O ciberespaço não é limitado pelas vossas fronteiras. O nosso é um mundo que está em todos os lugares e em nenhum lugar., J. P. Barlow.
If you are a citizen of the world, you are a citizen of nowhere, Theresa May.
Sou um cidadão do mundo, Diógenes.
A única coisa para a qual não há fronteiras é o capital.
Parece ter sido o japonês Tsugio Makimoto o primeiro a utilizar o termo “nomadismo digital” (1997), querendo com isso mostrar a forma como o trabalho remoto iria alterar o modo como o mundo do trabalho se iria apresentar no futuro, forçando os Estados a alterarem o contrato social.
Equipados com o seu portátil, ligações wi-fi, os “nómadas digitais” viam-se como cidadãos do mundo percorrendo-o livremente, como se a não existência de fronteiras electro magnéticas se projetasse automaticamente nas fronteiras físicas terrestres abolindo-as, quais migrantes de um passado longínquo que, acreditavam, se deslocavam para onde queriam e onde a vida fosse mais fácil ou possível.
Possuidores da ferramenta tecnológica (o computador portátil e o telemóvel esperto) e do conhecimento para a sua utilização, acreditando na promessa do ‘empreendorismo’, na liberdade dos mercados e do comércio livre propalado e incentivado pelo neoliberalismo, não viam qualquer razão para não os poder usar para melhorarem as suas vidas, escolhendo ir trabalhando nos locais em que as rendas de casa fossem sempre as mais baratas, o clima o mais favorável, a comida a melhor, etc.? Finalmente, filosófica e politicamente, a possibilidade da realização do velho sonho de Diógenes quando proclamava: “Sou um cidadão do mundo”.
Mas, surpresa, por mais web siminars, mais conferências e encontros que promovam, essa vida não se tem revelado fácil: desde o conseguir vistos de entrada para permanecer ou trabalhar nos países desejados, o pagamento de impostos, os seguros de saúde que cubram vários países, o encontrar trabalho local compatível com as regulamentações ou encontrar o trabalho internacional através das plataformas de comércio eletrónico como a Amazon, eBay ou Shopify que se mostram cada vez mais exigentes, reguladas e limitadas (“o sistema e os algoritmos da plataforma da Amazon são tão assustadoras quanto as alfândegas estatais e os processos de imigração”), etc.
Um pequeno exemplo:
Devido às praias, à internet rápida e ao baixo custo de vida, a Tailândia é um dos locais preferidos. No entanto, as regras de concessão de vistos e de proteção aos trabalhadores são rígidas, embora nem sempre aplicadas com rigor. Em 2018, o estado tailandês tornou-se consciente e desconfiado dos ‘nómadas digitais’. Em resposta à pergunta sobre se os ‘nómadas digitais’ podiam trabalhar na Tailândia sem uma autorização, eis o que um site de advogados tailandês (apresentando-se como 'Embaixada da Tailândia') respondeu:
“Para trabalhar no reino, um estrangeiro precisa de ter um visto apropriado, obter uma autorização de trabalho e pagar impostos' (Embaixada da Tailândia, 2020).”
E acrescentou:
“Mas o que é trabalho? Um nómada digital a trabalhar no seu laptop num espaço de trabalho conjunto (coworking), é considerado trabalho? Um empresário sentado no quarto do hotel a preparar-se para um seminário? Quando é que a agência de Autorização de Trabalho considera isso como trabalho? Esta é uma pergunta difícil de responder com um simples sim ou não. (Embaixada da Tailândia).”
Até hoje o problema não está resolvido, sujeito a demoradas e imprevisíveis negociações individuais.
“Sou muito crítico deste novo ‘precariato’, esta nova força de trabalho da atualidade das chamadas plataformas de partilha (sharing platforms) como a Uber e a Lyft como meio de vida […] Não estou convencido que a maior parte das pessoas queira ser nómada. Penso que é uma vida bastante feia, miserável e solitária. O problema é que a tecnologia nos está a empurrar para ela”.
Mas há sempre pintores da cor rosa.
Declaração da Independência do Ciberespaço:
A 8 de fevereiro de 1996, em Davos, Suíça, o poeta, compositor, ativista do ciberespaço e cofundador da Electronic Frontier Foundation, John Perry Barlow, deu a conhecer “A Declaração da Independência do Ciberespaço” dirigida aos Governos do Mundo Industrial:
“O espaço social global que estamos a construir deve ser independente das tiranias que nos tentam impor. Não têm qualquer direito moral para nos impor regras nem para nos manietarem por quaisquer métodos legalistas que temos razão para temer.”
E isto porque o “ciberespaço não é limitado pelas vossas fronteiras”.
“O nosso mundo é diferente. O ciberespaço consiste em transações, relacionamentos e o próprio pensamento, dispostos como uma onda estacionária na teia das nossas comunicações. O nosso é um mundo que está em todos os lugares e em nenhum lugar, mas não é onde os corpos vivem.
Estamos a criar um mundo em que todos podem entrar sem privilégios ou preconceitos de raça, poder econômico, força militar ou local de nascimento.
Estamos a criar um mundo onde qualquer pessoa, em qualquer lugar, pode expressar as suas crenças, por mais singulares que sejam, sem medo de ser coagida ao silêncio ou à conformidade.
Os vossos conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto não se aplicam a nós. Eles são todos baseados na matéria, e aqui não há matéria.
[…] Vocês têm pavor dos vossos próprios filhos, porque eles são nativos de um mundo no qual vocês serão sempre imigrantes. Porque vocês os receiam, vocês confiam às vossas burocracias as responsabilidades paternas que por cobardia não se ousam confrontar. No nosso mundo, todos os sentimentos e expressões da humanidade, do degradante ao angelical, são partes de um todo sem costura, a conversa global de bits. Não podemos separar o ar que sufoca do ar em que as asas batem.
Na China, Alemanha, França, Rússia, Singapura, Itália e Estados Unidos, vocês estão a tentar afastar o vírus da liberdade erguendo postos de polícia nas fronteiras do Ciberespaço. Eles podem conter o contágio por um curto período de tempo, mas não funcionarão num mundo que em breve será coberto por mídia de bits.
[…] Essas leis declarariam as ideias como outro produto industrial, não mais nobre que o ferro-gusa. No nosso mundo, tudo o que a mente humana fábricas a realizem. pode criar pode ser reproduzido e distribuído infinitamente sem nenhum custo. A transmissão global do pensamento não mais necessita que as vossas
Essas medidas cada vez mais hostis e coloniais colocam-nos na mesma posição daqueles antigos amantes da liberdade e da autodeterminação que tiveram que rejeitar as autoridades de potências distantes e desinformadas. Devemos declarar os nossos eus virtuais imunes à vossa soberania, mesmo que continuemos a consentir o vosso domínio sobre os nossos corpos. Espalhar-nos-emos pelo Planeta para que ninguém possa aprisionar os nossos pensamentos.
Criaremos uma civilização da Mente no Ciberespaço. Que seja mais humana e justa do que o mundo que os vossos governos fizeram antes.”
Esta Declaração expressa a convicção da existência efetiva de um espaço de trabalho virtual que, no limite, poderá dar origem ao aparecimento de um novo país “virtual”.
Para ele, a “nação-estado está ultrapassada – tem como base o pensamento do século XIX” que, nesta época em que já se utiliza um espaço de trabalho elétrico sem fronteiras, a cidadania e o imposto são limitações ao livre desenvolvimento humano.
Principado de Sealand:
Sem a pretensão do trabalho remoto sem fronteiras, mas como tentativa de resolução dos entraves postos pela cidadania e pelos impostos (e outros), o major inglês e radialista Paddy Roy Bates, ocupou em 1967 uma pequena plataforma (Roughs Tower) que fizera parte de uma fortificação no Mar do Norte construída durante a Segunda Guerra Mundial em águas internacionais a 12 quilómetros da costa de Suffolk, e que na altura era utilizada por uma estação de rádio pirata para transmissão de música pop. Passou a chamar a essa micronação, Principality of Sealand (Principado de Marterra), com constituição (monarquia constitucional), bandeira, hino, moeda e passaportes.
Depois de várias peripécias, só em 1987 é que o Reino Unido conseguiu incorporar essa plataforma no território inglês, quando aumentou as suas águas territoriais para 12 milhas náuticas.
O que era ser “romano”:
Quando a alguns dos habitantes de Roma lhes foi concedido passarem a ser conhecidos por ‘cidadãos de Roma’, ‘romanos’, tal não significava apenas um título honorífico para ostentarem perante os outros muitos habitantes da cidade (no século de Augusto, Roma tinha cerca de um milhão de habitantes, dos quais 320.000 cidadãos, sendo os restantes, libertos e escravos), mas principalmente, a garantia da distribuição mensal gratuita de alimentos a cargo do Estado, bem como a entrada gratuita nos muitos espetáculos. Citando Juvenal: “O povo romano está absorvido principalmente por duas coisas: os abastecimentos e os espectáculos”. Sucintamente: “Pão e circo”.
Relembremos que a organização do Estado Romano estava feita para assegurar que o Imperador vivesse dos impostos cobrados, deixando que as elites, senadores e outros, vivessem de rendas da terra.
Pelo que apenas o Exército e a Justiça Superior eram controlados e dirigidos pelo Estado. Quase todas as outras tarefas, nomeadamente a polícia, a manutenção de estradas, as fortificações, e especialmente a coleta de impostos, eram delegadas para a autoridade dos governos locais e municípios. Ou seja, um estado mínimo.
O principal dever dos municípios era serem agentes de extorsão em nome do império. A forma como o faziam, era problema deles. Podiam até serem tiranos.
Nesta sociedade, os grandes senhores viviam de rendas das suas propriedades. A “riqueza” encontrava-se essencialmente ligada à terra; no caso dos ricos, essa riqueza era transformada em dinheiro suficiente para alcançarem privilégios e poder.
Leiamos a descrição feita pela jovem esposa sobre a fortuna do casal oriundo de duas grandes famílias de Roma, Valerius Pinianus e Melaniaa Jovem, com propriedades em Espanha, Itália, Sicília e África:
“E mais uma vez arrecadámos uma enorme quantidade de ouro e doámo-la aos pobres e aos santos – 45.000 moedas de ouro. Quando entrei no átrio, pareceu-me que […] toda a casa se tornara resplandecente, como se estivesse em fogo, dado o imenso brilho que emanava da massa das moedas.”
Em comparação, os “romanos” na sua grande maioria não passavam de pobres que vivendo à custa da caridade do Estado eram menos miseráveis do que os outros que vivendo em Roma não eram “cidadãos de Roma”.
Em Roma, “em que as massas incluíam 150.000 homens desocupados, que o auxílio da assistência pública dispensava de procurar trabalho, e talvez outros tantos trabalhadores que dum extremo ao outro do ano todos os dias do meio do dia ficavam de braços cruzados e aos quais, todavia era negado o direito de despender na política a sua disponibilidade, os espectáculos ocupavam o tempo a esta multidão, cativavam-lhe as paixões, canalizavam-lhe os instintos, davam derivativo para a sua actividade.Os espectáculos foram a grande diversão para a desocupação dos seus súbditos, e por consequência o seguro instrumento do seu absolutismo. Rodeando-se de solicitude, sumindo neles somas fabulosas, cuidaram de assegurar o seu poder.”
Esses eram os tempos em que vivíamos.
Nota informativa para os novos romanos:
São já 16 os países europeus que oferecem uma versão de ‘visto de nómada digital’. Cada país tem seu próprio conjunto de condições, mas no geral os candidatos devem ser de fora do Espaço Económico Europeu e serem capazes de demonstrar que trabalham remotamente há pelo menos um ano. Devem ter um contrato de trabalho ou, no caso de serem freelance, comprovar que foram regularmente contratados por uma empresa fora do país.
Devem também demonstrar que ganharão o suficiente para serem autossuficientes. Na Croácia, por exemplo, os candidatos devem demonstrar poder ganhar pelo menos € 2.300 por mês, na Estónia e Grécia € 3.500, na Islândia € 7.100, e em Portugal apenas € 700.
Alguns países exigem que se tenha dinheiro no banco – € 5.500 no caso da República Checa – além da renda. Outros países também podem exigir um seguro de saúde privado.
As dinastias empresariais mais ricas da Alemanha fizeram fortunas auxiliando e incentivando o Terceiro Reich de Adolf Hitler.
São celebradas por transformarem a Alemanha numa potência económica, com prédios, fundações e prémios com os seus nomes.
O problema é que devido à interdependência anteriormente havida, a “desnazificação” foi light, não tocando em muitos quadros importantes, e até exportando-os.
Até 1957,77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi.
Ao que parece, tem sido como normal a tendência de uma vez alcançado o poder, se tentar conservá-lo o mais tempo possível, não só para si (tirania), mas por transmissão para os seus familiares (monarquia), ou para o conjunto de forças (classe) que tenha contribuído e permitido a conquista do poder e consequente perpetuação nele.
As prepotências e desmandos monárquicos no século XIX, a avidez e a gula das classes burguesas, deram origem à Primeira Guerra Mundial que resultou no desaparecimento das monarquias como fonte de poder, na vitória (embora ainda não consolidada) das burguesias e no aparecimento de regimes de substituição, que tendo todos começado por advogar um socialismo (para resolver o problema do controle das massas trabalhadoras), bifurcaram, quando as condições se extremaram, em comunismo e nazi-fascismo.
Na Europa Ocidental, face à falência dos regimes sociais-democratas para conseguirem controlar o sistema económico, os grandes magnatas acordam em permitir a governação por regimes nazis e fascistas.
É importante não esquecer que todos esses regimes funcionavam dentro da grande economia capitalista de então. A interdependência entre eles é quase total, quer ao nível de fornecimentos militares, quer ainda no respeitante aos campos económico, político, científico e cultural.
Pelo que, acabada a Segunda Guerra Mundial, perante os horrores cometidos e ‘encontrados’, teria de ser feita uma ‘deznazificação’ do Estado e da sociedade. O problema é que devido à interdependência anteriormente havida, a ‘desnazificação’ foi light, não tocando em muitos quadros importantes, e até importando-os.
Julgo não haver estudos completos (intencional?) sobre estas permanências e recolocações de nazis e seus colaboradores que se foram disseminando pelo mundo, dos EUA à URSS, da Argentina ao Japão. Assim, quando aparece uma obra abordando o tema, mesmo que muito parcial, é importante divulgá-la.
No seu novo livro, Nazi Billionaires, The Dark History of Germany’s Wealthiest Dynasties, o holandês David de Jong investiga como as dinastias empresariais mais ricas da Alemanha fizeram fortunas auxiliando e incentivando o Terceiro Reich de Adolf Hitler. Examina também como, oito décadas depois, elas ainda conseguem escapar a um exame minucioso mesmo numa nação que tanto fez para enfrentar esse seu passado.
Focando-se especialmente na Alemanha, De Jong vai debruçar-se em particular sobre as construtoras de automóveis, entre elas a BMW, a Volkswagen e a Porsche, responsáveis pelo milagre económico do pós-guerra e que contribuem com cerca de um décimo do produto interno bruto do país. Alguns exemplos:
O magnata do aço, carvão e armas Friedrich Flick foi condenado em Nuremberga por usar trabalho forçado e escravo, por financiar a SS e por saquear uma fábrica de aço. Libertado em 1960, tornou-se acionista controlador da Daimler-Benz, então a maior fabricante de automóveis da Alemanha. Em 1985, o Deutsche Bank comprou o conglomerado Flick, transformando os seus descendentes em bilionários.
Ferdinand Porsche começa por convencer Hitler a produzir o Volkswagen Beetle (Carocha). O seu filho, Ferry Porsche, ofereceu-se para a SS, tornou-se oficial e até hoje tem mentido sobre isso. Para projetar nos anos 50 e 60 o seu primeiro carro desportivo, rodeou-se de ex-membros da SS.
Talvez ninguém melhor se coadune com a pesquisa de De Jong que Günther Quandt e seu filho Herbert Quandt, ambos membros do partido nazi e patriarcas da família que agora domina o grupo BMW.
Quando Günther Quandt com 37 anos ficou viúvo, conheceu e casou-se com uma jovem de 17 anos, Magda Friedländer, com quem teve um filho. Após o divórcio, Magda casou-se com o ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels, que, como se sabe, por não quererem viver num mundo sem os ideais nazis e no qual tais ideais seriam criminalizados, assassinaram os seus seis filhos antes de ambos se suicidarem em 1945.
Após a guerra, Günther Quandt foi preso por suspeita de colaboração com os nazistas, acabando absolvido após alegar falsamente que tinha sido forçado por Goebbels a filiar-se no partido. Considerava ter sido “vítima de perseguição. Fui perseguido por Joseph Goebbels e pela minha ex-mulher.”
Herbert Herbert Quandt era responsável pelas fábricas de baterias em Berlim, onde trabalhavam milhares de trabalhadores forçados e escravizados, incluindo centenas de mulheres de campos de concentração. Ele adquiriu empresas roubadas de judeus na França e usou prisioneiros de guerra e trabalhadores forçados na sua propriedade privada. Chegou mesmo a construir um subcampo de concentração na Polônia ocupada pelos nazistas.
Quandt herdou a grande riqueza de seu pai e salvou a BMW da falência, tornando-se no maior acionista da empresa. Dois de seus filhos, Stefan Quandt e Susanne Klatten, são agora a família mais rica da Alemanha, com o controle quase majoritário do Grupo BMW, com grandes participações nas indústrias química e de tecnologia, com um património líquido de cerca de US$ 38 biliões.
Eles, juntamente com outras dinastias, com os seus prédios, fundações e prémios com os seus nomes, são celebrados por transformarem a Alemanha numa potência económica. E isto apesar de os esqueletos que têm nos seus armários não serem segredo. O que se passa é que também não são bem conhecidos ou contabilizados. Investigações profundas esbarram sempre em obstáculos.
Alguns, deram pequenos passos nessa direção. Os Quandts encomendaram em 2011 um estudo com a finalidade de analisar o seu passado. Relutantemente e aos poucos, foram feitas mudanças em sites corporativos, omitindo, contudo, detalhes importantes. Stefan Quandt ainda hoje atribui um prêmio anual aos mídia com o nome do seu pai e trabalha na sede com o nome do seu avô.
Numa entrevista que De Jong deu a David Smith a propósito do seu livro, diz:
“Particularmente as famílias que controlam a BMW e a Porsche, conduzem esse branqueamento, celebrando os sucessos comerciais dos seus fundadores ou salvadores, mas deixando de fora o facto de esses homens terem cometido crimes de guerra.
Eu nunca recebi resposta (às entrevistas que pedi), não sei se pelo facto de virem a ser totalmente transparentes sobre a história temerem com isso prejudicar os resultados financeiros ou os valores das ações das empresas, ou se apenas porque assentam todo o seu carisma atual nos sucessos que os pais e avós tiveram e, ao serem transparentes relativamente a eles, estariam a desmentir as suas próprias qualidades. Provavelmente é uma combinação de ambos.”
Ainda segundo De Jong, essas famílias tendem a invocar e a apoiar-se na noção de ‘culpa coletiva da Alemanha’. “Mas é muito perverso ver a Fundação BMW Herbert Quandt, que tem um modelo para inspirar liderança responsável, com o nome de um homem que, sim, salvou a BMW da falência em 1959, mas também projetou, construiu e desmantelou um subcampo de concentração na Polónia ocupada pelos nazis. No mínimo, o que podemos esperar dessas empresas e famílias é transparência histórica”.
O problema do fim dos regimes e o que fazer com os seus mentores, executantes, participantes, apoiantes, simpatizantes, tem de ser visto não só tendo como referência as classes mais ricas que os sustentaram, mas também as classes que o apoiaram e ainda todas as outras classes dos países não apoiantes, particularmente as classes no poder, dada a promíscua interligação existente entre algumas delas.
Por exemplo:
É sabido que em 1939 os nazis contavam com mais de duzentos mil seguidores e simpatizantes nos EUA, que a revista Time escolheu Hitler para figurar na sua capa, como “homem do ano 1938”, entendendo que devia ser o candidato ao Prémio Nobel da Paz, e que entre os seus admiradores se encontravam o magnate automobilístico Henry Ford e o aviador Charles Lindbergh.
E que na Grã-Bretanha, a abdicação em 1936 do rei Eduardo VIII, Duque de Windsor, ficou certamente mais a dever-se às suas simpatias para com Hitler e o regime nazi do que com o facto de pretender casar com uma divorciada americana. Eram notórias as simpatias da classe alta e dos aristocratas britânicos para com o regime nazi, o que talvez tenha levado Hitler a cometer o erro estratégico de acreditar que a implantação do seu regime na Grã-Bretanha seria relativamente fácil, não se preocupando muito em dificultar a retirada do exército britânico de Dunquerque.
E que ainda antes do fim da II Guerra já centenas de milhar de prisioneiros dos exércitos nazis capturados e para os quais não havia campos de internamento em quantidade suficiente, foram colocados nos navios de carga que regressavam vazios aos EUA depois de terem descarregado todo o material na Europa.
No total, 425.000 prisioneiros de guerra alemães foram trazidos para os EUA, e concentrados em 700 campos, espalhados por todo o território. Talvez com uma ou outra exceção, o tratamento que receberam foi bom, ao ponto de os guardas americanos negros terem feito notar que os prisioneiros podiam visitar restaurantes segregados que eles não podiam. A confraternização com a sociedade americana excedeu as espectativas. Alguns alemães encontraram durante esse tempo as suas futuras mulheres.
Em alguns dos campos, permitia-se a promoção da ideologia nazi. Mesmo perto do fim da guerra em 1945, oito dos vinte jornais editados nos campos, advogavam a ideologia nazi.
Na destruição e na confusão que se seguiu após o fim da II Guerra, a necessidade de se manter a funcionar um mínimo de administração pública nos países derrotados, e até na dificuldade de separar nazis de não nazis fez com que, intencionalmente ou não, muitos deles passassem despercebidos.
Na realidade, os aliados que ocuparam a República Federal da Alemanha (Estados Unidos, Reino Unido e França) condenaram apenas 6650 nazis, o que só por si era uma pequena parte do total dos membros do partido. E, as elites alemãs da época fizeram o resto do trabalho de encobrimento.
Um recente estudo denominado “Projeto Rosemburg” apresentado publicamente por Heiko Maas, atual ministro da Justiça alemão, veio confirmar que em 1957, 77% dos funcionários com cargos de responsabilidade no Ministério da Justiça alemão (ou seja, três em cada quatro) eram antigos membros do partido nazi. O que não deixa de ser até curioso, porquanto essa percentagem em 1957 era mais alta do que durante o Terceiro Reich.
Infelizmente, não existem iguais estudos feitos nos outros países europeus. Possivelmente, porque não deve ser importante.
Outros casos em que a ideologia instituída se foi mantendo, é o que aconteceu na Finlândia, Dinamarca e na Noruega, onde mesmo após a derrota das forças nazis, se continuou a praticar a eugenia durante várias décadas. Entre 1935 e 1976, 63.000 suecas, 57.000 finlandesas, 40.000 norueguesas e 6.000 dinamarquesas foram esterilizadas, primeiro em nome da preservação da “pureza nórdica” face aos ciganos tatere, e mais tarde na obediência a critérios económicos do trabalhismo.
E na Noruega, até 1956, para uniformização de raça, classe e religião, os jesuítas estiveram proibidos de entrar.
Os ovos da serpente continuam a eclodir. Não ligámos ao velho provérbio moçambicano: “Os jacarés matam-se quando são pequenos”. Optámos antes pelos dizeres do padre Cruz: “São todos bons rapazes”.
Notas:
# Sobre a caraterização dos vários regimes políticos, rever blog de 14 de março de 2018, “As máscaras das oligarquias”, desde Aristóteles que escreveu que “A democracia e a oligarquia podem fundir-se desde que os muitos pobres não ameacem os poucos ricos através de instituições representativas, e os poucos ricos não concentrem riqueza ao ponto dos muito pobres se tornarem politicamente explosivos”, até ao relatório do Citigroup Global Markets Inc. onde se pode ler que “As sociedades organizadas têm três formas para expropriar a riqueza […]: ou pela revogação dos direitos de propriedade, ou através do sistema de impostos, ou pela alteração das regras que afetam o equilíbrio entre o trabalho e o capital”, e onde também se conclui que a democracia é apenas uma das formas da política que os oligarcas utilizam para a defesa da sua riqueza.
# Sobre a permanência e ressurgimento de partidos nazis-fascistas refiro o blog de 37 de setembro de 2017, “Os ovos da serpente”, que embora desatualizado, mostra um panorama geral sobre o assunto.
# Sobre o que se continuou a fazer após o fim da Segunda Guerra, ver blog de 13 de março de 2019, “Hitler deu muito nas vistas
Todo o homem tem vícios, ou paixões, ou gostos perversos, mas o seu dever é escondê-los e mostrar-se apenas aos seus semelhantes como um ser regrado e bem equilibrado, Z. Z., sobre o Conde de Abranhos.
Tal é a tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da liberdade, Eça de Queiroz.
Servente é esse que serve, no neutro, pois é uma coisa, não uma verdadeira pessoa.
Abranhos vai satisfazer as suas necessidades lúbricas não com uma mulher, mas com uma coisa com a forma de mulher, forma que para ele não pode assumir mais do que uma realidade exterior.
«Todo o homem tem vícios, ou paixões, ou gostos perversos, mas o seu dever é escondê-los e mostrar-se apenas aos seus semelhantes como umser regrado e bem equilibrado.».
E aponta o exemplo com o que se passa com o consumo oculto, logo, «sem escrúpulos, depois de satisfeito o dever» que o Conde tinha por genebra. E isto designa o justo biógrafo como «Tocante exemplo de respeito pessoal e de submissão à decência.».
Nota Américo Pereira que tal se enquadra no modelo de «vícios privados, públicas virtudes», interrogando-se: “Em última análise que pode um modelo destes – que é o que existe de facto não apenas no governo, mas no comum da vida das sociedades – implicar concretamente?
[…] Segundo este modo ética e politicamente hipócrita de pensar e de agir, pode muito bem o magistrado ter passado a noite a abusar de alguém sobre quem tem poder tirânico e que, por tal, nunca se queixará, indo, depois, condenar alguém por ter feito precisamente o mesmo que ele tinha feito nessa mesma noite.
Segundo o modo exemplificado com o caso da indulgência alcoólica de Alípio, está tudo bem, porque se mantém o «respeito pessoal» como aparência, que é o que importa, bem como «a sub- missão à decência», segundo os mesmos parâmetros. Aparentemente, está tudo bem.
Ora, a vida em cidade não é fundamentalmente uma questão de aparências, mas de realidade concreta e indelével de actos. Emacto, o magistrado do exemplo e o Alípio do Eça são bestas éticas e políticas e a sua acção bestial sobre a cidade tem repercussões reais. A estas repercussões sempre se deu, desde que o mundo é minimamente civilizado, o nome de «justiça» – ou, então, «injustiça».
[…] O lugar textual em que se pode constatar o maior vigor da exemplificação que Eça nos dá, através da perversa pena do tonto ou diabólico biógrafo, é a parte em que se narra a relação de Alípio com a serviçal (uma dessas a quem não se dá pão). Trata-se de falar dos impulsos sexuais do futuro Conde, mas desses que, estando próximos de uma animalidade literalmente obscena, têm de ser escondidos.
Comecemos com a brilhante peça literária de Eça que faz a introdução a tão bela situação. Repare-se que o escrivão da vida do Conde trata os brutos impulsos de Alípio como «sentimentos ternos»:
«A mesma discrição usava no que se refere aos sentimentos ternos: seria incapaz de ir com condiscípulos, “numa troça”, a casa dessas Vénus vulgares que batem o lajedo com sapatos cambados e cujo leito é como uma praça pública. Mas se a natureza, nas suas iniludíveis exigências, que às vezes os eflúvios da Primavera ou a preguiçosa e tépida atmosfera do Outono tornam mais mordentes, o solicitasse, esperava pela noite, e, com sapatos de borracha para que nem lhe ouvissem os passos, procurava as vielas mais retiradas, onde, depois de ter pactuado com a paciente que lhe seria guardado absoluto segredo, sacrificava com seriedade no altar de Vénus Afrodite.».
Sendo «Vénus Afrodite» uma evidente hipérbole, tendo em conta o contexto lúbrico, podemos imaginar a fogosa «seriedade» com que este sacerdote da decência «sacrificava no altar». Encontramos, aqui, o modelo real de toda a diplomacia que se baseia no exercício da política como uma arte da ilusão, do engano, da decação da aparência.
[…] A sua aparência de «decência», baseada no total desrespeito pela humanidade daqueles com quem se relacionava e de quem não esperava obter útil acréscimo de poder, atinge o seu ponto apical com a acção junto de uma jovem serviçal, de seu nome Júlia, sem apelido. Eis […] a narrativa:
«A servente, uma Júlia, tinha 18 anos, era virgem, e, segundo me confessou o Conde, a sua beleza delicada e tocante fazia lembrar esses tipos de odaliscas que se encontram nos Keepsakes,recostadas em coxins, à sombra de arcadas mouriscas, acariciando com a ponta aguçada dos dedos ideais uma gazela familiar. Tanta beleza, tão nobre, numa condição tão rasteira a natureza compraz-se por vezes nestas irónicas antíteses – comoveram o coração de Alípio, e, uma noite em que a servente dormia na sua água-furtada, o jovem quintanista atreveu-se a subir, em pontas de pés, a admirar a forma delicada, mais bela na sua camisa de estopa do que as Vénus que os artistas florentinos recostavam em coxins de seda, com rouparias de damasco... Mas ao ranger perro da porta aservente acordou: ia gritar, assustada, quando Alípio, tapando-lhe a boca com a mão (sem a magoar, contudo) rogou, na balbuciação suplicante do desejo:
– Mas ouve, filha, ouve primeiro o que te vou dizer...
O que lhe disse? Quem sabe o que ao arvoredo diz o vento, o que dizem as alegres águas correntes às relvas dos prados, o que diz o rouxinol na sombra dos salgueiros, quando sobre a colina, serena e branca se ergue a Lua?
Desde essa noite, Alípio não trocaria aquela água-furtada, onde a caliça caía com a humidade, pelas salas de mármore do Vaticano! Mas, admirável exemplo da seriedade do seu espírito, mesmo ali, não esquecia o seu trabalho: levava os expositores, a sebenta, os apontamentos, e, depois do primeiro transporte amoroso, enquanto, como ave fatigada, a servente se aninhava na cova da enxerga, o nosso Alípio, à luz de uma vela de sebo, ia estudando as mais altas questões do Direito Penal – até que o Desejo, ferrão despótico, o arremessava de novo nos braços brancos que o sono enlanguescia. Delicioso idílio!
E quantas vezes, nos seus anos ilustres, quando ele fazia História, decerto lhe volveriam à memória, como um trecho de mal lembrada melodia, aqueles meses de Verão e de amor romântico, em que a bela Júlia e o jovem Alípio, abafando as suas risadas, faziam no quarto miserável, sob as telhas, a caça aos mosquitos nas paredes e aos percevejos nas frinchas... [...]
Quando Alípio, concluída a formatura, deixou Coimbra, Júlia estava no terceiro mês da sua gravidez. No entanto, conservou-lhe sempre uma estima terna, até que um companheiro, daí a tempos, lhe escreveu, dizendo que Júlia fora expulsa da respeitável casa das Barrosos (como de resto era justo) e que, achando-se sem emprego, formosa e com um filho a sustentar, se lançara na prostituição.
Desde então, o nosso grande Alípio só concebeu por ela desprezo e repulsão – porque naquele espírito nobre sempre houvera o horror das miseráveis, que, esquecendo o que devem ao respeito próprio, à sociedade, à família, ao filho, vão pedir ao indolente abandono do lupanar o pão que deveriam obter das severas fadigas do trabalho. Recusou mesmo, com indignação, a esmola que ela lhe mandara pedir, temendo que os poucos mil réis que lhe poderia remeter, fossem porventura contribuir para enfeitar e arrebicar uma nova sacerdotisa da Vénus das vielas. Tanto a esta alma severa e forte repudiavam as moles condescendências e as vãs piedades!».
Centrando-se apenas na onto-antropologia, eis o que a propósito deste episódio Américo Pereira expressa:
“O neutro pobre, a quem não se dá pão, não tem nome de família. Assim, a moça é referida apenas pelo nome dito próprio, mas talvez – e fica a dúvida, que, neste contexto, é legítima – tal nome isolado não seja diferente do nome que se atribui a uma cadela, que também não se considera que tenha família. Júlia surge como «servente». Ora, servente é esse que serve, no neutro, pois é uma coisa, não uma verdadeira pessoa. E é esta a atitude onto-antropológica que Alípio tem – e Eça denuncia – para com a moça.
A moça, para o futuro Conde, não mais é do que um ente que serve, uma coisa servidora. Pior, ética e politicamente, é uma coisa de que quem pode se serve. E o Abranhos pode. Abranhos vai satisfazer as suas necessidades lúbricas não com uma mulher, mas com uma coisa com a forma de mulher, forma que para ele não pode assumir mais do que uma realidade exterior. Às futuras Senhoras Abranhos, reconhecerá uma forma humana plena, ou não as desposaria, pois um Abranhos não desposa uma coisa serviçal. Mas a Júlia sem pão é vista como um capacho em que o homem roça o seu cio.
Diz o texto que tal coisa «era virgem». Aqui, parece que a humanidade de Júlia é recuperada, pois, de que serve a Alípio a virgindade da moça, se esta não for possuída – é o que está em causa, a posse – como humana?
No entanto, tal virgindade surge apenas como um troféu, como a pele curtida que um caçador de bichos exibe no salão para demonstrar politicamente uma virilidade que talvez não tenha para lá da curtição da pele. Que pode significar a virgindade da mocinha, para este ignóbil modelo de aspirante a oligarca, senão o prémio do exercício tirânico do poder sobre alguém, neste caso, a mocinha, amanhã um cidadão qualquer? Que finalidade outra que não seja a de impedir que outro seja o primeiro a usufruir – o termo é comercialmente propositado – de um bem irrenovável e que faz parte do tesouro a explorar daquela rapariga?
E não é sempre este o fim último do tirano ou do tirano falhado que é o oligarca, a posse como substituto ilusório de um poder sobre a vida e sobre a morte que nunca terá, mortal que é, mortal como Júlia e como ela futura poalha humana, salvo o que sobra de espírito, isto é, de amor em acto?
[…] Mas não fala o texto em comoção do coração de Alípio? Não é esta comoção provocada pela beleza e nobreza da moça? Não é este um sinal de humanidade, da humanidade de Alípio?
Sem dúvida que sim. Sem esta comoção, Alípio não se teria acercado da moça como o fez. Mas tal comoção não é semelhante à que Deus manifesta no fim de cada acto de criação genesíaca, que é de contemplação e de amor, antes se reduz a um olhar predador, que procura reduzir o outro e o bem que é a uma função de esse que assim olha.
Deus é um infinito poeta – mesmo que só em integral poema –, Abranhos é um parasita.
Algumas conclusões de Américo Pereira:
Umparadigma de ação de um grupo de seres humanos
“[…]um paradigma de acção, da acção de um grupo de seres humanos pertencentes a um certo país, que usam tal país para seu máximo e exclusivo benefício, sacrificando o que é o direito próprio dos demais habitantes de tal país, agindo como se de uma relação biológica de parasitismo se tratasse.
Como é fácil verificar, Alípio Abranhos é o modelo ontológico, precisamente onto-antropológico, do parasita humano, cuja única razão de existência consiste em agir com o fito de se engrandecer individualmente, sacrificando o bem de terceiros, assim destruindo esse mesmo bem como possibilidade, possibilidade que é sempre e só própria de esse a quem se refere. Este é o modelo paradigmático do parasitismo político, de raiz ética.”
A obra de Eça comoparadigma universal e precisamente temporal do tirano ou deste falhado como oligarca:
“Eça não estava, com a obra O Conde de Abra- nhos, a procurar escrever uma sátira política ou algo de identica- mente superficial. Com a ironia em que era mestre, constrói o mo- delo teórico do que é o paradigma universal e precisamente tem- poral do tirano ou deste falhado como oligarca. É isso que Alípio Abranhos é. E não se trata apenas de o referir a Portugal, em que é manifesta a sua adequação pormenorizada. O modelo é mesmo transnacional: é assim que o tirano funciona.
O que Eça mostra da acção do Abranhos quer na sua faceta mais violenta e não-refinada quer na sua faceta mais refinada, per- versa como a aproximação feita a Júlia, podemos encontrá-la já posta em linguagem mais próxima de uma teoria política quando Eça diz, referindo um momento luso, mas que pode ser transcen- dentalizado:
«Os políticos da geração moderna compreenderam e aceitaram a grave lição da Maria da Fonte. O sistema da violência foi abandonado como inútil, e começou, com êxito, o dúctil método da habilidade.».
Aos pobres nem o pão da violência se deve dar, pois esta, por meio da dor aguda que provoca, pode despertar esse que é sua ví- tima. O segredo do domínio sobre esses que fazem dos Alípios não-pobres reside em tratar aqueles como inicialmente se tratou Júlia, com aparente mansidão, para, uma vez dominados e des- florados, serem atirados para o caixote do lixo não apenas da fria história, mas da renegada humanidade.
Vamos junto do «operário» como se fossemos rezar. Prometa- mos-lhe o céu, um céu qualquer, tanto monta. Ele nos dará o seu pão e o seu ser. Nós lhe ficaremos com tudo, mesmo com o seu Deus. Nas palavras proféticas de Eça:
«[...] os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo com doçura: – Por aqui, se fazem fa- vor! Acreditem que é o bom caminho! [...] Tal é a tradição humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar um País, com o aplauso do cidadão e em nome da liberdade.».
A isto, devem esses a quem o pão é negado, dizer como Chur- chill frente a Hitler: «We shall never surrender!».”
EÇA DE QUEIROZ, O mandarim. Alves & Cª. O Conde de Abranhos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980.
Esta obra de Eça de Queiroz é como um tratado sobre a corrupção da ação dos aspirantes ao e dos detentores do poder que constituem a oligarquia portuguesa.
O poder, a sua obtenção e domínio não como mediação de serviço ao bem-comum, mas como instrumento exclusivo de promoção do seu detentor, Américo Pereira.
Não podemos dar ao operário o pão na terra, mas obrigando-o a cultivar a fé, preparamos-lhe no Céu banquetes de Luz e de Bem-aventurança! Conde d’Abranhos.
Nunca se esteve tão próximo de se substituir os incómodos «operários» sem direito a pão, coisas não-humanas, por máquinas – o processo já aí está.
Américo Pereira considera esta obra de Eça de Queiroz como um tratado sobre a corrupção: “corresponde à elaboração poética – em prosa – de um tratado sobre a corrupção da acção dos aspirantes ao e dos detentores do poder que constituem a oligarquia portuguesa, não uma oligarquia historicamente situada, mas uma oligarquia observada, analisada e exposta como paradigmática, isto é, modelar e perene. No entanto, com as devidas adaptações, é aplicável fora de fronteiras.”
Começa assim o seu ensaio:
“Podemos ler, após a eleição de Alípio Abranhos como deputado por Freixo de Espada à Cinta, que:
«Toda a família, de resto, gozava prodigiosamente este triunfo inesperado. Sua tia mesmo escreveu-lhe uma longa carta – que tenho diante de mim [é o fiel secretário-narrador quem fala] – em que a sua ternura divagava nos zigueza- gues, da grossa letra de ganchos. Pedia-lhe que nunca se esquecesse de que a ela devia a “grande posição que tinha” e prometia visitá-lo com seu marido, “não só para ver as belezas da Capital, mas para te admirar agora que estás no poleiro!”».
Este breve trecho da obra que aqui estudamos indica qual é o ponto fundamental a ter em conta para o seu tratamento, a partir de uma perspectiva ética e política, também antropológica: o poder, a sua obtenção e domínio não como mediação de serviço ao bem-comum, mas como instrumento exclusivo de promoção do seu detentor. Para que se possa entender o que esta obra diz no que respeita à relação do ser humano com o poder e seu exercício, tem de se perceber que tudo se centra nisso que é simbolizado pela expressão «estar no poleiro».
E o que é “o poleiro”?
É “[…] o atingimento de uma posição política que capacite o seu possuidor com um determinado tipo de poder, que consiste em arbitrariamente administrar isso que recai sob a alçada administrativa de alguém, alçada administrativa pública e estatal, de modo a poder, a partir de tal acção, colher o máximo benefício pessoal, ainda que com prejuízo do bem, dos bens, que se administram e de cuja boa realidade se deveria cuidar. É esta e apenas esta última a boa arte, a sábia arte de governar”.
O que é o bom governo?
“Desde a República de Platão […] que dispomos da noção que a ‘existência de um governo se justifica apenas como serviço universal ao bem-comum’, sendo que o magistrado/governante é esse que vive ‘exclusivamente’ para a promoção do bem da cidade ‘como um todo’, quer dizer, do bem ‘de cada um e de todos’ os seus constituintes humanos […].
“O governante que não obedecer a esta forma política fundamental é não apenas inútil à cidade, como lhe é verdadeiramente nocivo. Assim sendo, deixou de ser um real governante para passar a ser alguém que se transformou já em tirano ou que está na senda que a tal condição conduz. A razão é muito simples […] se não promove o bem da cidade, ao não o fazer, impede que o bem possível da cidade se realize através da sua acção – precisamente ‘inacção’, dado que não existe – e ocupando inutilmente a magistratura, impede que o bem da cidade possa ser nela introduzido através de um outro magistrado que, precisamente, sirva o bem da cidade.”
Mas, o que é o bem-comum para Abranhos?
Na carta que o seu antigo secretário particular e atual biógrafo, «Z. Z.» à Exma. Sr.ª Condessa d’Abranhos, louvando “as altíssimas qualidades humanas várias do seu biografado, Z. Z. mostra como o empenho de Abranhos pelo bem-comum se concretiza, no caso da citação que seguidamente apresentamos, relativamente ao trabalhador tipificado no «operário». Diz o sábio filósofo Abranhos: «Não podemos dar ao operário o pão na terra, mas obrigando-o a cultivar a fé, preparamos-lhe no Céu banquetes de Luz e de Bem-aventurança!» Terminada esta citação da sábia voz do deu mestre, sublinha Z. Z.: «E quem negará aí que não seja esta a verdadeira maneira de promover a felicidade das classes trabalhadoras?»
O que leva Américo Pereira a desvelar:
“O que se trata é […] do modo como a oligarquia que detém o poder sob a forma da magistratura, das magistraturas, a legislativa, a executiva e a judicial, actua, quando é esse mesmo bem-comum que está em causa.”
E explica mais detalhadamente:
“Nega-se o pão na terra ao trabalhador, substitui-se a manducação do pão – manducação que assim não há – pelo cultivo da fé, o que prepara, deste modo e com a ajuda dos magistrados, uma abundância celestial de Luz e Bem-aventurança. Nem no Céu o operário terá acesso ao pão: aí, há-de comer e beber luz e felicidade.”
A importância de “O pão nosso de cada dia”:
“Não é preciso ser-se erudito em coisas cristãs para se saber – e a geração de Eça sabia-o – que o pão desempenha um papel simbólico de tal modo fundamental neste ambiente cultural que é parte importantíssima na própria oração que o fundador do cristianismo deixou como legado directo seu aos seus possíveis seguidores, a oração do «Pai-nosso». Uma das principais invocações a tal «Pai» é no sentido propiciatório do acesso precisamente ao «pão». O pão, em ambientecristão, que, se é ainda o de Eça e da sua geração, é, sobretudo o do Alípio retratado neste texto, é algo de absolutamente fundamental na relação do ser humano com Deus e de cada ser humano com o outro ser humano.
Segundo a oração, a cada dia corresponde, tem de corresponder, um pão nosso. Para mais, o pão não é um qualquer, é «nosso». Esta atribuição de posse diz da realidade da relação do ser humano com o pão como quem proclama – e é o próprio Cristo quem o faz –que este pão é, por natureza própria, direito inalienável do «nós».
Independentemente de tudo, a criatura humana tem direito, por ser, apenas por ser, ao pão, que, ainda que venha de Deus, o Pai, não é de Deus, o Pai – que até não come pão –, mas, nosso. Não significa este pão algo como um direito inato à preguiça alimentada por Deus, mas o direito que a criatura humana tem ao sustento, ao seu provimento. Funciona como algo de analogável ao que é a «energia de activação» numa reacção química; ou, biologicamente, ao substracto químico cuja presença é necessária para que a vida possa prover à sua própria subsistência. Sem esse mínimo que é o «pão nosso de cada dia», nem sequer há forças para, como se diz e bem, «ganhar a vida». O pão é sinónimo de possibilidade de vida; a sua ausência é sinónimo não de possibilidade de morte, mas de real morte.
É o direito próprio e inalienável à vida, ao ser, que o «pão nosso de cada dia» representa.
A dimensão deste pão ultrapassa, assim, as dimensões que já invocámos, ética, política, mesmo antropológica em sentido mais superficial, para assumir a radicalidade de uma dimensão ontoló- gica, onto-antropológica.
O pão é o símbolo transcendental, isto é, universal e necessário, da possibilidade humana, em sentido ontológico de «possibilidade de o ser humano ser».
Retirar este pão é retirar este direito, o que significa condenar quem assim fica, sem pão, a não poder ser. Isso Deus nunca faz. Não só nunca faz, como manda que lhe lembrem que o não faça, no próprio «Pai nosso». Isso Alípio Abranhos julga-se, arrogantemente, na condição de não só poder, mas de dever fazer.”
Que ilação política se pode tirar?
“Ora, a simples frase que Z. Z. profere na carta como sendo da lavra de Abranhos opera esta divisão ontológica, onto-antropológica entre os que são os verdadeiros seres humanos, os que, como ele, comem pão, e os que não são verdadeiramente humanos, os ditos«operários»,condenados, por causa da sua não-humanidade, a viver de fé e de esperança na luz celeste. E só.”
“[…] A divisão onto-antropológica operada nesta simples e aparente- mente inocente frase de Alípio tem um gravíssimo alcance político. É sobre ela – vetusta, muito para lá da antiguidade do Conde – que se baseia todo o tristemente universalizado sentido antropocêntrico e etnocêntrico, que assume níveis políticos vários, mais ou menos profundos, mais ou menos largos. O limite terá sido alcançado – para quem escreve esta linhas, foi-o mesmo – com a separação onto-antropológica operada por Hitler entre os que elegeu como humanos e todos os outros. Sabemos o terrível preço que tal divi- são onto-antropológica com consequências políticas teve.”
O problema da repartição da riqueza:
“Vamos por partes: «não podemos dar ao operário o pão na terra». Porquê? Há, assim, tão pouco pão na terra de modo que não seja possível dar dele ao operário? O que encontramos aqui, para lá de todas as possíveis, mas indesejáveis, considerações ideológicas, é a questão da repartição da riqueza e da riqueza produzida, pois não se trata de dividir naturalmente seja o que for seja com quem for, mas de repartir o pão – coisa não natural – como o operário – também «coisa» não natural e que, no exemplo em causa, é quem operacionaliza a produção do pão ou nem «operário» seria, nem sequer mereceria o nome de «operário».
]…] Não se deve a um tonto ideólogo qualquer o sentido de que a riqueza só é merecida como posse por quem a use em favor do bem-comum. Esta posição é de santo Agostinho e é muito clara. Não só se pode como se deve dar o pão ao operário porque, sem o pão, não pode continuar a ser operário, isto é, a trabalhar para o bem-comum.
Pela mesma razão, se o governante for digno do nome que ostenta formalmente, torna-se operário do mesmo bem-comum e tem direito ao pão, não porque o ganhou, mas porque precisa dele para poder ser operário.
O pão não é uma recompensa, como habitualmente se pensa, mas uma condição de possibilidade de ser e de ser politicamente, isto é, em possível comunidade.”
O “poleiro” como acesso especial ao “pão”:
”[…] No concreto da acção, para o concreto da acção, Alípio propõe que se prive quem constrói grande parte do bem-comum do acesso ao que de melhor esse bem-comum tem. O bem, isso que o pão simboliza na relação com o bem, está reservado para ele e para quem ele, Alípio, quer, isto é, como coisa própria para um tirano ou para um super-oligarca e seus companheiros de oligarquia. Ora, é exactamente isto que a pertinente Tia e os impertinen- tes frequentadores da sua casa bem percebem quando invocam a excelsa figura política do «poleiro».
O poleiro significa o acesso especial ao «pão».”
Oligarcas são todos os que pensam e agem como Alípio:
[…] Todavia, o que os Alípios e seus sequazes deste mundo não percebem é que, ao alienarem o bem desse a quem pertence como possibilidade para o dar a um outro a quem não pertence como pos- sibilidade, estão a eliminar a possibilidade de maior bem, precisa- mente esse que quem foi espoliado criaria se não fosse espoliado
[…] O que Eça nos dá aqui é uma chave de leitura universal, a partir do ponto de vista da administração da riqueza, da acção dos oli- garcas portugueses. Basta aplicar. Faz mais do que isso: fornece um instrumento extraordinário para separar o trigo do joio no que diz respeito à grandeza quer humana quer política dos que tiveram altas responsabilidades em Portugal. Serão mesmo todos meros oligarcas? Os que pensam e agem como Alípio, sim.
Quanto à obrigação de “cultivar a fé”:
[…] “A fé não é coisa que se obrigue ou coisa a que se obrigue. Pensá-lo é, imediatamente, um acto de tirania. Neste âmbito, ti- rano é esse que pense que pode chegar junto de alguém e ordenar, com eficácia, a esse alguém que tenha fé. Tirano até talvez porque ele próprio tiranizado pela paixão da estupidez que o domina na forma da ilusão de que pode conseguir mais do que dar tal ordem, ou, o que é equivalente em termos de resultados, pensar que uma ordem sua, apenas porque é uma ordem sua, tem alguma necessária eficácia.
No entanto, fruto ou não de uma ilusão, o que Alípio afirma corresponde a um enunciado que decorre de e procura implementar uma estratégia de poder, na sequência da negação do acesso do «operário» ao pão. A estratégia consiste em substituir o pão a cujo acesso se interdita o «operário» pela fé. Saliente-se que a estratégia de manutenção do poder no seu geral só funciona integradamente, isto é, para que se possa recusar o pão a quem dele necessita, há que, primeiro, logicamente, e concomitantemente, de facto, obrigar essa pessoa a aceitar trocar o pão pela fé.”
“[…] remete-se a resolução satisfatória da questão do acesso à riqueza para o próprio Deus: “tens fome? – tem fé em Deus que ele te encherá da sua divina Luz, mas no céu, não aqui; aqui, mandamos nós e nós não damos pão e não podemos dar Luz, porque isso é mister divino.”.
[…] Por fim, não passamos em claro o modo profundamente desu- mano como a declaração é feita em seu todo: estes seres, que não são entes verdadeiramente humanos, tanto monta que morram à fome ou que vão ser felizes para outro mundo; o resultado é indi- ferente e irrelevante, desde que cumpram a sua função ancilar.
Esta é exactamente a atitude de Hitler perante os que desconsi- dera em sua humanidade, destinados a servir como mera função do bem dos verdadeiramente humanos, até terem utilidade, até pode- rem ser substituídos por máquinas, desumanamente limpas e puras.
Perguntamo-nos se não é este o ambiente sociológico, político, ético, antropológico em que se vive em nossa contemporaneidade. E respondemos; é, sim; nunca como agora a humanidade viveu em tão grande número esta precisa negação do acesso ao pão neces- sário; nunca se esteve tão próximo de se substituir os incómodos «operários» sem direito a pão, coisas não-humanas, por máquinas – o processo já aí está.”
E quanto à pobreza?
A posição do Conde de Abranhos, é conhecida: isolem-se os pobres em Casas de Recolhimento («Recolhimentos do trabalho»), conforme nos diz o biógrafo Z. Z.:
«Em nenhuma legislação humana conheço instituição tão justa, tão eficaz, tão profundamente cristã, tão benefica- mente social. É mesmo muito preferível ao Work-House inglês: ali o pobre conserva uma soma de independência que lhe faz supor a existência de uma soma de direitos: considera-se ainda um cidadão, tem pretensões ao respeito, à igualdade, à consideração: desobedece, revolta-se, foge do Work-House, recai no deboche, na fome, na desordem, no vício. Aqui não: o pobre fica prisioneiro da caridade! Perde o direito de ter fome. E as classes dirigentes, tendo a certeza de que os seus pobres lá estão, bem aferrolhados, com uma razoável enxerga e um caldo diário, podem dor- mir descansadas, sem receio de perturbações da ordem ou de revoltas do pauperismo.»
Américo Pereira vem lembrar que essa “magnífica instituição proposta por Abranhos irá ser encontrada com uma precisão de grande proximidade nos campos de concentração, vários, de vários países, mas, sobretudo, nos campos de concentração e de extermínio nazis.”
E explica que:
“Tal sucedeu porque o santo Conde tinha os pobres em con- dição ontológica infra-humana. Tal conclusão decorre do modo como supostamente seriam politicamente tratados: deixam de po- der pensar que são sujeito de direitos. Ora, um ser humano sem direitos próprios irredutíveis não é um ser humano. O que Alípio faz é negar a humanidade a esses que considera como sendo «po- bres». A radical estupidez ética, política e antropológica de Alípio transforma-o num tirano, pois tirano é precisamente esse que nega a humanidade dos que tiraniza.
As expressões que Eça encontra para simbolicamente definir esta maldade ético-política com consequências onto-antropológi- cas são genialmente significativas: «Aqui não: o pobre fica prisio- neiro da caridade! Perde o direito de ter fome.».”
“[…] Perder o direito a ter fome, não é ter o pão garantido – ou o caldo, dado que não se pode dar pão ao pobre –, mas não ter direito a sentir – a fome sente-se e é dos sentimentos mais fortes que existem – isso que marca a presença no ser na forma negativa da ausência de sustento para esse mesmo ser, isto é, perde-se o direito a poder ser ainda que na forma de carência.
“[…] A maldade de Alípio está para cá de toda a misericórdia; pros- titui a caridade em carcereira; faz do caldo o preço de uma vida que mais não é do que a redução da pessoa a um, na expressão que tomamos de Pessoa, «cadáver adiado», que nem sequer pode procriar.”
Américo Pereira vai ainda pronunciar-se acerca dos vícios privados e das públicas virtudes do Conde e da utilização sexual das mulheres, sobretudo das subordinadas. Por razões de espaço deixo para o próximo blog o seu acompanhamento.
EÇA DE QUEIROZ, O mandarin. Alves & Cª. O Conde de Abranhos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1980.