Foi em 1953 que Bertolt Brecht escreveu estes seis versos como parte das Elegias de Bukow, publicados apenas em 1964 onze anos após terem sido escritos e oito anos após a sua morte.
Sociedade modernaé toda a sociedade organizada racionalmente, que seja manipulável e controlável.
A escolha do extermínio físico como o meio mais adequado para alcançar a “Solução Final” foi o resultado de procedimentos burocráticos de rotina.
O Holocausto não deve ser entendido como a antítese da civilização moderna ou como um desvio do caminho do progresso, mas sim como uma das suas possibilidades ocultas.
Que o Holocausto tenha sido um genocídio, ninguém minimamente informado tem hoje qualquer dúvida. Já quanto às razões, justificações, para que ele possa ter acontecido nas nações cultural e civilizacionalmente consideradas como as mais desenvolvidas, aí as interpretações variam entre minimizá-lo, ajuizá-lo erradamente, chegando mesmo a negar a sua importância.
Por exemplo, quando se apresenta o Holocausto como algo que aconteceu apenas aos judeus, como o culminar de todo um processo histórico de antissemitismo europeu e cristão na continuação do antissemitismo prevalecente por outros meios, o que estamos a fazer é a reduzi-lo a um episódio isolado que quase nada nos diz sobre a compreensão do estado dessa sociedade. É reduzi-lo a um fenómeno único.
Mas, se for ao contrário, apresentar o Holocausto como um caso extremo, mas que não se pode comparar com o extenso relatório das atrocidades e agressões étnicas e religiosas que se foram verificando ao longo da história e com os quais temos convivido, é apresenta-lo como apenas mais um elemento de uma ampla classe que engloba muitos casos semelhantes de conflito e agressão.
Isto é também atribuir o Holocausto a uma predisposição “natural”, primitiva e culturalmente inextinguível da espécie humana (tal como aos horrores das cruzadas, a matança dos hereges albigenses, dos arménios pela mão dos turcos e a invenção dos campos de concentração pelos ingleses durante a guerra dos Bóeres) um caso “único”, mas que, apesar de tudo, é normal acontecer.
Um “acontecimento” particularmente monstruoso, embora completamente lógico, de ódio étnico e religioso, mas que assim entendido, permite que se lhe encontre o sentido dentro dos parâmetros habitualmente usados para aquilatarmos o modelo da sociedade moderna (uma sociedade organizada racionalmente que seja manipulável e “controlável”). Pelo que, segundo este ponto de vista, nada aconteceu que justifique a introdução de qualquer alteração ao modelo de entendimento vigente.
Para os que assim pensam, para se entender o Holocausto basta explicar em detalhe certas variáveis psicológicas, ideológicas e estruturais relacionadas com as percentagens de vítimas judias ou sobreviventes das distintas coletividades nacionais da Europa dominada pelos nazis. O Holocausto aparece então como um produto único, ainda que completamente determinado por uma concatenação concreta de fatores sociais e psicológicos que desembocaram na supressão temporal do domínio da civilização na qual se mantem o comportamento humano.
E assim, o que se faz é minimizar a importância do holocausto, já que os horrores do genocídio se tornam praticamente indistinguíveis dos outros sofrimentos que a sociedade moderna gera quotidianamente em abundância.
Pelo que uma vez que a sociedade moderna se mostrou incapaz de suprimir os fatores de irracionalidade essencialmente alheios, que as pressões civilizadoras se mostraram incapazes de dominar os impulsos violentos e emocionais, e que a socialização se mostrou incapaz de criar um volume necessário de motivações morais, podemos ser tentados a ver o Holocausto como um “paradigma” da civilização moderna, o seu produto “natural” e “normal”, a sua “tendência histórica”.
Acontece que “se o poder nazi tivesse prevalecido, a autoridade para decidir o que deve ser, teria determinado que no Holocausto não se tinha violado nenhuma lei natural e que não se tinham cometido crimes contra Deus nem contra a humanidade. Decisões como a conveniência ou não de se prosseguirem operações com trabalho de escravos, ampliá-las ou terminá-las, teriam sido tomadas em função de critérios racionais”.
E é isso que não nos deixa encarar de frente esta recordação: a suspeita corrosiva que o holocausto possa ter sido algo mais que uma aberração, algo mais que um desvio da senda do progresso, mais que um tumor canceroso no corpo saudável da sociedade civilizada. Que, em resumo, o Holocausto não tenha sido a antítese da civilização moderna e de tudo o que ela representa. Suspeitamos que o holocausto poderia ter descoberto um rosto oculto da sociedade moderna, um rosto distinto do que já conhecemos e admiramos. E que os dois coexistem comodamente unidos no mesmo corpo.
É Henry Feingold que insiste em dizer que o Holocausto é parte da evolução da extensa história da sociedade moderna:
“A Solução Final foi o ponto em que o sistema industrial europeu fracassou. Em vez de potenciar a vida, que era a esperança original do Iluminismo, começou a consumir-se. O sistema industrial e a ética associada, fizeram com que a Europa dominasse o mundo”.
E explica como foram essas mesmas técnicas que foram utilizadas para tornar efetiva a “Solução Final”:
“[Auschwitz] foi também uma extensão rotineira do sistema de fábricas. Em vez de produzir mercadorias, a matéria prima eram seres humanos, e o produto final era a morte, tantas unidades ao dia cuidadosamente anotadas nas tabelas de produção do diretor. Das chaminés, símbolo do moderno sistema de fábricas, saía um fumo acre produzido pela cremação de carne humana. A rede ferroviária organizada com tanta inteligência, levava às fábricas um novo tipo de matéria prima. Igual a outro carregamento. Nas câmaras de gás, as vítimas inalavam o gás letal das botijas de ácido prússico, produzidas pela avançada indústria química alemã. Os engenheiros desenharam os fornos crematórios, e os administradores o sistema burocrático que funcionava com tanto entusiasmo e eficiência que constituía a inveja de muitas nações. Inclusivamente no seu conjunto, o plano era um reflexo do espírito científico moderno. O que presenciamos não foi outra coisa que um esquema massivo de engenharia social.”
É por esta normalidade de ação e intenção que o Holocausto representou algo de novo e desconhecido, no sentido em que se acomodou por completo a tudo o que sabemos da nossa civilização, o espírito que a guia, as suas ordens de prioridade, a sua visão imanente do mundo, as formas adequadas para alcançar a felicidade humana dentro de uma sociedade perfeita.
O teólogo americano, Richard L. Rubenstein, vai utilizar os diagnósticos de Max Weber sobre as tendências da sociedade moderna, para tentar saber se teria sido possível prever o que tinha acontecido, se os tivéssemos utilizado.
E verificou que na exposição de Weber sobre a burocracia moderna, o espírito racional, o princípio da eficiência, a mentalidade científica, a relegação dos valores para o reino da subjetividade, etc. não se faz referência a qualquer mecanismo capaz de excluir a possibilidade dos excessos nazis e que, para além disso, nada havia nos tipos ideais de Weber que permitisse encarar os procedimentos nazis como excessos.
Refere, por exemplo, que ”nenhum dos horrores perpetrados pelos membros da profissão médica alemã ou pelos tecnocratas alemães era inconsequente com a opinião que os valores são inerentemente subjetivos e que a ciência é intrinsecamente instrumental e não tem valores”.
E na sua obra, Approaches to Auschwitz: The Holocaust and its Legacy, vai dizer-nos que na “Solução final”, o potencial industrial e os conhecimentos tecnológicos de que a nossa civilização se jatava alcançaram novas alturas ao enfrentar-se com êxito com uma tarefa sem precedentes. A “Solução Final” mostra à sociedade uma capacidade que até aí não tínhamos conseguido perceber que tinha. Como nos ensinaram a respeitar e admirar a eficiência técnica e os bons planos, não podemos deixar de fazer outra coisa que admirar o que o progresso material trouxera à nossa civilização.
“O mundo dos campos da morte e a sociedade que engendra, descobre o lado cada vez mais escuro da civilização judeo-cristã: Civilização significa escravidão, guerras, exploração e campos de morte. Também significa higiene médica, elevadas ideias religiosas, arte cheia de beleza e música esquisita. É um erro supor que a civilização e a crueldade selvagem são uma antítese. Na nossa época, as crueldades, e outros muitos aspetos do nosso mundo, são administrados de uma forma muito mais efetiva que anteriormente: não deixaram de existir. Tanto a criação como a destruição, são aspetos inseparáveis do que chamamos civilização”.
Como nenhuma destas condições parecem ter desaparecido, o sociólogo sul-africano, Leo Kuper faz-nos notar que, “o Estado territorial reclama, como parte integral da sua soberania, o direito a cometer genocídios ou a desencadear matanças genocidas contra as pessoas submetidas à sua autoridade e […] na prática as Nações Unidas defendem este direito”, então oHolocausto continua a ser uma das possibilidades ocultas da sociedade moderna.
Um assassinato em massa desta magnitude depende da existência de técnicas e hábitos meticulosos e firmemente estabelecidos, de uma divisão de trabalho precisa, da manutenção de um fluxo suave de informação e comando e de uma sincronizada coordenação de ações independentes, mas complementárias: em resumo, todas as técnicas e hábitos que crescem e se desenvolvem num ambiente de uma oficina.
A estrada que conduziu à exterminação física dos judeus europeus não foi concebida por um monstro enlouquecido nem foi uma decisão pensada por dirigentes ideologicamente entusiastas que viram o processo total da resolução de problemas. Ele foi antes surgindo milímetro a milímetro, caminhando a cada momento conforme o destino que aparecia, mudando a cada nova crise que surgia e avançando com a filosofia de que “já atravessaremos essa ponte quando lá chegarmos”.
Eis como se passou: “Hitler fixou o objetivo do nazismo: livrarem-se dos judeus e sobretudo, que os territórios do Reich estivessem livres de judeus”, mas não especificou como o deviam fazer. Uma vez definido o objetivo, competia a cada um dos especialistas de acordo com os funcionários qualificados da direção da administração, darem conta dele tendo em consideração a viabilidade e os custos de vias alternativas de atuação.
Em 1935, começam por serem adotadas as leis raciais de Nuremberg, que distinguiam entre “judeu”, “mestiço” (Mischling) e “de sangue alemão ou aparentado” com base em critérios genealógicos. Os marcadores específicos de classificação grupal que permitiram a discriminação e precederam a própria ação genocida ficam já aqui estabelecidos. Em novembro de 1938, o regime nazista orquestrou um pogrom cujo resultado foi a destruição de centenas de sinagogas, saques, assassinatos, prisões e transferências para campos de concentração (ainda não existem campos de extermínio).
O primeiro que se pensou como solução prática para o objetivo traçado, seria transferir os judeus para outros países que os aceitassem. Após a anexação da Áustria, Eichmann foi muito elogiado por ter conseguido a que esses judeus emigrassem em massa, saindo do país. Após o território alemão ter começado a aumentar, a burocracia nazi considerou essas conquistas como a oportunidade sonhada para cumprir a ordem do Führer. Criaram então na Polónia, uma reserva (concentração) para o futuro “principado judeu”.
Mas a burocracia alemã encarregada da administração dos territórios da Polónia, objetou que tinha já muitos problemas para controlar os “seus” judeus. Eichmann vai passar então quase um ano a trabalhar no projeto alternativo de Madagáscar, pois uma vez que a França fora conquistada, era perfeitamente possível enviar os judeus para essa colónia francesa. A enorme distância, os transportes necessários e a marinha inglesa, foram atrasando o projeto.
Entretanto, o território conquistado ia aumentando e com ele o número de judeus debaixo da jurisdição alemã. Cada vez era mais visível uma Europa conquistada e dominada pelos nazis, pelo que o objetivo de uma “Alemanha livre de judeus” passou a ser uma “Europa livre de judeus”.
Com a próxima queda da Rússia, aqueles vastos territórios para oriente seriam a solução. Só que a Rússia não caiu, pelo que teria de aparecer uma solução alternativa. A 1 de outubro de 1941, Himmler dá ordens para se cancelar a emigração de judeus. Tinham-se encontrado outros métodos mais efetivos para cumprir a tarefa de se verem livres dos judeus: o extermínio físico.
Quando a 20 de janeiro de 1942 se realiza a célebre Conferência de Wannsee, já mais de meio milhão de judeus tinham sido assassinados.
Os historiadores do Holocausto concordam que a decisão de assassinar todos os judeus da Europa foi tomada alguns meses antes por Hitler e pelo Reichsführer SS Heinrich Himmler, embora não exista nenhum documento que prove explicitamente isso.
Em Wannsee, Reinhard Heydrich relatou esta decisão, assumiu o comando e convidou os participantes a resolver diferenças de competência, a fim de sistematizar e estender o genocídio até ao último canto da Europa. Foram resolvidos aspetos legais – como tratar os judeus e os Mischlinge de primeiro e segundo grau, bem como os “casamentos mistos”, como confiscar os seus bens – e foram formuladas propostas concretas de “soluções” para o problema, ou seja, a eficiência dos diferentes métodos de assassinato. Após o encontro, que durou 90 minutos, foram servidas bebidas e os comensais almoçaram.
Tomada a decisão, restava apenas coordenar os distintos departamentos da burocracia do Estado: realizou-se uma cuidadosa planificação, fizeram-se cálculos, mobilizaram-se os recursos necessários. A Habitual rotina burocrática.
Sigamos Bauman:
“A lição mais devastadora da análise da “estrada sinuosa para Auschwitz” é que, finalmente, a escolha do extermínio físico como o meio mais adequado para alcançar a “Solução Final” foi o resultado de procedimentos burocráticos de rotina, ou seja, do cálculo da eficiência, da regularização das contas, da aplicação dos padrões em geral. Pior ainda, a escolha eleita foi uma consequência do esforço para encontrar soluções racionais para os “problemas” que surgiram à medida que as circunstâncias mudavam.
Em nenhum momento da sua longa e tortuosa realização o Holocausto entrou em conflito com os princípios da racionalidade. A “Solução Final” não colidiu de forma alguma com a busca racional pela eficiência, com o alcance ótimo das metas. Pelo contrário, surgiu de um procedimento verdadeiramente racional e foi gerada por uma burocracia fiel ao seu estilo e à sua razão de ser.
Sabemos de muitos massacres, pogroms e assassinatos em massa, acontecimentos não muito distantes do genocídio, que foram cometidos sem contar com a burocracia moderna, com o conhecimento e tecnologias de que dispõe ou com os princípios científicos da sua gestão interna. O Holocausto não teria sido possível sem tudo isto. O Holocausto não resultou de uma fuga irracional daqueles resíduos ainda não erradicados da barbárie pré-moderna. Era um inquilino legítimo da casa da modernidade, um inquilino que não se sentiria confortável em qualquer outro edifício.
Não quero dizer que a intensidade do Holocausto foi determinada pela burocracia moderna ou pela cultura da racionalidade instrumental que ele encapsula, e muito menos que a burocracia moderna produza necessariamente fenómenos semelhantes ao Holocausto.
O que quero dizer é que as normas da racionalidade instrumental são especialmente incapazes de evitar esses fenómenos, que não há nada nesses padrões que desqualificam os métodos de “engenharia social” do estilo daqueles do Holocausto ou que considera irracionais as ações a que deram lugar.
Sugiro ainda que o único contexto em que poderia ser concebido, desenvolvido e realizada a ideia do Holocausto foi a cultura burocrática que nos encoraja a considerar a sociedade como um objeto a ser gerenciado, como uma coleção de diferentes “problemas” a resolver, como uma “natureza” que deve ser “controlada”, “dominada”, “melhorada” ou “remodelada”, como objeto legítimo de “engenharia social” e, em geral, como jardim que deve ser projetado e forçosamente preservado da maneira como foi projetado (a teoria da jardinagem divide a vegetação em dois grupos: “plantas cultivadas”, que não devem cuidar e “ervas daninhas” que devem ser eliminadas).
E também insinuo que o espírito de racionalidade instrumental e sua institucionalização burocrática não só deu origem a soluções como as do Holocausto, mas, fundamentalmente, tornou que estas soluções seriam “razoáveis”, aumentando com isso as probabilidades que elas fossem as escolhidas. Este aumento na probabilidade está relacionado com a forma mais do que coincidente com a capacidade da burocracia moderna para coordenar a ação de um grande número de pessoas jurídicas para atingir qualquer objetivo, mesmo que seja imoral.”
Conclusão:
O Holocausto não deve ser entendido como a antítese da civilização moderna ou como um desvio do caminho do progresso, mas sim como uma das suas possibilidades ocultas.
O Holocausto não desapareceu da face da terra com a derrota do nazismo em 1945. Permanece como uma ameaça num mundo em que se multiplicaram os meios e as tecnologias para o tipo de dominação que os nazis levaram à sua expressão extrema.
Trata-se de um gado cuja posse é embaraçosa, Platão.
O verdadeiro saber não se aprende: como procurar o que se ignora?
O caráter empreendedor e a ambição desmedida contrariam a vida do espírito.
Só por convenção é que um homem é escravo e outro livre, Aristóteles
A convicção de que a escravaturaé natural e eterna (sempre existiu e sempre existirá), e que “as pessoas a que podemos sem contestação possível chamar escravos […] devem ser afastadas e separadas da atividade política”, ainda hoje permanece como parte intrínseca da ideologia de exclusão de variados movimentos e organizações. E, contudo, essa convicção não pode ser atribuída à descoberta e inteligência dos seus pensadores programáticos e chefes, nem sequer às “fontes” fascistas e nazis do século passado a que muitas vezes se acolhem. Essas convicções (e a citação supra) encontravam-se já em O Político, e são de Platão.
Embora Platão reconhecesse que os escravos não deviam ser maltratados, abusados ou violentados, não os considerava qualificados para poderem ser cidadãos ou sequer homens: “Trata-se de um gado cuja posse é embaraçosa” (Leis, 777 b).
É por isso que apesar de reconhecer que existiam escravos devotados, logo acrescenta:
“Mas não se diz também o contrário, que numa alma de escravo não há nada de honesto, que se formos razoáveis nunca devemos confiar nessa raça? O mais sábio dos poetas declara-o mesmo expressamente quando diz, falando de Zeus, que ‘os homens foram privados de metade da sua parte de inteligência por Zeus que vê ao longe, no dia em que fez escravos”.
Este seu desprezo pelos escravos anda junto com o seu desprezo para com o trabalho manual, por ele considerado como um obstáculo ao conhecimento e uma causa de indignidade para o cidadão:
“Que nenhum natural [da cidade] pertença ao número dos que, enquanto profissionais, praticam uma arte que é o seu ofício […]. Se, entre as pessoas do país existir uma pessoa que se abandone ao exercício de qualquer arte, em lugar de se dedicar àquela cujo objeto é o culto do valor moral, as outras que a corrijam, quer censurando-a, quer privando-a de distinções até que tenham conseguido voltar a pô-la no bom caminho.” (As Leis, 777).
“Falta muito para que os lavradores e todas as pessoas que praticam um ofício se conheçam a si mesmas; elas não conhecem sequer os assuntos que constituem as suas ocupações; por maioria de razões essas pessoas estão ainda mais afastadas de se conhecerem a si mesmas, em virtude justamente das artes que exercem, porque o que elas conhecem são os assuntos relativos ao corpo, os que concorrem para a sua manutenção […] Se portanto o facto de se conhecer a si mesmo reside numa sábia moderação, então nenhuma dessas pessoas, em virtude da sua arte, é sábia dessa maneira. […] Por consequência, as suas artes são precisamente tidas por artes de operários e não constituem objeto de estudo para um homem de valor.” (Primeiro Alcibíades, 131).
Há aqui, portanto, um desprezo pela técnica e uma valorização do saber teórico, que sempre o acompanham, e que o levam à distinção entre “saber” e “opinar”, entre disciplinas de ação e disciplinas de contemplação.
Daí que para Platão, e contrariamente à pretensão dos sofistas (“esses peregrinos da educação, esses estrangeiros vindos para Atenas a fim de serem pagos pelas novas camadas da população recentemente conquistada para a vida pública na sequência do desenvolvimento democrático”, V. Magalhães Vilhena, Estudos Inéditos de Filosofia Antiga), o verdadeiro saber não se aprende: como procurar o que se ignora? Para Platão, saber é recordar-se, é “retomar por si mesmo um conhecimento em si mesmo”.
“A cultura não é o que certos que fazem profissão de a ministrar, dizem que é”, porque esses pretendem “que conseguem depositar saber numa alma dentro da qual o saber não existe, eles conseguem depositá-lo, como se depositassem a visão em olhos cegos” (A República, 516).
Platão recusa admitir que se posa conferir a faculdade de ver a pessoas cuja cegueira é manifesta. O espírito aristocráticoune-se assim ao espírito antidemocrático, o nobre desprezo pelo comum dos mortais, o arrogante desdém do profissional, a cultura e a sageza tornam-se privilégios de classe.
Eis o que ele nos diz no Protágoras, 323:
“Se o homem pensa independentemente dos objetos e dos sentidos, as suas ideias são verdades celestes. Sob o efeito da origem divina da sua alma, o homem, purificado das baixezas do corpo e das vis tarefas, participa na divindade. Se a alma humana já está pré-formada antes de ter início a experiência individual, então o sofista Protágoras estava errado ao julgar que o mérito não era uma qualidade natural, uma qualidade da natureza, inata, mas que pelo contrário ‘é qualquer coisa que se ensina e que aquele em que o mérito se afirma, tal resulta de um esforço de aplicação’. “
E no Fédon, 72:
“Mas, se a educação não é senão um esforço de rememoração, então é forçoso ‘que tenhamos aprendido num tempo anterior, as coisas de que agora nos lembramos […] o que é impossível, a menos que a nossa alma esteja em qualquer parte, antes de nascer na sua fora humana’.”
O seu desprezo pelo jornaleiro, pelo artesão e pelos demais assalariados, estende-se também aos comerciantes, a todos os que procuram obter riquezas: a preocupação exclusiva com o ganho quotidiano, a paixão insaciável pelo enriquecimento privam o cidadão do ócio necessário para se ocupar dos seus verdadeiros deveres, isto é, dos deveres cívicos. O caráter empreendedor e a ambição desmedida contrariam a vida do espírito.
Este sentimento de altivo desprezo pelo que constitui a maior parte do povo de Atenas era, muito provavelmente, também compartilhado por muitos dos seus contemporâneos aristocráticos, “homens de nascimento honesto e distinto”, como Xenofonte nos refere na República dos Atenienses:
“Em todos os países, as classes altas são inimigas da democracia. Em geral, elas não são violentas, nem injustas, dão mostras de gostos honestos; pelo contrário, o povo é ignorante, turbulento, porque a pobreza o expõe muito mais a atos de baixeza, e porque muitas vezes, por falta de fortuna, ele se vê desprovido de instrução e de educação.
Não se deve permitir a todos indistintamente – dir-se-á – arengar e aconselhar, mas tão somente àqueles que possuem mais talento e mais virtude […] Que os cidadãos notáveis tenham o direito exclusivo de opinar em primeiro lugar – eis o que será um bem para os da sua classe, mas não para o povo; ao passo que se o cidadão mais ínfimo for livre de se levantar e de arengar a assembleia, descobre o que é bom para ele e para os seus iguais.
Mas – replicar-se-á – que poderá dizer de útil um homem daquela espécie, para si e para o povo? Pois bem, na opinião pública, esse homem tal como é, com a sua ignorância, a sua baixeza, mas com as suas boas intenções, vale mais do que um cidadão honesto, com a sua virtude, a sua sensatez, mas com sentimentos mal-intencionados.
Talvez um tal plano não seja o melhor possível, pelo menos assegurará a continuidade da democracia. Ao povo é necessária, não uma administração sensata que o tornaria escravo, mas a liberdade e a soberania. Que a constituição seja viciosa – para ele isso é coisa de somenos. O que, a vós, parece defeituoso no sistema político, é precisamente o que torna o povo poderoso e livre.
Quereis uma boa constituição? Pois fazei, antes de tudo, que sejam os mais hábeis a elaborara as leis, em seguida, que os bons sejam autorizados a reprimir os maus, a deliberar sobre os interesses do Estado, sem permitir que os loucos possam opinar, falar e arengar; mas com estes belos objetivos, o povo voltará muito em breve a cair na escravidão”.
Nascido e educado na aristocracia ateniense (Aristão, seu pai, descendia de Codro, o último rei de Atenas, e a sua mãe descendia de Sólon, o grande legislador ateniense), não rompe com as conceções tradicionais desse meio, mormente nunca pondo em causa o carácter necessário da escravatura (o que levanta a interessante questão da ligação entre a atividade intelectual do pensador e as condições de vida material em que essa atividade aparece, ou dito de outro modo, a questão da relação entre a escravatura e os ócios do homem livre tornados possíveis pela divisão do trabalho em vasta escala, entre a escravatura e o desenvolvimento do mundo antigo) e atribuindo à democracia a culpa de tudo.
Para ele, a democracia era a responsável pelo crescimento das classes urbanas opostas à aristocracia fundiária, pelo expansionismo mercantil e pela guerra, ou seja, por todas as desgraças que pesavam sobre a Cidade, e antes de tudo, sobre a sua classe, “a mais digna”.
“Ele era incapaz de distinguir, no conteúdo do processo social, o que estava a definhar-se do que estava a brotar, o que deixara de viver do que estava a desenvolver-se; não era capaz de explicar a inelutabilidade dos eventos que se sucediam e que encaminhavam a cidade para a sua perda […] Por isso a política platónica não era capaz de descobrir o sentido da progressão histórica, nem de tomar consciência do facto de que as suas esperanças assentavam numa força social que chegava ao fim da sua evolução, já sem poder encontrar em si a capacidade de criar, de raiz, uma nova sociedade, nem de empreender a transformação da antiga” (V. de Magalhães Vilhena, Estudos Inéditos de Filosofia Antiga).
Daí que a sua República não tenha sido implantada em lugar nenhum, e onde o tentou, tal acabou por levar à sua expulsão e venda como escravo. Mas essa falta de sentido histórico que não permitiu a sua utilização como política prática a seguir (digamos até que nesse plano se tratava de uma utopia regressiva), não vai impedir que o platonismo se afirme como fonte teórica de numerosas correntes intelectuais ulteriores. O idealismo político dos séculos posteriores, tanto quanto o idealismo, inspiram-se larguissimamente em Platão. Ele é a fonte teórica de todo o idealismo que se lhe seguiu.
Mas tal não impediu que um seu contemporâneo, Aristóteles, tivesse notado que:
“para alguns, o poder do amo é contrário à natureza, visto que só por convenção é que um homem é escravo e outro livre, uma vez que por natureza não há diferença; esse poder deriva da violência, não da justiça”. (A Política, I, 3, 1253)
Na distopia do 1984, as pessoas sabiam que não viviam numa sociedade livre, enquanto que nesta distopia em que vivemos as pessoas acreditam que são livres.
Coletivamente, não poderíamos estar mais alinhados com a vontade dos poderosos do que já estamos, mesmo que os nossos cérebros fossem substituídos por chips de computador.
Sem a capacidade de manipular o público em grande escala, os nossos governantes não podem governar.
Se não se acautelarem, os jornais vão fazer com que odeiem as pessoas que estão a ser oprimidas, e que amem as pessoas que as estão a oprimir.
“Um ponto que continuo aqui a tentar deixar claro de todas as maneiras que posso é que esta é a distopia sobre a qual fomos avisados. A principal diferença entre esta distopia controlada pela mente e as distopias ficcionais dos romances como o 1984, é que em 1984 as pessoas sabiam que não viviam numa sociedade livre, enquanto que nesta distopia as pessoas acreditam que são livres. (1)
Na distopia de Orwell, as pessoas sabiam que não eram livres e tinham de usar uma forma dúplice de pensar para evitar problemas com os seus governantes. Nesta distopia, as pessoas não têm ideia do quão generalizadamente estão a ser dominadas pelos seus governantes; elas pensam que criaram as suas ideias, visão do mundo e posições políticas por si próprias, quando na realidade, sem sequer o saberem, esses sistemas de crenças foram construídos dentro das suas cabeças por uma máquina de propaganda profundamente sofisticada.
Todas as facões políticas dominantes e semi-dominantes, pertencem e são operadas pelos poderosos, e a propaganda é usada para fazer com que o público as subscreva para promover os interesses dos poderosos. Como a esmagadora maioria de nós foi manipulada para defender um destes sistemas de crenças que servem o poder (eles oferecem múltiplas escolhas dependendo da sua disposição ideológica), as medidas mais abertamente totalitárias descritas pelos romancistas distópicos são desnecessárias. Só se necessita engaiolar um pássaro se ele souber que pode voar.
Mas não se engane: a nossa sociedade não é mais livre do que aquelas dos futuros sombrios imaginados pelos contadores de histórias. Se as nossas mentes não são livres, então não somos livres. Se estivermos a ser manipulados com sucesso para pensar, falar, agir, votar, trabalhar e consumir de acordo com os desejos dos poderosos, então estaremos tão presos como estaríamos se tivéssemos correntes à volta do pescoço. Coletivamente, não poderíamos estar mais alinhados com a vontade dos poderosos do que já estamos, mesmo que os nossos cérebros fossem substituídos por chips de computador.
Não há mais necessidade de ficção distópica, porque a distopia já chegou. Está aqui. Na verdade, a ficção distópica é destrutiva porque faz com que as pessoas imaginem que a distopia é uma ameaça que existe em algum lugar no futuro, em vez de aqui e agora, à nossa volta.
Não precisamos de ficção distópica pela mesma razão que não precisaríamos de romances de fantasia imaginários com espadas e feitiçaria se vivêssemos num mundo de bruxas e dragões. As pessoas que vivem em sociedades distópicas não precisam de ficção distópica, precisam de factos distópicos. Jornalismo distópico. Documentários distópicos. Polémicas distópicas. Precisamos apenas de informações verdadeiras e ideias baseadas na realidade para combater as mentiras e a manipulação com as quais somos inundados no dia a dia.
Não podemos ser livres até que tenhamos usado o poder do nosso número para nos livrarmos do controlo dos nossos senhores distópicos, e nunca o faremos enquanto uma maioria crítica de nós for incapaz de ver o quão profundamente não-livres realmente somos. Não há como escapar da matriz de controle mental da propaganda imperial até que se possa ver as linhas de código que a compõem.
A nossa tarefa mais importante, neste momento da história, é continuar a apontar essas linhas de código para o maior número possível de pessoas, de todas as maneiras que pudermos imaginar. A única vantagem deste tipo de distopia é que os nossos governantes precisam de manter a sua imagem de sociedade livre e de boas pessoas, a fim de preservar a ilusão de que somos livres, evitando assim saírem e começarem a prender todos os que se destacam de inúmeras maneiras. Somos escravizados por mentiras e propaganda. Eles nunca nos concederão uma plataforma importante para fazer isso, mas podemos operar dentro das margens, despertando uma pessoa à vez para a realidade do que está a acontecer.
Portanto, saia por aí espalhando a verdade. Combatendo a propaganda. Enfraquecendo a confiança pública nos meios de comunicação de massa e nas construções políticas para as quais eles fabricam consentimento. Destacando a depravação e o assassinato do império. Use toda e qualquer mídia e fórum que considere eficaz.
Tudo o que fizer nesse aspecto faz a diferença e nunca deixe que alguém lhe diga o contrário. A máquina de propaganda é o eixo do seu poder. É o que mantém o império unido. Sem a capacidade de manipular o público em grande escala, os nossos governantes não podem governar.
Quando as pessoas deixarem de acreditar nas narrativas ao serviço do poder, ganharemos a capacidade de começar a trabalhar para a criação de uma sociedade baseada na verdade que funcione para todos. Mas isto nunca acontecerá enquanto estivermos a ser manipulados com sucesso para acreditarmos que este modelo é o aceitável para a civilização humana e serve os nossos interesses. O primeiro passo é separar os nossos cérebros da matriz de propaganda.”
Há uma compilação de entrevistas de Malcom Little sobre a comunicação social mais alinhada (“How The Mainstream Media Operates”) em que ele diz: “Se não se acautelarem, os jornais vão fazer com que odeiem as pessoas que estão a serem oprimidas, e que amem as pessoas que as estão a oprimir”.
É no livro de 1988, Manufacturing Consent, que Noam Chomsky e Edward Herman, vão comparar a cobertura que a comunicação social dispensa aos vários atos e ações de violência cometidos no mundo, para tentarem perceber porque é que algumas dessas atrocidades são privilegiadas com notícias de primeira página e outras são simplesmente ignoradas. Os famosos “critérios jornalísticos”.
A conclusão a que chegaram é que o interesse desses meios de comunicação social tem que ver essencialmente com dois fatores: quem é o perpetrador, e quem é a vítima?
Se o perpetrador for um inimigo do estado ou um ator hostil, então o interesse dos mídia cresce exponencialmente. Mas, se a falha for do próprio estado ou dos seus aliados, então tendencialmente os mídia ignorarão a história.
E um dos exemplos que apresentam é o da cobertura que foi dada pelo assassinato de um sacerdote num país inimigo (a Polónia então comunista), que encheu páginas e páginas e de tempo de antena, quando comparado com o insignificante relevo dado ao assassinato de mais de 100 sacerdotes cometidos por grupos armados na América do Sul encobertos pelo governo.
Trinta e seis anos depois, o “critério jornalístico” mantém-se o mesmo, até mais aprimorado: eis um exemplo recente com as enormes diferenças de tratamento mediático (salvo as devidas proporções) dadas às mortes de Alexei Navalny e de Gonzalo Lira.
Entre 16 e 22 de fevereiro, o New York Times, Washington Post, ABC News, Fox News e a CNN, emitiram 731 segmentos sobre a morte, numa colónia penal no Ártico, de Alexei Navalny, e apenas um segmento sobre a morte a 12 de janeiro, numa prisão ucraniana, do jornalista norte-americano Gonzalo Lira. Ambos eram críticos dos governos que os encarceraram. Em ambos os casos, as famílias respetivas afirmam tratar-se de assassinatos.
Em qualquer caso trata-se de um avanço civilizacional: os meios de comunicação americanos consideram mais importante a morte de um cidadão russo na Rússia do que a morte de um cidadão americano na Ucrânia.