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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(418) Equívoco menor

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Adam Smith, era um professor de filosofia moral da Universidade de Glasgow, especialmente reconhecido à época pela publicação de The Theory of Moral Sentiments (1759).

 

Charles James Fox, era o chefe do Partido Conservador, que festejou no Parlamento o An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, e que veio mais tarde admitir que afinal nunca o tinha lido,

 

Obter monopólios privados com apoio militar é sempre muito mais fácil do que competir no mercado aberto, baixando preços e melhorando a qualidade.

 

 

 

 

 

Adam Smith (1723-1790), tido como o génio fundador da ciência económica, e considerado ainda hoje como o Santo Patrono do neoliberalismo por demonstrar a superioridade dos mercados sobre o planeamento dos governos (como bem atesta a influencia exercida pelo Adam Smith Institute - grupo de pressão e pensamento fundado em Londres em 1977 - nas políticas económicas de vários governos e nações),  era um professor de filosofia moral da Universidade de Glasgow, lecionando ética, política, jurisprudência e retórica, especialmente reconhecido pela publicação da The Theory of Moral Sentiments (1759).

 

P: Como foi possível a passagem de professor de filosofia moral para Santo Patrono do neoliberalismo?

R: Devido a um pequeno equívoco, que acabou por ter consequências maiores.

 

 

Quando m 1776, Smith publica An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, obra com cerca de 1000 páginas, abordando história, ética, psicologia e filosofia política, fê-lo com o intuito de “atacar violentamente […] todo o sistema comercial da Grã-Bretanha”.

Para seu espanto, o livro foi efusivamente festejado no Parlamento pelo leader do Partido Conservador, Charles James Fox, o que levou Smith a suspeitar que não tinham entendido os principais argumentos da obra. Mais tarde, Fox veio admitir que afinal nunca tinha lido o livro, o que não evitou que a obra continuasse a ser bem acolhida pelos membros do Parlamento.

A Riqueza das Nações incide especialmente sobre o “sistema mercantil” vigente. Smith queria referir-se à rede de monopólios que caracterizava os assuntos económicos do início da Europa moderna, onde as empresas privadas pressionavam os governos pelo direito de operar rotas comerciais exclusivas, ou de serem os únicos importadores ou exportadores de mercadorias, enquanto as guildas estanques controlavam o fluxo de produtos e empregos nos mercados domésticos.

 

Como resultado, as pessoas foram forçadas a aceitar preços inflacionados por produtos de má qualidade, ficando ainda o seu emprego à mercê discricionária de patrões.

Smith viu isso como uma afronta à liberdade e como uma restrição prejudicial à capacidade de cada nação poder aumentar a sua riqueza coletiva. No entanto, esse sistema mercantil beneficiava as elites mercantis, que muito se esforçaram para o conservar.

 Smith não tinha dúvidas sobre a sua avaliação dos patrões como trabalhando contra os interesses do público. Como disse em A Riqueza das Nações:

 

'Pessoas do mesmo ofício raramente se encontram, nem que seja para se divertirem, mas quando o fazem a conversa termina sempre numa conspiração contra o público ou em algum artifício para aumentar os preços.'

 

Os mercadores levaram séculos para conseguirem alcançar essa posição de vantagem injusta. Em particular, inventaram e propagaram a chamada doutrina da “balança comercial”, conseguindo entranharem-na como sabedoria popular da época. A ideia básica era que a riqueza de cada nação consistia na quantidade de ouro que possuía. Jogando com essa ideia, os mercadores afirmavam que, para enriquecer, uma nação deveria exportar o máximo possível e importar o mínimo possível, mantendo assim um equilíbrio “favorável”.

Depois, apresentavam-se como servidores do público, oferecendo-se para administrar os monopólios apoiados pelo Estado, limitando a entrada e maximizando a saída de bens, ou seja, de ouro. Mas, como mostrou a longa análise de Smith, isso era pura intrujice: o que era necessário, em vez disso, eram acordos comerciais abertos, para que a produtividade pudesse aumentar de forma geral e a riqueza coletiva crescesse para o benefício de todos.

 

A paz e a estabilidade do continente europeu foram ameaçadas pelas conspirações dos mercadores, que incitaram os políticos a travar guerras para proteger os mercados domésticos ou para conseguirem adquirir mercados estrangeiros. Afinal, obter monopólios privados com apoio militar era muito mais fácil do que competir no mercado aberto, baixando preços e melhorando a qualidade. Era por isto que os mercadores conspiravam constantemente para capturar o estado, defraudando o público, usando o poder político para promover a sua própria vantagem.

 

A famosa “mão invisível”

 

A ideia mais famosa e citada de Smith – a da “mão invisível” como metáfora para a atuação livre do mercado – foi feita dentro do contexto do seu ataque às elites mercantis.

 É verdade que Smith era cético relativamente às tentativas dos políticos de interferirem nos processos básicos do mercado, ainda que o fizessem na vã esperança de tentarem fazer um trabalho melhor do que seria possível se permitissem que o mercado fizesse o seu trabalho.

Mas nessa passagem de A Riqueza das Nações onde ele invocou a ideia da “mão invisível”, o contexto imediato não era simplesmente o da intervenção do Estado em geral, mas o da intervenção do Estado feita a mando das elites mercantis que estavam ao mesmo tempo a promover os seus próprios interesses à custa do público.

 

É uma ironia da história que a ideia mais celebrada de Smith seja agora invocada como uma defesa dos mercados não regulamentados diante da interferência do Estado, de modo a proteger os interesses dos capitalistas privados. Porque isso é praticamente o oposto da intenção original de Smith, que era o de defender restrições sobre o que grupos de comerciantes poderiam fazer.

Quando ele argumentou que os mercados funcionavam de forma notavelmente eficiente – porque, embora cada indivíduo “pretenda apenas o seu próprio ganho, e ele é neste, como em muitos outros casos, conduzido por uma mão invisível para promover um fim que não fazia parte de sua intenção” –isto foi um apelo para libertar os indivíduos das restrições que lhes eram impostas pelos monopólios que os comerciantes haviam estabelecido, usando o poder do Estado para as manter. A “mão invisível” foi originalmente invocada não para chamar a atenção para o problema da intervenção do Estado, mas para o da captura do Estado.

 

Mas entendamos, para Smith, os mercadores eram uma parte potencialmente perniciosa, mas inteiramente necessária, do funcionamento das economias de grande escala. Contudo, Smith estava muito longe de nos pedir para pormos fé em “empreendedores”, supostos “criadores de riqueza” que o neoliberalismo vê como impulsionadores da prosperidade económica. Pelo contrário, dar liberdade aos empresários seria como colocar raposas no galinheiro.

Quanto aos políticos, que poderiam ser moderadores do sistema, Smith afirmava que eram passíveis de serem arrebatados por um “espírito do sistema”, que os fazia apaixonarem-se por planos abstratos que esperavam fossem introduzir reformas benéficas. Normalmente, as motivações por detrás desses planos eram perfeitamente nobres: um desejo genuíno de melhorar a sociedade. O problema, porém, era que o “espírito do sistema” cegava os indivíduos para as duras complexidades das mudanças no mundo real.

Tudo isto já Smith escrevera na The Theory of Moral Sentiments:

 

 

“[O homem do sistema] parece imaginar que pode organizar os diferentes membros de uma grande sociedade com a mesma facilidade com que a mão organiza as diferentes peças num tabuleiro de xadrez. Ele não considera que as peças do tabuleiro de xadrez tenham outro princípio de movimento para além daquele que a mão lhes imprime; mas que, no grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana, cada peça tem um princípio de movimento próprio, totalmente diferente daquele que o legislador pode escolher imprimir-lhe. Se esses dois princípios coincidirem e agirem na mesma direção, o jogo da sociedade humana decorrerá fácil e harmoniosamente, e muito provavelmente será feliz e bem-sucedido. Se forem opostos ou diferentes, o jogo prosseguirá miseravelmente, e a sociedade deve estar sempre no mais alto grau de desordem.”

 

 

 

Nota:

Ler  The Opinion of Mankind: Sociability and the Theory of the State from Hobbes to Smith , de Paul Sagar, do King’s College London.

 

(417) Quero lá saber do futuro!

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Para Paulo Orósio, a finalidade da história faz-se em função de um sentido final: a vitória do Cristianismo e a redenção da humanidade por Cristo.

 

A história dos factos futuros é tão ou mais real que a dos factos passados.

 

Não parece haver uma razão clara para se aceitar que a ordem causal seja concordante com a ordem temporal, permitindo assim que uma causa possa ser temporalmente posterior ao seu efeito.

 

Se fosse possível transmitir uma mensagem a uma velocidade superior à da luz, ela poderia chegar antes de ser transmitida.

 

 

 

 

Numa noite de fevereiro de 1979, José Mário Branco, escreveu aquela que é talvez uma das mais conseguidas canções de intervenção, “FMI, onde ativamente clama pelo presente como estado de vida sempre adiado devido a ser permanentemente hipotecado ao futuro, seja ele qual for:

 

Sempre a merda do futuro! Que se lixe o futuro!”

 

Ao admitirmos o princípio da causalidade como esteio para a racionalidade de que tanto nos orgulhamos transformando-o em lei de toda a Natureza a que ninguém escapa desde sempre (note-se que a primeira noção desta relação de causalidade é dita acontecer assim que o bebé chora e esse choro tiver uma resposta – o colo e o conforto de quem dele cuida, o que faz com que o cérebro do bebé comece a compreender que o acontecimento A – chorar – tem uma resposta B – conforto, permitindo com isso o desenvolvimento das suas competências cognitivas), garantimos não só que há sempre uma razão (causa) para o que acontece, como ainda asseguramos a existência de um futuro para além do presente (consequência de causas passadas).

 

Seguindo esta linha ‘natural’ de desenvolvimento, Paulo Orósio, a pedido de Santo Agostinho, vai escrever (entre 416 e 417) a primeira história universal feita por um autor cristão, A História contra os Pagãos, onde todos os factos temporais se encaminham para um ponto comum (providencialismo) e em que a finalidade da história é a instauração do reino de Deus (messianismo).

A sua originalidade foi o de encontrar um princípio unitário absoluto para onde todos os acontecimentos históricos são conduzidos, para a partir daí os explicar. A finalidade da história faz-se em função de um sentido final: a vitória do Cristianismo e a redenção da humanidade por Cristo.

Por isso, para Orósio, a visão do futuro é sempre otimista, porque é aí que se situa a redenção da humanidade por Cristo. Como diz: “O futuro é sempre melhor”. O futuro tem, pois, um papel fundamental.

 

Indo mais além, em 1597 e em 1609 aparecem os dois primeiros volumes da Monarquia Lusitana de Frei Bernardo de Brito, que vão ‘demonstrar’ que a fundação do reino de Portugal era de origem divina e que o povo português estaria predestinado a defender a fé católica.

Ou seja, para Frei Bernardo, a meta da história era a fundação de Portugal e a sua predestinação, substituindo e reduzindo assim a referência essencial de Orósio à história universal pela referência à história particular. É que para Orósio, a meta da história era a instauração de um reino de Deus, mas com referência à história universal.

Para valorizar a lenda, o mito e a profecia, Frei Bernardo de Brito vai deslocar a história, dando particular ênfase à finalidade a alcançar. E é esta finalidade que vai por si constituir a razão para a inteligibilidade do passado. Só poderemos conhecer o passado e o presente, se possuirmos o conhecimento das causas finais dos acontecimentos. Se tivéssemos o conhecimento de todas as causas finais, teríamos o conhecimento total do passado, presente e futuro.

Poderemos inclusivamente absolutizar a causa final ao ponto de retirarmos da história tudo o que não faça parte dessa causa final. Ou seja, poderíamos escrever a história baseada só na causa final, o que seria uma história do futuro, e isto porque sendo a causa final sempre relacionada com o ponto de vista divino, então será sempre muito mais verdadeira e universal que a história que se faça do passado ou do presente. A história dos factos futuros é tão ou mais real que a dos factos passados, sendo justificada pelo Divino.

Daí que a profecia (rutura com o presente) passe a ser uma mera antecipação do futuro, um texto aberto à história, interpretando os factos proféticos como factos que se darão necessariamente. É o que faz o Padre António Vieira (1608 – 1697) quando escreve a sua História do Futuro.

 

Acontece que em 2022 foi atribuído o Nobel da física a três cientistas (um francês, um americano e um austríaco) sobre experiências efetuadas no campo da mecânica quântica que sugerem, entre outros, que o futuro pode influenciar o passado, ou seja, ações do presente podem afetar acontecimentos passados.

Embora esta “retro causalidade”, ou “causalidade invertida”, possa suscitar problemas desconcertantes, parece não haver uma razão clara para se aceitar que a ordem causal seja concordante com a ordem temporal, permitindo assim que uma causa possa ser temporalmente posterior ao seu efeito.

 

No universo em que vivemos só poderemos influenciar os objetos que pudermos tocar diretamente (ou indiretamente por um encadeado de acontecimentos, como através de eletricidade ou de ondas rádio), o que faz com que as narrativas completas (causalidade) do nosso mundo físico possam ser feitas pela descrição, unidade a unidade, dos mais pequenos e elementares constituintes físicos.

Contudo, a Mecânica Quântica veio revelar-nos a possibilidade da existência de pares de partículas que se movimentam sincronizadamente à distância sem necessidade de qualquer intermediário, como se estivessem ligadas por telepatia (“gémeas telepáticas”).

Se uma das partículas do par for perturbada – como por exemplo ao tentar ser medida ou ao ser simplesmente observada  -  a outra “sente” essa perturbação instantaneamente e reage, mesmo que estejam separadas por anos-luz.

O facto da transmissão entre essas partículas se fazer instantaneamente para além de ser contraintuitiva, põe um enorme problema à teoria da relatividade especial de Einstein que tem por base a velocidade da luz como limite.

Não é de admirar que Einstein tenha chamado a essa interação de “ação à distância fantasmagórica”. Por isso, enquanto não se conseguisse ter uma explicação física sobre como isso acontecia, a mecânica quântica seria de certa forma, considerada uma “ciência incompleta” (“Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete?”, de Einstein, Podolsky e Rosen, o chamado  paradoxo EPR,1935). Para Einstein e companheiros, a propriedade a ser medida tem de estar presente (ainda que “escondida”) no objeto e tem de poder ser determinada com certeza.

Tudo isto fez com que durante anos a mecânica quântica permanecesse como que num limbo (o tal problema do “paradigma” da comunidade científica), até que trinta anos depois, em 1964, o irlandês John Stewart Bell, tentou esclarecer as dúvidas que se punham, dando forma matemática a um teorema com base na pergunta: será que as coisas que existem sem serem observadas terão que necessariamente estabelecerem entre si aquela fantasmagórica ação à distância?

Os testes para validação do teorema só foram possíveis a partir de 1972 quando se conseguiram manipular experimentalmente fotões. Os resultados vieram, contrariamente ao que se supunha, concluir que afinal a natureza é “fantasmagórica”. Os fundamentos da mecânica quântica passavam definitivamente do campo da imaginação filosófica para o da física experimental.

Essas experiências e desenvolvimentos tecnológicos posteriores permitiram estudar isoladamente entidades quânticas (átomo, eletrão, fotão, etc.) iniciando a área de informação quântica, abrangendo o estudo da criptografia quântica (que irá permitir a segurança absoluta dos dados) e de computadores quânticos extremamente velozes.

 

As dúvidas entre a comunidade científica continuam a permanecer hoje, sendo a mecânica quântica extremamente complicada de explicar em termos simples, mesmo para quem tenha conhecimentos avançados de matemática e física como se vê pela enorme quantidade de estudos inconclusivos. Mas a prática e os avanços tecnológicos aí estão para a demonstrar.

 

Segundo a relatividade especial, a transmissão de mensagens a uma velocidade maior que a da luz, é uma impossibilidade. Mas se tal fosse possível, isso significaria que uma mensagem transmitida a uma velocidade superior à da luz poderia chegar antes de ser transmitida.

Uma das últimas teorias do matemático Roderich Tumulka vai introduzir esse conceito “fantasmagórico” da mecânica quântica não somente para o espaço, mas também para o tempo. Para se usar esta teoria para determinar as probabilidades do que vai acontecer a seguir, teremos de levar em consideração não só no estado físico corrente do mundo, mas também certos factos acerca do passado.

A junção da arquitetura geométrica do espaço/tempo do universo oriunda da relatividade específica que está limitada à velocidade da luz com os fenómenos da mecânica quântica, acabará por acontecer, tornando a história física do mundo infinitamente mais rica. Mas com que configuração? Os estudos continuam. Os computadores quânticos dirão.

 

Mas de tudo isto que a ciência ainda tateia e que alguns receiam que os humanos não estão preparados para aceitar, seria interessante lembrar, por exemplo, que quando acontece um desastre com algumas vítimas, em que os familiares só no dia seguinte têm conhecimento, na dúvida, muitos deles pedem ao Céu que não tenha sido um dos seus que tenha morrido, que tenha sido poupado à morte. Ou seja, pedem uma intervenção divina, acreditando que ela possa alterar o que já aconteceu para evitar que tal aconteça.

(416) Ciclos da outra matéria negra

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

O ciclo da fome devora os homens e os caranguejos todos atolados na lama, Josué de Castro.

 

O ciclo da merda de Saló ou os 120 dias de Sodoma, P. Pasolini.

 

Cada ser humano expele em média meio quilo por dia

 

Como não voltamos a enviar os nossos excrementos para os sítios de onde vem a nossa comida, vamos perpetuando a incorreta redistribuição de nutrientes no planeta.

 

A quem pertencem os excrementos de uma família que vive numa casa alugada: aos inquilinos ou aos donos da casa?

 

Empreendedores e unicórnios: a merda espera por vós.

 

 

 

Começo por relembrar o que Josué de Castro disse no seu transversal e irredutível livro O Ciclo do Caranguejo, acerca da circularidade nos mangais do Recife entre vida, morte, fome, comida, homem e animal:

Se a terra foi feita para o homem com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito essencialmente para o caranguejo. Tudo aí é, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com a lama a carninha branca de suas patas e a geleia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo e com sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a do corpo de seus filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta como detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez.

Nesta aparente placidez do charco desenrola-se trágico e silencioso o ciclo do caranguejo. O ciclo da fome devorando os homens e os caranguejos todos atolados na lama”.

 

Em 1975, Pier Paolo Pasolini, realiza o filme “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, baseado no romance de Sade mas tendo como pano de fundo a última república fascista de Mussolini em Saló (1943-45) com as suas quatro figuras importantes: um Duque, representando o poder da nobreza, um Monsenhor, representando o poder da Igreja, um Magistrado, representando o poder judicial, e o Presidente do Banco Central, representando o poder económico. Aprisionam no castelo oito rapazes e oito raparigas durante 120 dias, com a intenção de abusar deles de todas as formas: violam-nos, torturam-nos, obrigam-nos a comer fezes.

O filme divide-se em quatro ciclos: o ante inferno, o ciclo das manias, o ciclo da merda (em que o jantar é constituído por excrementos dos próprios prisioneiros) e o ciclo do sangue. A não perder.

 

Por dia, em média, cada humano adulto produz meio quilo de outra matéria negra (caca, cocó, fezes, merda) que não aquela que os físicos investigam. Com 8 milhões de habitantes, a cidade de Nova Iorque produz mais de 4 milhões de quilos, 4 toneladas de merda por dia. Pequim, a capital da China, com os seus 21,3 milhões de habitantes, produz 10,6 milhões de quilos, 10,6 toneladas, por dia. Se multiplicarmos por 365 dias, é de espantar como não nos afundamos em merda.

E o que fazemos com esta merda toda? De imediato, tentamos fugir dela o mais possível, dependendo do sítio onde vivemos. Se vivermos num apartamento na cidade, expulsamo-la pela sanita abaixo. Se vivermos noutros locais, deixamo-la decompor em latrinas abertas ou à superfície debaixo de árvores. Ou seja, fazemos sempre o possível para que ela seja deixada, ou vá para o mais longe possível da nossa vista e cheiro. É coisa de que se não gosta.

Se vivêssemos no campo como os nossos antepassados nómadas, o problema estava resolvido: a quando das suas curtas paragens, depositavam a carga e seguiam viagem. Mas assim que começamos a sedentarizar e a cultivar, já não podíamos aliviar a carga onde quer que fosse: fazíamo-lo em covas ou no rio. Lá se foi a liberdade.

Na não muito distante e civilizada Roma apareceram os assentos nas cagadeiras comunais onde a água corrente empurrava continuamente os dejetos para fora dos muros da cidade. Na Idade Média, os detritos das latrinas eram posteriormente acumulados em depósitos e barris que depois eram selados e enterrados.

Mas com o aumento do número de cidades, o vazar dos dejetos para os cursos de água revelou-se desastroso: os poluidores a montante inquinavam as águas a jusante, originando surtos de doenças. Foi assim que se originaram as grandes pandemias de cólera na Europa do século XIX e início do século XX.

Ainda hoje no chamado mundo desenvolvido, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, adoecem e morrem cerca de 827.000 pessoas por ano com infeções provenientes de doenças ligadas à diarreia, mais de 494 milhões ainda defecam ao ar livre, por exemplo, nas sarjetas das ruas, atrás de arbustos ou em cursos de água abertos, e mais de 1,7 bilião de pessoas não contam com serviços de saneamento básico, como banheiros ou latrinas.

Neste nosso mundo civilizado, para nos vermos livres dessa enorme quantidade de excrementos, contruímos sanitas, canalizações subterrâneas e gigantescas estações de tratamento de dejetos. E quando julgávamos que tínhamos o problema resolvido, verificamos que essas maravilhas da engenharia moderna estão a estragar a ecologia da Terra.

E isto simplesmente porque não resolve aquilo que é o principal problema: o da redistribuição de nutrientes no planeta. Explicando resumidamente: sempre que comemos bananas, maçãs, alface, milho, arroz, etc., tudo isso cresceu noutra parte do planeta, de onde foram retirados os nutrientes para que se criassem esses cultivos.

Ou seja, quando excretamos aquilo que comemos, não o fazemos no mesmo local de onde vieram esses produtos, pelo que não repomos os nutrientes no local de onde os tiramos: mandamo-los pela sanita abaixo.

Mais: as nossas estações de tratamento retiram os patogénicos da água, mas deixam o fósforo, o potássio e o azoto, fertilizantes potentes que irão escorrer para os cursos de água vizinhos, lagos e oceanos. Daí resultarão algas tóxicas, peixes mortos e águas impróprias que não foram feitas para absorver tanto fertilizante químico.

Como nós não voltamos a enviar os nossos excrementos para os sítios de onde vem a nossa comida (via marítima, aérea ou terrestre), vamos assim perpetuando a incorreta redistribuição de nutrientes no planeta.

Substituindo a nossa caca por fertilizantes sintéticos que nunca são tão bons, estamos ainda por cima a poluir mais o planeta devido aos componentes tóxicos associados à sua produção. Ou seja, ao retirarmos a nossa caca da equação alteramos não apenas a nossa agricultura, mas a ecologia total do planeta.

 

Em algumas sociedades e em certos períodos, esta reposição chegou até a ser decretada, como em 1737 pelo imperador da dinastia Qing na China, obrigando todos os súbditos a colocarem à porta das casas um bacio com os seus excrementos que seriam recolhidos diariamente pela madrugada, como explica Donald Worster  no seu estudo “The Good Muck: Toward an Excremental History of China”. Excrementos que eram depois vendidos, após serem secos e separados. Ouro malcheiroso, mas ouro.

Os japoneses foram ainda mais longe, como por exemplo quando regulamentam sobre a decisão de saber a quem pertenciam os excrementos no caso de uma família viver numa casa alugada: aos inquilinos ou aos donos da casa? Nesse Japão pré-industrial de 1724, a merda pertencia aos proprietários. Época em que o roubo da merda dava direito a prisão.

Sabendo tudo isto, não parece viável na sociedade atual que se passe a por o penico à porta para que os serviços camarários procedam à sua recolha e distribuição, mesmo que tal seja feito por uma firma privada. E mesmo se for possível, serão depois as estações de recolha e tratamento quem vai reencaminhar para a sua origem os excrementos tratados para assim se estabelecer a desejada “agricultura circular”? O corrupio que aí iria por esse país acima e abaixo.

 

Mas já há algumas propostas comerciais em utilização, como a da Loowatt, empresa com centro em Londres e operando em Madagáscar: o interior da sanita é revestido por uma película que captura a matéria humana desejada, fecha-a hermeticamente e recolhe-a por baixo da sanita. Enviada depois para estações de bio gestão, transforma-se em composto e em biogás. A SOIL Haiti segue o mesmo processo no Haiti.

A empresa canadiana Lystek que opera já em 50 regiões (Washington, DC, Boston) encarrega-se de transformar, em gigantescas misturadoras e cilindros de pressão,  todas as recolhas numa massa que originará metano e uma pasta que será seca e armazenada em pacotes a serem vendidos nas lojas.

A israelita HomeBiogas dedicou-se a famílias que vivam fora das redes e onde o custo da energia é elevado: são pequenos biodigestores de plástico durável que convertem qualquer excremento orgânico em biogás e fertilizante líquido. A Epiccleantec de S. Francisco regenera todos os líquidos, tornando-os aptos para a lavagem de roupa, água da sanita e rega de plantas.

Com tantas opções e outra mais que se lhe seguirão, parece que o problema é agora apenas psicológico: contrariamente ás sociedades antigas que lidavam com a porcaria, o sujo e com os excrementos de maneira natural, e que inclusivamente reconheciam neles um valor de uso até muito versátil, nós gastamos dinheiro esforçando-nos a remover para o mais longe possível esse superproduto do nosso próprio metabolismo. Ora aqui está uma meta a alcançar por cada um de nós neste século XXI:

Ponha a caca no Merdalhão Verde. Não contribua para o aumento das doenças mentais.

 

Atenção empreendedores e unicórnios: a merda espera por vós.

 

 

Notas:

Blog escrito com base no livro de Lina Zeldovich,  The Other Dark Matter, the Science and business of Turning Waste into Wealth and Health.

De assunto relacionado, sugiro o blog de 4 de novembro de 2015 “Da merda e seus companheiros”, o de 23 de setembro de 2015 “Os Corn flakes e a masturbação” e o de 14 de novembro de 2018 “O ato cultural de limpar o rabo”.

 

 

 

(415) A hegemonia americana não aconteceu

Tempo estimado de leitura: 11 minutos.

 

O Plano Estratégico dos EUA implica assegurar que os rivais não se desenvolvam, The New York Times, 8 de março de 1992.

 

Esse Plano Estratégico defende um mundo dominado por uma superpotência cuja posição pode ser perpetuada por comportamento construtivo e poderio militar suficiente para impedir qualquer nação ou grupo de nações de desafiar a primazia americana.

 

Everything south of the Mexican border is America’s front yard, Presidente Biden.

 

 

 

 

Há duas curtas citações que me parecem importantes para início do tema. Uma de Harold Pinter, a propósito de se viver num tempo em que a mentira é a norma e em que os interesses políticos e económicos se disfarçam por baixo das causas mais nobres e inocentes:

 

 “Nunca aconteceu nada. Mesmo quando estava a acontecer, não estava a acontecer. Não tinha importância. Não tinha interesse …” (1)

 

Outra, do  filósofo italiano Antonio Negri (1933 -), um dos primeiros a definir e identificar o conceito de Império (2000) como uma nova forma de soberania, distinta do imperialismo, pelo facto de não estabelecer nenhum centro de poder e por não se sustentar em fronteiras ou barreiras fixas, o que faz com que o seu domínio não tenha limites, e ainda por se apresentar como um regime histórico que não se origina pela conquista.

Tem ainda características como a de dominar e operar em todos os registos da ordem social, penetrando até ao mais profundo do mundo social. Não só regula as interações humanas, como ainda procura governar diretamente toda a natureza humana:

 

 “O império não só governa um território e uma população, com também cria o mundo que habita.” (2)

 

Adiante:

Uma das coisas interessantes sobre o filme de Orson Welles de 1941, Citizen Kane, foi o título que lhe foi dado em português: “O Mundo a Seus Pés”. Como sabem, o filme, para além daquelas inovações técnico-estéticas que os nossos amigos cinéfilos muito gostam de apreciar-comentar, relatava a história de um magnata da comunicação social que quase chegou a ser dono de tudo exceto do amor que sempre lhe escapou.

Bem sei que a tradução literal como “Cidadão Kane”, seria incompreensível na altura, e mesmo com um salto de dezenas de anos para a atualidade não teria o efeito desejado, pois provavelmente alguém ainda pensaria tratar-se de um filme sobre o jogador de futebol do Tottenham. “Dono disto tudo” talvez fosse jornalística e politicamente mais compatível. Creio, contudo, que nestes tempos atuais de gerações “as mais bem preparadas” (o que isto quer dizer é outra história), não duvido que o título original, Citizen Kane, seria hoje o mais aceite e compreendido. E isto foi a primeira lição em hegemonia.

 

Quando Pôncio Pilatos resolveu lavar as mãos sobre o pedido das forças políticas-religiosas- endinheiradas da região da Judeia para que julgasse Cristo, mais não fez do que afirmar o que era a hegemonia de Roma sobre uma insignificante colónia que só lhe interessava para o recebimento de impostos, o que efetivamente não era aquele caso do possível aparecimento de mais uma religião de que o tão império romano tinha em abundância e que ainda por cima até proclamava que se devia dar “a César o que é de César”. Lavar as mãos como símbolo da hegemonia sobre um povo, um território, uma religião. Lição segunda.

 

Quando a Igreja Católica resolveu suspender a realização da missa em latim, estava simultaneamente a dar uma indicação de perca de hegemonia (as suas leituras não eram já possíveis de serem apreciadas-impostas) e de permanência hegemónica de Roma, não da Igreja, mas do Império (ao reverter para as línguas romanas locais). Lição terceira.

 

Quando o Reino Unido dominava o mundo através do seu Império Britânico e das suas Companhias, e os seus súbditos se passeavam intocáveis (eles sim os verdadeiros intocáveis que não os indianos) porque a qualquer interferência ou pequeno revés a Marinha britânica era convocada para obrigar à vassalagem quem quer que fosse e em qualquer lugar, isso sim era verdadeira hegemonia como até hoje nunca os americanos conseguiram. Hegemonia perdida já há uns tempos, não sei se esses súbditos notaram, mas que atinge hoje a conclusão final quando o Rei Carlos convida para a sua cerimónia de coroação artistas seus súditos (Elton, Adele e Harry Styles, Ed Sheeran, Robbie Williams e Spice Girls) e estes publicamente recusam. Lição quarta.

 

Quanto aos americanos, também desde muito cedo têm os seus governos sempre intentado conseguir a hegemonia mundial, como se pode esquematicamente  ver através das várias atitudes e declarações feitas ao longo do tempo.

Começando logo em 1823 com a célebre “Doutrina Monroe segundo a qual se pretendeu opor ao colonialismo europeu no hemisfério ocidental (o problema de Espanha no México), sua ampliação posterior para cobrir a anexação do Havai (nenhuma nação europeia deveria interferir com a expansão americana), o “Corolário Roosevelt” de 1904 assegurando o direito dos EUA intervirem militarmente em todos os casos da América Latina (“polícias do hemisfério”), a posterior “Doutrina Monroe Global” de Woodrow Wilson que em 1918 estendeu a supremacia americana a todo o mundo (talvez o começo do imperialismo americano),  John F. Kennedy que em agosto de 1962 dizia numa conferência:

 

A Doutrina Monroe significa o que significa desde que o Presidente Monroe e John Quincy Adams a enunciaram, e que diz que nós nos devemos opor a qualquer potência estrangeira que queira estender o seu poder para o Hemisfério Ocidental […]”

 

E em março de 2019, o assessor para a Segurança Nacional, John Bolton, expressava que “nesta administração [de Trump], não temos medo de usar a palavra Doutrina Monroe […] É objetivo dos presidentes americanos desde Ronald Reagan o terem um hemisfério completamente democrático”.

 

Tudo isto se baseia em planos estratégicos que os governos dos EUA vêm periodicamente elaborando e atualizando, definindo obviamente as suas opções, que se vão, ou não concretizando.

A 08 de março de 1992, o The New York Times publicou um artigo de Patrick Tyler intitulado “O Plano Estratégico dos EUA implica assegurar que os rivais não se desenvolvam”, contendo  a Orientação para o Planeamento de Defesa para os anos pós-guerra fria, ou seja, como os EUA viam e queriam atuar no mundo para continuarem a ser a potência hegemónica.

Cito aqui partes desse artigo que começa assim:

 

“Numa ampla e nova declaração de política que está em fase final de redação, o Departamento de Defesa afirma que a missão política e militar dos Estados Unidos na era pós-guerra fria será a de garantir que a nenhuma superpotência rival seja permitida emergir na Europa Ocidental, Ásia ou no território da antiga União Soviética.

Um documento de 46 páginas que circula há semanas nos mais altos escalões do Pentágono e que o secretário de Defesa, Dick Cheney, espera divulgar ainda este mês, afirma que parte da missão americana será "convencer potenciais concorrentes de que não precisam aspirar a desempenhar um papel maior ou adotar uma postura mais agressiva para proteger os seus legítimos interesses."

O documento confidencial defende um mundo dominado por uma superpotência cuja posição pode ser perpetuada por comportamento construtivo e poderio militar suficiente para impedir qualquer nação ou grupo de nações de desafiar a primazia americana.

Rejeitando a Abordagem Coletiva

Para perpetuar esse papel, os Estados Unidos "devem ter uma suficiente consideração para com os interesses das nações industrializadas avançadas por forma a desencorajá-las de desafiar a nossa liderança ou tentar derrubar a ordem política e económica estabelecida", afirma o documento.

 

Com foco nesse conceito de dominação benevolente de uma potência, o documento do Pentágono articula a mais clara rejeição feita até hoje do internacionalismo coletivo, estratégia que emergiu da Segunda Guerra Mundial quando as cinco potências vitoriosas procuraram formar uma Organização das Nações Unidas que pudesse mediar disputas e surtos de violência política. […]

Juntamente com seus anexos nos níveis de força necessários para assegurar o papel predominante da América, o rascunho da política é uma justificativa detalhada para a proposta de "força de base" do governo Bush de criar um exército de 1,6 milhão de efetivos nos próximos cinco anos, a um custo de cerca de US$ 1,2 triliões. Muitos democratas no Congresso criticaram a proposta como desnecessariamente cara. […]

 

No seu parágrafo de abertura, o documento de política anuncia a vitória "menos visível" no fim da Guerra Fria, que define como "a integração da Alemanha e do Japão num sistema de segurança coletiva liderado pelos Estados Unidos e a criação de um sistema democrático ‘zona de paz.' "

A continuação desse objetivo estratégico explica a forte ênfase noutras partes do documento e noutros planos do Pentágono sobre o uso da força militar, se necessário, para impedir a proliferação de armas nucleares e outras armas de destruição em massa em países como Coreia do Norte, Iraque, alguns das repúblicas sucessoras da União Soviética e na Europa. […]

Ignorada a ação da ONU.

O documento é visivelmente desprovido de referências à ação coletiva por meio das Nações Unidas, que garantiu o mandato para o ataque aliado às forças iraquianas no Kuwait e que em breve poderá ser solicitado a fornecer um novo mandato para forçar o presidente Sadam Hussein a cumprir com as suas obrigações de cessar-fogo.

O rascunho observa que as coligações "têm uma promessa a considerar para promover a ação coletiva", como na guerra do Golfo Pérsico, mas que "devemos esperar que as coligações futuras sejam assembleias ad hoc, muitas vezes não durando para além da crise enfrentada e, em muitos casos, portadoras apenas do acordo geral sobre os objetivos a serem alcançados”.

 

O que é mais importante, diz ele, é "a sensação de que a ordem mundial é, em última análise, apoiada pelos EUA" e "os Estados Unidos devem estar posicionados para agirem de forma independente quando a ação coletiva não puder ser orquestrada" ou numa crise que exija uma resposta rápida.

Funcionários do governo Bush vêm dizendo publicamente há algum tempo que estão dispostos a trabalhar no âmbito das Nações Unidas, mas que se reservam a opção de agir unilateralmente ou por meio de coligações seletivas, se necessário, para proteger os interesses americanos vitais. […]

Em contraste, o novo rascunho esboça um mundo em que há uma potência militar dominante cujos líderes “devem manter os mecanismos para dissuadir concorrentes potenciais de aspirar a um papel regional ou global mais amplo”.

Enviar para Administradores

O documento é conhecido na linguagem do Pentágono como Orientação de Planeamento de Defesa, […] será emitido ainda este mês pelo Secretário de Defesa Cheney. De acordo com um memorando de 18 de fevereiro do vice do Sr. Wolfowitz, Dale A. Vesser, a orientação política será emitida com um conjunto de cenários "ilustrativos" para possíveis futuros conflitos estrangeiros que possam atrair as forças militares dos Estados Unidos para combate.

Esses cenários, emitidos separadamente para os serviços militares a 4 de fevereiro, foram detalhados num artigo do New York Times no mês passado. Eles postularam guerras regionais contra o Iraque e a Coreia do Norte, bem como um ataque russo à Lituânia e contingências militares menores que as forças dos Estados Unidos poderiam enfrentar no futuro. […]

Medos da Proliferação

Ao avaliar as ameaças futuras, o documento coloca grande ênfase em como "o uso real de armas de destruição em massa, mesmo em conflitos que de outra forma não envolveriam diretamente os interesses dos EUA, poderia estimular uma maior proliferação que, por sua vez, ameaçaria a ordem mundial".

“Os EUA podem-se deparar com a questão de tomar medidas militares para impedir o desenvolvimento ou uso de armas de destruição em massa”, afirma, observando que essas medidas podem incluir a prevenção de um ataque iminente com armas nucleares, químicas ou biológicas. "ou punir os agressores ou ameaçar punir os agressores por vários meios", incluindo ataques às fábricas que fabricam tais armas.[…]

 

Pela primeira vez desde que o processo de “Orientação do Planeamento de Defesa” foi iniciado para moldar a política de segurança nacional, o novo rascunho afirma que a fragmentação do antigo estabelecimento militar soviético eliminou a capacidade de qualquer potência sucessora travar uma guerra convencional global.

Mas o documento qualifica a sua avaliação, dizendo: "não descartamos os riscos para a estabilidade na Europa de uma reação nacionalista na Rússia ou esforço para reincorporar à Rússia as recém-independentes repúblicas da Ucrânia, Bielorrússia e possivelmente outras".

 

Diz ainda que, embora os planos de alvos nucleares dos EUA tenham mudado "para dar conta dos desenvolvimentos bem-vindos nos estados da ex-União Soviética", as armas nucleares estratégicas dos EUA continuarão a visar aspetos vitais do antigo estabelecimento militar soviético. A justificativa para a continuação dessa política de direcionamento é que os Estados Unidos "devem continuar a colocar em risco os ativos e capacidades que os atuais - e futuros - líderes russos ou outros adversários nucleares mais valorizam" porque a Rússia continuará a ser "a única potência no mundo com a capacidade de destruir os Estados Unidos."[…]

Plano para a Europa

Na Europa, o documento do Pentágono afirma que "uma presença americana substancial na Europa e a coesão contínua dentro da aliança ocidental permanecem vitais", mas para evitar o desenvolvimento de uma relação competitiva, "devemos procurar impedir o surgimento de acordos de segurança apenas europeus que prejudicaria a OTAN."

 

O rascunho afirma que, com a eliminação das armas nucleares de curto alcance dos Estados Unidos na Europa e de armas similares no mar, os Estados Unidos não devem contemplar a retirada de suas aeronaves de ataque nuclear baseadas na Europa e, no caso de uma ameaça ressurgente de Rússia, "devemos planejar a defesa contra tal ameaça" mais adiante nos territórios da Europa Oriental "caso haja uma decisão da Aliança para fazê-lo."

Esta declaração oferece um compromisso explícito de defender as antigas nações do Pacto de Varsóvia da Rússia. Isso sugere que os Estados Unidos também poderiam considerar estender aos países da Europa Oriental e Central compromissos de segurança semelhantes aos estendidos à Arábia Saudita, Kuwait e outros estados árabes ao longo do Golfo Pérsico. E para ajudar a estabilizar as economias e o desenvolvimento democrático na Europa Oriental, o projeto apela à Comunidade Europeia para oferecer a adesão aos países da Europa Oriental o mais rápido possível.

 

No Leste Asiático, diz o relatório, os Estados Unidos podem reduzir ainda mais suas forças, mas "devemos manter o nosso estatuto de potência militar de primeira grandeza na área. Isso permitirá que os Estados Unidos continuem a contribuir para a segurança e a estabilidade regionais, atuando como uma força de equilíbrio e evitando o surgimento de um vácuo ou de uma hegemonia regional." […]

Caso as negociações de paz entre as duas Coreias sejam bem-sucedidas, o rascunho recomenda que os Estados Unidos "devem procurar manter uma relação de aliança com uma Coreia democrática unificada".

 

 

E até onde vão atualmente os interesses da América que não possam ser violados e que impliquem uma retaliação? Ou melhor, o que são atualmente para a América as suas fronteiras? São muito diferentes das que até aqui têm sido consideradas?

 

Para sul, eis uma declaração recente do Presidente Biden em que considera que tudo para sul a partir do México (inclusive) é o “quintal da frente da América” (“Everything south of the Mexican border is America’s front yard”).

E para leste, eis uma declaração da Secretária da imprensa Jen Psaki de 24 de janeiro de 2022 do seu  briefing à imprensa em que considera que a Ucrânia faz parte do que são as fronteiras americanas a leste.

E na região do Indo-Pacífico, eis o que o embaixador na China, Nicholas Burns, afirma, com base no documento da Casa Branca sobre a estratégia para essa região de fevereiro de 2022:

 

Os Estados Unidos são uma potência do Indo-Pacífico. A região, que se estende desde a costa do Pacífico até ao Oceano Índico, abriga mais da metade da população mundial, quase dois terços da economia mundial e sete das maiores forças armadas do mundo. Nesta região, estão baseados mais militares das forças armadas dos EUA do que em qualquer outra região fora dos Estados Unidos. Ela comporta mais de três milhões de empregos americanos e é a fonte de quase US$ 900 biliões em investimento estrangeiro direto nos Estados Unidos. Nos próximos anos, à medida que a região se tornar responsável por até dois terços do crescimento económico global, a sua influência só aumentará — assim como a sua importância para os Estados Unidos […]

 

Num cenário estratégico em rápida mudança, reconhecemos que os interesses americanos só podem ser promovidos se ancorarmos firmemente os Estados Unidos no Indo-Pacífico e fortalecermos a própria região, ao lado dos nossos aliados e parceiros mais próximos.

 

Essa intensificação do foco americano deve-se em parte ao facto de o Indo-Pacífico enfrentar desafios crescentes, principalmente da República Popular da China (RPC). A RPC está a tentar combinar o seu poderio económico, diplomático, militar e tecnológico enquanto procura uma esfera de influência no Indo-Pacífico, procurando tornar-se a potência mais influente do mundo. A coerção e agressão da RPC abrange todo o globo, mas é mais aguda no Indo-Pacífico. Da coerção económica à Austrália ao conflito ao longo da Linha de Controle Real com a Índia, à pressão crescente sobre Taiwan e à intimidação de vizinhos nos mares do leste e do sul da China, os nossos aliados e parceiros na região arcam com grande parte do custo do comportamento prejudicial da RPC. No processo, a RPC está também a subverter os direitos humanos e o direito internacional, incluindo a liberdade de navegação, bem como outros princípios que trouxeram estabilidade e prosperidade ao Indo-Pacífico.

 

Os nossos esforços coletivos ao longo da próxima década, determinarão se a RPC conseguirá transformar as regras e normas que beneficiaram o Indo-Pacífico e o mundo. Da nossa parte, os Estados Unidos estão a investir nas fundações da nossa força interna, alinhando a nossa abordagem com a dos nossos aliados e parceiros no exterior e competindo com a RPC para defender os interesses e a visão de futuro que compartilhamos com outros. Vamos fortalecer o sistema internacional, mantê-lo com base em valores compartilhados e atualizá-lo para enfrentar os desafios do século XXI. O nosso objetivo não é mudar a RPC, mas moldar o ambiente estratégico em que ela opera, construindo um equilíbrio de influência no mundo que seja o mais favorável possível aos Estados Unidos, aos nossos aliados e parceiros e aos interesses e valores que compartilhamos.”

 

É desta forma que os Estados Unidos como potência hegemónica dominante, para o qual tem vindo a trabalhar e sacrificar, pretende manter essa posição. Os dados estão lançados.

E todos os outros o sabem. O objetivo é obter a supremacia do capitalismo global americano ao impedir o aparecimento de qualquer outra superpotência que potencialmente possa competir.

Atente-se no comentário de 3.900 palavras que o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China fez em fevereiro de 2023 para condenar os quase 80 anos da hegemonia americana política, militar, económica, tecnológica e cultural, e que aqui se reproduz. Ninguém é ingénuo.

 

 

Há duas curtas citações que me parecem importantes para fim de tema. Uma, do  filósofo italiano Antonio Negri (1933 -), um dos primeiros a definir e identificar o conceito de Império (2000) como uma nova forma de soberania, distinta do imperialismo, pelo facto de não estabelecer nenhum centro de poder e por não se sustentar em fronteiras ou barreiras fixas, o que faz com que o seu domínio não tenha limites, e ainda por se apresentar como um regime histórico que não se origina pela conquista.

Tem ainda características como a de dominar e operar em todos os registos da ordem social, penetrando até ao mais profundo do mundo social. Não só regula as interações humanas, como ainda procura governar diretamente toda a natureza humana:

 

 “O império não só governa um território e uma população, com também cria o mundo que habita.”

 

Outra, de Harold Pinter, a propósito de se viver num tempo em que a mentira é a norma e em que os interesses políticos e económicos se disfarçam por baixo das causas mais nobres e inocentes:

 

 “Nunca aconteceu nada. Mesmo quando estava a acontecer, não estava a acontecer. Não tinha importância. Não tinha interesse …

 

 

 

Notas:

 

1 Consta do blog de 22 de junho de 2016, “A mulher de César”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-mulher-de-cesar-17185). 

2 Consta do blog de 30 de novembro de 2016, “A captura da democracia”,

 https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-captura-da-democracia-pelas-falsas-24001 ).

 

 

 

(414) A ecologia apocalítica dos balões

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

A política molda as perguntas que os cientistas fazem e as metáforas que buscam.

 

A guerra termonuclear pode ser planeada do mesmo modo que os tornados, inundações e acidentes de trânsito, Joseph Masco.

 

A maior parte dos analistas pensa não ser provável que Putin use armas nucleares, Nicholas Kristof.

 

Estamos safos!

 

Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhes que estamos a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo, Hermann Göring.

 

 

 

Com a introdução de bombas atómicas nos seus arsenais, as cliques dirigentes (políticas, económicas, militares) dos países que as possuíam, iniciaram uma série de experimentações (a que eufemisticamente chamaram de “ensaios” para lhes dar um cunho de seriedade científica, o que acabou por contribuir para o descrédito da Ciência, mas isso é outra história) para obterem os conhecimentos até aí inexistentes sobre as utilizações, efeitos e armazenamento das referidas bombas.

As experiências iniciais constituíram na detonação real de variadas bombas atómicas de diferentes potências, no ar, no solo, e debaixo do solo, a que se seguiram experiências com irradiação de material fortemente radioativo em ambientes naturais (florestas, plantações, animais, etc.).

 

Nos EUA, esses programas experimentais realizados entre 1945 e 1962, conduziram à detonação de aproximadamente 300 bombas atómicas que provocaram transformações nos ambientes físicos e biológicos do sudoeste dos Estados Unidos e das colonizadas Ilhas Marshall.

Foi a partir daí que os cientistas e o público passaram a reconhecer a precipitação radioativa como uma ameaça regional e possivelmente global à saúde humana.

A essa crescente preocupação com a precipitação nuclear vai juntar-se uma outra: o medo proveniente da aniquilação nuclear.

À medida que os EUA e a União Soviética aumentavam o número e o alcance de seus arsenais nucleares, começou a ser plausível imaginar a eclosão de uma guerra catastrófica à escala global. Recorde-se que em 1950, os EUA tinham 299 armas nucleares. Em 1960, tinham 18.638. E em 1965, tinham 31.139.

Estudos da RAND Corporation, (R de research, AN de and, e D de devellopment) uma instituição de promoção de pensamento com raízes no Departamento de Guerra dos Estados Unidos, estimavam que um primeiro ataque soviético teria como alvo 50 cidades dos Estados Unidos e resultaria em 90 milhões de mortos. Com esses números em mente, a Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos (AEC) começou a querer prever quais seriam as consequências económicas e sociais de uma terceira guerra mundial.

Construíram cidades inteiras e povoaram-nas com moradores-manequins em cenas do seu dia-a-dia suburbano: a família nuclear, cercada por carros novos, móveis e eletrodomésticos doados pelos fabricantes. Montaram também modelos de frotas navais. Tudo era depois bombardeado com bombas atómicas reais.

O governo distribuía depois fotografias e documentários filmados a fim de tentarem convencer o público de que era possível sobreviver a uma guerra nuclear,  e que a principal responsabilidade por essa sobrevivência  recaía sobre as famílias e a preparação que deveriam fazer.

Como disse o antropólogo Joseph Masco em “’Survival Is Your Business’: Enginnering Ruins and Affect  in Nuclear America”, por meio dessas simulações, o governo “procurou fazer da morte em massa uma experiência psicológica íntima, ao mesmo tempo que afirmava que a guerra termonuclear poderia ser planeada do mesmo modo que os tornados, inundações e acidentes de trânsito”.

 

Entre 1946 e 1958, os EUA detonaram o equivalente a 7.000 bombas de Hiroxima nas Ilhas Marshall. Em 2022, os refugiados dos atóis de Bikini e Rongelap continuavam a não serem autorizados a voltarem para as suas casas.

Em 1950, o governo federal estabeleceu o Nevada Proving Grounds nos  territórios índios de Western Shoshone e Southern Paiute, e subsequentemente realizou aí 100 testes nucleares atmosféricos e 921 subterrâneos. Os testes libertaram aproximadamente 12 biliões de curies de radiação, provocando com isso câncer e morte durante décadas (para se ter uma ideia, o desastre de Chernobyl libertou cerca de 81 milhões de curies de radiação).

 

Estabelecido que poderia haver um juízo final, o governo dos EUA encarregou então militares, sociólogos e até escritores de ficção científica para efetuarem pesquisas sobre o dia desse apocalipse.

A partir de 1943, contratou também ecologistas para estudarem o que acontecia com as plantas e os animais colocados nos locais da detonação.

Inicialmente, os cientistas esperavam que o oceano e a atmosfera diluíssem rapidamente a precipitação radioativa. Em vez disso, descobriram que os organismos acumulavam os elementos radioativos e que os organismos mais elevados na cadeia alimentar eram os que ficavam mais radioativos. Perceberam ainda que uma ampla gama de produtos químicos, incluindo poluentes como metais pesados ​​e o inseticida DDT, ampliavam também essa radioatividade.

Em 1961, o governo deu instruções para se começar a investigar mais a fundo a “recuperação pós-guerra de ambientes bióticos devastados”. Começaram então a serem financiados estudos nos quais os ecossistemas eram propositadamente danificados pelos ecologistas para entenderem se eles se recuperariam e, em caso afirmativo, como.

Essas experiências não eram marginais, basta recordar que o AEC foi o principal financiador da pesquisa ecológica desde o início da Segunda Guerra Mundial até meados da década de 1970, quando a National Science Foundation o eclipsou. A ciência do ecossistema era à época considerada a ciência do juízo final.

As primeiras simulações ecológicas do pós-guerra aconteceram no Brookhaven National Laboratory em Long Island, Nova Iorque. Em 1962, ecologistas expuseram um antigo campo agrícola e uma floresta de carvalhos a radiação gama contínua de fontes pontuais de césio-137 e cobalto-60 durante cinco meses. O Gabinete de Defesa Civil da AEC apoiou o projeto. O objetivo principal era avaliar a recuperação biótica da exposição à radiação numa escala que poderia resultar de uma guerra nuclear.

Os ecologistas justificaram o experimento, que ocorreu de forma intermitente até 1978, argumentando que era importante antecipar os efeitos da guerra nuclear nas florestas recidivas orientais próximas aos centros urbanos, porque os locais em que até aí se tinham efetuado testes de bombardeamento tinham sido restritos a desertos e atóis tropicais com flora limitada.

Os cervos radioativos que ainda hoje vagueiam por Long Island, não são o único legado desse experimento. Por meio desse trabalho de campo atómico, os ecologistas desenvolveram a ideia de "radiossensibilidade comparativa". Cientistas de Brookhaven descobriram que os membros da família das margaridas sobreviveram a altos níveis de radiação, enquanto as espécies de pinheiros eram as mais “sensíveis” à radiação.

Esta foi uma nova forma de categorizar as espécies – não por taxonomia ou por quem comeu o quê, mas pela capacidade de resistir à perturbação. Hoje, muitos de nós estamos familiarizados em pensar nas espécies desta maneira: quais são as espécies mais tolerantes à seca, ou capazes de resistir a furacões, ou com maior probabilidade de sobreviver à crise climática. Mas, numa perspetiva histórica, essa é uma maneira muito nova de pensar sobre as qualidades de uma espécie.

 

Outras experiências de irradiação realizadas nas florestas de Luquillo, Porto Rico, tinham o objetivo de ajudarem o continente a preparar-se para uma guerra nuclear. Pretendia-se também com essa irradiação, contribuir para outro projeto, o projeto Plowshare Pan-Atomic Canal, um plano para 'melhorar' o Canal do Panamá detonando uma série de bombas H, para acabar com a necessidade de construção de eclusas no canal. Também aí se testou o Agente Laranja e outros “herbicidas táticos” para uso na Guerra do Vietname.

 

Em 1970, seguindo a recomendação da RAND Corporation para que os “estudos de radiossensibilidade comparativa fossem grandemente aumentados”, os ecologistas colocaram fontes de radiação numa floresta tropical em Luquillo e em campos agrícolas e florestas de recidivas em Nova York, Nevada, Carolina do Sul e Tennessee. Embora realizadas em locais particulares, as simulações dos chamados “ecologistas da Terceira Guerra Mundial” foram sempre orientadas para o desenvolvimento de estratégias generalizadas e transponíveis para a sobrevivência dos cidadãos americanos – exceto aqueles que vivessem em Porto Rico, nas Ilhas Marshall ou em Nevada.

Os ecologistas acreditavam que esses experimentos apocalípticos lançariam luz sobre como o mundo biótico estava naturalmente estruturado. Por exemplo, no seu livro Ecological Effects of Nuclear War (1963), o ecologista George Woodwell explicou que as experiências apocalípticas pretendiam simultaneamente antecipar "os complexos problemas ecológicos envolvidos num holocausto nuclear" e definir os "padrões normais de estrutura, função, e desenvolvimento característicos dos ecossistemas naturais'. Os ecologistas queriam saber como o mundo se recomporia após o desastre.

 

Em busca desse conhecimento, a destruição tornou-se um método padrão de estudo dos ecossistemas. Num exemplo particularmente dramático em 1966, Edward O. Wilson, entomologista de Harvard, e um de seus alunos de pós-graduação, Daniel Simberloff, escolheram seis ilhas na baía da Flórida para matar todos os animais vivos.

Primeiro, fizeram o censo dos insetos em cada ilha, depois encerraram em tendas ilhas inteiras e fumigaram com brometo de metilo. Após esta “defaunação”, Simberloff recenseou as comunidades de insetos. Para garantir que os insetos recolonizadores chegassem por meios "naturais" e não do próprio Simberloff, ele encharcava-se entre as visitas num repelente de insetos chamado Off! Na redação dos seus resultados experimentais, Simberloff e Wilson ressaltaram o pioneirismo das suas experiências com a introdução de várias “perturbações” induzidas, como inseticidas e fogo. O projeto foi parcialmente financiado pelo Departamento de Defesa.

 

Antes da década de 1960, a maioria dos ecologistas acreditava que, dado tempo e espaço, a natureza acabar-se-ia por regenerar. Chegaram a essa conclusão por meio da “teoria da sucessão ecológica” – a crença de que as comunidades ecológicas se desenvolveram de conjuntos instáveis ​​de espécies para uma “comunidade clímax” estável que se adaptou ao seu ambiente físico. Os teóricos da sucessão ecológica sustentavam que os danos ecológicos causados ​​pelo homem eram reversíveis, com a importante exceção das extinções de espécies.

Emblemático dessa visão é o livro Man and Nature (1864) de George Perkins Marsh.  Segundo ele, os “arranjos naturais, uma vez perturbados pelo homem” seriam “restaurados” quando o homem “se retirasse do campo e deixasse espaço livre para energias de recuperação espontâneas”.

Uma visão semelhante prevaleceu durante a década de 1950, reforçada por estudos de terras agrícolas abandonadas na Nova Inglaterra, que pareciam reverter rapidamente para uma floresta densa. No influente simpósio “O Papel do Homem na Mudança da Face da Terra” em 1955, o ecologista Edward Graham observou que a natureza recuperou facilmente do cultivo intensivo, pastagem, caça e extração de madeira quando as pessoas desistiram da ação prejudicial. As comunidades ecológicas, observou ele, tinham o “poder de se recriar” para “se reconstituirem quando a causa da perturbação desaparece”.

 

No entanto, alguns experimentos apocalípticos abalaram a fé dos ecologistas numa natureza perpetuamente autorregeneradora. Devido a experimentações em que se danificavam os ecossistemas, começou-se a verificar que a recuperação ecológica não era inevitável e que os ecossistemas poderiam parar de funcionar totalmente se suficientemente danificados pelos seres humanos.

 

Essa “teoria da sucessão ecológica” tem muito que ver com a ideia de “destino manifesto”, a crença dos colonizadores de que a sucessão da propriedade dos nativos americanos para propriedade dos brancos era natural e inevitável.

A política molda as perguntas que os cientistas fazem e as metáforas que eles buscam. A teoria do ecossistema, por sua vez, surgiu quando os EUA perceberam estar sob ameaça perpétua. Os ecologistas começaram a perguntar como é que os ecossistemas se mantinham quando constantemente bombardeados por elementos exteriores stressantes.

 

No contexto do planeamento para o dia do juízo final, os ecologistas começaram a interrogar-se sobre se haveria um limiar de dano a partir do qual os ecossistemas perderiam a capacidade de se restaurar. Um relatório do Departamento de Defesa de 1965 observou que os ecologistas apocalípticos descobriram que os ecossistemas podem ficar tão danificados “que a restauração nunca possa ser mais do que parcial e incompleta”.

Uma vez que o “equilíbrio ecológico é seriamente perturbado”, continuou o relatório, “[algumas] espécies, não mais controladas pelos seus inimigos naturais, podem-se multiplicar enormemente; outras, privadas das suas fontes normais de alimento ou afetadas pela mudança total no sistema, podem desaparecer.'

Mais de uma década depois, um estudo do Office of Technology Assessment para o Comité de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos concluiu que, após um ataque soviético, seria difícil ou impossível restaurar um ecossistema à sua condição pré-ataque devido à "possibilidade de mudanças ecológicas irreversíveis'.

Mas o que continuou a assombrar a disciplina da ecologia mesmo após o fim da Guerra Fria não foi a possibilidade de aniquilação global, mas o espectro mais subtil da mudança ecológica irreversível.

 

Os esforços atuais de planeamento de cenários, seja esse cenário de mudança climática ou uma nova variante do COVID, compartilham raízes do planeamento apocalíptico da década de 1960. O objetivo não é mais a prevenção ou contenção, mas a mitigação de danos inevitáveis. A resiliência, a palavra-chave do nosso presente de mudança climática, é comprovada apenas por meio da adversidade. Judith Rodin, ex-presidente da Fundação Rockefeller, descreve a resiliência como “a capacidade de indivíduos, comunidades, instituições, empresas e sistemas dentro de uma cidade de sobreviver, adaptar-se e crescer, independentemente dos tipos de stress crónico e choques agudos que vivenciam .'

 

Mas divulgar a resiliência como um valor ou um ativo torna-se perigoso, uma vez que isso equivale a aceitar o ônus de resiliência nas comunidades, ou seja, aceitar o status quo.

Celebrar a resiliência é imaginar um futuro de dano perpétuo.

 

Quase tudo o acima exposto pode-se encontrar no livro Wild by Design: The Rise of Ecological Restoration (2022), de Laura J Martin.

 

 

Como resultado destas experimentações, duas tendências apareceram: uma que reconhece que os mísseis balísticos intercontinentais com armas nucleares são as armas mais perigosas no mundo e que podem inclusivamente dar lugar acidentalmente a uma guerra nuclear em que cerca de 99% da população pereceria.

Eis o que Daniel Ellsberg nos elucida:

 

[a guerra nuclear] "levaria para a estratosfera muitos milhões de toneladas de fuligem e fumaça negra das cidades em chamas. Rapidamente se espalharia à volta do globo reduzindo a luz do Sol em 70%, dando lugar a temperaturas tão baixas como as da Pequena Idade do Gelo, matando as colheitas em todo o mundo e levando à morte por fome quase todos na Terra. Provavelmente não causaria a extinção. Somos tão adaptáveis. Talvez 1% de nossa população atual de 7,4 bilhões pudesse sobreviver, mas 98 ou 99 por cento não."

 

O mesmo se pode ler no Bulletin of the Atomic Scientists, com o título de “Nowhere to Hide”, como uma guerra nuclear te matará a ti e a quase todos os outros.

 

A outra tendência, interpreta os resultados dos ensaios como demonstrativos de que é possível sobreviver-se a uma guerra nuclear se estivermos preparados, podendo perfeitamente ser encarada como mais uma opção militar a ter em conta.

No caso da atual guerra na Ucrânia, Timothy Snyder, no seu artigo “Why the world needs Ukrainian victory”, defende a opção militar até às últimas consequências porque a Rússia não utilizará armamento nuclear.

A mesma linha segue Nicholas Kristof no seu artigo no The New York Times, “Biden Should Give Ukraine What It Needs to Win”, onde embora reconheça “preocupações legítimas de que se Putin for colocado num canto, ele poderá atingir o território da NATO ou usar armas atómicas táticas”, logo descarta tais possibilidades porque “a maior parte dos analistas pensa não ser provável que Putin as use”. Estamos safos!

 

Atente-se nas expressões “a maior parte” e “não ser provável”. Como não estarmos preocupados com a possibilidade de uma guerra nuclear quando as decisões dependerem destes jogos de dados de pessoas bem-pensantes-informadas e conotadas com a parte mais aguerrida do sistema?

 

Atente-se nas recentes decisões igualmente baseadas no “achismo” dos que nos governam em mandar abater com mísseis 3 ou 4 balões dos quais apenas um se sabia a proveniência, aventando mesmo alguns generais a hipótese de serem extraterrestres, e de que mais ninguém voltou a falar ou em preocupar recuperar (só um). “Shoot Them Down”, gritava-se no Congresso americano, único organismo com poder para declarar guerra. Brincadeiras de crianças grandes de que dependemos para sobreviver?

Ou talvez não: serviu pelo menos para manter viva a desconfiança relativamente ao inimigo de olhos em bico.

 

Como disse o general nazi Hermann Göring numa entrevista após ser preso:

 

As pessoas não querem guerra, seja na Rússia, na Inglaterra ou na América, nem na Alemanha. Percebe-se isso […] são os leaders do país quem determina a política. Tudo o que se tem de fazer é dizer-lhes que estamos a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo”.

 

 

Nota:

A China tem 68 satélites militares em órbita capazes de lerem os números da placa de licença de um carro a circular, os EUA têm 122 satélites militares capazes de fazerem o mesmo ou melhor, a Rússia tem 74 satélites militares a sobrevoarem os EUA a cada poucos minutos.

 

 

 

 

 

 

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