém, Sócrates.

 

Onde “exista a propriedade privada […] tudo se mede pelo dinheiro, Tomás Moro.

 

Não há nada inútil, nem sequer a própria inutilidade, Montaigne.

 

Onde não há humor, onde não há risos, há cólera e ódio, Ionesco.

 

 

 

O inútil

 

Publicado em 2013, L’utilità dell’inutile, é um pequeno e compacto livro, onde o pensador italiano Nuccio Ordine nos presenteia com uma erudita coleção de opiniões de reconhecidos filósofos e escritores sobre a importância da procura do saber sem objetivo prático imediato como forma de preservar a dignidade humana, tentando assim contrariar aquele conceito muito arreigado nos tempos em que vivemos de que o útil vem sempre associado a tudo o que nos ajuda a ser melhores.

 

Começa pelo Teeteto, onde Platão põe Sócrates a distinguir entre “escravos” e “homens livres”, segundo os que frequentam os tribunais e os que se dediquem exclusivamente à filosofia:

 

Aos que têm andado desde muito jovens pelos tribunais e lugares semelhantes parecem ter sido educados como escravos, se os compararmos aos homens livres, educados na filosofia e nesta classe de ocupações” (Teeteto, 172cd).

 

 

 

Os “homens livres” serão os que não têm problemas de tempo e não têm de prestar contas a ninguém, ao passo que os “escravos” estão condicionados pela clepsidra e por um amo que decide.

Pelo que os escravos, animados pelo objetivo que perseguem, “sabem como adular o seu amo com palavras e seduzi-lo com obras”, renunciando assim a toda a retidão:

 

A escravidão que sofreram desde jovens arrebatou-lhes a grandeza de alma, bem como a honestidade e a liberdade […] Entregues assim à mentira e a injúrias mútuas, tantas vezes se curvam e se torcem, que chegam à madurez sem nada são no pensamento. Eles, contudo, acreditam que se tornaram hábeis e sábios” (173a-b).

 

Também Aristóteles, na sua Metafísica, vai afirmar com clareza que a ideia do conhecimento nos seus graus mais altos não tem nada a ver com uma “ciência produtiva”, e que a cultura deve ser preservada da força corrosiva do dinheiro e do benefício:

 

“[os homens] filosofam para fugir da ignorância, claramente buscam o saber com vista ao conhecimento, e não por alguma utilidade”.

 

Sobre a inutilidade das artes, vai ser Ovídio o mais assertivo quando numa das Epistulae ex Ponto escreve:

 

Por mais que te esmeres a tentar encontrar o que posso fazer, não haverá nada mais útil que estas artes, que não têm qualquer utilidade

 

Embora considerando, talvez, como um remédio para a dor do exílio em que fora colocado, sabe que da poesia não se podia extrair nenhuma vantagem. Até pelo contrário, foram os seus versos que ocasionaram o seu infortúnio. E, à pergunta dum amigo sobre as razões porque continuava a escrever:

 

Do mesmo modo, conservo com constância, esta afeição inútil.”

 

Nuccio Ordine vai também citar escritores utópicos do século XVI, autores que mostram os efeitos e as contradições de uma sociedade europeia que perdeu os valores essenciais da vida e da solidariedade humana. Inevitavelmente Tomás Moro (Utopia, 1516), que põe os habitantes da sua ilha como detestando de tal maneira o ouro que o utilizam para fazer urinóis.

Para Moro, onde “exista a propriedade privada […] tudo se mede pelo dinheiro”, impedindo “que no estado reinem a justiça e a prosperidade”:

 

A não ser que se considere justo um Estado em que o melhor pertence aos piores e próspero um país em que um punhado de indivíduos repartam entre si todos os bens

 

Para Tommaso Campanella (A Cidade do Sol, 1623), são a propriedade privada e o afã de possuir, as causas principais da corrupção, estando convencido que “as riquezas [que fazem os homens] insolentes, soberbos, ignorantes, traidores, falsos de amor, presunçosos da sua ignorância”. Os solares viajam apenas para adquirirem novos conhecimentos.

 

Já para Francis Bacon, na sua Nova Atlântida (1617), a propriedade privada não era proscrita, os seus habitantes não comerciam “por ouro, prata ou joias, nem por sedas, nem por especiarias”, mas apenas para aumentar o conhecimento, para recolher informação sobre “invenções de todo o mundo” e para procurar “livros”.

Perseguir o bem-estar, permitir a circulação do ouro e prata, significa também ajustar contas com as ambiguidades da técnica e com os perigos da corrupção.

 

E Montaigne, nos Ensaios (1580-1588), diz-nos: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria do meu livro: não é razoável que empregues o teu tempo num assunto tão frívolo e tão vão”. Um livro inútil, portanto, que se concebe numa biblioteca construída precisamente donde antes existira um guarda-fatos, “o lugar mais inútil da casa”.

Montaigne passa o tempo, em solidão, a estudar para se divertir e não para ganhar alguma coisa: “Neste momento estudo para me distrair; nunca por ganância”. Sabe perfeitamente que a filosofia é considerada como coisa “de nula utilidade e de valor nulo”. Para concluir que “não há nada inútil, nem sequer a própria inutilidade.”

 

Immanuel Kant, vai associar a ideia de desinteresse ao juízo estético. É na Crítica da Faculdade do Juízo (1790), que liga o interesse ao prazer e à existência do objeto: dado que “todo o interesse pressupõe uma necessidade ou a produz e, como fundamento da determinação do aplauso, já não deixa que o juízo sobre o objeto seja livre”. Daí que “o gosto no belo é o único comprazimento desinteressado e livre, pois não há qualquer interesse, nem o dos sentidos nem o da razão, que arranque o aplauso”.

É com base nesta noção de desinteresse que vai formular a sua célebre definição do gosto:

 

Gosto é a faculdade de julgar um objeto ou uma representação mediante uma satisfação ou um descontento, sem interesse nenhum. O objeto de semelhante satisfação chama-se belo.”

 

Com o desenvolvimento das teorias utilitaristas, Nuccio vai discorrer sobre Théophile Gautier, cujo prefácio à sua novela Mademoiselle de Maupin, (1834), acaba por ser considerado como o manifesto da “Arte pela Arte”, reação de uma geração em revolta contra os que “têm a pretensão de ser economistas e de querer reconstruir a sociedade de cima abaixo”:

 

Não, imbecis, não, cretinos e papudos como sois, um livro não faz sopa de gelatina; uma novela não é um par de botas descosidas […] um drama não é uma via férrea, todas elas coisas essencialmente civilizadoras e que fazem com que a humanidade avance pelo caminho do progresso”.

 

Segue-se-lhe Baudelaire, que na sua crítica social à sociedade que tudo condenava “salvo o dinheiro” e onde qualquer coisa que “se assemelhe à virtude” era considerada “imensamente ridícula”, levaria a justiça dessa sociedade a “proibir a existência de cidadãos incapazes de se enriquecerem”. A corrupção tomará conta das famílias ao ponto das mulheres e filhas se converterem em vis mercadorias comerciáveis:

 

A tua esposa, Oh. Burguês! Tua casta metade, cuja honra é para ti o fundamento da poesia, ao introduzir na legalidade uma infâmia reprovável, guarda vigilante e amorosa da tua caixa forte, passará a ser o ideal perfeito da mulher mantida. A tua filha, com nubilidade infantil, sonhará desde o berço que se vende por um milhão. E tu mesmo, oh. Burguês, serás incapaz de dizer qualquer coisa; mas tal não te pesará o mínimo.”

 

Na sociedade contemporânea, Nuccio escolhe Martin Heidegger para expressar a dificuldade geral para se entender qualquer coisa que não implique o uso prático e imediato para fins técnicos:

 

O mais útil é o inútil. Mas experienciar o inútil é o mais difícil para o ser humano atual. Entende-se o “útil” como o utilizável praticamente, imediatamente, para fins técnicos, para o que consegue algum efeito com o qual eu possa fazer negócios e produzir. Deve-se ver o útil como o curativo, isto é, o que leva o ser humano a si mesmo”.

 

Eugène Ionesco, numa conferência em fevereiro de 1961, entende que para uma humanidade extraviada que perdeu o sentido da vida, a inutilidade torna-se insubstituível:

 

Olhai as pessoas que correm afanosamente pelas ruas. Não olham nem para a esquerda, nem para a direita, com rostos preocupados, olhos fixos no chão como os cães. Lançam-se para a frente, sem sequer olhar, pois percorrem maquinalmente o trajeto conhecido de antemão. Em todas as grandes cidades do mundo passa-se o mesmo. O homem moderno, universal, é o homem sem tempo, prisioneiro da necessidade, não compreende que algo possa não ser útil; não compreende tão-pouco que, no fundo, o útil possa ser um peso inútil, esgotante. Se não se compreende a utilidade do inútil, a inutilidade do útil, não se compreende a arte. E um país onde não se compreende a arte é um país de escravos ou de robôs, um país de gente sem dedicação, de gente que não ri nem sorri, um país sem espírito: onde não há humor, onde não há risos, há cólera e ódio”.

 

Mas, contudo, o herói por excelência da inutilidade é o mítico don Quijote. Todas as suas empresas são inspiradas pela gratuidade, pela única necessidade de servir com entusiasmo os seus ideais. Herói do inútil e do gratuito:

 

Pero no es merecedora la depravada edad nuestra de gozar tanto bien como el que gozaron las edades donde los andantes caballeros tomaron a su cargo y echaron sobre sus espaldas la defensa de los reinos, el amparo de las doncellas, el socorro de los huérfanos y pupilos, el castigo de los soberbios y el premio de los humildes.”

 

 

O útil

 

Noticiado pela Bloomberg, num artigo de Spencer Soper de 28 de junho de 2021: “Despedido por um bot na Amazon: Tu contra a máquina”:

 

Stephen Normandin passou quase quatro anos em Phoenix entregando encomendas como camionista contratado pela Amazon.com Inc. Até que um dia, recebeu um email automático. Os algoritmos que o seguiam decidiram que ele não estava a fazer corretamente o seu trabalho.”

 

Os camionistas estão a serem despedidos por algoritmos, via email, mesmo quando não fazem nada de errado.

Numa das maiores empresas da indústria de jogos, a Xsolla, 150 empregados foram despedidos por email, conforme relata Andy Brown a 9 de agosto de 2021 no NME. O email dizia o seguinte:

 

“You received this email because my big data team analyzed your activities in Jira, Confluence, Gmail, chats, documents, dashboards and tagged you as unengaged and unproductive employees. In other words, you were not always present at the workplace when you worked remotely.”

E acrescentava:

“Muitos de vocês podem estar chocados, mas acredito que a Xsolla não é para vocês”, e terminava, após uma listagem dos empregados despedidos, “Se quiserem manter-se em contacto, por favor escrevam uma longa carta com todas as vossas observações, injustiças e gratidão.”

 

E uma das utilidades da IA continua a aperfeiçoar-se, como nos dá conta esta notícia do Business Insider (BI) de 25 de abril de 2024, relata Grace Kay:

 

“A Tesla, demitiu mais de 10% de sua força de trabalho na noite de domingo.

 Alguns empregados da fábrica só perceberam que foram despedidos quando os seus cartões de identificação deixaram de funcionar.

Os empregados da fábrica de Nevada esperaram duas horas para entrar devido à verificação dos cartões de identificação.

 

A Tesla disse aos empregados na noite de domingo que estava a despedir mais de 10% da sua força de trabalho, mas alguns trabalhadores só perceberam que tinham sido despedidos quando compareceram nas instalações da empresa e foram impedidos de entrar pelos cartões de identificação terem sido cancelados.

Os empregados da Tesla que foram despedidos foram avisados por e-mails pessoais na noite de domingo, tendo o seu acesso aos sistemas da Tesla sido de imediato cancelado. O e-mail que Elon Musk enviou para toda a empresa anunciando os cortes foi entregue pouco antes da meia-noite (horário do Pacífico) de domingo, de acordo com um carimbo de data/hora no memorando visto pelo BI.

 

Fizemos uma revisão completa da organização e tomamos a difícil decisão de reduzir o nosso número de funcionários globalmente. Infelizmente, como resultado, a sua posição foi eliminada por esta reestruturação”.

 

Os trabalhadores da Tesla não são os primeiros a descobrir que foram despedidos sem cerimónia quando tentavam aceder ao seu antigo local de trabalho. Também alguns ex-empregados da Google disseram à BI que souberam que tinham sido despedidos quando não se conseguiram identificar no escritório.”

 

 

A inutilidade do inútil

 

 

 

Notas:

Sobre Kant, os juízos sobre o gosto, o sublime e a antinomia do gosto, sugiro o blog de 18 de janeiro de 2023, “Os mediadores na Arte ou a Arte como mediadora”.

 

Sobre a utilização da IA pelos poderes, sugiro o blog e 18 de julho de 2018, “A desculpa da inteligência Artificial”.

 

 

 

 

 

 

 

(478) As narrativas

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Se perdermos o debate intelectual, nunca mais no Ocidente conseguiremos utilizar qualquer exército, Alex Karp, CEO da Palantir.

 

Poder é controlar o que acontece, mas o verdadeiro poder é controlar o que as pessoas pensam sobre o que acontece.

 

Quem controla a narrativa controla o mundo.

 

 

 

 

Parece que o crescente movimento iniciado por estudantes americanos nas suas universidades contra o massacre (des)apoiado pelos EUA em Gaza, tem vindo a preocupar cada vez mais os donos da estrutura global de poder flexivelmente centralizada em Washington, uma vez que os meios de que normalmente se servem para o controlar – propaganda dos meios de comunicação de massa, manipulação algorítmica de Silicon Valley, think tanks patrocinados pela oligarquia, e cultura dominante fabricada em Hollywood e New York -, têm-se até agora mostrado inadequados para conseguirem dissuadir o público de apoiarem os protestos.

 

Para conseguirmos entrever o que os nossos mandantes verdadeiramente pensam, a simples leitura, audição, visualização, dos meios normais de comunicação de massa não é suficiente, e isto porque os próprios arautos e trovadores desses nossos mandantes quando perante um público de pessoas normais se refugiam em cassetes de discursos conscientes.

Pelo que a outra hipótese é ficarmos atentos às conferências e entrevistas que alguns deles dão em locais escolhidos, selecionados, não pertencentes aos grandes meios de comunicação, porque é aí, quando se sentem rodeados pelos que consideram seus iguais, os que pensam como eles, que falam muito mais livremente. Dizem então as verdades que nos querem esconder, evidentemente por não estarmos preparados para as entender. Um velho conceito bem testado.

 

Por exemplo: ouça-se o que o CEO da Palantir, Alex Karp, disse num discurso na Ash Carter Exchange sobre lnovação e Segurança Nacional (8 de maio de 2024) relativamente aos atuais protestos estudantis nas universidades americanas a favor dos palestinos e do cessar fogo em Gaza, em que afirmou que se aqueles que estão do lado dos manifestantes vencerem o debate, o Ocidente perderá a capacidade de vir a travar quaisquer guerras.

 

Para quem não saiba, a Palantir é uma empresa de tecnologia de vigilância e mineração de dados apoiada pela CIA, com ligações íntimas com o cartel de inteligência dos EUA e de Israel, e com um papel crucial tanto na extensa rede de vigilância americana como na israelita. Karp, é um bilionário que faz parte do Comité Diretivo do Grupo Bilderberg e participa regularmente no Fórum Económico Mundial e noutras plataformas de gestão do império.

Eis o que disse Karp:

 

Nós temos a tendência de pensar que estas coisas que estão a acontecer, especialmente nos campos universitários, são como um espetáculo secundário – mas não, elas são o espetáculo”. E seguiu alertando: “Porque se perdermos o debate intelectual, nunca mais no Ocidente conseguiremos utilizar qualquer exército.”

 

Para Karp, é, pois, muito importante que este movimento de protesto e o espírito em que ele se baseia seja esmagado, porquanto a própria existência da máquina de guerra do império depende disso. Esta é uma admissão realmente extraordinária de alguém que faz parte do âmago da estrutura do poder.

 

Outro exemplo: ouçamos também uma conversa (“Israel losing the PR war”, 3 de maio de 2024) entre o Senador Mitt Romney e o Secretário de Estado Antony Blinken no Instituto McCain:

Depois de lamentar a falta de sucesso de Israel na condução das relações públicas (RP) relativamente ao ataque a Gaza, Romney vai candidamente dizer que foi “por isso que houve um apoio tão esmagador para que fechássemos o TikTok ou outras entidades dessa natureza” — com o “nós” estava a referir-se a ele próprio e aos seus colegas legisladores no Capitólio.

 

Como evoluiu essa narrativa, sim, é uma ótima questão”, responde Blinken, fazendo notar que no início da sua carreira em Washington todos obtinham informações a partir da televisão e de jornais físicos como The New York Times, The Wall Street Journal e The Washington Post.

Agora, é claro, estamos a receber informações intravenosas com novos impulsos, entradas a cada milissegundo”, continuou Blinken. “E, claro, a forma como isso apareceu nas redes sociais dominou a narrativa. E agora temos um ambiente de ecossistema de mídia social em que o contexto, a história, os factos se perdem e a emoção, o impacto das imagens domina. E não podemos – não podemos deixar de considerar isso, mas acho que também tem um efeito muito, muito desafiador na narrativa.”

 

Repararam como Blinken utilizou a palavra “narrativa” três vezes? É assim que os gestores de impérios conversam entre si, porque é assim que pensam sobre tudo.

 

Isto ocorre porque os gestores de impérios estão sempre conscientes de algo que os seres humanos normais não têm: que o verdadeiro poder vem da manipulação das histórias — narrativas — que as pessoas contam a si mesmas sobre a sua realidade.

Eles entendem que os humanos são animais contadores de histórias, cujas vidas interiores são tipicamente dominadas por narrativas mentais sobre o que está a acontecer, pelo que se se puder controlar essas narrativas, poder-se-á controlar os humanos.

Eles sabem que o poder controla o que acontece, mas também sabem que o verdadeiro poder é controlar o que as pessoas pensam sobre o que acontece.

Eles sabem que quem controla a narrativa controla o mundo.

 

E alguns manipuladores inteligentes compreendem que é possível controlar uma sociedade controlando as suas narrativas dominantes.

Os governantes não pensam nas coisas como as pessoas normais pensam. Eles não pensam em fazer o que é certo ou em agir de uma forma que beneficie a todos. Eles não pensam em termos de verdade e honestidade ou na falta delas. Eles só pensam em termos das histórias que as pessoas contam umas às outras e como essas histórias poderão ser alteradas de forma a que promovam os interesses do império que gerem.

 

Os administradores dos impérios – e as pessoas altamente manipuladoras em geral – não usam a linguagem da mesma maneira que as pessoas normais a usam. Os seres humanos normais usam a linguagem para se ligarem e comunicarem, enquanto que os manipuladores usam-na apenas para extrair das pessoas o que desejam para poderem exercer o seu controle sobre elas. É isso que eles fazem ao trabalhar para controlarem as narrativas que as pessoas têm sobre a sua realidade material.

É por isso que quando Romney e Blinken conversam entre si sobre a razão pela qual as pessoas estão tão indignadas com Israel, nunca lhes ocorre discutir sobre como a imagem pública de Israel está a ser prejudicada pelas suas próprias ações, ou mesmo sequer sugerir que essa imagem poderia ser melhorada se Israel deixasse de se comportar da forma que está a fazer.

Eles falam é sobre “a narrativa” do que Israel está a fazer, e de como as pessoas que têm a capacidade de partilhar ideias e informações umas com as outras online tornam essa narrativa mais difícil de controlar.

 

Assim, enquanto as pessoas normais olham para a catástrofe humana e o horror em Gaza e gritam em voz alta que é preciso parar, os governantes ouvem e pensam: “Ah, não, precisamos é de encontrar uma forma de os fazer parar de acreditar nessa narrativa e fazê-los acreditar numa outra.”

 

É por isso que temos vindo a assistir a todas estas tentativas que estão a ser feitas para acabar com a liberdade de expressão, tanto em manifestações como online. Porque julgam que se perderem o controle da narrativa, não mais conseguirão mobilizar os seus exércitos.

 

 

Notas:

 

Sobre narrativas, provérbios, ditos populares, ver o blog de 26 de julho de 2017, “Osenso comum’ que nos tem permitido sobreviver”.

 

Sobre o controle exercido pelos meios de comunicação social, ver o blog de 29 de março de 2017, “Fábricas de papas e bolos”.

A que não posso deixar de acrescentar uma célebre entrevista feita a 31 de agosto de 2016 por Andrew Marr da BBC a Noam Chomsky (Noam Chomsky on Propaganda, The Big Idea, Interview with Andrew Marr) em que Chomsky estava a explicar que era uma falsa imagem o acreditar-se que os jornalistas dos grandes meios de comunicação fossem verdadeiros “cruzados da profissão” e “adversários que se levantavam contra o poder”, por tal ser impossível nos grandes meios de comunicação do Ocidente.

Ao que Marr objetou: “Como é que sabe que eu me autocensuro? Como é que sabe que os jornalistas são-“

Eu não estou a dizer que se autocensura”, replicou Chomsky. “Estou certo que você acredita em tudo o que diz. Mas o que eu estou a dizer é que se você acreditasse em algo de diferente, certamente não estaria sentado nesse lugar onde está”.

 

E já que estamos a relembrar Chomsky, ouçamo-lo:

 

A maneira inteligente para manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro de opiniões aceitáveis, mas permitir um debate muito animado dentro desse espectro — encorajar até mesmo as opiniões mais críticas e dissidentes. Isso dá às pessoas a sensação de que existe um pensamento livre, ao mesmo tempo que os pressupostos do sistema são reforçados pelos limites impostos ao alcance do debate.”

“The smart way to keep people passive and obedient is to strictly limit the spectrum of acceptable opinion, but allow very lively debate within that spectrum — even encourage the more critical and dissident views. That gives people the sense that there’s free thinking going on, while all the time the presuppositions of the system are being reinforced by the limits put on the range of the debate.”

 

Ver ainda um interessante artigo de Caitlin Johnstone “15 Reasons why Media don’t do Jounalism”, de 5 de junho de 2023.

 

Sobre a Palantir, ver o blog de 30 de agosto de 2017, “Aquele que vê de longe”.

E ainda o bem informado e pormenorizado estudo de 17 de abril de 2024 de Roberto González, “How Big Tech and Silicon Valley are Transforming the Military-Industrial Complex”, pp 14-16.

 

 

(478)

(477) As Bem-Aventuranças

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

A igreja hoje não está localizada em casas de culto cavernosas e em grande parte vazias, mas aqui, com vocês, com aqueles que exigem justiça, aqueles cujo credo não oficial são as Bem-Aventuranças, Chris Hedges.

 

Resistir ao mal radical […] é suportar uma vida que, pelos padrões da sociedade em geral, é um fracasso, Chris Hedges.

 

Jesus, se vivesse na sociedade contemporânea, seria indocumentado, Chris Hedges.

 

 

 

 

No domingo de 28 de abril de 2024, Chris Hedges (1) proferiu um sermão, num serviço religioso organizado por alunos do Seminário Teológico de Princeton, realizado no acampamento por Gaza na Universidade de Princeton.

 Aqui se transcreve a maior parte desse sermão por Gaza:

 

 

“Nos conflitos que cobri como repórter na América Latina, em África, no Médio Oriente e nos Balcãs, encontrei indivíduos singulares de vários credos, religiões, raças e nacionalidades que se levantaram majestosamente para desafiar o opressor em nome dos oprimidos. Alguns deles estão mortos. Alguns deles são esquecidos. A maioria deles é desconhecida.

 

Estes indivíduos, apesar das suas vastas diferenças culturais, tinham características comuns – um profundo compromisso com a verdade, incorruptibilidade, coragem, uma desconfiança relativamente ao poder, ódio à violência e uma profunda empatia que se estendia a pessoas que eram diferentes deles, até mesmo a pessoas definidas pela cultura dominante como inimigas. Eles são os homens e mulheres mais notáveis ​​que conheci nos meus 20 anos como correspondente no estrangeiro. Estabeleci a minha vida de acordo com os padrões que eles estabeleceram.

 

Já ouviram falar de alguns, como Vaclav Havel, com quem eu e outros repórteres estrangeiros nos encontrávamos quase todas as noites, durante a Revolução de Veludo de 1989 na Checoslováquia, no Teatro das Lanternas Mágicas em Praga. Outros, não menos importantes, provavelmente não conhecem, como o padre jesuíta Iganacio Ellacuria, que foi morto a tiros pelos esquadrões da morte em El Salvador em 1989. E há também aquelas pessoas “comuns”, embora, como disse o escritor V.S. Pritchett, nenhuma pessoa é comum, que arriscaram as suas vidas em tempos de guerra para abrigar e proteger aqueles de uma religião ou etnia oposta que estavam a serem perseguidos e caçados. E a algumas dessas pessoas “comuns” devo eu a minha própria vida.

 

Resistir ao mal radical, como vocês estão a fazer, é suportar uma vida que, pelos padrões da sociedade em geral, é um fracasso. É desafiar a injustiça à custa da vossa carreira, da vossa reputação, da vossa solvência financeira e, por vezes, da vossa vida. É ser um herege para o resto da vida. E, talvez este seja o ponto mais importante, é aceitar que a cultura dominante, mesmo as elites liberais, irão empurrá-los para as margens e tentar desacreditar não só o que vocês fazem, mas o vosso carácter. Quando voltei à redação do The New York Times depois de ser vaiado no início da minha comissão em 2003 por denunciar a invasão do Iraque e de ser publicamente repreendido pelo jornal pela minha posição contra a guerra, repórteres e editores que conheci e com quem trabalhei durante 15 anos baixaram a cabeça ou voltavam-se quando eu estava por perto. Eles não queriam ser contaminados pelo mesmo vírus do contágio que mata-carreiras.

 

 

As instituições governantes – o Estado, a imprensa, a Igreja, os tribunais, as universidades – falam a linguagem da moralidade, mas servem as estruturas de poder, por mais venais que sejam, que lhes proporcionam dinheiro, estatuto e autoridade. Todas estas instituições, incluindo a academia, são cúmplices através do seu silêncio ou da sua colaboração ativa com o mal radical. Isto foi verdade durante o genocídio que cometemos contra os nativos americanos, a escravatura, a caça às bruxas durante a era McCarthy, os direitos civis e os movimentos antiguerra e a luta contra o regime de apartheid da África do Sul. Os mais corajosos são expurgados e transformados em párias.

 

Todas as instituições, incluindo a Igreja, escreveu certa vez o teólogo Paul Tillich, são inerentemente demoníacas. E uma vida dedicada à resistência tem que aceitar que uma relação com qualquer instituição é muitas vezes temporária, porque mais cedo ou mais tarde essa instituição vai exigir atos de silêncio ou de obediência que a sua consciência não lhe permitirá fazer.

 

[…] Reinhold Niebuhr rotulou esta capacidade de desafiar as forças da repressão como “uma loucura sublime na alma”. Niebuhr escreveu que “nada além da loucura lutará contra o poder maligno e a ‘maldade espiritual em lugares elevados’”. Essa loucura sublime, como Niebuhr entendia, é perigosa, mas é vital. Sem ela, “a verdade fica obscurecida”. E Niebuhr também sabia que o liberalismo tradicional era uma força inútil em momentos de crise. O liberalismo, disse Niebuhr, “carece do espírito de entusiasmo, para não dizer fanatismo, que é tão necessário para tirar o mundo dos seus caminhos habituais. É demasiado intelectual e pouco emocional para ser uma força eficiente na história.

 

Os profetas da Bíblia Hebraica tinham essa loucura sublime. As palavras dos profetas hebreus, como escreveu o rabino Abraham Heschel, foram “um grito no meio da noite. Enquanto o mundo está tranquilo e adormecido, o profeta sente a explosão do céu.” O profeta, porque viu e enfrentou uma realidade desagradável, foi, como escreveu Heschel, “compelido a proclamar exatamente o oposto do que seu coração esperava”.

 

Esta loucura sublime é a qualidade essencial para uma vida de resistência. É a aceitação de que quando você está ao lado dos oprimidos, você será tratado como oprimido. É a aceitação de que, embora empiricamente tudo o que lutamos para alcançar durante a nossa vida possa ser pior, a nossa luta valida-se.

 

O padre católico radical Daniel Berrigan – que foi condenado a três anos numa prisão federal por queimar registos de recrutamento militar durante a guerra do Vietname – disse-me que a fé é a crença de que o bem atrai o bem. Os budistas chamam isso de karma. Mas ele disse que para nós, como cristãos, não sabíamos para onde isso iria. Confiávamos que isso iria para algum lugar. Mas não sabíamos para onde. Somos chamados a fazer o bem, ou pelo menos o bem na medida em que podemos determiná-lo, e depois deixá-lo ir.

 

Como escreveu Hannah Arendt, as únicas pessoas moralmente fiáveis ​​não são aquelas que dizem “isto é errado” ou “isto não deve ser feito”, mas sim aquelas que dizem “não posso”. Eles sabem que, como escreveu Immanuel Kant: “Se a justiça perecer, a vida humana na terra perderá o seu significado.” E isto significa que, tal como Sócrates, devemos chegar a um ponto em que é melhor sofrer o mal do que fazer o mal. Devemos ver e agir ao mesmo tempo, e dado o que significa ver, isso exigirá a superação do desespero, não pela razão, mas pela fé.

 

Eu vi nos conflitos que cobri o poder desta fé, que está fora de qualquer credo religioso ou filosófico. Esta fé é o que Havel chamou no seu ensaio “O Poder dos Impotentes”, o viver na verdade. Viver na verdade expõe a corrupção, as mentiras e o engano do Estado. É uma recusa em fazer parte da charada.

 

James Baldwin, filho de um pregador e ele próprio um pregador por um breve período, disse que abandonou o púlpito para pregar o Evangelho. O Evangelho, sabia-o, não era ouvido na maioria dos domingos nas casas de culto cristãs.

 

A igreja hoje não está localizada em casas de culto cavernosas e em grande parte vazias, mas aqui, com vocês, com aqueles que exigem justiça, aqueles cujo credo não oficial são as Bem-Aventuranças:

 

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão satisfeitos. Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos e filhas de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguições por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.

 

Jesus, se vivesse na sociedade contemporânea, seria indocumentado. Ele não era cidadão romano. Viveu sem direitos, sob ocupação romana. Jesus era uma pessoa de cor. Os romanos eram brancos. E os romanos, que vendiam a sua própria versão de supremacia branca, pregavam as pessoas de cor em cruzes quase com a mesma frequência com que acabamos com elas com injeções letais, baleamo-las nas ruas, trancafiámo-las em jaulas ou massacramo-las em Gaza. Os romanos mataram Jesus como um insurrecional, um revolucionário. Eles temiam o radicalismo do Evangelho cristão. E eles estavam certos em temer isso. O estado romano via Jesus da mesma forma que o estado americano via Malcolm X e Martin Luther King Jr. Então, como agora, os profetas foram mortos.

 

A Bíblia condena inequivocamente os poderosos. Não é um manual de autoajuda para se ficar rico. Não abençoa a América ou qualquer outra nação. Foi escrito para os sem poder, para aqueles que James Cone chama de “crucificados da terra”. Foi escrito para dar voz e afirmar a dignidade daqueles que estão a ser esmagados pelo poder e pelos impérios malignos.

 

Não há nada fácil na fé. Exige que destruamos os ídolos que nos escravizam. Exige que morramos para o mundo. Exige autossacrifício. Exige resistência. Chama-nos a vermo-nos nos miseráveis ​​da terra. Isso separa-nos de tudo o que nos é familiar. Sabe que assim que sentirmos o sofrimento dos outros, agiremos.

 

Mas, e o preço da paz?” pergunta Berrigan no seu livro “No Bars to Manhood”.

 

Penso nas pessoas boas, decentes e amantes da paz que conheci aos milhares. Quantos delas estão tão afligidos pela doença devastadora da normalidade que, mesmo quando declaram a paz, as suas mãos estendem-se com um espasmo instintivo... na direção do seu conforto, da sua casa, da sua segurança, do seu rendimento, do seu futuro, dos seus planos - aquele plano de estudos de cinco anos, aquele plano de dez anos de estatuto profissional, aquele plano de crescimento e unidade familiar de vinte anos, aquele plano de cinquenta anos de vida decente e morte natural honrosa. “Claro, tenhamos paz”, gritamos, “mas ao mesmo tempo tenhamos normalidade, não percamos nada, deixemos que as nossas vidas permaneçam intactas, não conheçamos a prisão, nem a má reputação, nem a rutura de laços”. E porque devemos abranger isto e proteger aquilo, e porque a todo custo – a todo custo – as nossas esperanças devem marchar dentro do cronograma, e porque é inédito que em nome da paz uma espada deva cair, desmembrando aquela bela e astuta teia que nas nossas vidas se entrelaçaram, porque é inédito que homens bons sofram injustiças ou que famílias sejam divididas ou que a boa reputação seja perdida - por causa disso clamamos paz e clamamos paz, e não há paz. Não há paz porque não há pacificadores. Não existem promotores da paz porque a realização da paz é pelo menos tão dispendiosa como a realização da guerra – pelo menos tão exigente, pelo menos tão perturbadora, pelo menos tão suscetível de trazer desgraça, prisão e morte no seu rasto.”

 

Carregar a cruz não significa buscar a felicidade. Não abraça a ilusão do progresso humano inevitável. Não se trata de alcançar estatuto, riqueza, celebridade ou poder. Implica sacrifício. É sobre o nosso vizinho. Os órgãos de segurança do Estado monitoram-vos e perseguem-vos. Eles acumulam arquivos enormes sobre as vossas atividades. Eles intrometem-se na vossa vida.

 

Por que estou eu aqui hoje com vocês? Estou aqui porque tentei, ainda que imperfeitamente, viver de acordo com a mensagem radical do Evangelho. Estou aqui porque sei que não é o que dizemos ou professamos, mas o que fazemos. Estou aqui porque vi que é possível ser judeu, budista, muçulmano, cristão, hindu ou ateu e carregar a cruz. As palavras são diferentes, mas o autossacrifício e a sede de justiça são os mesmos.

Esses homens e mulheres, que não podem professar o que eu professo ou acreditar no que acredito, são meus irmãos e irmãs. E estou com eles, honrando e respeitando as nossas diferenças e encontrando esperança, força e amor no nosso compromisso comum. Em momentos como este, ouço as vozes dos santos que vieram antes de nós. A sufragista Susan B. Anthony, que anunciou que a resistência à tirania é obediência a Deus, e a sufragista Elizabeth Cady Stanton, que disse: “No momento em que começamos a temer as opiniões dos outros e hesitamos em dizer a verdade que está em nós, e por motivos políticos silenciamos quando deveríamos falar, as inundações divinas de luz e vida não fluem mais nas nossas almas.” Ou Henry David Thoreau, que nos disse que deveríamos ser homens e mulheres primeiro e depois súbditos, que deveríamos cultivar o respeito não pela lei, mas pelo que é certo. E Frederick Douglass, que nos avisou: “O poder não concede nada sem uma exigência. Ele nunca fez e nunca fará. Descubra exatamente a que qualquer pessoa se submeterá silenciosamente e você descobrirá a medida exata da injustiça e do erro que lhes será imposto, e estes continuarão até que sejam resistidos com palavras ou golpes, ou ambos. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles a quem eles oprimem.” E a grande populista do século XIX, Mary Elizabeth Lease, que trovejou: “Wall Street é dona do país. Já não é um governo do povo, pelo povo e para o povo, mas um governo de Wall Street, por Wall Street e para Wall Street. O grande povo comum são escravos e o monopólio é o senhor.” E o General Smedley Butler, que disse que depois de 33 anos e quatro meses no Corpo de Fuzileiros Navais ele tinha chegado à compreensão de que não tinha sido nada mais do que um gangster do capitalismo, tornando o México seguro para os interesses petrolíferos americanos, tornando o Haiti e Cuba seguros para os bancos e pacificar a República Dominicana para as empresas açucareiras. A guerra, disse ele, é um jogo viciado em que os países subjugados são explorados pelas elites financeiras e por Wall Street, enquanto os cidadãos pagam a conta e sacrificam os seus jovens, homens e mulheres, no campo de batalha pela ganância corporativa. Ou Eugene V. Debs, o candidato presidencial socialista, que em 1912 obteve quase um milhão de votos, ou 6 por cento, e que foi enviado para a prisão por Woodrow Wilson por se opor à Primeira Guerra Mundial, e que disse ao mundo: “Enquanto houver uma classe baixa, estou nela, e enquanto houver um elemento criminoso eu pertenço a ela, e enquanto houver uma alma na prisão, não sou livre.” E o Rabino Heschel, que quando foi criticado por marchar com Martin Luther King no sábado em Selma respondeu: “Rezo com os pés” e que citou Samuel Johnson, que disse: “O oposto do bem não é o mal. O oposto do bem é a indiferença.” E Rosa Parks, que desafiou o sistema segregado de ônibus e disse “a única cansada que eu estava, estava cansada de ceder”. E Philip Berrigan, que disse: “Se um número suficiente de cristãos seguir o Evangelho, eles podem colocar qualquer estado de joelhos”. E Martin Luther King, que disse: “Em algumas posições, a covardia faz a pergunta: ‘É seguro?’ A conveniência faz a pergunta: 'Isso é político?' A vaidade faz a pergunta: 'É popular?' E chega um tempo em que um verdadeiro seguidor de Jesus Cristo deve tomar uma posição que não seja nem segura nem política nem popular, mas ele tem de tomar uma posição   ficar de pé porque é o certo.”

 

Onde estavas quando crucificaram o meu Senhor?

 

Estavas lá para impedir o genocídio dos nativos americanos? Estavas lá quando Sitting Bull morreu na cruz? Estavas lá para acabar com a escravização dos afro-americanos? Estava lá para deter as multidões que aterrorizaram homens, mulheres e até crianças negras com linchamentos durante Jim Crow? Estavas lá quando perseguiram os organizadores sindicais e Joe Hill morreu na cruz? Estavas lá para impedir o encarceramento de nipo-americanos na Segunda Guerra Mundial? Estava lá para deter os cães de Bull Connor enquanto eles eram soltos nos manifestantes pelos direitos civis em Birmingham? Estava lá quando Martin Luther King morreu na cruz? Estavas lá quando Malcolm X morreu na cruz? Estavas lá para acabar com os crimes de ódio, a discriminação e a violência contra gays, lésbicas, bissexuais, queers e transexuais? Estava lá quando Matthew Shepard morreu na cruz? Estava lá para acabar com o abuso e, às vezes, a escravização dos trabalhadores nas terras agrícolas deste país? Estava lá para impedir o assassinato de centenas de milhares de vietnamitas inocentes durante a guerra do Vietnam ou de centenas de milhares de muçulmanos no Iraque e no Afeganistão? Estavas lá para deter o genocídio em Gaza? Estavas lá quando crucificaram Refaat Alareer na cruz?

 

Onde estavas quando crucificaram o meu Senhor?

 

Eu sei onde eu estava.

 

Aqui.

 

Com vocês.

 

Amém.

 

 

 

(1) Chris Hedges é um jornalista vencedor do Prémio Pulitzer, foi correspondente no estrangeiro durante quinze anos para o The New York Times, onde atuou como Middle East Bureau Chief e Balkan Bureau Chief. Anteriormente, trabalhou no estrangeiro para The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR. Ele é o apresentador do programa The Chris Hedges Report.

 

Foi membro da equipe que ganhou o Prémio Pulitzer de Reportagem Explicativa de 2002, pela cobertura do terrorismo global para The New York Times, e recebeu o Prémio Global de Jornalismo de Direitos Humanos da Amnistia Internacional de 2002. Hedges, que possui o mestrado em Divindade pela Harvard Divinity School, é autor dos best-sellers, American Fascists: The Christian Right and the War on America, Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle e foi finalista do National Book Critics Circle pelo seu livro War Is a Force That Gives Us Meaning. Ele escreve uma coluna online para o site ScheerPost. Lecionou na Universidade de Columbia, na Universidade de Nova York, na Universidade de Princeton e na Universidade de Toronto.

(476) Maquiavel, Mussolini, e Fascismo

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

 O adjetivo “soberano” aplicado ao povo é uma farsa trágica. Quando muito o povo nomeia delegados, mas é absurdo supor que o povo exerça a soberania, B. Mussolini

 

O povo tem apenas o dever de afirmar e obedecer, B. Mussolini.

 

Governos baseados exclusivamente na vontade do povo nunca existiram, não existem e provavelmente nunca existirão, B. Mussolini.

 

Deve-se saber que existem duas maneiras de decidir qualquer questão. Uma, pelas leis. A outra, pela força. A primeira é peculiar aos homens, a segunda aos animais, Maquiavel.

 

 

 

 

 

Em junho de 1924, a fugaz revista mensal English Life, (o editor era Brendan Bracken, mais tarde ministro da informação do governo de Winston Churchill) publicou um artigo do então Primeiro Ministro de Itália,  Benito Mussolini, “The Folly of Democracy” (A loucura da democracia), a que se seguiria em julho de 1924 um artigo-resposta do Secretário Político do Partido Socialista Italiano, Giacomo Matteoti, intitulado “Machiavelli, Mussolini, and Fascism”.

Durante o mês que mediou entre a publicação dos dois artigos, Matteoti, enquanto caminhava para o Parlamento em Roma, foi raptado (10 de junho) e assassinado por apoiantes fascistas de Mussolini.

Um carro (Lancia Lambda) com cinco membros (Giuseppe Viola, Albino Volpi, Augusto Malacria, Amleto Poveromo) de um recém-formado grupo policial secreto fascista (“Checa) chefiados por Amerigo Dùmini (um dos fundadores do Fascio de Florença, nomeado pessoalmente por Mussolini como chefe da “Checa”  com um salário mensal de duas mil e quinhentas liras pago pelo jornal pró-fascista Corriere Italiano, com carro à disposição, com alojamento no hotel Dragoni, um apartamento na via Cavour, gratificações para repartir entre os seus homens de confiança, mesa sempre reservada em seu nome no restaurante Breche ou no Al Buco),  agarram e forçam violentamente Matteoti a entrar para o carro que arrancou velozmente pelas ruas de Roma.

Matteoti nunca mais foi visto com vida. O seu corpo apareceu em meados de agosto num bosque a 20 quilómetros de Roma, altura em que a maior parte dos italianos estava de férias, e o Parlamento fechado. O esquife foi transportado de noite, sendo o enterro consumado na sua terra natal, Fratta Polesine.

 

Relatório do testemunho ocular de Renato Barzotti sobre o sequestro de Matteoti: 

Eram quatro e meia. Estava a brincar com os meus companheiros. Perto de nós, estava um carro que tinha acabado de parar mesmo em frente à rua Antonio Scialoja. Dentro dele saíram cinco homens e começaram a passear para cima e para baixo. De repente vi Matteoti sair. Um dos homens foi ao seu encontro e deu-lhe violentamente um murro que o fez cair ao solo. Matteoti pediu ajuda. Então chegaram os outros quatro, e um deles deu-lhe um golpe forte na cara. Depois agarraram-no pela cabeça e pés e meteram-no dentro do carro, que passou ao nosso lado. Pudemos ver que Matteoti continuava a lutar. Depois não vimos mais nada.” (A. Scurati, M, o filho do século).

 

Apesar de duas semanas antes, perante um discurso de Matteoti no Parlamento em que denunciava que a recente eleição geral (que dera aos fascistas a sua única vitória eleitoral) fora fraudulenta e precedida de atos de violência que impediram muitos candidatos antifascistas de se apresentarem e muitos trabalhadores de votarem, Mussolini ter soltado “Como é que este homem continua a andar por aqui?”, o escândalo provocado pelo desaparecimento de Matteoti  obriga-o a vir assegurar que “a polícia foi informada do prolongado desaparecimento do Hon. Matteoti”, e que ele próprio tinha “ordenado que intensificassem as buscas”.

Quando o porteiro de um prédio vizinho da casa de Matteoti comunica à polícia a matrícula do carro, a polícia identifica o proprietário como sendo Filippo Filippelli, ex-secretário pessoal de A. Mussolini e diretor do jornal pró-fascista Corriere Italiano. A ligação a Dùmini é imediata, o que conduz à sua detenção (12 de junho 1924). Nas semanas seguintes, mais prisões são feitas.

 

Os partidos políticos da oposição tentam pressionar o rei, Victor Emmanuel III, a destituir Mussolini, abandonando (secessione dell’Aventino) em bloco a Câmara de Deputados até que os responsáveis pela morte de Matteoti fossem a julgamento.

A (in)decisão do rei vai colocar o parlamento nas mãos de Mussolini que aproveitou para legislar sem qualquer oposição. Sentindo que tem a situação controlada, a 3 de janeiro de 1925, num discurso na Câmara de Deputados, vai admitir “a responsabilidade política” pelo assassinato de Matteoti, mas não admitindo que o tenha ordenado:

 

Portanto, senhores, eu declaro aqui perante esta assembleia e em presença de todo o povo italiano, que assumo, só eu, responsabilidade política, moral, histórica de tudo o que aconteceu. Se as frases mais ou menos balbuciantes bastarão para enforcar um homem, ‘Fora o poste e fora a corda!’ Se o fascismo não foi mais que o azeite de rícino e os bastões, e não antes uma magnífica paixão da melhor juventude italiana, ‘A culpa é minha!’ Se o fascismo foi uma associação criminosa, ‘Sou eu o chefe dessa associação criminosa!’” 

 

 É um convite a que o destituam, mas os deputados do parlamento, agora só com fascistas, aplaudem e vitoriam-no. “Todos contigo! Todos contigo, presidente!”

A sessão termina sem discussão e sem votação. Uma nova Itália nascera.

O julgamento dos assassinos de Matteoti vai ter início em janeiro de 1925, começando logo por ser transferido de Roma para uma pequena cidade de forte implantação fascista, Chieti. Em julho de 1925, Mussolini decreta uma amnistia para todos os crimes políticos, e os acusados são todos soltos.

Em 1948, após a morte de Mussolini, é reaberto o processo e um tribunal acaba por condenar Dùmini a 30 anos de prisão pelo assassinato de Matteoti. Em 1953, uma nova amnistia faz com que saia da prisão.

 

 

O assassinato de opositores políticos ou inimigos, mais legalmente ou menos legalmente, tem sido uma constante nas nossas civilizações (casos mais paradigmáticos como os de Sócrates – o ateniense – e Jesus – o Cristo), mas que se manifestam mais em certos períodos de grandes alterações sócio-políticas-económicas, e particularmente em certos regimes como aqueles saídos da Grande Guerra.

No fascismo de Mussolini vários foram os crimes praticados sobre os seus opositores e mesmo para com camaradas da mesma ideologia. Dizia ele, a propósito do que se passara com Cesar Forni (12 de março de 1924), num artigo intitulado “Quem atraiçoa, morre”, que o fascismo tinha o direito a castigar os seus próprios traidores. E argumentava que a violência fascista era pouca quando comparada com a ferocidade com que na Rússia os bolcheviques exterminaram os dissidentes mencheviques.

O mesmo aconteceu com os malogrados Camisas Castanhas que suportaram Hitler até à altura em que este os mandou assassinar (30 de junho de 1934, “A Noite das Facas Longas”), e até aqui neste pequeno, lento e rural Portugal temos o caso do assassinato (13 de fevereiro de 1965) de Humberto Delgado pela polícia política de Salazar.

 

No caso Matteoti, que razões levaram à tomada de decisão para o assassinar? O discurso que prometera pronunciar no dia seguinte perante o parlamento em que iria provar a corrupção de Mussolini pela Sinclair Oil Company?  A denúncia dos métodos violentos e as ameaças exercidas a quando das eleições? A existência de uma força armada paralela? Quem ordenou?

 Certamente agora que se vão cumprir os cem anos sobre o seu assassinato, o novo governo de Itália, preocupado com a história e a verdade, terá todo o interesse em libertar toda a documentação que permita resolver o enigma. Ou não.

 

Para a história, aqui se reproduz o artigo póstumo de Matteoti, “Machiavelli, Mussolini, and Fascism”:  

 

 

“A democracia da Inglaterra tem recentemente vindo a ser entretida pela conversão do Senhor Mussolini aos princípios do maquiavelismo. No seu extravagante artigo sobre Maquiavel deixa claro que a força é o seu único guia político. As suas observações sobre Maquiavel serão certamente incorporadas de forma perpétua numa tese universitária. São dignas de análise por quem tem experiência nas teorias de Mussolini aplicadas ao governo. Diz ele que “são muito poucos os heróis e santos que agora estão preparados para se sacrificarem no altar do Estado. Mas há muitos cidadãos dispostos a perturbar o altar e a sacrificar esse estado para os seus próprios fins. A Revolução Francesa e outras revoluções foram uma tentativa para sujeitar o governo ao livre arbítrio do povo. Esta teoria é baseada em tolices e inverdades. Porquê? Em primeiro lugar, o povo nunca foi definido. Tal teoria é apenas uma abstração política. Ninguém sabe onde começa ou onde termina. O adjetivo “soberano” aplicado ao povo é uma farsa trágica. Quando muito o povo nomeia delegados, mas é absurdo supor que o povo exerça a soberania. Há pouca justificação moral para o governo representativo, mas muito pode ser dito sobre a sua utilidade mecânica. Mesmo em países onde o governo representativo sempre prevaleceu, chega um momento em que é fatal consultar o povo. Em tempos de guerra, a coroa de cartão da soberania é retirada do povo (pois só serve para tempos normais) e o povo não tem outra alternativa senão mergulhar nos perigos desconhecidos ou na guerra ou declarar-se a favor da revolução. Nessas ocasiões, o povo tem apenas um dever de afirmar e obedecer. É evidente que a soberania graciosamente concedida ao povo lhe é tirada no momento em que é mais necessária. Na verdade, só pode continuar quando for inócua ou considerada como tal, ou seja, durante o curso plácido da administração ordinária. Relativamente a este ponto, gostaria de apresentar esta questão. Pode alguém imaginar uma guerra ser declarada por referendo? Um referendo é uma coisa muito boa quando se trata de escolher o melhor local para colocar um fontanário na aldeia. Mas quando o interesse supremo do povo está em jogo, mesmo os Governos mais ultrademocráticos cuidam em não os submeter ao julgamento do povo”.

 

Governos baseados exclusivamente na vontade do povo nunca existiram, não existem e provavelmente nunca existirão. Sou apoiado nesta visão por uma citação significativa do “Príncipe” de Maquiavel: “Profetas armados conquistam; aqueles que estão desarmados estão arruinados”. Porque a natureza dos povos é mutável; e embora seja fácil persuadi-los de alguma coisa, é difícil mantê-los na mesma persuasão. Portanto, é bom organizar as coisas de modo que, quando as pessoas já não acreditarem, possam ser levadas a acreditar através da força. Moisés, Ciro, Teseu e Rómulo não teriam sido capazes de fazer cumprir as suas constituições por muito tempo se tivessem sido desarmados”.

 

É ousado perguntar-se se a Inglaterra, o país de Gladstone e Bright, apreciará tais sentimentos violentos e tirânicos – penso que não. A minha última experiência em Inglaterra mostra que o governo democrático está a imprimir-se lenta, mas seguramente, no vasto interesse imperial da Inglaterra. É um crescimento gradual que será ajudado por indiscrições como a defesa de Mussolini dos princípios infernais de Maquiavel. Quando Mussolini faz a pergunta “alguém pode imaginar uma guerra sendo declarada por um referendo? Um referendo é uma coisa muito boa quando se trata de questionar ou escolher o melhor local para colocar um fontanário na aldeia, mas quando o interesse supremo do povo está em jogo, mesmo o governo mais ultrademocrático toma cuidado para não os submeter ao julgamento do povo." A resposta é que o povo pobre e trabalhador declarar-se-ia esmagadoramente contra a guerra se um referendo lhes fosse concedido. E porque não? A palavra é dizimada, empobrecida e dilacerada, mas as terríveis consequências da última guerra ficam. Se tivessem sido realizados referendos nos países envolvidos, não teria havido guerra.

 

Segundo Mussolini, a utilização das armas conquistam. Pode ser que sim. Mas serão as suas conquistas permanentes? Não! O próprio Mussolini, com grande energia, fez uma forma de governo dependente da espada, da violência, de perversões políticas. O vigor dos seus pontos de vista e o poder dos seus implacáveis ​​seguidores suprimiram durante algum tempo a democracia da Itália. Ela elevar-se-á novamente. O governo fascista já está a ser gravemente prejudicado pelos métodos dos seus líderes e pelas sinistras atividades comerciais levadas a cabo por altos funcionários cujo formidável poder impede a supervisão pública do trust que administram. Tais coisas não podem ser sufocadas por muito tempo. Mesmo agora surgiram factos sobre os quais o nosso país será chamado a julgar.

 

A conduta do Banca Commerciale relativamente ao empréstimo polaco é um exemplo da avareza desenfreada permitida pelos governantes fascistas. Muito piores são as ações do Ministério da Economia Nacional nas suas negociações com a Sinclair Oil Company. O Senador Corbino, Ministro da Economia Nacional, entregou vastos espaços de território na Emília e na Sicília contendo mais de 100.000 hectares* (*cerca de 250.000 acres) de ricos depósitos de petróleo à Sinclair Oil Company, que está ligada ao polvo da Standard Oil. Este território imensamente rico é conferido a uma empresa estrangeira sem salvaguardas. A natureza surpreendente desta concessão é ilustrada pelo nono parágrafo do comunicado oficial do governo: – “A concessão abrange a produção de óleos minerais, gás e produtos relativos de hidrocarbonetos, enquanto a exploração de rochas betuminosas está reservada às empresas italianas. O acordo tem a duração de 50 anos. Os privilégios fiscais concedidos à empresa são os seguintes: a) isenção de direitos de importação no caso de máquinas exigidas pela empresa, caso não seja viável obter tais máquinas de empresas italianas. Em todos os casos, a preferência de fornecer estas máquinas é reservada caso todos os outros termos sejam iguais; (b) isenção de imposto de renda nos primeiros dez anos.

 

 Já temos conhecimento de muitas irregularidades graves relativas a esta concessão. Altos funcionários podem ser acusados ​​de corrupção/traição ou dos mais vergonhosos compadrios. Muito mais sinistra é a conduta de muitos líderes fascistas, que realizam uma imposição generalizada sobre empresas privadas e semipúblicas com o objetivo de manter jornais fascistas e outras organizações para seu interesse e lucro.

 

Quando Mussolini afirma no seu artigo sobre Maquiavel que “há pouca justificação moral para o governo representativo”, ele bem poderia examinar o sistema construído por ele próprio, o que em parte é um ultraje contra a moralidade.

 

 Enquanto ele se ocupa em denunciar os defeitos da democracia, uma parte incontrolada dos seus seguidores comete crimes de violência e chantagem. Ele pouco se esforça para os repreender. Ele não os pode suprimir, pois foi sobre os ombros deles que se alcandorou ao poder. Eles colocaram-no lá, considerando-o como apoiante deles, pelo que ele é impotente para controlar os seus desígnios malignos.

 

Teria Maquiavel permitido esta situação? Não teria. Ele sabia que um Estado deve perecer se os agressores privilegiados puderem cometer crimes sem restrições. Mussolini invoca a sua autoridade para justificar a sua política. Ele deveria ler o seu Mestre com maior aplicação. Passemos ao capítulo 18 de O Príncipe e leiamos o que Maquiavel pensava a respeito do Governo. “Deve-se, portanto, saber que existem duas maneiras de decidir qualquer questão. Uma, pelas leis. A outra, pela força. A primeira é peculiar aos homens, a segunda aos animais”. Ou ainda no capítulo 9 de O Príncipe: “Que ninguém cite contra mim o velho provérbio de que quem confia no povo constrói sobre uma base arenosa. Isso pode ser verdade para um único cidadão que se opõe a inimigos poderosos ou é oprimido pelos magistrados, como aconteceu com os Gracos em Roma e com George Scali em Florença; mas um príncipe que não seja deficiente em coragem e seja capaz de comandar, que não seja desanimado pela má sorte, que não seja deficiente nos preparativos necessários, que saiba como preservar a ordem nos seus Estados por meio de seu próprio valor e conduta, nunca precisará de se arrepender por ter estabelecido a base da sua segurança na afeição do seu povo.”

 

A democracia em Itália pode agora ser adormecida, por sentimentos tais como os de Mussolini que não podem deixar lhe roubar a sua preguiça. Em vez de efusões tão grosseiras como as deste artigo sobre Maquiavel, Mussolini poderia dedicar-se à limpeza da sua criação – os Fascistas – cujas ações públicas tendem a tornar a Itália infame em todo o mundo.”

 

 

 

 

 

 

 

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