Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós. Platão, República, Livro VII, epígrafe de Saramago, A Caverna.
A razão porque as pessoas leem hoje tão mal é porque há uma quantidade enorme de textos impressos, Zhu Xi.
Uma das grandes causas das desordens nervosas e de perigo para o “espírito feminino” é a leitura de novelas.
A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento.
É n’Os Lusíadas, canto IV, que Camões introduz a figura do Velho do Restelo:
94
Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
95
— "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
96
— "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
97
— "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
Como sabemos (e Camões também o sabia) o Velho do Restelo não é caraterístico nem dos velhos nem dos jovens que vivem no Restelo, nem dos que vivem noutros locais específicos, nem só dos que vivem numa determinada época, estando até muito bem representado nos tempos em que vivemos.
Por exemplo, somos hoje diariamente confrontados com afirmações de que as Googles nos estão a tornar estúpidos, que os telemóveis ‘espertos’ estão a destruir as novas gerações, que o constante acesso à internet degrada a memória e a capacidade para se conseguir manter uma atenção sustentada, etc.
Como provas ‘concludentes’ são apresentadas as distrações provocadas pelo uso do telemóvel enquanto conduzimos, daí concluindo que a quantidade de informação que os meios tecnológicos proporcionam são os culpados dessas distrações, não esquecendo ainda de acrescentar sentimentos de ansiedade e nostalgia induzidos.
Acontece, contudo, que todos estas preocupações e sentimentos se têm verificado ao longo do tempo em todas as sociedades, especialmente nas épocas em que se verificam grandes transições técnicas e tecnológicas.
É assim que Platão, num de seus diálogos, “Fedro”, nos conta como o inventor da escrita, o deus egípcio chamado Theuth, dá a conhecer a sua obra ao rei dos deuses, Thamus. ‘Esta invenção, ó rei’, diz Theuth, ‘tornará os egípcios mais sábios e com melhor memória; é um elixir de memória e sabedoria.'
Contudo, o rei dos deuses, Thamus, via a invenção de forma contrária:
“Essa invenção produzirá esquecimento na mente daqueles que aprenderem a usá-la, porque não exercitarão a sua memória. A confiança na escrita, produzida por personagens externos que não fazem parte deles próprios, desencorajará o uso da sua própria memória dentro deles. Tu inventaste um elixir não de memória, mas de lembrança; e ofereces aos teus alunos a aparência da sabedoria, não a verdadeira sabedoria, pois eles lerão muitas coisas sem instrução e, portanto, parecerão saber muitas coisas, quando na maioria das vezes são ignorantes e difíceis de lidar, uma vez que não são sábios, mas apenas aparentam serem sábios.”
Séneca, vem depois dizer-nos que “a existência de muitos livros é uma distração”.
O mesmo se passa com a impressão e a consequente proliferação de livros, que leva o filósofo chinês Zhu Xi do século 12, constatar que se vivia numa época de pessoas dispersas, distraídas, e que tal se devia ao aparecimento da tipografia:
“A razão porque as pessoas leem hoje tão mal é porque há uma quantidade enorme de textos impressos.”
Nos finais do século 14, Petrarca escrevia contra a mania de se acumularem livros sem os ler:
“Creia-me, isso não é alimentar a mente com literatura, mas matá-la e enterrá-la com o peso das coisas ou, talvez, atormentá-la até que, enlouquecida por tantos assuntos, essa mente não pode mais saborear nada, mas olha tudo com saudade, como Tântalo sedento no meio da água.”
Renascentistas como Erasmo e Calvino atribuíam a esse vaguear e saltar incessante pela “confusa floresta” de livros, a dificuldade em se encontrar um verdadeiro pensamento sério.
Mas também algumas pequenas transições técnicas foram encaradas com o mesmo espírito de desconfiança. Por exemplo, para conviver com os cada vez mais variados textos manuscritos, desenvolveu-se todo um processo de sistematização (linhas de pensamento) que permitiam uma organização do conhecimento do mundo de acordo com um sistema de pensamento. “Adulterar o pensamento”, era a crítica associada.
O próprio aparecimento dos simples índices, ferramenta essencial de pesquisa para estudantes e professores, foi também bastante criticado por tornar os leitores preguiçosos: “liam apenas títulos e índices”, e que isso acabaria por levar os escritores a colocarem o seu material mais controverso nos índices.
À medida que a crescente classe média e mais mulheres começaram a ler intensamente novelas e romances (século 18), também isso foi apontado como uma das grandes causas das desordens nervosas, sendo especialmente um perigo para o “espírito feminino” (a chamada “leitura patológica” que provocava a sobre estimulação dos nervos, conforme estudos científicos da época demonstravam).
Já Andy Clark e David Chalmers, vão antes tentar compreender o porquê destes comportamentos (como o pensamento interior lida, responde, perante o mundo que lhe é exterior), o que os levou a publicar em 1998 o estudo “The Extended Mind” no qual preconizam que a nossa capacidade para pensar pode ser alterada e expandida através de tecnologias como a escrita.
É a tese segundo a qual o pensamento não reside apenas no cérebro ou no corpo, mas que compreende também o mundo físico, ou seja, que certos objetos que nos são exteriores (tábuas de cálculo, computadores, diários, e demais objetos que sirvam para guardar informação), fazem parte do processo cognitivo funcionando como extensões do pensamento.
Leiamos o que mais esclarecidamente nos deixou Saramago, em A Caverna:
“Horas atrás de horas […] o oleiro fez, desfez e refez bonecos com figuras de enfermeiras e de mandarins […] Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos de cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas e, sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer […] Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo do que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo.”
Parece, pois, que perante as inovações técnicas que foram sendo feitas, e para além das resistências que sempre apareceram, foram também sempre surgindo meios para conviver com elas.
Contudo, acontece que hoje as grandes empresas tecnológicas conseguem aperceber-se dos modelos coletivos de comportamento, mesmo daqueles comportamentos que nem sequer aparecem como conscientes para os próprios indivíduos. Têm assim acesso a um chamado inconsciente coletivo digital.
Através deste acesso, estas empresas, para além de vigiar e controlar as massas, conseguem ainda regular o seu futuro comportamento social. Não se trata já só de conhecer os modelos de conduta no presente, mas também de conhecer os seus possíveis prognósticos. Trata-se não só de controlar os “apetites” das massas no presente, mas também de induzir “apetites” no futuro.
Mas como conseguem estas empresas analisar e tirar conclusões de tal quantidade de dados? Se seguissem o método científico tradicional, primeiro os cientistas teriam de aventar uma hipótese, um modelo visualizável nas suas cabeças, e depois testá-lo. Teriam de encontrar uma causalidade que lhes permitisse ligar os dados ao modelo e á realidade. Construir uma teoria. Evidentemente, devido à enormidade de dados, tal método seria extremamente lento, e mesmo que chegasse a alguma conclusão, já teria passado o tempo de intervir.
Num artigo muito interessante de Chris Anderson, “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete”, que começa com uma citação do matemático George E. P. Box: “Todos os modelos estão errados, há é alguns que são úteis”, ele vai explicar-nos que a teoria aparece como uma construção, um meio auxiliar para compensar a falta de dados.
Se dispusermos de dados suficientes, a teoria passa a ser supérflua. Em vez da criação de modelos de teorias hipotéticas, podemos passar diretamente à análise matemática sem o estabelecimento de hipóteses sobre o que poderão significar, deixando para depois o estabelecimento do contexto. Podemos lançar números para as maiores constelações de computadores existentes e deixar que sejam os algoritmos estatísticos a encontrar os padrões que a ciência não consegue. A correlação substitui assim a causalidade. O “é assim” substitui o “porque”.
Transcrevendo Anderson:
“Empresas como a Google, que cresceram numa época de massas de dados enormemente grandes, hoje em dia não têm que decidir-se por modelos errados. Aliás, não têm mesmo que decidir-se em geral por nenhum modelo […] Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos.”
Foi assim que a Google conquistou o mundo dos anunciantes, sem saber nada sobre a cultura e convenções de anúncios. Assumiu que tendo melhores dados e melhores ferramentas de análise, tal seria suficiente para ganhar. E foi.
Ela não sabe porque é que uma página é melhor do que outra: é-lhe suficiente que as estatísticas que lhes chegam dos enlaces digam que é. Não é necessária qualquer análise semântica ou causal. É por isto que a Google pode traduzir linguagens sem as ‘conhecer’, e é por isso que pode adicionar anúncios a conteúdos sem conhecer nem os anúncios nem os conteúdos.
Deparámo-nos aqui com duas das mais importantes linhas de força que podem definir a presente e futura sociedade:
a da vigilância digital, que permitindo o acesso ao inconsciente coletivo pode vir a influenciar o futuro comportamento social das massas, com o consequente controle por parte de grandes grupos, sejam eles empresas ou complexos militares-industriais, resultando numa crescente apatia ou militarização da sociedade;
o desaparecimento da teoria que nos permitia pensar o mundo ou como o compreender de forma a poder-nos situar nele, quer fosse através da ontologia, da linguística, da sociologia ou de qualquer outra teoria sobre comportamento humano, e sua substituição por matemática aplicada à massificação de dados (“A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento”).
E é com isto que atualmente nos confrontamos e a que prosaicamente ao nível da economia, Joseph Schumpeter chama de “destruição criativa” (como o capitalismo se reinventa periodicamente).
Já passámos por fases em que o pensamento mitológico funcionava por correlação, por racionalidades em que o Sol andava à volta da Terra, pelo que a agora correlação racional das máquinas governadas pela Inteligência Artificial não nos deve afastar daquilo que é importante: saber quem as controla e com que finalidade. Não perder o foco.
“As tecnologias não são neutras em termos de valor. Jacques Ellul, o anarquista cristão e intelectual multifacetado, defendeu isso em The Technological Society. Segundo a sua tese, as tecnologias não são vazias de conteúdo além do que constam nelas. Implícita em qualquer tecnologia está sempre uma afirmação da economia política e das circunstâncias materiais que a produziram.
Por outras palavras, as tecnologias disponíveis para jornalistas independentes são produtos corporativos. Eles são vitais para praticantes independentes como meio de entrega, mas, como aprendemos a cada dia, o acesso a eles pode ser interrompido a qualquer momento. Muitos de nós parecem ter perdido essa contradição. Agora somos pressionados a reconhecê-lo.”
O foco não foi perdido.
Notas:
A descrição até à atualidade de alguns comportamentos relacionados com adaptações sociais relativas à introdução de novas técnicas, pode ser encontrada no livro de Johann Hari, Stolen Focus.
Há um interessante estudo, “The iPhone Effect: The Quality of in-Person Social interactions in the presence of Mobile Devices”, onde os autores concluem que as interações que temos com as outras pessoas são mais formais e menos empáticas quando feitas ao telemóvel, mesmo que ele se encontre apenas só pousado na mesa de trabalho. Ou seja, o caráter das conversações que temos é alterado.
Este blog contém parte do artigo de 13 de janeiro de 2016, “Big Data, big shit!”.
A teoria da guerra justa parte do princípio que a guerra, apesar de ser terrível, será sempre menos terrível se travada com a conduta certa, nem sempre sendo a pior opção.
Guerra justa, diz o nosso Isidoro, é a que se faz para reaver o que é nosso, ou para repelir os inimigos, bispo do Porto em 1147.
Guerra reacionária, é aquela na qual os oprimidos efetivamente lutam para proteger os seus próprios opressores, V. Lenine.
E no mundo em que vivemos até pode acontecer que a “guerra justa” nos conduza para uma “guerra nuclear”, mas que será certamente “justa”, na qual todos acabaremos por morrer cheios de razão.
O problema da sobrevivência, quer no aspeto da subsistência quer no aspeto da defesa, foi um problema que se deve ter posto aos primeiros grupos de humanos que se formaram. As justificações sobre quando e como se defenderem ou quando e como atacarem, seriam das decisões mais importantes, uma vez que diziam respeito à vida ou morte de pessoas ou de comunidades inteiras, pelo que quem as tomava teria de contar com o apoio implícito ou explícito do grupo e da anuência sempre presente dos deuses da época.
Mas à medida que a guerra se foi transformando em tradição, chefes militares, sacerdotes, chefes políticos, filósofos, teólogos, começaram a interessar-se por ela, sistematizando argumentos para melhor a entenderem. Para justificar as condições em que uma guerra pudesse vir a ser declarada e para que pudesse vir a ser travada com retidão, começaram por estabelecer critérios. É assim que aparece a “teoria da guerra justa” que acredita que a guerra, apesar de ser terrível, será sempre menos terrível se travada com a conduta certa, nem sempre sendo a pior opção.
Vão ser dois os grandes grupos a que estes critérios se dedicam: o primeiro trata do “direito de se ir para a guerra” (a moralidade de se decidir pela guerra), e o segundo com o “direito de conduzir a guerra” (como deverá ser moralmente conduzida, ou seja, quais as regras da guerra).
Com pequenas variações, todas as civilizaçõesacabam por ter critérios quase idênticos para a declaração e condução da guerra.
No Antigo Egito, o faraó era quem tinha a legitimidade para declarar a guerra, em nome da vontade dos deuses. Normalmente antes de declararem guerra dirigiam-se aos templos para receberem inspiração divina ou auscultarem os sacerdotes.
Na China confuciana, a guerra era admitida como justa apenas como último recurso e se declarada pelo imperador. A justeza da decisão era medida pelo resultado da campanha.
Na Índia dos marajás, a guerra para ser justa estabelecia critérios de proporcionalidade dos meios, justeza dos meios (nada de setas envenenadas) e justeza de ânimo (não se atacar com raiva).
Na Grécia Antiga, a existência de uma força militar era tida como necessária para a autodefesa, mas não para a conquista: “A finalidade de se praticar o treino militar não tem que ver com vir a tornar escravos quem o não merece, mas para evitar que eles próprios venham a ser tornados escravos por outros”.
Na Roma Antiga, também a guerra era considerada como sendo potencialmente errada, proibida, e não do agrado dos deuses. Uma guerra justa necessitava de uma declaração ritual feita pelos sacerdotes disso encarregados, e a sua condução implicava o seguimento de deveres morais para com os seres humanos.
Com o Cristianismo, sujeito ao “Não matarás”, ao oferecimento da outra face para ser esbofeteada e à sua moral universalista segundo a qual todos os homens são irmãos, o problema da guerra foi particularmente estudado para evitar que a contradição se instalasse.
Os ensinamentos de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino vão conduzir à formulação do conceito de “guerra justa” ainda hoje utilizado pelos cristãos, salvo algumas pequenas correções.
No nosso caso, nação católica, a necessidade de se ter que dar uma justificação religiosa para a guerra pode ser apreciada, por exemplo, a quando da conquista de Lisboa aos mouros em 1147. D. Afonso Henriques, querendo obter a colaboração dos cruzados nórdicos que se dirigiam para a Palestina, encarregou o bispo do Porto de lhes mostrar que essa empresa era justa:
“A piedade em favor de Deus não é crueldade. Fazei a guerra por zelo de justiça e não por impulso violento da ira. Ora a guerra justa, diz o nosso Isidoro, é a que se faz por reaver o que é nosso, ou para repelir os inimigos. E porque é uma coisa justa punir os homicidas e os sacrílegos e os envenenadores, a efusão do seu sangue não é um homicídio, como não é cruel quem destrói os cruéis. Quem mata os maus só no que eles são maus e o faz com justo motivo, é ministro do Senhor”.
Só quase duzentos anos depois é que em Portugal aparecem as primeiras obras dedicadas ao problema da guerra justa, com Fr. Álvaro Pais, Estado e Pranto da Igreja (1332-35) e Espelho dos Reis (1341-44), seguindo evidentemente a tradição escolástica e as ideias expressas por Santo Agostinho e Tomás de Aquino.
Onde explicava que a guerra para ser justa, devia obedecer a cinco requisitos: persona (quem podia combater – excluía os eclesiásticos a quem só lhes era permitido exortar o príncipe e o povo), res (será ou não a guerra inevitável?), causa (é de facto a guerra o único meio para obter a paz?), animus (o que a dita? Deverá ser sempre a caridade e nunca o ódio, a ambição ou a vingança) e a auctoritas (quem a declara deve estar legitimamente investido no poder).
Contudo, D. João I, ou porque desconhecesse a obra de Álvaro Pais ou porque ela tivesse sido dedicada “ao ilustre e vitoriosíssimo” Afonso XI rei de Castela, ou porque não considerasse suficientes as razões aduzidas, antes da expedição a Ceuta quis saber se aquela guerra seria “serviço de Deus”, reunindo para isso pareceres de alguns príncipes letrados e doutores na Igreja.
Recordemos que D. João I era bastardo, iniciara uma nova dinastia, e devia desejar afirmar-se aos outros monarcas como de igual valimento, pelo que, entre outras coisas, resolvera armar os seus filhos cavaleiros em combate real numa luta contra os infiéis, algo que já há muito não se via nem se praticava naquela Europa, pelo que a expedição a Ceuta era particularmente importante e todos os cuidados tinham de ser acautelados.
A resposta que lhe chegou, depois de assinalarem que Justiniano e os seus jurisconsultos aconselhavam a guerra contra os infiéis e que o Santo Padre dava absolvição perpétua a quem “dereitamente morresse guerreando os infiéis”, foi a seguinte:
“Saiba vossa mercê que o estado militar não he por outra coisa tão louvado entre os cristãos, como por guerrearem os infiéis, ca não he necessário nem há hi mandamento de nosso Senhor Deus que façamos guerra a nenhuns cristãos, antes nos encomenda que nos amemos uns aos outros como irmãos que devemos ser em ele que he nosso Senhor, segundo he escrito por São Paulo em muitos lugares das suas epístolas”.
Em seguida afirmam que os reis devem evitar que os seus senhorios recebam queda, utilizando imaginação e conselho, e, se for preciso, devem combater contra os infiéis e até contra os cristãos. Porém, logo que a ofensa tenha sido reparada, “devem de deixar as armas e buscar a paz por quantas maneiras poderem”.
E concluíam:
“Ora senhor, nem havemos de acrescentar mais soma de palavras, basta que nós aqui somos presentes por autoridade da santa escritura […] determinamos que vossa mercê pode mover guerra contra quaisquer infiéis assim mouros como gentios, ou qualquer outro que por algum dos artigos da santa fé católica, por cujo trabalho mereceres grande galardão do nosso Senhor Deus para a vossa alma”.
E assim se fez.
No reinado de D. Manuel, a nação continua fiel à doutrina tradicional sobre a guerra justa vinda de 1147. Como se pode ler noRegimento da viagem de Pedro Álvares Cabral para a Índia, só se devia fazer guerra contra os povos indígenas se estes, não querendo aceitar a evangelização, “negassem a lei de paz que se deve ter entre os homens para conservação da espécie humana, e defendessem o comércio e comutação, que é o meio por que se concilia e trata a paz e amor entre todo os homens, por este comércio ser o fundamento de toda a humana polícia”.
Vai ser no reinado de D. João III, que surge a teorização mais completa da doutrina portuguesa da guerra justa, no chamado Tratado da Guerra Que Será Justa. Preocupado com a guerra que estava a ser feita no Brasil contra os Índios, o monarca vai consultar (“provavelmente um teólogo ou jurisconsulto”, sugere Costa Brochado) o autor até hoje anónimo.
Segundo o autor, para uma guerra ser justa são necessárias três causas: “autoridade no que a move, causa justa e boa tenção”.
As causas só são justas se forem para reaver o que foi nosso ou para punir uma ofensa. No primeiro caso estavam as guerras empreendidas contra os Mouros de África e os turcos da Ásia, pois haviam ocupado terras pertencentes aos cristãos. Porém, a guerra feita contra os povos que habitassem terras nunca possuídas por cristãos era injusta, a não ser que tivesse como origem a segunda causa indicada.
E sobre a evangelização desses povos afirma que aqueles que forem cumprir essa missão devem ser bem recebidos e, só se não o forem, aos reis católicos será justo mover guerra contra os gentios ofensores. Neste caso, esta guerra tem como fim, não obrigar os gentios a aceitar a Fé cristã, mas sim a punir a ofensa.
Assim, quanto aos Mouros, como se sabia de antemão que não aceitavam a evangelização, qualquer guerra movida contra eles seria justa. Quanto aos Gentios, só depois de saber que eles não querem receber os pregadores. Sugere ainda não ser conveniente enviar tropas com os missionários, sendo preferível que sejam acompanhados por “homens de bem com modo de honesto comércio e pacífica comunicação”.
E no respeitante aos ocupantes de terras que nunca houvessem sido de Cristãos ou que nunca tivessem causado dano aos mesmos?
O autor não considera justa a guerra contra os pecadores e contra a natureza, pois que pecado tão grave como esse é para os cristãos o pecado mortal e não perdiam estes o domínio do que tinham pelo facto de o cometerem: não há “lei divina que prive os infiéis bárbaros do que eles por justo título positivo possuem, ainda que idólatras e infiéis”.
Refuta assim a ideia que seja justa a guerra contra os Infiéis apenas porque com ela estes poderiam alcançar os bens da civilização.
Vejamos a prática:
Quando os grandes capitães das expedições de navios das nações europeias dos séculos XV e seguintes desembarcavam em terras povoadas e com riquezas à vista, o padrão de conquista que se lhe seguia era normalmente sempre o mesmo: a leitura de medidas legais inventadas que serviam de justificação para a invasão, a declaração de posse do território, e a fundação de uma cidade para legitimar e institucionalizar a conquista.
Escreviam depois aos reis para lhes assegurar que tudo fora feito de acordo com os desejos expressos pelos monarcas, e que os povos conquistados se encontravam à disposição para serem comandados e para trabalharem, plantarem, e fazerem tudo o que fosse necessário, para construírem uma cidade, e para serem ensinados a vestirem-se e a adotarem os costumes cristãos.
Para que tudo fosse feito de acordo com as “normas”, antes de entrarem em combate com os indígenas, os soldados liam-lhes os Éditos Monárquicos (Requerimento), onde se declarava que os conquistadores estavam investidos com a autoridade de Deus, do papa, e do rei, e que os povos nativos seriam seus vassalos subordinados à sua autoridade.
Desses éditos constava também a enumeração das penas que os indígenas sofreriam se não o cumprissem (tipos de tortura, incêndio das vilas, enforcamento de mulheres na praça pública, e outros). Tudo isto “explicado” numa língua e linguagem que os indígenas não entendiam.
Normalmente, estes éditos acabavam dizendo:
“Vou fazer-lhes todo o mal e causar-lhes todos os prejuízos que um Senhor faria a um vassalo que não lhe obedecesse ou recebesse. E declaro-vos solenemente que todas essas mortes e estragos resultantes serão sempre culpa vossa devido às vossas falhas e não de Sua Majestade, nem minha, nem dos homens que comigo vieram”.
Citando o missionário dominicano espanhol Frei Bartolomeu de las Casas (1474? -1566), em O paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América Espanhola:
“Após os europeus se terem libertado do dever de os informar, o campo ficava aberto para a pilhagem e escravatura”.
Atravessemos vários séculos e numerosas guerras e ainda hoje o Compendio da Doutrina Social da Igreja de 2004, desenvolve assim a doutrina da guerra justa no capítulo 11, parágrafos 500 a 501:
“Se esta responsabilidade [de manter a paz, fazer a guerra] justifica a posse de meios suficientes para exercer este direito de defesa, os Estados têm ainda a obrigação de fazer todo o possível "para garantir que existam condições de paz, não apenas no seu próprio território, mas em todo o mundo". É importante lembrar que “uma coisa é travar uma guerra de autodefesa; outra é tentar impor a dominação a outra nação. A posse de potencial de guerra não justifica o uso da força para prosseguir objetivos políticos ou militares."
Estas são as doutrinas que continuam em vigor e nas quais todos se baseiam para justificar as suas guerras justas quando ganham.
Para tentar fugir a esse espartilho, Vladimir Lenin vai começar por dizer que as guerras justas compartilham todas a característica de serem de caráter revolucionário:
"Aos trabalhadores russos coube a honra e a sorte de serem os primeiros a iniciar a revolução - a grande e única guerra legítima e justa, a guerra dos oprimidos contra os opressores".
Ao definir estas duas categorias opostas em termos de classe, Lenin evitou a interpretação mais comum de considerar uma guerra defensiva como justa ("quem deu o primeiro tiro?"). Pelo que o lado que iniciasse as agressões ou o que tivesse uma razão de queixa ou qualquer outro fator comumente considerado como causa de guerra, não importava.
Para ele era claro que se um lado estivesse a ser oprimido pelo outro, a guerra contra o opressor seria sempre, por definição, uma guerra defensiva.
Qualquer guerra em que não se verificasse essa dualidade de oprimido e opressor seria sempre uma guerra reacionária, injusta, na qual os oprimidos efetivamente lutam para proteger os seus próprios opressores:
" Imaginem uma guerra entre um senhor de 100 escravos contra um senhor de 200 escravos por uma distribuição mais "justa" de escravos. Claramente, a aplicação do termo guerra "defensiva", ou guerra "para defesa da pátria" seria historicamente falso, e na prática seria um puro engano do povo, dos filisteus, dos ignorantes, pelos astutos senhores de escravos. É desta forma que a burguesia imperialista de hoje engana os povos por meio da "ideologia nacional" e do termo "defesa da pátria" na atual guerra entre senhores de escravos para fortalecer a escravidão."
A cortina foi entreaberta, mas a peça continua a mesma. Recordemos, por exemplo, a recente guerra entre dois países ditos comunistas, a China e o Vietname: quem é o opressor e quem é o oprimido?
A teoria da guerra justa não apareceu para evitar a guerra, mas sim para que a guerra se efetuasse segundo as condições estabelecidas pelos potenciais vencedores.
Pelo que no mundo em que vivemos até pode acontecer que a “guerra justa” acabe por nos conduzir a uma “guerra nuclear”, mas que será certamente “justa”, na qual todos acabaremos por morrer cheios de razão.
O TEMPO EM QUE VIVEMOS 438 Crimes de guerra e guerra sem crimes
Tempo estimado de leitura: 8 minutos.
Não devemos esquecer que os padrões com que hoje julgamos os acusados serão os padrões com que viremos a ser julgados amanhã, Robert H. Jackson, procurador dos EUA no 1º Tribunal de Nuremberga.
As entidades em conflito devem sempre em qualquer caso distinguir entre civis e combatentes. Os ataques só podem ser dirigidos contra combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra civis.
As tropas russas têm-no feito nesta guerra na Ucrânia. E isto porque não poderão ser julgadas, porque, tal como os americanos, não ratificaram o tratado do TPI sobre crimes de guerra.
Um estado de guerra permanente cria burocracias complexas, sustentadas por políticos complacentes, jornalistas, cientistas, tecnocratas e académicos, que servem obsequiosamente a máquina de guerra.
Na História da Guerra do Peloponeso, começada a escrever já lá vão 2.400 anos (431 a. C.), Tucídides pôs os poderosos Atenienses a explicar aos derrotados e impotentes Melitanos, a razão para o genocídio que se lhe seguiu:
“o direito, de acordo com o que se passa no mundo, apenas se discute entre os que são igualmente poderosos, porquanto os mais fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que têm de sofrer”, (capítulo XVII, Décimo sexto Ano da Guerra, A Conferência Melitana, O Destino de Melos).
Com o aproximar do fim da 2ª Guerra Mundial, começou a pôr-se o problema de como responsabilizar os criminosos de guerra pelas ações cometidas. A constituição de um Tribunal Internacional para os julgar seria a solução mais evidente, só que o problema era muito complicado não só pela não existência de uma legislação internacionalmente aceite sobre crimes de guerra, investigação e verificação a serem conduzidas, procedimentos a serem seguidos, esferas de influência, etc.
Como o tempo (e as espectativas e as intenções) urgia, foi decidido constituírem-se dois Tribunais Militares Internacionais, um para julgar os crimes dos nazis alemães e outro para os nazis japoneses.
As acusações apresentadas eram quatro: (1) crimes contra a paz (isto é, planeamento, iniciação e condução de guerras de agressão em violação de tratados e acordos internacionais), (2) crimes contra a humanidade (isto é, extermínios, deportações e genocídio), (3) crimes de guerra (ou seja, violações das leis de guerra) e (4) “um plano comum ou conspiração para cometer” os atos criminosos contidos nas três primeiras acusações.
A autoridade do Tribunal Militar Internacional para conduzir esses julgamentos decorreu do Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945. Nessa data, representantes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e do governo provisório da França, assinaram um acordo que incluía uma autorização para que um Tribunal Militar Internacional pudesse conduzir julgamentos dos principais criminosos de guerra do Eixo cujos crimes não necessitassem de ter localização geográfica específica. Mais tarde, outras 19 nações aceitaram as disposições deste acordo, sendo admitidas como observadoras.
A primeira sessão, sob a presidência do representante soviético, Gen. I.T. Nikitchenko, realizou-se a 18 de outubro de 1945, em Berlim. Foram acusados 24 ex-líderes nazis por perpetuarem crimes de guerra, e ainda vários grupos (como a Gestapo, a polícia secreta nazi) acusados por terem caráter criminoso. A partir de 20 de novembro de 1945, todas as sessões do tribunal passaram a ser realizadas no Palácio da Justiça em Nuremberga.
Para além deste tribunal, foram ainda constituídos logo de seguida, entre dezembro de 1946 e abril de 1949, outros 12 subsequentes tribunais militares para julgar crimes de guerra cometidos por chefias do partido nazi, médicos, industriais, juízes, ministros e outros elementos de organizações nazis. Dos 3.887 casos, 3.400 foram abandonados, tendo sido presentes a tribunal 489, com 1.672 acusados, dos quais 1.416 foram condenados (200 foram executados, 279 condenados a prisão perpétua – embora em 1950 quase todos acabassem por serem soltos ao abrigo de uma amnistia).
Particular interesse tem também o caso do tribunal para julgar os crimes dos nazis japoneses (Tribunal de Tóquio) instaurado pelo General Douglas MacArthur, onde, devido ao encobrimento feito pelo próprio governo americano, os principais responsáveis pelos crimes horrendos da Unidade 731 (experiências com armas biológicas e químicas em humanos) não foram presentes à justiça, e onde devido aos então recentes bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui se invocou que os pilotos japoneses não podiam ser punidos por bombardearem cidades dado os pilotos americanos terem feito o mesmo (“É horrível que aqui venhamos fazer valer as leis da guerra e, contudo, vejamos a cada dia como os Aliados a tenham vindo a violar”, juiz Rölling).
Premonitório o que disse o procurador-chefe americano do julgamento de Nuremberga, Robert H. Jackson:
“Não devemos esquecer que os padrões com que hoje julgamos os acusados serão os padrões com que viremos a ser julgados amanhã.”
Os representantes dos Estados Unidos, da União Soviética, do Reino Unido e da França, que foram os arquitetos destes julgamentos, tinham como intenção a criação de um tribunal que viesse a servir de modelo para a responsabilização de guerras futuras. Ou seja, que as Nações Unidas viessem a estabelecer um tribunal permanente onde os criminosos de guerra que não pudessem ser julgados nos seus próprios países pudessem ser trazidos à justiça.
Este bem-intencionado desejo levou mais de meio século a ser concretizado, pois só em 1998 foi estabelecido o Tribunal Penal Internacional (TPI) quando 120 nações votaram a favor do Tratado de Roma, com 7 votos contra e 21 abstenções. Os sete votos contra foram da China, Estados Unidos, Iémen, Iraque, Israel, Líbia e Qatar.
Só em julho de 2002 é que se obtiveram as 60 ratificações necessárias para que o Tribunal pudesse formalmente funcionar. As primeiras ordens de prisão foram emitidas em 2005, tendo o primeiro julgamento tido início em 2012, sendo arguido o chefe rebelde congolês Thomas Lubanga Dyilo, acusado de crimes de guerra pela utilização de crianças soldados.
Até hoje, o Tribunal investigou casos no Afeganistão, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Darfur, Sudão, República Democrática do Congo, Quénia, Líbia, Uganda, Bangladesh/Mianmar, Palestina e Venezuela. Além disso, a Procuradoria realizou investigações preliminares de algumas situações na Bolívia, Colômbia, Guiné, Iraque/Reino Unido, Nigéria, Geórgia, Honduras, Coreia do Sul, Ucrânia e Venezuela.
Das poucas condenações produzidas pode-se extrair algo que lhes é comum: incidem sempre sobre quem ratificou o Tratado, quem se deixou aprisionar, quem perdeu a guerra, ou seja, os perdedores.
Em 2005, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (IRCC) sumarizou as regras às violações à lei que seriam consideradas crimes de guerra. A primeira regra especifica que “as entidades em conflito devem sempre em qualquer caso distinguir entre civis e combatentes. Os ataques só podem ser dirigidos contra combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra civis.”
A segunda regra diz que “atos ou ameaças de violência cujas principais finalidades sejam o de espalhar terror entre a população civil, são proibidos.”
Ou seja, bombardear alvos civis como mercados, prédios de apartamentos, ataques às instalações elétricas, assassinar residentes nas cidades ocupadas, tudo isso é proibido. E, no entanto, as tropas russas têm-no feito nesta guerra na Ucrânia. E fazem-no porque não poderão ser julgados, porque, tal como os americanos, não ratificaram o tratado do TPI sobre crimes de guerra.
Veja-se o caso dos EUA: em 2000, Bill Clinton assina o Tratado de Roma, mas o Senado nunca o ratificou. Em 2002, quando a administração Bush se preparava para a “guerra global ao terrorismo” (o que incluía a ocupação do Afeganistão e o programa global de tortura da CIA ), os EUA retiraram definitivamente a sua assinatura. Eis a explicação do então Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld:
“…[As] disposições do TPI reivindicam a autoridade para deter e julgar cidadãos americanos - soldados, marinheiros, aviadores e fuzileiros navais dos EUA, bem como funcionários atuais e futuros - mesmo que os Estados Unidos não tenham dado o seu consentimento para serem vinculados ao tratado. Quando o tratado do TPI entrar em vigor neste verão, os cidadãos dos EUA estarão expostos ao risco de serem processados por um tribunal que não presta contas ao povo americano e que não tem obrigação de respeitar os direitos constitucionais de nossos cidadãos”.
Mas para clarificar, em agosto desse ano o Congresso passou, e o Presidente Bush assinou, o American Servicemembers Protection Act, segundo a qual era “autorizado o uso da força militar para libertar qualquer cidadão americano ou de um país aliado que estivesse retido no TPI, localizado em Haia”, permitindo também que os EUA retirassem suporte militar a qualquer nação que participasse do TPI.
Aparentemente, os “direitos constitucionais” incluíam o direito a cometer com impunidade crimes de guerra. Mesmo que o cidadão viesse depois a ser julgado por esse crime num tribunal americano, ele tinha sempre muitas hipóteses de vir a contar com um perdão presidencial.
Na prática, eis um exemplo de como as coisas funcionam: em 2018, o procurador-chefe do TPI pediu formalmente que fosse aberto um inquérito sobre os crimes de guerra que estavam a serem cometidos no Afeganistão. Como os EUA não são membros do TPI, mas o Afeganistão é, o inquérito focou-se nos crimes cometidos contra os civis apenas por parte da forças talibans e do governo afegão.
Mas mesmo assim o procurador pretendeu investigar as participações sobre as alegadas intervenções da CIA e das forças militares americanas nos centros de detenção do Afeganistão em 2003/2004, pelo que planeou uma viagem aos EUA. O seu visto foi revogado (abril, 2019), impedindo-o de entrevistar quaisquer testemunhas, a que se seguiram sanções financeiras.
“Os Estados Unidos usarão todos os meios necessários para protegerem os nossos cidadãos e os dos nossos aliados das perseguições injustas desse tribunal ilegítimo.
Nós não cooperaremos com o ICC. Nós não daremos qualquer assistência ao ICC. Não nos juntaremos ao ICC. Deixaremos que o ICC morra por ele próprio. Em qualquer dos casos, o ICC é já um morto para nós.”
E mais, avisou que os Estados Unidos considerariam proceder à utilização de sanções contra os juízes, procuradores e todos os que cooperassem com a averiguação de tais provas, podendo inclusive chegarem a proibir a sua entrada nos EUA, congelarem as suas contas, e julgá-los em tribunais americanos.
Imagino que o mesmo farão os russos, os israelitas, os chineses, todos aqueles que se sentem poderosos perante os derrotados e impotentes (como já Tucídides explicara). Como já antes o fizeram ingleses (que quando eram donos do mundo, sempre que um qualquer seu cidadão era preso em qualquer parte do mundo, enviavam um barco de guerra para ameaçar os outros governos), franceses, espanhóis, portugueses, etc.
Eis o que o historiador inglês Edward Gibbon nos diz sobre o desejo do Império Romano por guerra sem fim:
“[O] declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável da grandeza imoderada. A prosperidade amadureceu o princípio da decadência; a causa da destruição multiplicou-se com a extensão da conquista; e, assim que o tempo ou o acidente removeu os suportes artificiais, o estupendo tecido cedeu à pressão do seu próprio peso. A história da ruína é simples e óbvia; e, em vez de indagar porque foi destruído o Império Romano, deveríamos surpreender-nos por ele ter subsistido por tanto tempo.”
Um estado de guerra permanente como o que temos vivido quase sempre, cria burocracias complexas, sustentadas por políticos complacentes, jornalistas, cientistas, tecnocratas e académicos, que servem obsequiosamente a máquina de guerra.
Por exemplo, no caso dos EUA, no início deste mês, os Comités dos Serviços das Forças Armadas do Congresso e do Senado, nomearam oito comissários para rever a Estratégia de Defesa Nacional (NDS) de Biden, para “examinar as suposições, objetivos, investimentos em defesa, postura e estrutura da força, conceitos operacionais e riscos militares do NDS.”
A comissão, como Eli Clifton escreve no Quincy Institute for Responsible Statecraft, é “em grande parte composta por pessoas com ligações financeiras à indústria de armamentos e a empresas que têm contratos com o governo dos EUA, levantando questões sobre se a comissão poderá ter um olhar crítico para contratos que recebem US$ 400 bilhões dum orçamento de defesa de US$ 858 bilhões para o ano fiscal de 2023”.
É que a presidente da comissão, observa Clifton, é a ex-deputada Jane Harman (D-CA), que “faz parte do conselho de administração da Iridium Communications, uma empresa de comunicações via satélite que recebeu em 2019 um contrato de US$ 738,5 milhões por sete anos com o Ministério de Defesa.”
Chama-se a isto pôr a raposa no galinheiro para tomar conta das galinhas. Aparentemente não faltam raposas, galinhas e galinheiros. De todas as raças, credos, lugares e tempos.
Entretanto, ”a Ucrânia teve quase 18.000 baixas civis (6.919 mortos e 11.075 feridos). Também viu cerca de 8% das suas habitações destruídas ou danificadas e 50% da sua infraestrutura de energia diretamente impactada por frequentes cortes de energia. A Ucrânia necessita pelo menos US$ 3 bilhões por mês em apoio estrangeiro para manter a sua economia à tona, disse recentemente o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional. Quase 14 milhões de ucranianos encontram-se deslocados - 8 milhões na Europa e 6 milhões internamente - e até 18 milhões de pessoas, ou 40% da população da Ucrânia, precisarão em breve de assistência humanitária. A economia da Ucrânia contraiu 35% em 2022, e 60% dos ucranianos estão agora condenados a viver com menos de US$ 5,5 por dia, segundo estimativas do Banco Mundial. Nove milhões de ucranianos estão sem eletricidade e água, com temperaturas abaixo de zero, diz o presidente ucraniano. De acordo com estimativas do Estado-Maior Conjunto dos EUA, 100.000 soldados ucranianos e 100.000 russos foram mortos na guerra em novembro passado.”