Onde o olhar do Sultão pousava, as cabeças rolavam, Contos das Arábias.
Opor-nos-emos a qualquer potência estrangeira que queira estender o seu poder ao Hemisfério Ocidental, John F. Kennedy.
Os povos germânicos constituíam uma identidade nacional com direito histórico às terras que anteriormente já tinham ocupado, G. Kossinna.
Mapa da distribuição das duas linguagens mais faladas pelos ucranianos.
Os jacarés matam-se enquanto são pequenos, provérbio moçambicano.
É nos Contos das Arábias que podemos encontrar esta pequena história tida como verdadeira. Ela é sobre um Sultão que todos os dias, carregado aos ombros na sua liteira e escoltado pela sua guarda pessoal armada, passeava pelas ruas do povoado para se assegurar dos seus domínios e para que os súbditos o pudessem ver no esplendor das suas vestes. Acontece que quando escolhia trajar de amarelo, nesses dias todos se tentavam esconder porque quando o seu olhar ao longo do percurso se fixasse num qualquer súbdito, logo os seus guardas se dirigiam ao infeliz e lhe cortavam a cabeça. Olho vê, cabeça rola. À sua volta, tudo o que o seu olhar pudesse abarcar, estava condenado.
Coisas de muçulmanos, contos de antigos, incivilizados.
A Doutrina Monroe
Para se opor ao persistente colonialismo europeu nas Américas, o Presidente James Monroe explanou ao Congresso, no seu discurso sobre o Estado da União em 1823, aquilo que considerou ser a esfera de influência dos EUA e as esferas de influência das diversas potências europeias, alertando que essas esferas de influência entre o Novo Mundo e o Velho Mundo tinham de se manter claramente separadas.
E avisando que quaisquer esforços feitos por potências europeias para controlarem ou influenciarem estados soberanos na zona de influência americana seriam considerados como uma ameaça à segurança dos EUA. Em contrapartida, os EUA reconheceriam e não interfeririam em qualquer das existentes colónias europeias, nem se imiscuiriam nas políticas internas dos países europeus.
Esta proclamação passou, mais tarde, a ser conhecida como a Doutrina Monroe, base de toda a política externa dos EUA, válida até hoje e utilizada por vários presidentes americanos sempre que entendiam que os interesses americanos podiam estar a serem atacados.
Desde que o Presidente John Tyler aplicando a Doutrina Monroe deu em 1842 o “chega para lá” aos britânicos no Havaí (iniciando assim o processo de anexação do Havaí aos EUA), a intervenção dos EUA contra as potências europeias passou a verificar-se (sempre que possível, como por exemplo durante os anos 1861-1865 da Guerra Civil americana, ou quando a Grã-Bretanha reocupou as Ilhas malvinas em 1833) em todo o continente americano.
A partir de 1912, é adicionado pelo Senado um corolário (Lodge Corollary) à Doutrina Monroe, passando a estarem englobadas para além das potências europeias, as ações das corporações e associações privadas controladas por estados estrangeiros, que poderiam assim ficarem impossibilitadas de adquirirem empresas americanas.
Após a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos americanos entendia que o Ocidente deveria ser defendido contra qualquer invasão estrangeira. A ameaça do aparecimento de regimes comunistas na América Latina, levam o presidente John F. Kennedy a dizer em 1962:
“A Doutrina Monroe significa o que significa desde a altura em que o Presidente Monroe e John Adams Quincy a enunciaram, e é que nós nos oporemos a qualquer potência estrangeira que queira estender o seu poder ao Hemisfério Ocidental, e é por isso que nos opomos ao que está hoje a suceder em Cuba. É por isso que cortámos os nossos laços comerciais. É por isso que trabalhamos com a OEA e de outras formas para isolarmos a ameaça Comunista a Cuba.”
Ou seja, a Doutrina Monroe, inicialmente limitada geograficamente ao continente americano, passa a ser Global, expandindo a supremacia dos EUA a todo o mundo, sempre que entendam que os seus interesses possam estar a ser ameaçados.
As áreas culturais arqueológicas e o direito histórico à sua anexação
A contribuição do conhecido e respeitado professor alemão de filologia e arqueologia da Universidade de Berlim, Gustaf Kossinna (1858-1931), influenciou profundamente aspectos da ideologia nazi com as suas teorias nacionalistas sobre as origens dos povos germânicos e indo-europeus (As Origens Pré-históricas dos Teutões na Alemanha, 1896).
É dele a “lei arqueológica” que ficou como conhecida como a “lei Kossina” que, subtilmente dizia: “Áreas culturais arqueológicas bem definidas correspondem inquestionavelmente a áreas de povos ou tribos particulares”.
Com isto queria dizer que “um conjunto unificado de artefactos arqueológicos, uma ‘cultura’, são o sinal de uma etnicidade unificada”. O que no caso vertente significava que os povos germânicos constituíam uma identidade nacional com direito histórico às terras que anteriormente já tinham ocupado.
Segundo Kossinna, as terras em que se viessem a encontrar artefactos considerados serem germânicos eram parte do antigo território germânico. Pelo que não se coibia de afirmar que a Polónia deveria fazer parte do império alemão.
Em 1902, vai identificar os protoindo-europeus (uma população hipotética da Eurásia que falaria o protoindo-europeu, um antepassado da chamada linguagem indo-europeia de acordo com uma reconstrução linguística) com a cultura de cerâmica cordada (2900-2350 a.C.) que se estendia pela maior parte do norte da Europa, do Reno ao Volga, prevalecente nas regiões mais a norte da Alemanha (ducados de Holstein e Schleswig).
Para ele, o modelo de difusão da cultura através do qual se verificava a evolução cultural ocorria por “um processo em que as influências, ideias e modelos passavam dos povos mais avançados para os menos avançados com os quais entrassem em contacto”, e que essa superioridade era uma caraterística racial. Daí o considerar a história dos povos germânicos como sendo superior à do império romano. E quando comparados com os povos germânicos, romanos e franceses eram simples destruidores de culturas.
Um dos seus livros mais conhecidos, publicado em 1914, A Pré-história Alemã: uma Disciplina Nacional Preeminente, é dedicado “Ao povo alemão, como alicerce para a reconstrução quer externa quer interna da desintegrada mãe-pátria”.
Não é de admirar que após a sua morte os seus discípulos tenham vindo a ocupar cargos de destaque no regime nazi, sendo as suas ideias incorporadas nos currículos das escolas alemãs.
As áreas culturais russas na Ucrânia
O jornalista ucraniano Denys Gorbach escreveu um artigo “Ukrainian identity map in wartime: Thesis-antithesis-synthesis?” (Mapa da identidade ucraniana em tempo de guerra: Tese-antítese-síntese?), publicado no Commons a 11 de julho de 2022, onde além de traçar uma panorâmica histórica sobre a formação da Ucrânia, figura um mapa da distribuição das duas linguagens mais faladas pelos seus povos ao longo dos tempos.
Como me pareceu ser útil para a compreensão de algumas justificações sobre as ações de guerra empreendidas e em curso, provavelmente até premonitório sobre o território a ocupar, aqui o insiro.
Imperialismo
Vulgarmente, quando nos referimos a “imperialismo”, estamos a pensar nas ações de qualquer país que visem aumentar a sua influência política, económica, cultural e comunicacional, para além das suas fronteiras, desde que tais ações sejam realizadas através de conquista militar, diplomacia de canhoneio, tratados desiguais, atribuição de subsídios a grupos ou fações preferidas, penetração económica através de empresas privadas ou do estado seguida de intervenção diplomática inflexível obrigatória quando esses interesses estiverem ameaçados ou por alteração de regime.
Definições mais contemporâneas e sucintas dão-no como sendo qualquer sistema de dominação e subordinação organizado em torno de um corpo central imperial e uma periferia.
Arendt e Schumpeter vão mais longe na sua análise, ao tentarem defini-lo como um sistema que procura a expansão pela expansão. Ou seja, que querem sempre mais porque querem mais. A apropriação pela apropriação. Visam, portanto, o domínio total do mundo, a hegemonia não partilhada para continuarem a ser hegemónicos para todo o sempre.
Convém também não esquecer a etimologia da palavra: do latim imperium, que significa força suprema, soberania, governo.
Não se sabe se o sistema é reflexo do comportamento individual ou se o comportamento individual é reflexo do sistema. Quer o próprio sistema quer as derivas possíveis têm sido tentadas, conduzindo sempre quer à desaparição do sistema quer à das derivas.
O provérbio
Na sua ingenuidade (quer mesmo por ingenuidade ou por engenho), o povo (neste caso o moçambicano) tem um provérbio em que diz:
“Os jacarés matam-se enquanto são pequenos”.
Esqueceram-se que se vive atualmente numa sociedade em que o único valor é o económico, onde é bem visto que eles (os jacarés) cresçam por causa do valor da pele. Fazem-nos o mesmo a nós (os abat-jours de candeeiros mais requisitados eram os de pele de judeu, de preferência com tatuagens artísticas). Agora já não nos tiram a pele para abat-jours.
“Casos como este, são resultantes da enorme tentação de transformar dissimuladamente uma atividade de negócios lícita num esquema ilícito, sobrepondo-se e adiantando-se assim a todos os outros. A enorme pressão e a pulsão interna para continuar a fazer expandir a tal esfera da circulação para que o sistema continuasse a funcionar, fez com que, em certo ponto, se ultrapassasse aquela ténue linha de separação entre o lícito e o ilícito. A compulsão expansionista inscrita no próprio sistema.
É bom lembrar que o investimento capitalista é sempre uma aposta arriscada nas oportunidades de lucro de um expediente, um empréstimo contraído em termos de futuro. Por isto, a própria dinâmica do sistema esbate a fronteira entre o investimento legítimo e a especulação selvagem.”
A família restruturou-se num público em miniatura, a sala da casa converteu-se num espaço de espectadores em miniatura e o cinema em modelo do lar.
São milhões os eremita-massa, cada um separado dos demais e, contudo, iguais, sentados nas suas casas como eremitas, não para renunciarem ao mundo, mas para não perderem uma migalha do mundo que lhes aparece plasmado numa efigie.
O aparecimento de sociedades controladoras são sintoma da degenerescência das faculdades físicas e psicológicas que nos fazem humanos.
É numa das Histórias Infantis que se pode ler:
“Porque o rei não gostava que o filho – evitando utilizar as estradas que estavam sob controle do rei – calcorreasse os campos para assim formar a sua imagem do mundo, deu-lhe um cavalo e uma carruagem. ‘Assim já não necessitas de ir a pé’, foram estas as palavras do rei; ‘agora já não te está permitido fazê-lo’, foi esse o significado; ‘agora já não o podes voltar a fazer’, foi esse o resultado.” (1)
Ou seja, o rei controlava o filho, não através de imposições ou proibições, mas antes ao tornar-lhe a vida mais fácil e mais conveniente. Ao aceitar o presente do pai, o filho participava ativamente por vontade própria na sua própria subjugação, pois quanto mais confiava na carruagem, menos sabia como viver sem ela e, querendo ou não querendo, mais se iria conformando, com as regras do pai.
Na pequena história, podemos ainda ver a representação do aumento de potencial que os objetos tecnológicos têm para nos fazerem perder o controle das nossa vidas ao torná-las mais fáceis, ao provocarem a degenerescência das faculdades físicas e psicológicas que nos fazem humanos, o que foi permitindo o aparecimento de sociedades controladoras.
Quanto mais entregamos a máquinas a responsabilidade e as interações para com os outros, mais a capacidade para deliberarmos sobre os nossos atos e ações, sejam eles a alegria, o medo, a vergonha, o ódio, a malícia e os egoísmos, vai diminuindo, degenerando a nossa humanidade.
De “O Mundo como Fantasma e Matriz, considerações filosóficas sobre rádio e televisão”, Günther Anders.
Subjacente encontra-se o pensamento que a tecnologia (os dispositivos com que se rodeia, mais do que meros meios para se alcançarem fins que poderão ser bons ou maus) é em si mesma importante pelas alterações e marcas que deixa em nós.
Exemplo 1:
A televisão pode ser usada para se participar num serviço religioso. Contudo, para além do próprio serviço religioso transmitido, o que nos vai marcar ou transformar (quer queiramos ou não) é o facto de efetivamente não participarmos dele, de estarmos apenas a consumir a sua imagem.
O que nos vai marcar não é só o que nos é transmitido, mas também os aparelhos em si (que não são apenas objetos de uso) que com isso determinam também o estilo da nossa vida, do que estamos a fazer, ou seja, determinam-nos a nós.
Quando apareceu o cinema, parecia ser o meio ideal que os grandes produtores aguardavam: uma situação privilegiada de consumo em que vários ou numerosos consumidores disfrutavam ao mesmo tempo de um mesmo exemplar (ou de uma mesma reprodução) de uma mercadoria.
Acontece que rapidamente os grandes produtores descobriram que o que lhes interessava não era uma massa massificada, mas uma massa fragmentada numa grande quantidade de compradores; não era a possibilidade de que todos consumissem o mesmo, mas que cada um comprasse o mesmo por uma mesma necessidade cuja implantação se lhes sugerira do mesmo modo.
A rádio e a televisão representavam esse novo ideal, pois, além do produto em si que era consumido, vendiam ainda os aparelhos próprios para esse consumo a quase a cada um dos consumidores, com a vantagem acrescida de o produto (o conteúdo) ser entregue ao domicílio através dos aparelhos.
Esses produtos de massa passaram a ser consumidos em família ou sozinhos; quanto mais sozinhos mais produtivos. Assistiu-se assim ao aparecimento do chamado eremita-massa: são milhões deles, cada um separado dos demais e, contudo, iguais, sentados nas suas casas como eremitas, não para renunciarem ao mundo, mas para não perderem uma migalha do mundo que lhes aparecia plasmado numa efigie.
A despersonalização da individualidade e a uniformização da racionalidade passaram assim a serem feitos em casa, pelo que já não havia necessidade daquela direção de massas tipicamente hitlerianas nem da sua inscrição em enormes construções de cimento armado.
Para cúmulo, essa despersonalização vai ser apresentada como uma redescoberta da família e da privacidade: “[…] a televisão é um meio excelente para afastar os jovens de passatempos caros, para manter as crianças em casa […] e para dar um novo estímulo às reuniões familiares”.
Acontece que o que predomina em casa através da televisão é o mundo exterior, real ou fictício, transmitido. E fá-lo de tal maneira ilimitadamente que converte a realidade do lar em fantasmagoria, não só as quatro paredes e o mobiliário, mas a própria vida comunitária. O lar vê-se relegado a ser apenas um contentorna medida em que se esgota ao ser um lugar que contém um televisor para o mundo exterior.
Exemplo 2:
Aquilo que era o móvel social caraterístico da família, a mesa maciça que estava no centro da sala, ao redor da qual se reunia toda a família, tornou-se obsoleta. O móvel seu sucessor é agora o televisor.
Só que o televisor não proporciona o ponto central comunitário, sendo antes o ponto comum de fuga de toda a família.
Ao passo que a mesa tinha uma força centrípeta relativamente à família, estimulando quem se sentava ao seu redor para contar as conversas do seu dia a dia e para a troca de olhares, estimulando o espírito de família, o televisor atua por centrifugação.
Os membros da família já não estão sentados uns à frente dos outros, a colocação das cadeiras frente ao televisor é por justaposição em que a possibilidade de se verem uns aos outros ou mesmo de falarem é meramente casual. Já não estão juntos, estão lado a lado, ou até nem isso: são meros espectadores. A família restruturou-se num público em miniatura, a sala da casa converteu-se num espaço de espectadores em miniatura e o cinema em modelo do lar.
É como no conto infantil: o “Agora já não necessitam de falar” transforma-se no “Já não o podem fazer”. Mas, quando os dispositivos nos impedem de falar, com isso tiram-nos também a linguagem, roubam-nos a nossa capacidade de expressão, a nossa ocasião de falar, a nossa gana de falar. Não é de espantar a atrofia da linguagem que se tem verificado.
A manipulação do homem chega ao domicílio como fornecimento, tal como se tratasse de gás, eletricidade ou água. Produtos artísticos, sucessos reais, são escolhidos, limpados quimicamente e preparados para nos serem servidos como “realidade” ou como substitutos dela. Os próprios acontecimentos, as notícias sobre eles, o jogo de futebol, a missa, as explosões, vêm ter connosco. O mundo vem ao homem, e não o contrário. Esta é a armadilha que a rádio e a televisão representam.
Não é, pois, de admirar que não conheçamos o nosso vizinho, com quem nos cruzamos frequentemente no átrio do prédio (desconhecimento que é mútuo), mas que conheçamos aqueles apresentadores, atores, cantores, que nunca encontraremos em pessoa, mas a quem vemos imensas vezes, sabendo até os seus nomes (pelos quais os tratamos) e os seus problemas íntimos.
Perplexidades:
“Se é o mundo que vem a nós em vez de sermos nós que vamos a ele, então já não estamos no mundo, somos apenas seus consumidores. Ou seja, o mundo já não se apresenta como mundo exterior, no qual estamos, mas como nosso.
Se vem a nós, mas apenas em imagem, então está apenas meio presente e meio ausente, é como um fantasma. Ou seja, os acontecimentos emitidos são, ao mesmo tempo, presentes e ausentes, reais e aparentes, estão aí e não estão: por isso, são fantasmas. Pelo que todo o real é fantasmagórico, todo o fictício é real.
Por outro lado, se o mundo vem a nós, não temos necessidade realmente de irmos a ele, pelo que o que até ontem chamávamos de experiência converteu-se em algo supérfluo. E como qualquer supérfluo, atrofia-se.
Se é o mundo que nos interpela sem que nós consigamos interpelá-lo, estamos então condenados a ficar com a boca fechada, portanto a não ser livres.
Se um acontecimento que ocorreu num determinado lugar pode ser transmitido, e enquanto “transmissão” puder aparecer em qualquer outro lugar, então transformou-se num bem móvel quase que omnipresente, perdendo assim a sua posição espacial como principium individuationis.
Se é um bem móvel e se apresenta em exemplares virtualmente inumeráveis, então, pela definição da sua maneira de ser objeto, faz parte dos produtos seriados; e se se paga como emissão de um produto seriado, então o acontecimento é uma mercadoria.
Se é importante socialmente só pela sua forma de reprodução, ou seja, como imagem, desaparece a diferença entre ser e aparência, entre realidade e imagem.
Se a experiência do mundo que predomina se alimenta de semelhantes produtos seriados, o conceito de “mundo” encontra-se abolido(na medida em que por “mundo” se entende aquilo onde estamos), perdeu-se o mundo e a atitude de homem, estabelecida pelas emissões, torna-se “idealista”.”
Notas soltas adicionais:
Faz hoje parte do conhecimento comum saber que há coisas que a inteligência artificial pode fazer que os humanos não podem. Isto levanta o problema de nenhum especialista poder comprovar se o que a máquina fez esteja correto. O que faz com que, apesar de 95% dos casos resolvidos pelas máquinas estarem certos, os 5% de erros por elas cometidos possam levar muito tempo a serem detetados. Eis dois casos exemplares conhecidos:
O que se passou com a atriz Anne Hathaway e o fundo inversor Berkshire Hathaway de Warren Buffet, em que só após muito tempo é que se percebeu que as ações da Berkshire Hathaway subiam sempre que a atriz aparecia referida na comunicação social. E que tal era devido ao facto de o traderrobot confundir os nomes!
O que se passou com o enviesamento do sistema para selecionar os doentes (triagem) que chegam aos hospitais nos EUA: A fim de aferir o grau de gravidade que necessitará o doente, se um cuidado especial ou se pode ser mandado para casa, introduzindo-se a mesma informação sobre duas pessoas diferentes, o sistema atribuía maior gravidade a um doente branco que a um doente negro. Acabou por se concluir que o problema residia na forma como o algoritmo treinava o sistema: para decidir quem estava mais doente, entrava, entre outros, com o custo dos tratamentos que o doente tinha até então recebido.
A lógica era que se estás muito doente tens recebido tratamentos mais caros, e, portanto, serás etiquetado como sendo muito doente. Como por razões socioeconómicas os negros não apareciam como tendo recebido esses tratamentos mais caros que necessitavam, o sistema mandava-os para casa. Isto passou-se ao longo de vários anos.
Günther Anders defende que nós não nos estamos a tornar obsoletos por as máquinas se estarem a tornar cada vez mais “espertas” e com maiores capacidades. Isso está a acontecer porque cada vez mais nós nos estamos a expressar através da ajuda de dispositivos digitais, e porque cada vez estamos mais dispostos a submetermo-nos e a viver de acordo com as limitações e pedidos das máquinas.
Para fazermos com que a máquina funcione, estamos até dispostos a limitar e alterar o alcance das nossas expressões por forma a garantir que a máquina responda corretamente e execute a fim de tornar a nossa vida mais fácil.
Ou seja, parece que gostamos de nos esforçar para “não funcionarmos como nós próprios”, adaptando o nosso comportamento à máquina por forma a que ela nos venha a servir o melhor possível (efeito ELIZA relativamente à computação, síndroma de Estocolmo se for relativo a raptos).
Ao fazermos isso, amarramo-nos cada vez mais a certas infraestruturas, adaptamos cada vez mais os nossos hábitos a soluções tecnológicas, expomo-nos mais a um cada vez maior número de corporações de poder não democráticas e a aplicações de big data que estão a atualizar a versão de um futuro em que as contribuições do homem deixem de ser requeridas.
É rendermo-nos aos que lucram com isso, e que em última instância são donos dessas máquinas.
É assim que até a própria linguagem deixa de ser uma simples fala, porquanto essas máquinas (ex. telemóvel) passam (vendem) permanentemente a nossa fala a outra entidade: a nossa linguagem deixa de pertencer ao próprio individuo. Ou seja, até a própria linguagem é expropriada às nossas expensas, e com isso todos aqueles códigos, regras de civilidade e valores que fazem parte do ser-se nacional de um país (português, brasileiro, inglês, etc.) e que são parte integrante das nossas experiências e sentimentos exatamente por falarmos português, brasileiro, inglês.
E é assim (com o que nos expropriam que só não é roubo porque somos nós que gostosamente lhes damos) que se tem vindo a instalar aquela falsa sensação que as máquinas sabem mais de nós do que nós próprios, porque sabem coisas sobre nós que se mantêm invisíveis para nós.
E quando nós acreditamos que as máquinas sabem mais sobre nós que nós próprios, pouco nos resta para fazer, pensar, sentir ou decidir.
Pelo que ao tornarem a nossa vida “mais fácil”, mais confortável e conveniente, mais excitante e organizada, o que nos estamos a dizer (o que nos estão a dizer) é que o que se vivia antes disso não era essencial.
Para os que pensam que tudo isto não passa de exagero, Anders deixa a seguinte resposta:
“Os filósofos que refutem o exagero como não sendo sério, fazem-no porque estão habituados a trabalharem apenas com o que os seus olhos veem, e estão a ser tão obsoletos e ridículos como o virologista que recusa trabalhar com microscópios porque quer ver apenas com os seus próprios olhos. São os vírus tão grandes como aparecem apenas aos nossos olhos? Se fosse assim, eles nem sequer apareceriam. Não são eles tão grandes como aparecem amplificados pelo microscópio? Ou não serão eles muito maiores, uma vez que são muito mais perigosos que a imagem do microscópio nos dá? Se víssemos o trabalho devastador dos vírus ampliados um milhão de vezes num filme, será que esta ampliação também exagerava o perigo? Ou será que só assim se veria o perigo pela primeira vez?”
O patriotismo é usado para se criar no país a ilusão da existência de um interesse comum que todos têm, Howard Zinn.
Patriotismo é a convicção que este país é superior a todos os outros porque nós nascemos nele, Bernard Shaw.
Quero que saibam que tudo o que eu fiz, fi-lo pelo meu país, Pol Pot.
Em qualquer dos casos, será sempre “a bem da Nação”.
Embora não pareça, esta pequena história passada no tempo do “processo revolucionário em curso” é sobre o pai “apolítico” de uma minha amiga que espantou os conhecidos ao comprar os pequenos emblemas metálicos dos principais partidos e movimentos da altura. A sua explicação: dado o radicalismo e a espontaneidade das inúmeras manifestações e movimentações que aconteciam sem hora, dia ou lugar marcado, a fim de passar incólume entre elas, tinha sempre no bolso um emblema da força que a convocava e que sorrateiramente punha na lapela do casaco, substituindo até o que lá estava antes.
O patriotismo é, normalmente entendido, como aquele sentimento que muitos têm pelo seu país e governo, ligado aos princípios nobres pelos que se norteiam e batem, ao passo que o nacionalismo é normalmente entendido como um sentimento de superioridade étnica-nacional. Na prática, patriotismo e nacionalismo são conceitos difíceis de distinguir até porque normalmente se alimentam mutuamente.
Como esclarece o historiador americanoHoward Zinn, nacionalismo “é um conjunto de crenças ensinados a cada geração nas quais a Mãe Pátria e o Pai da Pátria constituem objeto de veneração e que se tornam em causas candentes pelas quais vale a pena matar as crianças de outras Mães Pátrias e Pais das Pátrias […] O patriotismo é usado para se criar no país a ilusão da existência de um interesse comum que todos têm”.
Ouçamos outros:
Bernard Shaw, “Patriotismo é a convicção que este país é superior a todos os outros porque nós nascemos nele”.
“As ações são consideradas como sendo boas ou más, não pelos seus méritos em si, mas de acordo com quem as pratica, e não há quase nenhuma forma de escândalo – tortura o uso de reféns, trabalho forçado, deportações em massa, encarceramento sem julgamento, bombardeamento de civis – que não mude de cor moral quando praticadas pelo nosso lado, que chega ao ponto de nem sequer se ter ouvido falar delas”.
G. Wells:
“Ao longo de todo o século dezanove, e mais especialmente na última metade, aconteceu um grande avivar do nacionalismo em todo o mundo […] O nacionalismo era ensinado nas escolas, enfatizado nos jornais, pregado nas homilias, glosado e cantado aos homens. Tornou-se num cântico monstruoso que ensombrou as relações humanas. Os homens foram levados a crer que eram malvistos sem uma nacionalidade, tal como se estivessem despidos numa assembleia. Os povos orientais, que nunca antes tinham ouvido falar em nacionalidade, aceitaram-na como tinham aceitado os cigarros e os chapéus de coco dos ocidentais”.
Mikhail Bakunin:
“A mera existência do estado exige que haja alguma classe privilegiada interessada em manter essa existência. E é precisamente os interesses de grupo dessa classe que se chama patriotismo”.
George Santayana:
“Para mim, parece-me uma terrível indignidade uma alma ser controlada pala geografia”.
Bem sei, conversa de intelectuais. Mas, vejamos a prática, acontecida e presente:
O povo alemão que suportou Hitler e as suas conquistas, fê-lo por ser patriota e por estar a lutar pelo Pai da Pátria.
Todos os ditadores militares da América Latina que depuseram governos democraticamente eleitos e que rotineiramente torturavam pessoas, fizeram-no por serem patriotas - estavam a salvar o país do comunismo.
Os pilotos japoneses que bombardearam o Porto das Pérolas, fizeram-no por serem patriotas.
Os pilotos ingleses que incineraram Dresden, fizeram-no por serem patriotas. Etc., etc..
General Augusto Pinochet, que promoveu o assassinato em massa e torturas: “Gostaria de ser lembrado como um homem que serviu o seu país” (Sunday Telegraph, London, July 18, 1999).
Pol Pot, que promoveu o assassinato em massa no Camboja: “Eu quero que saibam que tudo o que eu fiz, fi-lo pelo meu país” (Far Eastern Economic Review, Hong Kong, October 30, 1997, pp. 15 e 20).
Tony Blair, em defesa do papel que desempenhou no assassinato de milhares de iraquianos: “Eu fiz aquilo que pensava ser o certo para o nosso país” (Washington Post, May 11, 2007, p. 14).
George Bush Sénior, ao perdoar o ex-Secretário da Defesa Caspar Weinberger e mais cinco outros implicados no escândalo Irão-Contras na troca de armas por reféns: “Em primeiro lugar, o denominador comum das suas motivações, quer as suas ações fossem certas ou erradas, foi o patriotismo” (New York Times, December 25, 1992).
Hitler criticava os judeus e os comunistas pelo seu internacionalismo e ausência de patriotismo nacional, exigindo que os “verdadeiros patriotas” jurassem publicamente e exibissem o seu juramento de lealdade para com a mãe pátria (no caso vertente, com o pai da pátria).
Muitos dos nossos representantes políticos usam agora na lapela dos seus casacos uma mini bandeirinha da nação. Faça-se--lhes a justiça de não se julgar que o fazem em seguimento às ordens de Hitler, nem de ser algum resquício remanescente do salazarismo. Mas, porque o fazem? Talvez por imitação dos seus congéneres americanos (e russos, e chineses) esquecendo, contudo, a justificação histórica americana.
Após a Guerra Civil, com o grande afluxo de emigrantes de várias partes do mundo, o governo americano resolveu instituir aquilo que acabou por ficar conhecido como o “Juramento de Lealdade” à bandeira dos EUA (uma primeira versão em 1887 – por George T. Balch – e depois em 1892 -por Francis Bellamy – a que se seguiram posteriores alterações).
Curiosamente, Francis Bellamy era membro fundador da Sociedade dos Cristãos Socialistas, um grupo de sacerdotes protestantes que professavam que os ensinamentos de Jesus Cristo conduziam diretamente para algumas formas de socialismo.
Talvez resida nessa esperança a justificação para a utilização da bandeirinha na lapela dos casacos dos nossos representantes. Em qualquer dos casos, será sempre “a bem da Nação”.
Será, contudo, apropriado lembrar que após o fim da Segunda Guerra Mundial, os aliados (todos eles) davam lições de moral aos prisioneiros alemães e ao povo alemão, fazendo-lhes ver que as justificações que usavam para terem participado ou comparticipado no holocausto (o facto de terem jurado obedecer às normas exaradas do seu legitimo governo) eram inadmissíveis. E para lhes provar como essa defesa era legal e moralmente inadmissível, os aliados da Segunda Guerra Mundial enforcaram os principais representantes dessa tal lealdade patriótica.
O filósofo católico Emmanuel Mounier, perante o problema do julgamento político dos criminosos de guerra (“Y a-t-il une justice politique?”, Esprit, agosto 1947, e ainda em “Petkov en nous”, Esprit, outubro 1947), socorrendo-se da analogia com 1793, vai concluir que sempre que uma nova ordem social é estabelecida, a ordem antiga, o regime antigo e as suas elites, são por definição “culpados”. Pelo que os crimes de Pétain e dos seus colaboradores não precisavam de serem provados como culpados de acordo com a lei existente; a colaboração era um crime devido ao desfecho da guerra, mas apenas se a ordem pós-guerra assumisse a responsabilidade de uma renovação política e espiritual séria.
Mais claro é o acórdão da Conferência Nacional do Partido Comunista da Checoslováquia de 17 de dezembro de 1952, a quando do julgamento de Rudolf Slánsky: “A questão relativamente a quem é culpado ou a quem é inocente, acabará sempre por ser decidida pelo Partido com a ajuda dos órgãos da Segurança Nacional”.
A guerra mundial foi essencialmente obra de homens de dinheiro, que foram os grandes industriais dos vários Estados da Europa.
Aqueles que morreram nesta guerra não sabiam por que morreriam. E é o mesmo em todas as guerras.
Acreditamos que morremos pela pátria; morremos pelos industriais, Anatole France.
O espírito de vingança e ódio é mantido pelos jornais, Michel Corday
No dia 18 de julho de 1922, o jornal l'Humanité, publicou uma carta de Anatole France dirigida ao diretor, Marcel Cachin:
“Caro cidadão Cachin,
Pela sua importância, agradecia o favor de recomendar aos seus leitores o recente livro de Michel Corday, Les Hauts Fourneaux (Os Altos Fornos). É aí que iremos encontrar as ideias que certamente também compartilhará sobre as origens da condução da guerra, de que em França ainda sabemos muito pouco.
Em particular, veremos aí (algo que ambos já tínhamos suspeitado) que a guerra mundial foi essencialmente obra de homens de dinheiro, que foram os grandes industriais dos vários Estados da Europa que, antes de mais nada, a quiseram, a tornaram necessária, a fizeram e a prolongaram. Fizeram dela o seu negócio, puseram em jogo as suas fortunas, obtiveram com ela imensos lucros e dedicaram-se a ela com tal ardor que arruinaram a Europa, arruinaram-se a si próprios e deslocaram o mundo.
Ouça o que Corday escreve sobre o assunto, que ele trata com toda a força da sua convicção e com todo o poder do seu talento:
«Esses homens, assemelham-se aos seus altos-fornos, aquelas torres feudais erguidas frente a frente ao longo das fronteiras, e cujas entranhas devoradoras devem ser constantemente alimentadas, dia e noite, de minério e carvão, para que desça o fluxo de metal. Também eles, que com o seu insaciável apetite exige que lancemos ao fogo, sem descanso, na paz, na guerra, e todas as riquezas do solo, e todos os frutos do trabalho, e os homens, sim, os próprios homens, por rebanhos, por exércitos, todos precipitados desordenadamente na fornalha escancarada, para que os lingotes se empilhassem aos seus pés, ainda mais lingotes, sempre mais lingotes.... Sim, eis o seu emblema, as suas armas falantes, à sua imagem. Eles são os verdadeiros altos-fornos.»
Portanto, aqueles que morreram nesta guerra não sabiam por que morriam. E é o mesmo em todas as guerras. Mas não no mesmo grau. Aqueles que caíram em Jemmapes não estavam tão enganados sobre a causa a que se dedicavam. Desta vez, a ignorância das vítimas é trágica. Acreditamos que morremos pela pátria; morremos pelos industriais.
Esses donos do tempo possuíam as três coisas necessárias para o grande negócio moderno: fábricas, bancos, jornais. Michel Corday mostra-nos como eles usaram essas três máquinas para esmagar o mundo. Ele deu-me, em particular, a explicação de um fenómeno que me surpreendeu não por si mesmo, mas pela sua enorme intensidade, e do qual a história não me deu semelhante exemplo: como o ódio de um povo, de um povo inteiro, espalhado na França com uma violência sem precedentes e desproporcional aos ódios despertados neste mesmo país pelas guerras da Revolução e do Império. Não estou a falar das guerras do antigo regime que não fizeram os franceses odiarem os povos inimigos. Foi desta vez, entre nós, um ódio que não se extinguiu com a paz, que nos fez esquecer os nossos próprios interesses e perder todo o sentido da realidade, sem que sequer sentíssemos esta paixão que nos possuía, a não ser por vezes achá-la demasiado fraca.
Michel Corday mostra muito bem que esse ódio foi forjado pelos grandes jornais, que continuam culpados, mesmo neste momento, de um estado de espírito que está a levar a França, juntamente com toda a Europa, à sua ruína total. «O espírito de vingança e ódio, diz Michel Corday, é mantido pelos jornais. E essa ortodoxia feroz não tolera a dissidência ou mesmo a tibieza. Fora dela, inocentes sofreram morte e paixão. Odiar um povo é odiar os opostos, o bem e o mal, a beleza e a feiura».
Que mania estranha! Não tenho certeza se nos estamos a começar a curar dela. Espero que sim. É necessário. O livro de Michel Corday chega a tempo para nos inspirar com ideias saudáveis. Que ele seja ouvido! A Europa não é composta por Estados isolados, independentes uns dos outros. Forma um todo harmonioso. Destruir uma parte dela é ofender as outras.
A nossa salvação é sermos bons europeus. Além disso, tudo é ruína e miséria.