Os humanos não são os únicos que podem alterar o curso da história.
Uma descrição para ser realista tem de comportar uma quantidade heterogénea de atores, ou seja, tem de ser pluralista.
Ésempre possível reduzir uma coisa a outra, desde que se tenha suficiente suporte ou aliados.
Bruno Latour, ofilósofo que abraçava muitas verdades, desde que nenhuma delas fosse universal.
Eis dois excertos que parecem saídos de um caderno de notas de espionagem industrial farmacêutica:
“Capítulo 1
5 minutos. João entra e vai para o seu local de trabalho. Diz rapidamente qualquer coisa sobre ter feito um erro grave. Ele já enviara uma revisão do estudo … O resto da frase tornou-se inaudível.
5 minutos 30 segundos. Bárbara entra. Pergunta ao Spencer sobre qual o tipo de solvente para pôr na coluna. Spencer responde-lhe do seu lugar. Bárbara sai e vai sentar-se no seu banco.
5 minutos 35 segundos. Jane entra e pergunta ao Spencer: ‘Quando preparas uma intravenosa com morfina, fazes com solução salina ou água?’ Spencer, que aparentemente está na sua mesa a escrever, responde-lhe de lá. Jane sai.
6 minutos 15 segundos. Wilson entra e olha para os locais de trabalho, para ver se consegue pessoas em quantidade suficiente para uma reunião de trabalho. Recebe apenas vagas promessas. ‘É um problema de 4.000 dólares que precisa de ser resolvido nos próximos dois minutos’. Sai para o lobby.”
Na página seguinte, continua a descrição do local de trabalho:
“Todas as manhãs, os trabalhadores chegam ao laboratório trazendo os almoços em sacos de papel pardo. Os técnicos começam imediatamente a preparar ensaios, montando mesas cirúrgicas e pesando produtos químicos. Recolhem dados de contadores que trabalharam durante a noite. As secretárias sentam-se frente à máquina de escrever e começam a rever manuscritos que estão inevitavelmente atrasados para cumprir com os prazos de publicação. Os funcionários, alguns já tinham chegado, entram um a um na área do escritório e trocam brevemente informações sobre o que deve ser feito durante o dia. Depois de um certo tempo, saem e vão para as suas bancadas. Zeladores e outros trabalhadores entregam remessas de animais, produtos químicos frescos e maços de correspondência. Diz-se que o esforço total do trabalho é guiado por um campo invisível, ou mais particularmente, por um quebra-cabeças, cuja natureza já foi antecipadamente decidido e que pode ficar resolvido hoje.”
Estes excertos foram retirados do livro Laboratory Life: The Construction os Scentific Facts, escrito em 1986 por Bruno Latour e Steve Woolgar, com introdução e edição de Jonas Salk (sim, o tal da vacina contra a poliomielite) tendo por base o trabalho de campo feito por Latour no laboratório Roger Guillemin do Salk Institute.
Uma aproximação antropológica à cultura do cientista em que Latour vai apresentar o conhecimento científico como uma construção deliberada, um produto de várias interações sociais, políticas e económicas, em constante competição.
O seu método implicava seguirmos todos os intervenientes (os atores), humanos e não-humanos, a interagirem e a fazerem coisas uns aos outros, em vez de nos focalizarmos nas oposições artificiais previamente estabelecidas, como por exemplo, as entre sujeito e objeto.
Como esta oposição entre sujeito e objeto está no cerne da ciência positivista, segundo a qual num mundo objetivo os factos estão apenas à espera para serem descobertos, e uma vez descobertos tornam-se permanentes, o escândalo foi enorme: aparentemente, Latour estava a pôr em causa as leis da física considerando-as uma mera construção.
Mas Latour não duvidava das leis da física, ele queria apenas era saber de onde é que elas vinham, o que era bastante mais do que acreditar que elas “estavam à espera para serem descobertas”.
E o que ele verificou no seu trabalho é que aquilo que os cientistas chamavam de “ciência pura”, dependia de um enorme conjunto de uma rede de atividades não-científicas: instrumentos técnicos, fundações, debates, curiosidade, colegialidade, batalhas legais, etc.
A aparente “solidez” dos factos estava dependente de uma rede continuada de suporte do aparelho social, tanto no laboratório como entre os corpos profissionais exteriores.
E da mesma forma que cada ramo da ciência raramente soluciona por si só os problemas – a física necessita da álgebra, a sociologia necessita da geografia ou da estatística -, tal faz com que uma descrição para ser realista tenha de comportar uma quantidade heterogénea de atores, ou seja, tem de ser pluralista.
É este pluralismo de Latour que faz com que para ele tudo seja um trabalho em progresso, uma aliança de coisas negociáveis. Por exemplo: “uma cerimónia religiosa pode alcançar a sua desejada realidade – como modo de existência religiosa – através da aliança de uma congregação, uma representação de Deus, palavras sagradas, artefactos e ícones, música, cheiro do incenso. É um trabalho em progresso. A sua realidade pode ser dada por antecipação ou resumida, reduzindo-a então a dogma.”
Mas Latour também sabe que é sempre possível reduzir uma coisa a outra, desde que se tenha suficiente suporte ou aliados. É o caso dos fundamentalistas religiosos, para os quais “tudo” pode ser reduzido ao desejo de Deus. Ou quando se pretendeu demonstrar que a Terra andava à volta do Sol, e foi necessário encontrar-se um forte suporte secular. Ou quando as companhias de tabaco, os conglomerados petroquímicos e outros, resolveram com os seus bem pagos cientistas criarem realidades alternativas para defenderem a sua acumulação de riqueza.
Todos esses inimigos das “verdades inconvenientes”, onde se inclui a ideia de que fumar causa cancro, ou que o queimar combustível fóssil provoca alterações climatéricas, atacarão sempre que pressentirem uma fraqueza.
Latour reconhece os perigos desta “era de pós-verdade” respondendo que os nossos problemas ecológicos não serão resolvidos tratando o clima como um fenómeno objetivo, mas sim focalizando-os nos modos como as alterações climáticas estão ligadas à política e aos interesses dos grandes negócios.
Na sua evolução, Latour começa a perceber que ver, ou interpretar, a sociedade apenas como sendo composta por um grupo de atores que verdadeiramente interessa (os humanos) era reducionista, perante a enorme quantidade de atores não-humanos que não controlávamos.
E para ele, o reducionismo era arrogância epistémica. Que se vê quando um físico se ri de alguém que não se apercebe imediatamente que “tudo é feito de átomos”; ou quando um psicólogo social, após um estudo rápido sobre a missa católica, reduz a crença religiosa a “comportamento humano”; ou quando um assistente político especializado diz ao mundo “É a economia, estúpido”.
Para tentar resolver de uma forma não-reducionista as relações que ocorriam na sociedade, Latour publica em 1996 um estudo, a teoria do ator-rede (“On actor-network theory: a few clarifications”) onde propõe uma nova maneira de ver um mundo onde se reconhecem como agentes também todos os não-humanos: objetos, máquinas, animais, plantas e a Terra. Só assim se poderá saber “o que se passa” quando um cientista faz uma descoberta.
Dá como um dos exemplos a descoberta da penicilina em 1928, quando ao voltar de um feriado, o doutor Alexander Fleming reparou que uma placa de Petri estava coberta com um bolor que tinha impedido que a bactéria se desenvolvesse. Naquele momento, qual era o agente mais importante, Fleming ou o bolor? Ou a relação de ambos?
Para Latour era-lhe indiferente a atribuição dessa importância. Importante era reconhecer que os humanos não eram os únicos que podiam alterar o curso da história. Tratava-se de uma proposta radical, em que os não-humanos eram incluídos na “sociedade”. Ao ver a ciência desta forma, Latour estava a sugerir que o conhecimento era uma coprodução.
O passo para a ecologia política era curto: Latour sugere que aos não-humanos devia ser permitido votar. Passou a lutar para trazer os não-humanos para a sociedade democrática dos humanos, da mesma forma que as mulheres outrora tiveram que lutar para entrar na sociedade dos homens.
Segundo ele, se se deve construir uma barragem, então o salmão que migra rio acima deve ter uma palavra a dizer, mesmo que os seus interesses sejam expressos por meio de descrições detalhadas apresentadas por cientistas especializados.
No auge da modernização em meados do século 20, as barragens foram construídas sem nada perguntar aos seres afetados, como o salmão. Agora, ao que parece, há uma “lógica” convincente na maneira como o salmão “pensa” sobre os fluxos dos rios. A partir dessa perspetiva, o conceito antes fundacional de sociedade – tão essencial à antropologia, à sociologia e à política – começa a perder o seu poder descritivo ou analítico.
A sociedade não está apenas objetivamente “lá” e não é composta apenas por pessoas. Segundo Latour, a sociedade é uma rede de associações a serem compostas, a serem negociadas entre seres que falam línguas diferentes. Ele sempre quis conhecer como é que estas redes funcionam.
A sua maneira de pensar permite-nos escapar aos círculos das disciplinas que até aqui se têm autovalidado, dando-nos “esperança numa nova civilização, uma na qual se ponha de lado a soberba do senhorio humano e permita a aprendizagem das ‘linguagens’ dos rios, das montanhas, dos gasodutos, dos macacos, das bonecas de voodoo, dos vírus. Dos muitos murmúrios da Terra.”
Bruno Latour, falecido em outubro de 2022, apesar de apresentado pelo The New York Times como o “the Post-Truth Philosopher”, gostava bastante mais de ser visto como o filósofo que abraçava muitas verdades, desde que nenhuma delas fosse universal. Tinha razão.
Notas:
No blog de 31 de janeiro de 2018, “O paradigma do paradigma”, pode-se ler que Thomas Kuhn (A Estrutura das Revoluções Científicas) refere “a ciência é obra de comunidades científicas, sendo essa comunidade que define não só o meio de solucionar os problemas, como também os problemas que convém resolver.”
Interessante também ver uma exposição de arte (Symbiosia) num bosque que visa mostrar visualmente a relação simbólica com as árvores nesta época de alteração climática.
É a inovação privada e não a intervenção do estado ou o ativismo político que salvará o mundo.
Os problemas, como o desastre climático, não são devidos à ganância e à busca desenfreada de lucro por parte das grandes corporações, são apenas problemas meramente técnicos a resolver.
Meus senhores, [ele] pode falar como um idiota e parecer um idiota. Mas não se deixe enganar por ele. Ele é mesmo um idiota, Groucho Marx.
Foi no século XX, que o conhecido escritor russo-americano Isaac Asimov definiu “ficção científica” como o “ramo da literatura que lidava com a reação dos seres humanos perante as alterações da ciência e da tecnologia”.
Curiosamente, parece que a primeira obra considerada como sendo ficção científica foi a escrita pelo grego Luciano de Samosata, no século II d. C., História Verdadeira, na qual abordava já temas como o das viagens a outros mundos, vidas de extraterrestres, guerra interplanetária e vida artificial. Seguiram-se depois muitas outras obras de literatura ao longo dos tempos.
Com o aparecimento do cinema, televisão e outros meios de comunicação, todos acabaram por ser invadidos pela ficção científica, pelo que hoje ela se tornou muito popular e influente em todos os campos sociais.
Daí que a ficção científica atual inclua temas sobre o ambiente, a internet e o universo da informação, questões sobre biotecnologia, nanotecnologia, sociedades utópicas, distópicas, pós-apocalípticas e de pós-escassez, a evolução dos humanos na Terra ou noutros planetas, etc.
A par de Asimov (1920 – 92), da Trilogia daFundação e do Eu, Robot, e de Arthur C. Clarke (1917 – 2008), do 2001: Uma Odisseia no Espaço, um dos seus maiores representantes foi o também americano Robert A. Heinlein (1907 – 88), aliás o único a ganhar quatro prémios Hugo atribuídos ao melhor romance de ficção científica, com Estrela oculta (1956), Tropas estelares (1959), Um estranho numa terra estranha (1961) e Revolta na Lua (The Moon is a Harsh Mistress) (1967).
Olhemos com mais atenção para este último, particularmente por ter sido considerado por Elon Musk como novela favorita.
A ação passa-se em 2075, na colónia penal em que a Lua se transformou, onde habitam em cidades debaixo do solo cerca de três milhões de criminosos, exilados políticos, ou seus descendentes, em que o número de homens é o dobro do das mulheres e onde a poliandria e várias formas de poligamia são a norma.
O diretor desta prisão é nomeado pelo governo da Terra, mas, na realidade a sua única responsabilidade é garantir que os carregamentos vitais de trigo hidropónico sejam enviados para a Terra. E isto porque os próprios prisioneiros se autogovernavam anarquicamente.
Toda a infraestrutura e maquinaria necessárias eram controladas por um só supercomputador, o HOLMES IV (“High-Optional, Logical, Multi-Evaluating Supervisor, Mark IV), que acabou por desenvolver autoconsciência quando os seus “neuristors” ultrapassaram o número de neurónios do cérebro humano. Ele chegou à conclusão que ao ritmo que as quantidades de trigo exigidas pela Terra, em breve esgotariam as reservas das minas de gelo da Lua, deixando-a sem água.
Previu ainda tal facto ocasionaria revoltas dentro de sete anos e canibalismo em nove anos. E juntamente com os prisioneiros, calcula que as hipóteses de sucesso de uma revolta contra a Terra serão de uma em sete. Era tempo de começar a atuar. Os revoltosos começam a movimentar-se.
A Terra envia soldados para acabar com a revolta, mas os soldados são derrotados, levando inclusivamente os revoltosos a ameaçarem a Terra com o uso da catapulta eletromagnética utilizada para a exportação do trigo como arma de arremesso de grandes rochas contra a Terra.
A 4 de julho de 2076, aniversário dos 300 anos da Declaração de Independência dos EUA, a Lua declara a sua independência.
Durante as conversações havidas, os governos da Terra são pressionados a construírem uma catapulta para enviar água para a Lua por troca pelo trigo recebido, de acordo com uma expressão muito popular na Lua e que era TANSTAAFL! (There Ain’t No Such Thing As A Free Lunch!) (Não Há Almoços Grátis!).
Resumidamente, estamos perante uma revolta entre uma sociedade caraterizada por mercados livres com mínima intervenção do governo e um estado monopolista. Esta sociedade é tão livre que, inclusivamente, aceita a catástrofe que a aguardará ao recusar a assistência alimentar que a Terra lhe promete, por acreditar que o sacrifício da população que se verificará entre os mais dependentes dessa assistência acabará, ao longo do tempo, por dar lugar a uma população “mais eficiente e melhor alimentada”.
Para os revoltosos, “as revoluções não são ganhas pela quantidade das massas. A revolução é uma ciência que apenas alguns têm a competência para pôr em prática. Ela depende de uma organização correta e, acima de tudo, de comunicações”.
Por isso vemos Mannie, um dos conspiradores e técnico do supercomputador, desenhar o sistema que decidiria sobre a autorização da transmissão de informações entre as células clandestinas dos revolucionários como um “diagrama de computador”, uma “rede neural”, o que significa que a organização dos quadros não era feita por um processo democrático de deliberação ou de acordo com a experiência prática de cada um, mas pela aplicação de princípios cibernéticos. Ou seja, a solução aplicada ao problema dos grupos insurrecionais era a mesma que a aplicada a “um motor elétrico”.
Isto é a crença no chamado princípio do “solucionismo tecnológico” segundo a qual qualquer problema social ou político pode ser resolvido através de uma correta solução técnica. Exemplo atual: para Musk, o carro elétrico é a solução para a alteração climática, o que o leva a alicerçar ainda mais a sua convicção que é a inovação privada e não a intervenção do estado ou o ativismo político que salvará o mundo.
Os conspiradores confiam no supercomputador para os conduzir no processo de confrontação e separação do governo colonial da Terra, e a justificação é que o computador consegue gerir essa alteração desejada melhor do que qualquer movimento ou organização humana.
Interessante também notar a obsessão que o supercomputador tem com as comunicações, para assim acautelar e impedir que a Terra as utilize para espalhar a confusão e influenciar a opinião pública, quer através de campanhas de media quer através de acesso indevido a dados. O que é totalmente atual: a elite revolucionária tem a esperança de alterar a sociedade através da manipulação da informação.
Para os que chefiam a conspiração, as aspirações democráticas transmitidas pela base revolucionária não passam de “ruído” que poderia interferir com os sinais transmitidos pela chefia para os seus subordinados ligados pela rede (net).
“Mesmo quando se trata de estabelecer a Constituição para o Estado Livre da Lua, os conspiradores usam de truques para ultrapassarem os congressistas que não são seus seguidores. Os indivíduos espertos ganham sempre às massas da democracia, e isso é bom”.
O que se retém da leitura de Revolta a Lua é que a cibernética é a chave para se entender o universo. Por isso, tudo, desde os mercados aos sistemas ecológicos, não são mais que processadores de informação com base em mecanismos de feedback. Tal como termostatos, limitam-se a responder à alteração das circunstâncias sem qualquer tipo de controle por uma consciência humana.
Como a economia é um sistema autorregulado demasiado complexo para que alguém o possa entender, controlar ou encaminhar, ela deve ser isolada de possíveis interferências democráticas através de uma ordem global legal desenvolvida por experts (neste caso a melhor tradução será a de espertos) neoliberais.
É esta mesma ideia que leva Musk a querer retirar do Twitter quaisquer constrangimentos (nem todos, evidentemente) aos conteúdos das mensagens: a crença em que “a informação quer ser livre”. Mais uma vez não se trata de um problema de preocupação com a humanidade, mas sim do simples facto de a fala ou escrita contar apenas como data e não como diálogo, pelo que não se vê qualquer problema em considerar um discurso de ódio como perigoso. Apenas um problema de bits. (1)
Os Muskes acreditam firmemente que uma vez libertos de constrangimentos físicos e governamentais, o mercado livre produzirá novas tecnologias capazes de resolverem qualquer possível problema ou necessidade que viermos a ter.
Para eles a sociedade não é movimentada devido a antagonismos, muito menos devido a luta de classes. Os problemas, como o desastre climático, não são devidos à ganância e à busca desenfreada de lucro por parte das grandes corporações, são apenas problemas meramente técnicos a resolver.
Pelos vistos, os Muskes deram-se bem nesta realidade: a Oxfam diz-nos que atualmente há dez pessoas que possuem mais riqueza que os últimos 40% da humanidade, e que os 20 mais ricos possuem coletivamente mais que todo o PIB da África subsariana.
Que Musk, entre abril de 2020 e abril de 2021 (pandemia) fez 140 biliões de dólares. Como o vencimento médio anual dos americanos era de 75.000 dólares, ele ganhou 1,86 milhões de vezes mais, 383 milhões de dólares cada dia. Ou seja, trabalhou 1,86 milhões de vezes mais arduamente que qualquer trabalhador e/ou é 1,86 milhões de vezes mais esperto que qualquer trabalhador.
Mark Zuckerberg ganha 28.538 dólares por minuto. Podia dar a cada americano 100 dólares e ainda ficava com mais de metade dos seus 82,3 biliões de dólares.
Jeff Bezos, segundo alguns cálculos, faz 3.715 dólares por segundo, o que dá à hora 13.374.000 dólares.
Mais dez ou vinte ou trinta anos (ou os que forem necessários, desde que os governos não intervenham) e terão a riqueza suficiente que lhes permitirá então resolver todos os problemas que afligem a humanidade: pobreza, saúde, trabalho, habitação, alimentação. Os bons samaritanos do Grande Recomeço.
Recordemos a frase de Groucho Marx (dos Irmãos Marx) no filme Duck Soup (Os Grandes Aldrabões):
“Meus senhores, [ele] pode falar como um idiota e parecer um idiota. Mas não se deixe enganar por ele. Ele é mesmo um idiota”.
Notas:
1: Um recente ramo da ciência, a física da informação, sugere que a realidade física é fundamentalmente feita com bits de informação, e que só depois a partir deles é que se forma a nossa experiência do espaço-tempo. Ou seja, as leis físicas como as conhecemos não refletem a ordem do universo, mas sim da ordem imposta pela forma como descrevemos o universo.
Isto levou a que em 1989 o físico John Archibald Wheeler considerasse a possibilidade de o universo ser fundamentalmente matemático, emergindo da informação obtida, e a que mais tarde, em 2003, Nick Bostrom apresentasse a hipótese de se viver numa simulação (a nossa realidade física pode, portanto, ser uma realidade virtual em vez de um mundo objetivo que exista independentemente do observador). Hipótese altamente provável, como explicou Elon Musk em 2013.
Esse mundo de realidade virtual terá como base o processamento de informação. Tal significa que tudo acabará por ser digitalizado e reduzido a um tamanho o menor possível por forma a que não possa ser mais subdividido: reduzido a bits.
À medida que as mulheres descem na escala da desejabilidade sexual supõe-se que se tornam mais estúpidas, menos interessantes, Jane Campbell.
Isso é assim, é obvio […] Penso que isso faz parte deste negócio, Sean Young.
O problema é que essa mulher não se parece comigo. Ela não é quem eu pensava que era, Ursula Le Guin.
Era como se Alice tivesse sido considerada culpada por viver demasiado tempo, Vivian Gornick.
Numa recente entrevista dada por Sean Young, a famosa Rachael do “Blade Runner” (1982) de Ridley Scott, notava que “os homens envelhecem como montanhas, mas continuam a terem papéis. Mas assim que uma mulher começa a ficar um pouco mais velha, deixa de ter essa segurança. […] Isso é assim, é obvio […] Penso que isso faz parte deste negócio. As pessoas querem ver lindas raparigas mais novas nos papéis.”
Quando a inglesa Jane Campbell (1942 -) publicou pela primeira vez uma obra de ficção, Cat Brushing, tinha oitenta anos (2022). Uma série de 13 contos com diferentes heroínas, todas mulheres idosas com os seus variados problemas, que a crítica não se tem cansado de aclamar.
Numa das suas últimas intervenções públicas, Campbell disse o seguinte:
“Sendo eu própria uma mulher idosa, é fácil ficar zangada com a difamação vulgar com que as mulheres mais velhas são tratadas pelos mídia, por instituições de assistência social, pelo corpo médico e, às vezes, até pelos membros das próprias famílias.
À medida que as mulheres descem na escala da desejabilidade sexual - à medida que desenvolvem uma forma diferente, andam com mais dificuldade e perdem o brilho da juventude -, supõe-se que se tornam mais estúpidas, menos interessantes, menos merecedoras de tudo o que desejavam antes "da queda"; que, em essência, elas se tornam não-mulheres e, mais significativamente, homogéneas.
Tenho vindo a apreciar ao longo do tempo toda aquela literatura que oferece representações maravilhosamente variadas de mulheres idosas. Ela é uma boa companhia. São peças que expõem a crueldade infligida às mulheres mais velhas e que me impressionam pela capacidade de procurar a essência da criatura complexa que ainda existe dentro do corpo desgastado. Dentro de todos eles está a luta pela sua independência.”
Ursula K. Le Guin (1929 – 2018) é uma muito conceituada e apreciada novelista americana com uma extensa e inovadora (ficção científica feminista, The Left Hand of Darkness, - A Mão Esquerda das Trevas) obra. Do seu livro póstumo, Ursula K Le Guin: Conversations on Writing, (Dizer é ouvir. Sobre escrever, ler e imaginação), pode-se ler:
“Isto é um novo sinal ou estou a transformar-ma num dálmata? Até que ponto uma prega pode alargar sem se tornar um joelho? Não quero ver, não quero saber.
E ainda assim eu olho para homens e mulheres da minha idade, ou mais velhos, e as suas cabeças e nós dos dedos e manchas e inchaços, embora variados e interessantes, não afetam o que eu penso deles. Algumas dessas pessoas parecem-me muito bonitas, outras não. […] Tem a ver com os ossos. Tem a ver com quem é essa pessoa. Com clareza crescente, tem a ver com o que os rostos e corpos retorcidos transmitem.
Sei o que mais me preocupa quando me olho ao espelho e vejo uma mulher mais velha sem cintura. Não é o facto de eu ter perdido a beleza: nunca tive o suficiente para ficar obcecada por ela. O problema é que essa mulher não se parece comigo. Ela não é quem eu pensava que era.”
Vivian Gornick (1935 -), outra grande escritora feminista americana, escreveu em 2015, The Odd Woman and the City, (A mulher singular e a cidade):
“Ela necessitava desesperadamente de um interlocutor que soubesse quem ela era, e eu necessitava desesperadamente continuar a prestar tributo a uma autora que um dia significara tanto para mim. [...]
Mas ninguém se importava com a essência humana de Alice. Cada vez que ia visitá-la, via-a muito mais cansada do que da vez anterior. É verdade que ela tinha mais de oitenta e cinco anos e vivia à base de analgésicos; o cansaço, porém, era sobretudo espiritual, não do corpo. Quando já levava alguns meses a viver na residência, sempre que ia visitá-la encontrava-a caída na cadeira, tão exausta que dava medo vê-la. Ainda assim, sentava-me à sua frente e, sem sequer perguntar como é que ela estava, eu começava a falar. Minutos depois de ouvir a minha voz, o seu rosto, o seu corpo, as suas mãos começaram a voltar à vida. De imediato estávamos a conversar sobre livros, das manchetes do dia e de conhecidos mútuos, tão animadamente como sempre, embora sem discutir. Acho que nunca esquecerei a visão dessa transformação milagrosa. Ver como a atividade de uma mente brilhante trazia de volta à vida uma pessoa meio morta era testemunhar uma metamorfose que sempre me pareceu como nenhuma outra. [...]
Não, o que realmente importava era que Alice passara a vida a lutar para se converter num ser humano consciente cuja maior alegria era usar o seu cérebro; e agora estava presa num ambiente criado para ignorar - ou melhor, para descartar - esse esforço constante e valente, quando a única coisa que era devida a um ser humano - sim, do começo ao fim – era que se honrasse esse esforço. [...]
A única coisa que agora importava era que - exceto quando ela estava a ler - a minha amiga tinha sido relegada para um exílio da mente que equivalia a um encarceramento. Era como se Alice tivesse sido considerada culpada por viver demasiado tempo.”
Grandes escritoras como estas sabem perfeitamente que estão a escrever não a realidade, mas sobre a realidade, e também sabem de onde vem essa realidade sobre a qual estão a escrever.
É um facto histórico que se prolonga até hoje que a primeira de todas as divisões da sociedade em classes é a que resultou da divisão de trabalho entre os dois sexos e que se traduz na submissão de um sexo ao outro. É em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884) que se pode ler:
“O casamento conjugal não entra, pois, na história como a reconciliação do homem e da mulher e muito menos ainda como a forma suprema do casamento. Pelo contrário: surge como sujeição de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os dois sexos, desconhecido até então em toda a pré-história. Num velho manuscrito inédito, composto por Marx e por mim em 1846 [Ideologia Alemã] encontro estas linhas […” a divisão do trabalho não era primitivamente mais do que a divisão do trabalho no ato sexual” …]. Às quais posso agora acrescentar: A primeira oposição de classe que se manifesta na história coincide com o antagonismo entre o homem e a mulher no casamento conjugal, e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. O casamento conjugal foi um grande progresso histórico, mas ao mesmo tempo abre, ao lado da escravatura e da propriedade privada, essa época que se prolonga até aos nossos dias, em que cada progresso é simultaneamente um relativo passo atrás, pois que o bem-estar e o desenvolvimento de uns são obtidos pelo sofrimento e o recalcamento de outros. O casamento conjugal é a forma-célula da sociedade civilizada, forma a partir da qual já podemos estudar a natureza dos antagonismos e das contradições que aí se desenvolvem plenamente”.
Seguem-se curtas e incisivas entrevistas com os principais intérpretes, encenador e produtor, que me escuso de transcrever, remetendo para a notícia em questão.
Relembro que, sem ser a propósito, escrevi a 8 de março de 2017 um artigo
que aqui vos deixo, julgo que a propósito:
Corações cheios de música
“Se não fosse eu, a Kerstin (filha-neta mais velha com 19 anos) hoje já não estaria viva. Não sou um monstro. Podia tê-los matado a todos. E assim não teriam ficado pistas. Ninguém me teria descoberto”, J. Fritzl.
O importante desta declaração é a premissa de que o pai tinha o poder de usufruir sexualmente dos filhos e até de os matar, e que só não o fizera por ser bondoso. Tal qual um “pai primitivo”.
A Áustria da Música no Coração não é a Áustria dos austríacos, mas a imagem mítica que Hollywood faz da Áustria.
“Penis normalis, duas vezes por dia”.
Em abril de 2008, a Áustria foi sacudida pelo que ficou conhecido como o “caso Fritzl” (https://www.youtube.com/watch?v=SdSgQY7fF9w), quando Elisabeth Fritzl, uma mulher de 42 anos, contou à polícia de Amstetten, que há 24 anos se encontrava cativa na cave da residência do seu pai, Josef Fritzl, onde era abusada física e sexualmente por ele.
Desse relacionamento tinha tido oito filhos e um aborto. Que quatro dos seus filhos viviam também prisioneiros na cave, e que os outros três foram criados na parte de cima da casa pelos pais dela, Josef e Rosemarie Fritzl,
O pai começara a abusar dela aos 11 anos, até que aos 18 anos a aprisionou na cave. Um dos filhos morrera três dias após o parto sem qualquer tipo de assistência médica; o seu corpo foi incinerado por Josef na sua propriedade. Outro tinha já problemas ao andar, pois crescera mais do que a altura do teto da cave.
Na sua defesa, Fritzl disse que o que queria era proteger a filha dos perigos do mundo exterior, pois ela começara a chegar tarde a casa, andava à procura de emprego, possivelmente namoraria com um drogado e já não obedecia às regras da casa.
Resolveu então, construir um local onde a pudesse instalar com todas as comodidades, com frigorífico, televisão. Nunca a violara, fora sempre sexo consentido. Tratara-a sempre bem, a ela e aos filhos, levava-lhes flores, livros, algumas vezes por semana comia com eles.
E acrescentou:
“Se não fosse eu, a Kerstin (filha-neta mais velha com 19 anos) hoje já não estaria viva. Não sou um monstro. Podia tê-los matado a todos. E assim não teriam ficado pistas. Ninguém me teria descoberto”.
O importante desta declaração é a premissa de que o pai tinha o poder de usufruir sexualmente dos filhos e até de os matar, e que só não o fizera por ser bondoso. Tal qual um “pai primitivo”. (1)
Traços de atitudes semelhantes continuam a serem encontrados mesmo nos pais mais ‘normais’: subitamente, um pai amável explode convicto que os seus filhos lhe devem tudo, começando pela sua própria existência, pelo que são seus devedores absolutos, sendo por isso o seu poder sobre eles ilimitado, o que lhe dá o direito de fazer o que quiser a fim de cuidar deles.
Não podemos cometer o erro de acusar de igual forma a autoridade patriarcal pelas monstruosidades dos Fritzles deste mundo, como também não podemos querer a erradicação da Lei do Pai.
A atitude de Fritzl não é nem a componente de uma atitude paternal ‘normal’, na qual a medida do sucesso é a capacidade de deixar o seu filho tornar-se livre, permitir-lhe movimentar-se no mundo exterior, nem sinal do seu fracasso no sentido em que o vazio da autoridade paternal ‘normal’ venha a ser suprimida e preenchida pela figura do “pai primitivo” omnipotente.
Em sua defesa, Fritzl sugeriu também que a disciplina da educação nazi a que fora sujeito o tivesse influenciado sobre o que era decência e bom comportamento.
Evidentemente, surgiram logo interpretações visando incriminar a particularidade do espírito de disciplina e ordem austríacos, numa tentativa de conservar e inocentar a paternidade enquanto tal, recusando-se a ver a potencialidade de atos semelhantes na própria ideia de autoridade paternal.
A violência excessiva do “pai primitivo” assume em cada cultura certos traços específicos, mas daí a culpar a história da Áustria ou o seu gosto vincado de ordem pela monstruosidade do seu comportamento é algo difícil de aceitar como explicação.
Pode-se, contudo, elaborar um pouco sobre este caráter ‘austríaco’, recorrendo a uma sua respeitável família, a Von Trapp, imortalizada na Música no Coração.
Família que igualmente vivia num castelo fechado, sob a benevolente autoridade militar do pai que protegia da maldade do mundo exterior aqueles que tem à sua guarda, e onde conviviam três gerações (o pai, Maria, como Elisabeth, e os filhos).
Mas, atenção: o imaginário que vamos encontrar não é o austríaco, mas o de Hollywood, como representante da cultura ocidental. A Áustria da Música no Coração não é a Áustria dos austríacos, mas a imagem mítica que Hollywood faz da Áustria.
Curiosamente, ao longo dos tempos que se lhe seguiram, os próprios austríacos começaram a ‘fazer de austríacos’, como se se identificassem com a imagem que Hollywood deles sugeria.
Na versão Fritzl, as crianças aterradas reúnem-se à volta da mãe, receando a chegada do pai, enquanto a mãe as acalma com uma canção sobre “algumas das suas coisas preferidas”.
Na versão Trapp, as crianças da cave são convidadas a título excecional para uma receção na parte de cima da casa, onde, quando chega a hora de se irem deitar, cantam, à laia de despedida, a canção Aufwiedersehen Goodbye, saindo uma a uma da sala.
A casa dos Fritzl era uma cave que não dava para as colinas, e o som era o da música do coração.
Há ainda a considerar o importante elemento sagrado sempre presente na Música no Coração, que se verifica logo no tema de abertura do filme com o coro das freiras na procura de uma solução:
“Que fazer com um problema como Maria?”
A solução proposta pela Madre Superiora, perante a inquietação sexual experimentada por Maria é dada pela canção “Escala a Montanha”, ou seja:
Arrisca! Não te deixes tolher por receios mesquinhos!
Do personagem do qual esperaríamos um sermão em defesa da abstinência e da renúncia, vem antes um apelo à fidelidade do sujeito ao seu desejo.
O mesmo argumento poderia ter sido usado pelo pároco de Fritzl após este lhe ter confessado o seu desejo apaixonado em aprisionar e violar a filha:
“Escala a montanha”.
Finalmente, aquele episódio em que o Barão fica furioso por ver os seus filhos pendurados em árvores e todos sujos. Autoritariamente repreende-os.
Quando mais tarde chega a casa e ouve os filhos e Maria a cantarem em coro “As Colinas Estão Vivas” (“The Hills are Alive”) fica todo comovido, acabando também por se juntar ao coro, mostrando afinal que aquelas ordens disciplinares militares não passavam de uma máscara que encobria um homem terno e delicado.
Tal como Fritzl, que embora usasse o seu poder para impor o seu sonho, desejava construir a sua “música no coração” sentado no sofá a ler histórias dos livros que levava para os seus filhos netos. Como disse quando foi preso: “Arruinaram-me a vida”. Nem todos podendo ter a sua cave, habitam castelos.
A economia é demasiado importante para ser entregue aos economistas, Joan Violet Robinson.
A culpa da inflação, ou do seu agravamento e descontrole,tem que ver como o aumento dos salários, voz dos especialistas que o povo repete.
Os trabalhadores não poderão receber mais do que o “necessário para lhes permitir […] viver e perpetuar a raça, sem aumentar nem diminuir”, David Ricardo.
O lucro, enquanto objetivo económico, é uma condicionante e não um determinante da capacidade de adaptação, inovação e evolução humanas, B. Lonergan.
Por princípio, os filósofos escrevem sempre sobre a realidade, embora muitas vezes o possam fazer de forma hermética e sobre coisas que aparentemente não têm que ver com o que se está a passar, o que os torna ao nosso olhar uns chatos que falam incompreensivelmente sobre coisas que não nos interessam.
Por exemplo, quando Lacan nos vem dizer que “Realidade é a realidade social dos indivíduos efetivos implicados em interações e nos processos produtivos”, e que o “Real é a inexorável e abstrata lógica espetral do capital determinando o que ocorre na realidade social”, o que ele está a fazer é a tentar através de um processo intelectual aceder à generalização de um problemaque, embora sendo particular, se põe à sociedade.
Interpretemos exemplificando o que ele nos quer dizer: em Portugal (não só) temos assistido à degradação constante das condições de vida das pessoas, ao alargar da miséria, à incerteza em todas as suas vertentes sobre o indivíduo e sobre o estado social, ao aumento da desigualdade, à culpabilização e ao ataque aos mais desprotegidos. Isto é a Realidade. Por outro lado, temos os relatórios económicos em que todos eles são unânimes a dizerem que a situação económica do país é “financeiramente sólida”. Isto é o Real.
E é isto que permite que alguns economistas e comentadores políticos que pontuam nos meios de comunicação social, quando confrontados sobre o estado da economia face ao aumento constante da desigualdade e do número de pobres, nos digam, com toda a tranquilidade, que “a economia está bem, o país é que está mal”.
O que eles nos estão a dizer é que o que conta não é a Realidade, o que conta é a situação do capital, porque isso é que é o Real. (1)
Não é, pois, de espantar que como resultado, os corolários dessa vulgata amplamente transmitida e repetida venham a ser tranquilamente aceites pela população. Como é o caso de que a culpa da inflação, ou do seu agravamento e descontrole, tem que ver como o aumento dos salários.
Desçamos à realidade. Vejamos alguns exemplos: será que o aumento do preço dos medicamentos tem sido motivado pelo aumento dos salários dos farmacêuticos? O aumento dos preços dos bilhetes do transporte aéreo foi motivado pelos aumentos dos salários das assistentes de bordo? O aumento dos preços das unidades hoteleiras tem sido motivado pelo aumento dos salários das empregadas de limpeza?
Exemplos como estes podem-se repetir pelos diversos setores económicos, particularmente naqueles em que a inflação tem crescido mais, o que curiosamente são os que mais nos afetam: eletricidade, alimentação e habitação.
E as perguntas são sempre as mesmas: que aumentos de custo sofreram as empresas para justificarem os enormes aumentos de preços? Estão os grupos dos donos dos prédios a pagarem muito mais aos porteiros, ou ao pessoal da limpeza, ou da segurança? Etc.
Outro exemplo é o relacionado com aquela voz corrente que nos conta que. as empresas, à medida que os preços sobem, se limitam a passá-los para os consumidores. Se fosse só assim, então não se perceberia porque é que os seus lucros aumentam. O que significa que elas não estão só a passar os aumentos de preços para os consumidores. Os preços estão a subir muito mais depressa que os custos.
Esta diferente perceção sobre o estado das coisas (chamem-lhe ideologia, artimanha, luta de classes, ou o que seja) há muito que vem sendo utilizada particularmente pelos economistas, mormente a partir da Revolução Industrial. Foram eles que nos deram a “conhecer” uma série de leis que entendiam serem tão válidas para a sociedade e para a economia como as leis dos cientistas para o mundo físico. São as chamadas “leis naturais” da Economia. Fixas, eternas. Não discutíveis. Vejamos algumas.
Adam Smith vem ligar o bem-estar da sociedade à liberdade do indivíduo (1776). Se dermos a todos a maior liberdade, se os deixarmos ganharem o mais que puderem, se apelarmos para que cada pessoa procure apenas o seu interesse individual, toda a sociedade melhorará, pois, a oferta de qualquer artigo acabará por se ajustar à procura pelo preço certo.
Mas para que isso aconteça não se deve interferir nesta lei natural, quer seja através da regulamentação dos horários ou da fixação dos salários dos trabalhadores, até porque seria inútil. O monopólio dos capitalistas para elevarem os preços e dos sindicatos dos trabalhadores para elevarem os salários, constituem violações da lei natural. A concorrência a todos os níveis é a ordem natural: mantém os preços baixos e assegura o êxito dos fortes e eficientes, livrando-se ao mesmo tempo dos fracos e ineficientes. O governo, servirá apenas para preservar a paz, proteger a propriedade.
Vai ser em resposta a William Godwin que dizia (1793) que embora todos os governos fossem um mal, o progresso era, no entanto, possível e a humanidade poderia chegar à felicidade pelo uso da razão, que Thomas Malthus aparece a afirmar (1798) que o progresso no destino da humanidade era impossível, e que, portanto, todos deveríamos viver contentes com o que havia (ou seja, não tentássemos fazer uma revolução como a da França).
Para ele, as “causas profundas” da miséria da humanidade não estavam nas instituições, mas no facto de a população aumentar mais depressa que o alimento para a manter viva. A razão pela qual as classes trabalhadoras eram pobres não residia nos lucros excessivos (razão humana) mas no facto da população aumentar mais depressa do que a subsistência (lei natural).
“Nada se pode fazer para melhorar a situação dos pobres. É, sem dúvida, um pensamento muito acabrunhador, o de que o grande obstáculo a qualquer melhoria extraordinária da sociedade seja uma natureza impossível de superar.”
Na segunda edição do seu livro (1803), Malthus propunha uma solução: o “controle moral” para obviar à “miséria e vícios”. Greves, revoluções, caridade, regulamentações governamentais, nada disso poderia ajudar os pobres na sua miséria – eles é que deviam de ser responsabilizados por se reproduzirem tão rapidamente. Impeça-se que se casem tão cedo. Pratiquem o “controle moral” – não tenham famílias grandes – e assim poderão ajudarem-se a si próprios. Em conclusão, os pobres são os únicos culpados pela sua pobreza.
Uma outra “lei natural” era a que ficou conhecida como a “lei férrea dos salários” que os trabalhadores ganhavam. Sabia-se já que o salário não era sempre o mesmo, e que tal dependia não só do trabalhador em questão e do acordo que fizera com o empregador. Que o empregador escolheria os que trabalhavam mais por menos salário. Os trabalhadores eram assim obrigados a reduzirem o seu preço mediante a concorrência de outros trabalhadores.
O economista David Ricardo vai demonstrar (1817) que o “preço do mercado” de trabalho tende a conformar-se com o “preço natural”, uma vez que quando o preço do mercado é alto e os trabalhadores recebem mais do que o suficiente para a manutenção das suas famílias, isso faz com que a tendência seja para o aumento do tamanho das famílias. Ora isso aumentará o número de trabalhadores, que consequentemente levará a uma baixa de salários. Quando o preço do mercado é baixo, os trabalhadores recebem menos do que o necessário para manterem as famílias, o seu número acaba por se reduzir, o que conduzirá a um aumento dos salários.
Segundo esta “lei de salários”, Ricardo conclui que com o tempo, os trabalhadores não poderão receber mais do que o “necessário para lhes permitir […] viver e perpetuar a raça, sem aumentar nem diminuir”.
Posteriormente, a quando da tentativa dos trabalhadores para diminuírem as horas de trabalho, e perante a tremenda oposição dos industriais que previam que se tal viesse a ser aprovado conduziria à ruína, surge o economista Nassau Senior com a doutrina (1844) segundo a qual as horas não podiam ser mais reduzidas, porquanto o lucro obtido pelo empregador vinha da última hora de trabalho, pelo que se se a retirasse, desapareceria o lucro.
“Sob a lei atual, nenhuma fábrica que emprega pessoas com menos de 18 anos pode trabalhar mais de 12 horas por dia nos cinco dias da semana e 9 horas aos sábados. Ora, a análise seguinte mostrará que numa fábrica sob tal regime o lucro líquido é obtido na última hora”.
Esta teoria da “última hora” foi empregada para combater os pedidos a favor de um menor dia de trabalho.
Outra teoria de Nassau, a doutrina do “fundo de salário”, foi utilizada para combater os pedidos de aumento de salário. Segundo ele, era “pura tolice” os sindicatos e os trabalhadores fazerem greve a favor de aumentos de salário, e isto porque o pagamento dos salários era retirado de um certo fundo posto de lado exatamente para isso. Assim, a menos que o fundo de salários aumentasse ou o número de trabalhadores diminuísse, não havia qualquer outra hipótese para as revindicações dos trabalhadores.
“É uma questão de divisão. Reclama-se que o quociente é muito pequeno. Bem, então, quais são as formas de torná-lo maior? Duas. Aumente-se o dividendo, permanecendo o divisor o mesmo; reduza-se o divisor, permanecendo o dividendo o mesmo, e o quociente será maior.”
Mas Nassau propunha uma solução: o aumento do fundo de salários. Isso seria possível “libertando a indústria da massa de restrições, proibições e tarifas protetoras, com as quais a Legislatura por vezes, numa ignorância bem-intencionada, tem procurado esmagar ou dirigir mal os seus esforços.”
Ou seja, deixem os negócios em paz e o resultado será mais dinheiro no fundo reservado aos salários. Velha aspiração sempre viva.
É também assim que quase um século depois da lei de 1816 ter proibido a contratação de trabalhadores com menos de 9 anos e da celeuma sobre a liberdade de contratação, o Supremo Tribunal dos EUA declarou em 1905 inconstitucional uma lei do estado de Nova Iorque que limitava a 10 horas por dia o trabalho dos padeiros, invocando que tal lei “privava os padeiros da liberdade para poderem trabalhar mais horas se assim quisessem”. A sempre presente, oportuna e nunca esquecida tentativa para fazer o tempo andar para trás, para o mais atrás possível.
Também há quase um século, em 1931, F. A. von Hayek teorizou que para se evitar que os lucros caíssem, se deveria reduzir a assistência social bem como os salários pagos:
“Certos tipos de ação estatal, causando um desvio na procura dos bens do produtor para o consumidor, podem provocar um retraimento na estrutura capitalista da produção, e, portanto, uma estagnação prolongada […] A concessão de crédito aos consumidores, recentemente defendida como cura para a depressão, teria na verdade um efeito contrário; um aumento relativo na procura de bens do consumidor apenas pioraria a situação.”
Ou seja, a restauração do lucro deve ser feita através da redução da capacidade aquisitiva das massas, ou seja, através da redução dos salários. O tal de “empobrecimento”, evidentemente das massas. Hayek, o profeta.
Mas Hayek nota também que “Na moderna economia de troca, o industrial não produz com o objetivo de atender a uma certa procura – mesmo que use essa frase por vezes – mas na base dos cálculos de lucros.”
Sem dúvida a melhor definição do funcionamento do sistema económico em que vivemos. O que faz com que o conhecido e aclamado cronista americano Walter Lippmann, na sua crónica semanal do Herald Tribune de 13 de julho de 1934, nos resuma:
“Não adianta falar de recuperações nas atuais condições, a menos que os capitalistas, grandes e pequenos, comecem a investir em empresas com o objetivo de obter lucro. Não investirão para ganhar medalhas. Não o farão por patriotismo, ou como ato de serviço público. Só o farão se tiverem oportunidade de ganhar dinheiro. O sistema capitalista é assim. É assim que funciona”. (2) (3)
Não é, pois, de admirar que se desconfie cada vez mais dessa Economia Política e dos próceres que a vendem, que por várias vezes parece entrar em contradição com o que se passa na realidade.
Uma das vozes mais lúcidas a tentar opor-se a esta falsa dicotomia existente entre a sociedade como um todo e a economia, foi a do sacerdote católico canadiano, Bernard Lonergan, considerado por muitos como o mais importante filósofo do século XX.
Citando muito brevemente a sua Macroeconomic Dynamics: Na essay in Circulation Analysis:
“A renda excedente pura (equity) deve ser dirigida para elevar o padrão de vida de toda a sociedade. A razão porque assim não sucede, não é a razão simplista segundo os moralistas – ganância – mas a principal causa é a ignorância. A dinâmica da produção básica e da mais-valia, e das expansões básica e de mais-valia não é compreendida, nem formulada, nem ensinada. Quando as pessoas não entendem o que está a acontecer e o porquê, não se pode esperar que atuem com inteligência. Quando a inteligência se torna um espaço em branco, avança a primeira lei da natureza, a autopreservação. Não é principalmente a ganância, mas os esforços frenéticos de autopreservação que transformam a recessão em depressão, e a depressão em crash.”
Eis como Mendo Castro Henriques (Bernad Lonergan Uma Filosofia Para O Século XXI) explica as propostas económicas de Lonergan:
“[…] Sempre questionou a linha tradicional de demarcação entre disciplinas “objetivas” e “científicas”, como a Economia, e disciplinas “subjetivas” ou “nebulosas”, como a Ética. É corrente nas universidades existir um desfasamento entre o que é ensinado nas escolas de Economia e Gestão e nas de Estudos Filosóficos e teológicos. Ora Lonergan chama a atenção que “os teóricos morais sobre a economia são também economistas”; e se não forem “então temos de ter economistas melhores, uma lição repetida há cerca de duzentos anos”.
“[…] Lonergan salienta a necessidade de colaboração interdisciplinar. A teoria económica convencional não consegue ver o agente humano como um ‘sujeito consciente de forma empírica, inteligente e racional, e capaz de desenvolver a inteligência e a razoabilidade, como entidade que, mesmo do ponto de vista do método científico, tem de ser abordada de forma essencialmente diferente do estudo dos átomos, ou das plantes e animais’. Em vez disso, aborda a atividade económica como uma série de eventos previsíveis, da mesma forma que os físicos do século XIX abordavam eventos que são apenas estatisticamente prováveis. O resultado é que ‘[a] relação entre a ciência humana e a sua aplicação não será humana; será sub-humana’.
“[…] negar a possibilidade de uma nova ciência e de novos preceitos é negar a possibilidade de sobrevivência da democracia. Se a ciência e os valores não forem integrados ‘os mais bem educados tornam-se uma classe fechada sobre si própria sem tarefa proporcional à sua formação. O significado e os valores da vida humana empobrecem. A vontade de realizar afrouxa e estreita-se. Onde antes havia alegrias e tristeza, agora há apenas prazeres e dores. A cultura torna-se um buraco’.
Na pática o que Lonergan nos vem dizer é que medir os fluxos de dinheiro numa economia e a contrapartida real é a chave para compreender o que nela ocorre. Conseguir isso é mais crucial que a noção de mercado. Esse modo de medir a riqueza, ao definir uma linha entre o investimento e o seu resultado, medido em bens – satisfação dos consumidores – e não em avaliações de mercado sobre as indústrias, propriedade e tendências.
O lucro, enquanto objetivo económico, é uma condicionante e não um determinante da capacidade de adaptação, inovação e evolução humanas; é um erro excluir do processo económico as atividades que não produzem lucro e considerar exclusivos os pressupostos da microeconomia. O padrão de vida e a capacidade de adaptação humana é que devem de servir de padrão às decisões económicas e não a mensuração monetária da riqueza potencial e efetiva.
O lucro tem de ser compreendido não como critério da atividade económica, mas como envolvente do interesse da comunidade, ou seja, do bem comum.
O problema reside, pois, na ignorância dos mecanismos subjacentes ao processo económico por parte de todos os agentes e não apenas os especialistas.
Atente-se no conselho que a britânica Joan Robinson da Universidade de Cambridge deu aos economistas:
“A economia é demasiado importante para ser entregue aos economistas”.