Acreditamos na existência de entes fora de nós que tudo podem controlar.
Pretende-se não só que as conversas escutadas sejam dignas, com os tratamentos adequados às funções, bem pontuadas, sem brejeirices, etc. pois só assim seria preservada a seriedade dos assuntos.
“Se a única ferramenta que se tem é um martelo, então qualquer problema tem que se parecer com um prego”, sobre a invasão do Iraque.
“Cagando estava a dama mais formosa / E nunca se viu cu de tanta alvura”, abade de Jazende.
De certa forma, tudo começou mesmo há muitos, mas mesmo há muitos anos, quando perante os constantes mistérios e medos incompreensíveis (a noite, o dia, a água, o fogo, a tempestade, o trovão, o sol, etc.) o melhor que se conseguiu para os explicar e aceitar foi atribuir-lhes uma existência como entes fora de nós que os controlavam.
As caraterísticas que atribuímos a esses entes, considerados por nós como nos sendo superiores por controlarem o que nós não podíamos controlar, só poderiam ser exacerbadamente as humanas, únicas que tínhamos a possibilidade de conhecer.
A proliferação do número de entes, correspondendo a uma maior complexificação da sociedade, leva-nos forçosamente a acreditar num estabelecimento de relações de convívio entre eles. Assim nasce a mitologia com a sua família de mitos e heróis, que permitia entender sem grandes sobressaltos a vida dos humildes terrestres, ou dito de outro modo, que permitia que os humildes terrestres entendessem sem grandes sobressaltos a vida (o que estavam cá a fazer, porque tinham a vida que tinham, o que lhes aconteceria depois, etc., todas aquelas questões que finalmente, ao que dizem, a Inteligência Artificial do nosso século já permite resolver ...).
Da conjugação destes entes formaram-se as primeiras religiões (e todas as outras), antecipadamente incentivadas e depois apropriadas e conduzidas por todos aqueles que invocavam sempre esses entes superiores que tudo dominavam para nos demonstrarem que as sociedades não se conseguiriam manter sem eles nem sem os seus indispensáveis intermediários na Terra.
Os deuses foram-se alterando, mudando de nome e de estatuto (alguns passaram a arquétipos), foram-se guerreando, foram-se hierarquizando, mas o que se manteve constante até hoje foi sempre a nossa subordinação que se tornou intrínseca (ao ponto de se a considerar como natural) agora já não só relativamente aos deuses, mas a outros humanos que julgávamos (e que se julgavam) serem seus representantes ou intermediários, todos aqueles que nos aparecem e parecem ter algo que não sabemos bem (nem mal) o que é, e que logo identificamos como tendo “génio”, “carisma”, que os torna mais próximos dos entes que tudo controlam, daí concluirmos (e concluírem) serem os “escolhidos”, ou que “fizeram” por isso.
A transcrição das escutas de conversas telefónicas ou outras, entre os deuses falsos que nos governam, sejam eles dos Estados ou dos Privados, parece que passou a ser prática comum dos seus vários órgãos de comunicação social, atribuindo particular enfase ao caráter ligeiro e informal com que elas decorrem.
Aparentemente, parece querer darem-nos a entender e a pretender não só que essas conversas tenham (devam) de ser dignas, com os tratamentos adequados às funções, sem brejeirices, etc. pois só assim seria preservada a seriedade dos assuntos, como ainda nos querem fazer crer que tal só se passa aqui (nos seus próprios países) porque se fosse lá fora (noutros países que devem conhecer bem) isso não aconteceria. Outros deuses: os estrangeiros. Outras ideologias: essas sim.
Ouçamos então como um general de outro país, neste caso um americano com grandes responsabilidades, trata o assunto da invasão do Iraque.
A 2 de março de 2007, Wesley Clark, o então mais importante general dos EUA e comandante supremo da NATO durante a Guerra do Kosovo , candidato presidencial em 2004, revelou numa importante entrevista (“Gen. Wesley Clark Weighs Presidential Bid: ‘I Think About It Every Day’ “) à jornalista Amy Goodman, que os planos de Washington eram derrubar os governos do Iraque, Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e, finalmente, do Irão, ou seja, sete países em cinco anos:
“[…] WESLEY CLARK: Cerca de 10 dias depois do 11 de Setembro, passei pelo Pentágono e vi o secretário Rumsfeld e o vice-secretário Wolfowitz. Desci só para cumprimentar algumas pessoas do Estado-Maior Conjunto que trabalhavam para mim.
Entretanto um dos generais ligou-me e disse: “Senhor, tem que entrar e falar comigo um segundo”.
Eu disse-lhe: “Bem, você está muito ocupado”. Ele disse-me: “Não, não”. E acrescenta: “Tomamos a decisão; vamos para a guerra com o Iraque”.
Isso foi por volta do dia 20 de setembro. Eu disse-lhe: “Vamos para a guerra com o Iraque, porquê?” Ele disse-me: “Não sei”. E diz-me: “Acho que eles não sabem mais o que fazer”.
Então eu disse-lhe: “Bem, encontraram eles alguma informação a ligar o Saddam à Al-Qaeda?” Ele disse-me: “Não, não”. E continuou: “Não há nada de novo nisso. Acabaram de tomar a decisão de entrar em guerra com o Iraque”.
E acrescenta: “Acho que não sabemos o que fazer com os terroristas, mas temos boas forças armadas e podemos derrubar governos”.
E continuou: “Acho que se a única ferramenta que se tem é um martelo, qualquer problema tem que se parecer com um prego”.
Algumas semanas depois voltei a vê-lo, e naquela altura já estávamos a bombardear o Afeganistão.
Eu disse-lhe: “Ainda vamos para a guerra com o Iraque?” E ele disse-me: “Ah, é pior que isso”.
Ele estendeu a mão sobre a sua secretária, pegou numa folha de papel e disse-me: “Acabei de receber isso lá de cima”, referindo-se ao gabinete do Secretário de Defesa, e continuou: “Este é um memorando que descreve como vamos eliminar sete países em cinco anos, começando pelo Iraque e depois Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e terminando com o Irão”.
Eu disse-lhe: “É confidencial?” Ele disse-me: “Sim, senhor”. Eu disse-lhe: “Bem, não me mostre”.
Perto de um ano depois voltei a vê-lo e disse-lhe: “Você lembra-se disso?” E ele disse-me: “Desculpe, não lhe mostrei esse memorando! Eu não lhe mostrei!”
AMY GOODMAN: Sinto muito, qual era o nome dele? (risos)
WESLEY CLARK: Não lhe vou dar o nome dele. (risos)
AMY GOODMAN: Então, recapitulemos novamente os países.
WESLEY CLARK: Bem, começando pelo Iraque, depois Síria e Líbano, depois Líbia, depois Somália e Sudão, e voltando depois ao Irão […]”
Esta submissão e endeusamento que temos relativamente a outros humanos, faz-me sempre recordar o soneto do século XVIII de Paulino António Cabral de Vasconcelos, o famoso Abade de Jazente:
Os rostos gerados por IA já não se distinguem dos rostos humanos. Os tweets gerados por GPT-3 já não se distinguem dos tweets escritos pelos utilizadores humanos do Twitter.
Tudo passa a ser possível de ser apresentado, independentemente da veracidade ou realidade.
A sociedade é feita de narrativa, do mesmo modo que a Matrix é feita de código.
Quem controla as narrativas em que uma sociedade acredita, controla essa sociedade.
A greve dos atores e argumentistas da indústria de cinema de Hollywood teve essencialmente que ver com a utilização que as principais empresas estavam a fazer das suas imagens já gravadas e dos seus argumentos já existentes, com as quais construíam, ou podiam construir, através da utilização da IA, novas produções cinematográficas.
Ou seja, uma vez de posse das imagens ou dos escritos, tal passava a ser propriedade exclusiva da empresa para sempre, podendo utilizá-las em seu benefício sem prévia autorização. Tudo legal, nada que não constasse nos contratos.
E não era pouco. Atente-se por exemplo no que a indústria porno estava já a fazer com a utilização da IA e da realidade virtual. Desde 1999 que a mrskin.com começou a investigar todos os nus da filmografia das atrizes e atores, com os poderes atualmente existentes da IA e da realidade virtual, tal permitiu-lhes realizar cenas nas quais podemos ver Demi Moore e Aston Kutcher em pleno ato sexual, ou um improvável 69 entre Brigitte Bardot e Emma Watson, até mesmo uma menage a trois entre Brad Pitt, Pedro Pascal e Kit Harington.
Tudo passa a possível de ser apresentado, independentemente da veracidade ou realidade. Manipulação de vídeos que fazem passar por reais rostos, corpos e vozes que não são reais.
E tal também se pode aplicar ao campo das notícias, como aquela foto de Osama Bin Laden com Obama, Condoleeza Rica e Hillary Clinton, ou aquele vídeo em que aparece o presidente da Ucrânia, Volódomir Zelenski, a declarar a sua rendição à Rússia. A estes casos chamam os especialistas de deepfake. Possivelmente aos outros atrás relatados chamar-lhe-ão de deepfuck.
Acontece que com os geradores de imagens atuais por IA, o recurso aos deepfake tornam-se desnecessários, pois já não se necessita de recorrer a um vídeo prévio para por rostos em corpos e vice-versa. Tudo pode ser criado a partir da informação contida na Rede. Daí que, por exemplo, empresas sérias como a Midjourney, para evitar serem confundidas com as que utilizam a mesma técnica para finas pornográficos, censurem aos seus utilizadores o uso de pesquisa com palavras como útero, esperma ou vulva.
Aliás, é o que vem confirmar um recente estudo de 13 de novembro de 2023, “AI Hyperrealism: Why AI Faces Are Perceived as More Real Than Human Ones”, onde se demonstra que os rostos gerados por IA não se distinguem dos rostos humanos, especialmente se esses rostos forem de brancos, dado que os algoritmos de reconhecimento se treinaram mais em rostos de brancos. Mas este desvio é outro problema, e não é o que está agora em causa.
Também um estudo de 28 de junho de 2023, “AI model GPT-3 (dis)informs us better than humans”, nos vem dizer que os humanos não conseguem distinguir entre os tweets gerados por GPT-3 e os tweets escritos pelos utilizadores reais do Twitter.
“No filme Matrix, os humanos encontram-se aprisionados num mundo virtual por um poderoso sistema de inteligência artificial num futuro distópico. O que eles consideram realidade é na verdade um programa de computador que foi inserido nos seus cérebros para os manter em estado comatoso. Eles vivem toda a vida naquela simulação virtual, sem qualquer forma para saberem que o que parecem estar a vivenciar através dos sentidos é na verdade feito por um código gerado por IA.
A vida na nossa sociedade atual é praticamente o mesmo. A diferença é que, em vez da IA, são oligarcas psicopatas que nos mantêm a dormir na Matrix. E em vez do código, é a narrativa.
A sociedade é feita de narrativa do mesmo modo que a Matrix é feita de código. Identidade, linguagem, etiqueta, papéis sociais, opiniões, ideologia, religião, etnia, filosofia, agendas, regras, leis, dinheiro, economia, empregos, hierarquias, política, governo, são tudo construções puramente mentais que não existem em qualquer lugar fora do mundo. Ruídos mentais nas nossas cabeças. Se eu lhe pedisse para apontar para o joelho, você fá-lo-ia instantaneamente e sem palavras, mas se eu lhe pedisse para apontar para a economia, por exemplo, o mais próximo que você poderia chegar seria através da utilização de uma montanha de símbolos linguísticos que por sua vez iriam apontar para um grupo de conceitos. Ou seja, para me mostrar a economia, tinha de me contar uma história.
Qualquer pessoa que já tenha experimentado um momento de quietude mental sabe que, sem uma conversa, nenhuma dessas coisas faz parte da sua experiência atual. Não há identidade, linguagem, etiqueta, papéis sociais, opiniões, ideologia, religião, etnia, filosofia, agendas, regras, leis, dinheiro, economia, empregos, hierarquias, política ou governo na sua experiência sem uma conversa mental sobre essas coisas. Não há nem mesmo um “você” em lugar nenhum, porque acontece que isso também é feito de narrativa.
Sem narrativa mental, nada é experienciado, exceto impressões sensoriais que aparecem sem forma ou limites claros. Os campos visual e auditivo, a sensação de entrada e saída de ar pelo aparelho respiratório, a sensação dos pés no chão ou do traseiro na cadeira. É isso. Isso é mais ou menos a totalidade da vida menos a narrativa.
Contudo, quando você acrescenta a conversa mental, nenhuma dessas coisas tende a ocupar uma quantidade significativa de interesse ou atenção. As aparências no campo visual e auditivo são repentinamente divididas e rotuladas com a linguagem, sendo a atenção que lhes é dedicada determinada por aquilo que ameaça ou satisfaz as várias agendas, medos e desejos da construção de identidade conceitual conhecida como “você”. Você pode passar dias, semanas, meses ou anos sem realmente perceber a sensação do seu sistema respiratório ou dos seus pés no chão, à medida que o seu interesse e atenção são sugados para um relacionamento com a sociedade que existe apenas como narrativa.
“Eu sou suficientemente bom? Estou a fazer a coisa certa? Oh, espero que o que estou a tentar fazer dê certo. Preciso de ter a certeza que concluo todos os meus projetos. Se eu fizer isso primeiro, poderei a longo prazo economizar algum tempo. Ah, lá está Ashley, eu odeio aquela tipa. Deus, eu sou tão gordo e feio. Se eu conseguir o que quero e atingir os meus objetivos importantes, sentir-me-ei bem. Brevemente tenho de pagar os impostos. O que há na TV? Ah, é aquele idiota. Como diabos foi ele eleito, afinal? Todos os que fizeram isso acontecer são nazis. Deus, mal posso esperar pelo fim de semana. Espero que até lá tudo corra como planeado.”
E assim por diante. Quase toda a nossa energia mental vai para essas narrativas mentais. Elas dominam as nossas vidas. E, por essa razão, as pessoas que conseguem controlar essas narrativas conseguem controlar-nos.
E eles fazem-no.
A maioria das pessoas tenta exercer algum grau de controle sobre as pessoas à sua volta. Mas eles tentam influenciar a forma como as pessoas nos seus círculos familiares, sociais e laborais pensam sobre eles, comportando-se e falando de uma determinada maneira. Os membros da família passarão a vida a dizer repetidamente a outros membros da família que eles não são tão inteligentes/talentosos/bons quanto pensam, para evitar que se tornem muito bem-sucedidos e se afastem. Os parceiros românticos serão persuadidos de que nunca poderão partir porque mais ninguém os amará. Em graus variados, eles manipulam as narrativas dos indivíduos.
Depois, há as pessoas que descobriram que podem realmente aproveitar a sua capacidade de influenciar a forma como as pessoas pensam sobre si mesmas e sobre o seu mundo e transformá-las em lucro pessoal. Os líderes das seitas convencem os seguidores a dedicarem toda a sua vida ao serviço deles. Os anunciantes convencem os consumidores de que eles têm um problema ou deficiência que só pode ser resolvido com ‘This Exciting New Product’. Participantes ambiciosos de uma corrida desenfreada aprendem como subir na hierarquia corporativa ganhando o favor das pessoas certas e infligindo pequenos atos de sabotagem contra os seus pares concorrentes. Jornalistas ambiciosos aprendem que progridem muito mais nas suas carreiras ao apresentarem narrativas que favorecem o poder estabelecido (establishment) sobre o qual os plutocratas que possuem as grandes empresas de comunicação social construíram os seus reinos. Eles manipulam as narrativas dos grupos.
E depois há os oligarcas. Os mestres manipuladores. Estes reis corporativos do mundo moderno aprenderam o segredo que todos os governantes desde o início da civilização conhecem: quem controla as narrativas em que uma sociedade acredita é o controlador dessa sociedade. Identidade, linguagem, etiqueta, papéis sociais, opiniões, ideologia, religião, etnia, filosofia, agendas, regras, leis, dinheiro, economia, empregos, hierarquias, política, governo: todas as construções mentais que só influenciam a sociedade na medida em que são acreditadas e subscritas por uma maioria significativa do coletivo. Se você tem influência sobre as coisas que as pessoas acreditam sobre essas construções mentais, você tem influência sobre a sociedade. Você governa isso. Os oligarcas manipulam as narrativas de sociedades inteiras.
É por isso que ao longo da história tem havido queimas de livros, queimadas de hereges e execuções por zombar do imperador: ideias que diferem das narrativas dominantes sobre o que é o poder, como funciona o dinheiro, quem deveria estar no comando e assim por diante, são ameaçadoras para o governante. A qualquer momento, em qualquer reino, o povo poderia ter decidido tirar a coroa da cabeça do rei e colocá-la na cabeça de qualquer mendigo comum e tratá-lo como o novo rei. E, para todos os aspetos significativos, ele seria o novo rei. A única coisa que impediu que isto acontecesse foram as narrativas dominantes subscritas pela sociedade da época sobre o Direito Divino, fidelidade, lealdade, sangue nobre e assim por diante. A única coisa que mantinha a coroa na cabeça de um rei era a narrativa.
Exatamente a mesma coisa permanece verdadeira hoje; a única coisa que mudou foram as narrativas que o público subscreve. Por causa do que lhes é ensinado na escola e do que os falantes nos seus ecrãs lhes dizem sobre a sua nação e o seu governo é que a maioria das pessoas acredita que vive numa situação de democracia relativamente livre onde o poder responsável e temporário é colocado nas mãos de um grupo seleto com base num processo de votação que cremos informado com base num debate não regulamentado de informações e ideias. Completamente separada do governo, acreditam eles, está uma economia cujo comportamento é determinado pela oferta e procura dos consumidores. Na realidade, a economia, o comércio e o governo são totalmente controlados por uma classe de elite de plutocratas, que também são donos das empresas de comunicação social que transmitem a informação sobre o mundo nos ecrãs das pessoas.
Controle as narrativas da economia e do comércio e você controlará a economia e o comércio. Controle as narrativas sobre política e governo e você controlará a política e o governo. Este controlo é usado pelos controladores para canalizar o poder para os oligarcas, transformando assim efetivamente a sociedade numa gigantesca propriedade de energia para a classe de elite.
Mas é possível acordar dessa Matrix narrativa […]”
Os trabalhadores da indústria cinematográfica que se viram forçados a fazer greve para se defenderem da utilização abusiva das suas imagens, sons e escritos, acabaram por desconvocar a greve após uma negociação que envolveu o pagamento suplementar de mais de mil milhões de dólares.
Ao aceitarem esse pagamento, espero que o tenham feito conscientes que estavam a aceitar engolir a pílula que lhes garantia a continuidade de permanecerem na Matrix. Humanos na sua condição mais natural: garantir a sobrevivência.
No filme, quando um dos três psíquicos previa a possibilidade de um futuro alternativo para a vítima e para o perpetrador em que o crime não acontecia, esse “relatório minoritário” dissonante era destruído para que o público conseguisse manter a confiança no sistema.
Nas empresas, o relatório minoritário é também a forma para demonstrar como os valores de justiça, equilíbrio, participação e trabalho podem ser alcançados pela expansão dos valores empresariais. A cultura empresarial como exemplo de democracia.
“Determino e mando publicar”, cabeçalho das Ordens de Serviço.
Minority Report é um filme de 2002 de Steven Spielberg com base numa novela do mesmo nome escrita em 1956 pelo saudoso Philip K. Dick, com Tom Cruise, Colin Farrell e Max von Sydow, e cuja ação se passa em 2054 numa altura em que o governo federal se prepara para fazer aprovar o programa policial “Pré crime”, que na prática já vinha sendo experienciado há seis anos.
Segundo o programa, um trio de psíquicos humanos clarividentes (“precogs”) percecionavam impressões psíquicas de homicídios eminentes e ainda por realizar, visões essas que oficiais especializados da polícia analisam para conseguirem determinar o local onde vão acontecer, podendo assim prenderem os pretensos criminosos antes de os crimes acontecerem.
Quando um dos três psíquicos prevê (sonha) a possibilidade de um futuro alternativo para a vítima e para o perpetrador em que o crime não aconteça, esse relatório dissonante é destruído para que o público consiga manter a confiança no sistema (programa). Esse “relatório minoritário” é eliminado.
Na vida real das empresas e outras organizações políticas, administrativas, jurídicas, etc., uma opinião minoritária ou “relatório minoritário” é a expressão de desacordo com a decisão da maioria que os órgãos consultivos podem levar ao conhecimento dos empregados. Em termos jurídicos, isto é conhecido como “dissidência de opinião”.
Segundo a teoria dessas organizações, um relatório minoritário pode ser valioso para captar as nuances de uma decisão. Não reverte, apela ou visa alterar a decisão tomada pela maioria.
Um relatório minoritário pode concordar com a decisão, mas discordar com princípios, sugestões ou estratégias específicas. Uma opinião minoritária pode trazer maior precisão à decisão da maioria, mas deve ser usada seletivamente, como quando a opinião está ausente na parte da discussão da ata da reunião.
Os relatórios minoritários também não devem ser usados para promover agendas pessoais, obter uma “palavra final” ou gerar polarização. Em vez disso, os relatórios pretendem trazer luz a uma discussão rica.
Tendo tudo isto em vista, essas organizações indicam algumas normativas que entendem ser de bom uso para se escrever um relatório minoritário:
“Os relatórios minoritários devem ser discutidos e redigidos com o mesmo nível de transparência que qualquer outro trabalho em grupo. É necessário aviso prévio, agendas e atas de reuniões. O relatório e os rascunhos são de registro público.
Assim como existe um relatório, decisão ou recomendação maioritária, existe apenas um relatório minoritário. Os membros dissidentes trabalham juntos para produzir uma carta.
[…] É importante definir a quem o relatório é endereçado. Por exemplo, se o grupo se reporta a um programa, diretor, ou Conselho, essa autoridade vai na linha “Para”.
[…] Definir se o relatório minoritário aborda uma decisão ou recomendação. Se não for nenhuma das duas, então a carta pode ser antes enviada ao contato do grupo como uma “preocupação” do processo ou como “saída entrevista”, e não como um relatório minoritário. Um relatório minoritário não é uma carta para “desabafar” e não pode ser usado para ameaçar, exigir ou emitir ultimatos.
[…] Os relatórios minoritários podem ser escritos quer a decisão tenha sido tomada por consenso ou por votação.
Os relatórios minoritários são apresentados ao mesmo tempo que o relatório maioritário.”
Instruções como estas ou semelhantes fazem parte de qualquer manual das grandes e pequenas organizações, como forma para mostrar aos seus empregados como devem atuar afim de evitarem dissidências que possam vir a emperrar o seu bom funcionamento. É também a forma para lhes insinuar como os valores de justiça, equilíbrio, participação e trabalho podem ser alcançados através da expansão dos valores empresariais. A cultura empresarial como exemplo de democracia. Tudo azul, tudo muito azul.
No seguimento das declarações de Paddy Cosgrave, fundador da Web Summit, que, tal como o secretário-geral da ONU António Guterres, considerou tratarem-se também de “crimes de guerra” a resposta de Israel ao ataque do Hamas, assistiu-se ao cancelamento do apoio e das participações no referido “evento” da Alphabet (dona da Google), Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), Amazon, Intel, Siemens e outros fundos de capitais.
Uma das conclusões possíveis de retirar desta posição comum e imediata pelas grandes tecnológicas é que decisões maioritárias como estas, que são as que importam, só podem ser feitas pelos maioritários. Por isso, os relatórios minoritários, não passam disso mesmo, são relatórios para o pessoal menor.
Isto fez-me recordar os tempos nas Forças Armadas a quando ao fim do dia se procedia à leitura da Ordem de Serviço exarada pelo oficial comandante, e que, justificadamente, começava (ou terminava) sempre assim:
“Determino e mando publicar”.
O corolário evidente dessa tomada de posição conjunta das Tecnológicas pode também ser visto como inspirador para a distinção que se entende estabelecer entre autocracia e democracia: numa autocracia não há liberdade para se dizer o que se quer; numa democracia há liberdade para se dizer o que se quer desde que se diga o que querem que se diga.
E pode também ser visto como indicador de quem é que atualmente determina. Que os outros, pressurosamente, publicam. Tudo só azul, tudo muito azul.
Referências:
Sobre a frase de Aristóteles, “ A democracia e a oligarquia podem fundir-se desde que os muitos pobres não ameacem os poucos ricos através de instituições representativas, e os poucos ricos não concentrem riqueza ao ponto dos muito pobres se tornarem politicamente explosivos, e sobre o princípio histórico segundo o qual “A democracia é apenas uma das formas da política que os oligarcas utilizam para a defesa da sua riqueza”, ler o blogue de 14 de março de 2018, “As máscaras das oligarquias”.
Sempre fomos alfabetizados, porque não se pode ser judeu sem se ser alfabetizado, Hannah Arendt.
Há apenas dois caminhos. Ou condenamos os judeus no gueto à morte por fome ou então fuzilamo-los, Dr. Jost Walbaum.
Em novembro de 1940 a autoridades nazis criam na cidade de Varsóvia o maior de todos os seus guetos, com uma área de 3,4 quilómetros quadrados (Gaza tem 356 quilómetros quadrados), onde acantonaram 460.000 judeus e ciganos.
Por variadas razões (que não são as razões em si, mas mais convencimentos convenientes) os judeus foram ao longo dos tempos quase sempre perseguidos, olhados com desconfiança, marginalizados e isolados.
Quer por serem minoritários nas sociedades em que viviam, quer por serem diferentes ao acreditarem num deus único e exclusivo para eles (só deles), quer por serem obrigados a ler o que esse deus escrevera (os 10 mandamentos não foram ditos, foram escritos, o que significava que o povo os teria de ler – e contar -, pelo que desde cedo o analfabetismo deixou de existir entre eles, o que lhes conferiu um grande avanço relativamente às outras sociedades em que se inseriam, que leva ainda hoje muitos a se extasiarem – sem pensarem - com o facto de muitos pensadores, cientistas e banqueiros serem judeus ou de origem judaica), quer por tudo isto e mais, o que os levou não só a serem diferenciados pelos outros como a sentirem-se eles próprios diferentes, superiores por sentirem essa diferenciação que lhes fora conferida.
Exemplos do dia a dia destas situações/condições que hoje podem parecer ridículos e insignificantes (ou não), como os acontecidos relativamente às pestes durante a época medieval: dado que os locais em que os judeus viviam não eram atacados pela peste (e isso devido às regras higiénicas que já então eles praticavam), foram perseguidos, escorraçados e mortos porque se acreditava que a peste fora lançada como castigo por se lhes ter sido permitido instalarem-se em terras cristãs, eles que tinham sido os responsáveis por terem entregue Cristo aos romanos e que o tinham condenado à morte.
Nos locais onde na Idade Média os judeus eram colocados para evitarem o contacto com o mundo exterior, esse contacto era rigorosamente regulamentado. Assim, “os portões eram fechados durante a noite – pela parte de fora nas localidades onde a finalidade fosse apenas a de confinar os judeus, e pela parte de dentro onde a finalidade fosse a proteção dos judeus contra ataques do exterior.” Em qualquer dos casos a administração, policiamento, justiça e instituições religiosas eram exercidas pelos próprios judeus.
Mas tudo isto mudou na Europa de 1939 até 1945, com os novos locais de internamento (guetos) instituídos pelos Nazis.
Sabemos hoje como os guetos serviram para concentrar os judeus, enfraquece-los fisicamente através da fome e das doenças, dividi-los e desmoralizá-los através do mecanismo de controle do Concelho Judaico (Judenrat), para por fim os encaminhar para a deportação para os campos de extermínio.
Sabe-se também que a política nazi de concentração dos judeus em guetos não foi uma política coerente nem única com vista à Solução Final.
Tendo começado como um plano para a concentração e isolamento dos judeus, os guetos foram aos poucos sendo utilizados como laboratórios para experimentar métodos para a destruição lenta e pacífica de grandes grupos de seres humanos.
Problemas resultantes dessas grandes concentrações de pessoas acantonadas e muralhadas em cidades, como o aparecimento de epidemias e fome, levaram as autoridades locais a desenvolverem soluções várias, como por exemplo a apresentada pelo responsável para a saúde pública de Varsóvia, Dr. Jost Walbaum:
“Naturalmente seria melhor e mais simples fornecermos-lhes provisões suficientes, mas tal não é possível […] Portanto, sempre que se encontrar um judeu fora do gueto sem autorização especial, deve-se fuzilá-lo. Aliás, podemos dizê-lo abertamente neste círculo, e isto deve ficar claro. Há apenas dois caminhos. Ou condenamos os judeus no gueto à morte por fome ou então fuzilamo-los.”
Numa conferência para o planeamento económico geral realizada em 1940, sobre a forma racional de utilizar o trabalho dos judeus concluíra-se que “era necessário que os judeus nómadas fossem concentrados em cidades” e que todas as cidades deviam construir campos de trabalho, campos de concentração e guetos “para que os judeus não se pudessem movimentar livremente.”
Um mês depois, estas construções foram suspensas porquanto parecia estar iminente a deportação dos judeus para Madagáscar. Os zig-zagues do luminoso planeamento centralizado nazi.
A Ordem de Serviço nº1 do general Hugo Schwab em agosto de 1941, é um exemplo de como as “notícias” eram transmitidas aos judeus. Começa por referir que “todos os judeus terão de viver em guetos, colónias e campos de trabalho. Todos os judeus que não se apresentarem às autoridades dentro de dez dias com a finalidade de se lhes fixar residência, serão executados. Os judeus estão proibidos de saírem dos guetos, campos de trabalho ou locais vigiados sem prévia aprovação das autoridades. Os que não respeitarem esta ordem serãopunidos com a morte […] Todos os judeus que tentarem fugir serão executados. Todo aquele que dê guarida a um judeu […] será enviado para a prisão por um período de três a doze anos e multado de 100 a 200 marcos”.
Varsóvia é tomada pelos nazis a 27 de setembro de 1939. Quase de seguida é constituído um Concelho Judaico (Judenrat) a ser chefiado sempre por um judeu com vista `implementação” das ordens nazis. Em novembro de 1939 é decretado que todos os judeus são obrigados a usar uma braçadeira branca com a Estrela Azul de David. As escolas judaicas são fechadas, as propriedades dos judeus são confiscadas, e os judeus homens são obrigados a trabalhos forçados.
Um ano depois, em novembro de 1940 a autoridades nazis (major-general Hans Frank) criam na cidade de Varsóvia o maior de todos os seus guetos, com uma área de 3,4 quilómetros quadrados (Gaza tem 356 quilómetros quadrados), onde acantonaram até 460.000 judeus e ciganos. Os muros que o limitavam tinham 3 metros de altura, e eram encimados por arame farpado. Estes limites eram reduzidos sempre que a população cativa se reduzia quer devido à fome, doenças e execuções regulares.
As condições no gueto eram terríveis: para além dos cortes de água e luz, a ração diária concedida pelos nazis era de 131 calorias, o que rapidamente conduziu à morte “controlada” de 5.000 pessoas por dia (fome e doença).
Depois da célebre conferência de Wannsee (20 janeiro 1942) em que se deliberou a Solução Final, a partir de 22 de julho de 1942 os nazis começaram com as deportações em massa com destino ao campo de morte de Treblinka que distava 84 quilómetros. Até setembro de 1942 foram deportados250.000 judeus e mortos dentro do gueto aproximadamente 50.000.
Quando em janeiro de 1943 intentam de novo deportar para Treblinka cerca de mais 60.000, os judeus, armados com armas ligeiras, resistem. Os nazis retiram-se depois de matarem 5.000 judeus. Regressam em abril, e segue-se a mortandade: o gueto é arrasado e incendiado, a revolta esmagada e os sobreviventes são enviados para outros campos de concentração e para campos de morte. A insurreição é dada por terminada a 1 de maio de 1943.
A insurreição do gueto de Varsóvia foi a maior e mais importante insurreição judaica durante a 2ª Guerra Mundial. Foi também a primeira insurreição em cidades da Europa ocupadas pelos nazis. Esta resistência inspirou outras insurreições em guetos, como o de Bialystok.
Referências:
Sobre a alfabetização do povo judeu, sugiro a leitura da entrevista de Hannah Arendt reproduzida no blog de 18 de novembro de 2020, “Arendt: a tradição quebrada”, onde se pode ler:
“O "talento" - por assim dizer - de pelo menos uma certa parte do povo judeu é um problema histórico, um problema de primeira ordem para os historiadores. Posso arriscar uma explicação especulativa: somos o único povo, o único povo europeu, que sobreviveu desde a Antiguidade e praticamente intacto.
Isso significa que conservámos a nossa identidade, e que somos os únicos que nunca conhecemos o analfabetismo. Sempre fomos alfabetizados porque não se pode ser judeu sem ser alfabetizado. As mulheres eram menos alfabetizadas do que os homens, mas mesmo elas eram muito mais alfabetizadas do que suas contrapartes noutros lugares. Não apenas a elite sabia ler, mas todo o judeu tinha que ler - o povo inteiro, em todas as classes e em todos os níveis de talento e inteligência.”
Sobre a origem da palavra “gueto”, remeto para o artigo a Wikipedia:
“Existem diversas teorias a respeito da origem da palavra (…) Uma delas considera que a palavra seja uma contração de borghetto, diminutivo de borgo ("burgo").
No dialeto veneziano, 'ghetto' era do nome de uma ilha onde existia uma fundição que fabricava peças de artilharia. Mais tarde, em 1516, quando os judeus de Veneza foram obrigados a viver nessa ilha, o termo passou a designar a zona de uma cidade onde uma minoria étnica ou social vivia confinada. Da Itália, a palavra passou para a maioria das línguas europeias.”
Sobre a Conferência de Wannsee:
“A Conferência de Wannsee consistiu numa reunião de membros superiores do governo da Alemanha Nazi e líderes das SS, realizada no subúrbio de Wannsee, em Berlim, a 20 de Janeiro de 1942.
Os participantes da reunião incluíam representantes de vários ministérios do governo como secretários-de-estado do Ministérios das Relações Exteriores, Justiça, e Interior, tal como ministros e representantes das Schutzstaffel (SS).
No decurso da reunião, Heydrich descreveu como os judeus europeus seriam reunidos desde o oeste ao leste, e enviados para campos de extermínio no Governo Geral (a parte ocupada da Polónia), onde seriam executados.
Pouco depois da invasão da Polónia em Setembro de 1939, a perseguição aos judeus europeus atingiu níveis sem precedentes, mas a matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças já tinha começado em Junho de 1941 depois da Operação Barbarossa contra os soviéticos.
Em 31 de Julho de 1941, Hermann Göring deu uma autorização por escrito a Heydrich para que este preparasse e enviasse um plano para a "solução total da questão judaica" em territórios sob o controlo alemão, e que coordenasse a participação de todas as organizações envolvidas.
Em Wannsee, Heydrich salientou que, quando as deportações em massa estivessem terminadas, as SS ficariam encarregues dos extermínios. Um segundo objetivo era definir quem era formalmente judeu e assim determinar o âmbito do genocídio.
Uma cópia do Protocolo com as suas minutas sobreviveu à guerra. Foi encontrada pelos Aliados em março de 1947 entre documentos que tinham sido confiscados ao Ministério das Relações Exteriores alemão. O documento foi utilizado como evidências nos Processos de Guerra de Nuremberga. O Palacete Wannsee, local da conferência, é, atualmente, um memorial do Holocausto.”
A supremacia branca e a tentação de regressar às raízes tribais são duas faces da mesma moeda.
A colonização britânica da Índia criou as condições para a dupla libertação das constrições da sua própria tradição e da colonização em si mesmo.
Na Índia, por 8.000 dólares, mães de aluguer acolhem-se numa autêntica “fábrica de bebés” para darem à luz filhos de casais ocidentais.
A “Fonte da vida” (Lebensborn) na Alemanha nazi oferecia às jovens que fossem “racialmente puras” a possibilidade de darem à luz em segredo.
Slavoj Zizek, conta uma história que se diz ter passado com Jesus, e que tem que ver com o potencial libertador que até uma ferida pode ter (ou não!):
“Na noite anterior a ser preso e crucificado, os seus seguidores começaram a preocupar-se com o facto de Jesus ainda ser virgem. Não seria bonito que antes de morrer tivesse uma experiência prazenteira? Resolvem pedir a Maria Madalena para ir à sua tenda onde ele estava a descansar, e que o seduza. Maria aceita de bom grado e entra na tenda, só que cinco minutos depois sai a correr e aos gritos, aterrada e furiosa. Aos seguidores de Jesus perguntam-lhe sobre o que se passara, e ela explica: “Despi-me lentamente, abri as pernas e mostrei a minha entrada a Jesus; ele olhou para ela e disse-me: “Que ferida terrível! Que se feche!”, e pôs suavemente a mão em cima dela.”
A ocupação prolongada de um país, de uma cultura, por outro país, outra cultura, leva a alterações muito mais profundas e duradoras do que se tem julgado. É, por exemplo, o que acontece com o colonialismo que vulgarmente se equaciona (quando se o faz) apenas como um deve e um haver, normalmente só tomando em consideração o ponto de vista do colonizador.
Repare-se neste caso típico: Portugal figura entre os países que durante mais tempo se dedicou ao comércio de escravos, tendo forçadamente transportado desce o século XV ao século XIX cerca de 6 milhões de africanos (homens, mulheres e crianças), e no entanto ainda hoje nos vangloriamos (e nos convencemos) por termos sido a primeira nação a abolir a escravatura (em 1761), quando na verdade o que abolimos foi o trafego de escravos apenas para Portugal continental, porque esse tráfego continuou a ser feito para o Brasil até 1869.
Ao ainda hoje insistirmos (e acreditarmos) nesta tecla, o que estamos a dizer é: “Sim, nós fizemos isso, mas fomos os primeiros a deixar de fazer!”.
Vivemos hoje num tempo que também se pode considerar como o tempo das desculpas mediáticas: em 2018, a Dinamarca pediu desculpas ao Gana pelo sua colonização do século XVII ao XIX; em junho de 2020, o rei Filipe da Bélgica apresentou as suas “maiores desculpas” pelos brutais abusos cometidos no Congo; Mark Rutte, primeiro ministro da Holanda, pediu desculpas em dezembro de 2022 pelo “papel que [a Holanda] teve no comércio de escravos … que permitiu, encorajou e disso se beneficiou”. Parece estar para breve a Inglaterra. Portugal não está ainda na lista.
Para estes pedidos de desculpas muito deve ter contribuído o aparecimento de novas práticas sociais que vão por um lado desde a entrega (devolução?) de obras de arte aos antigos territórios colonizados, até ao combate intelectual que tem pugnado para que a expressão literária passe a ser feita apenas na linguagem dos colonizados (e este talvez seja aquele sintoma que mais diga sobre a maldade do colonialismo – por ter levado à quase total destruição de valores culturais identitários únicos).
É na procura dessas raízes de valores culturais que várias vozes se têm levantado: um regresso ao passado como possibilidade para um novo futuro.
Por outro lado, outros manifestam uma integração (aceitação total) aos costumes mais “inovadores” e “progressistas” do colonizador como forma de avançar, como o demonstra o caso das “fábricas de bebés” na Índia.
Abriu recentemente na Índia uma autêntica “fábrica de bebés” onde por 8.000 dólares as mães de aluguer se acolhem e são seguidas para darem à luz filhos de, e para casais ocidentais. A “fábrica”, um complexo multimilionário, com lojas de presentes e quartos de hotel para os casais que aí irão recolher os seus recém-nascidos, foi concebida e é dirigida pela doutora Nayna Patel por forma a poder albergar simultaneamente centenas de mães de aluguer.
As mulheres que aí se acolhem e dão á luz pela tarifa determinada, fazem-no para fugirem à extrema pobreza, engravidando com a utilização de esperma e/ou embriões transportados por mensageiros, uma vez que os casais clientes só poderão visitar a Índia apenas para recolherem os seus novos filhos ou filhas.
A diretora Patel não tem dúvidas em considerar o seu trabalho como uma “missão feminista” visando unir as mulheres necessitadas às mulheres que desejam ter filhos, mas que são incapazes de conceber.
Em dezembro de 1935, no mesmo ano em que as Leis de Nuremberga proibiam o casamento com judeus e outros povos considerados inferiores, Heinrich Himmler, dá início ao projeto “Fonte da vida” (Lebensborn), com a finalidade de inverter o declínio da população germânica e nórdica, e permitir assim alcançar a meta de 120 milhões de alemães.
O projeto encorajava os membros das SS e os oficiais das Forças Armadas a terem filhos com mulheres arianas, filhos que viriam a ser os futuros dirigentes da nação nazi-ariana. E cria a “Lebensborn e. V.” (Sociedade Registada), registada em Munique, que oferecia às jovens que fossem “racialmente puras” a possibilidade de darem à luz em segredo. A criança seria depois entregue a uma organização das SS que se encarregaria da sua educação e adoção.
Tanto o pai como a mãe, necessitavam primeiro de passar num teste para atestar a “pureza racial”. A preferência ia para os que tivessem cabelos loiros e olhos azuis, e em que a linhagem da família pudesse ser possível de ser traçada até três gerações.
No início, as Lebensborn eram levadas para enfermarias das SS. Mas para virem a criar uma “super-raça”, as SS transformaram as enfermarias em “locais de encontro” para as mulheres racialmente puras que queriam ter filhos de oficiais das SS. Às mães grávidas, casadas ou não, era-lhes providenciada casa, meios de alimentação e outros, por forma os filhos ficarem em segurança e conforto.
A primeira instalação Lebensborn abriu em 1936 em Steinhoering, perto de Munique. O mobiliário das casas provinha dos melhores lotes retirados a judeus que tinham sido enviados para Dachau.
Chegaram a existir dez casas Lebensborn na Alemanha, nove na Noruega (a preferência concedida à Noruega vinha do facto de os nazis considerarem os noruegueses como raça pura ariana), seis na Polónia, duas na Áustria, duas na Dinamarca, uma na Bélgica, Holanda, França e Luxemburgo.
Contudo, como em 1939 o programa não estava a produzir os resultados desejados, Himmler dá ordens diretas para que todos os SS e polícias fossem pais do maior número possível de crianças, para assim compensarem as baixas infligidas pela guerra.
Além disso, o programa passou também a partir de 1939 a encorajar o rapto de crianças consideradas “racialmente boas” (cabelos loiros e olhos azuis ou verdes) nos países orientais ocupados. Embora algumas das crianças fossem órfãs, muitas eram arrancadas às famílias. Só da Polónia contam-se 100.000 crianças nestas condições.
Eram depois transferidas para os centros Lebensborn a fim de rejeitarem e esquecerem os pais (as enfermeiras da SS tentavam persuadir as crianças de que os pais as tinham abandonado), e serem “germanizadas”. As que recusassem a educação nazi, eram açoitadas, acabando parte delas enviadas para campos de concentração e exterminadas. As outras eram adotadas por famílias das SS.
A partir de 1942, o Lebensborn, com o acordo de Hitler, passa a poder englobar mães não-germânicas, encorajando os soldados a confraternizarem com mulheres nativas no entendimento que os filhos resultantes seriam protegidos. As namoradas ou casos de uma noite de oficiais das SS, eram convidadas para as casas da Lebensborn, para aí terem os seus filhos com toda a privacidade e segurança.
Calcula-se que durante os dez anos da existência do programa, nasceram pelo menos 8.000 crianças na Alemanha e 12.000 na Noruega. Quanto às crianças raptadas nos países de Leste e enviadas para a Alemanha, estima-se terem sido 250.000. Apenas 25.000 foram recolhidas após a guerra, e entregues às famílias.
Atente-se no que escreveu Marx há século e meio sobre “O domínio britânico na Índia”, quando se referiu à brutalidade (1) e hipocrisia exploradora da colonização britânica, que incluía o uso sistemático da tortura (proibida no Ocidente de então, mas permitida por lei para aplicação aos indianos, um claro precedente no século XIX às Guantánamos atuais), demonstração da hipocrisia e inerente barbárie da civilização que ao afastar-se da metrópole onde assume formas respeitáveis se revelava sem ambiguidades nas colónias:
“A Inglaterra destroçou toda a estrutura da sociedade indiana, e em parte alguma aparecem sintomas de reconstrução. Esta perca do seu antigo mundo sem ter obtido um novo, dá lugar a um tipo particular de melancolia à atual miséria dos hindus, e separa o Indostão, governado pelos britânicos, das suas antigas tradições e da totalidade da sua história anterior […] A Inglaterra, ao provocar uma revolução social no Indostão, atuou somente motivada pelos seus mais vis interesses, que os impôs de uma forma estúpida. Mas essa não é a questão. A questão é: pode o ser humano cumprir o seu destino sem uma revolução fundamental na sociedade da Ásia? Se não for assim, sejam quais forem os crimes cometidos por Inglaterra, então tal foi a ferramenta inconsciente da história ao provocar essa revolução.”
Ou seja, a colonização britânica da Índia criou as condições para a dupla libertação do subcontinente das constrições da sua própria tradição e da colonização em si mesmo.
Perguntam alguns teóricos culturais: mas o simples facto de se verem obrigados a exprimirem-se em inglês não é uma forma de colonialismo cultural que censura a sua verdadeira identidade? Não nos vai isto colocar numa posição de alienação radical, dado que até a nossa resistência à colonização se deverá expressar na linguagem do colonizador?
A resposta é que “reconciliação” com o idioma inglês, significa que se tem de o aceitar não como o obstáculo para se conseguir uma nova Índia, em desfavor de uma outra língua local, mas como um meio que abre novas possibilidades, como condição positiva da libertação.
“A verdadeira vitória sobre a colonização não consiste em regressar a uma existência pré-colonial, e menos ainda a uma síntese entre a civilização moderna e as origens pré-modernas, mas antes em perder completamente essas origens pré-modernas.”
O colonialismo não se supera quando se aborda a intromissão do inglês, mas sim quando se derrotam os colonizadores no seu próprio jogo. Isso acontece quando a nova identidade da Índia se formular sem esforço em inglês, ou seja, quando o inglês se encontrar ele próprio “desnaturalizado”, ou seja, quando perder o seu vínculo privilegiado com o anglofalante anglo-saxão “nativo”.
E isto porque “o que estava oprimido não era a Índia pré-colonial, mas o autêntico sonho de uma nova Índia democrática e universalista.”
Segundo o mito liberal clássico, a universalidade dos direitos humanos traz a paz quando estabelece as condições da coexistência pacífica entre a multiplicidade das culturas particulares. Mas para o colonizado esta universalidade é falsa, pois funciona como uma violenta intrusão de uma cultura estrangeira que dissolve as suas raízes particulares.
Contudo, a própria desintegração das formas tradicionais abre espaço para a libertação. Como muito bem viram Nelson Mandela e o CNA, a supremacia branca e a tentação de regressar às raízes tribais são duas faces da mesma moeda.
A melhor forma para se entender este problema das duas faces da mesma moeda é o exemplo do Império Romano e a expansão do cristianismo: não fosse a colonização e uniformização linguística imposta por Roma, possivelmente o cristianismo não teria passado de mais uma religião regional.