Aquilo que nos aconteceu durante 80 anos de regime colonialista, as nossas feridas estão ainda tão frescas e são tão dolorosas que não as podemos afastar da nossa memória, Patrice Lumumba.
Lumumba, colocou-se no lado errado da história quando se viu forçado a optar pela ajuda da União Soviética em vez da ajuda americana, inglesa ou belga.
As normas internacionais do pensamento politicamente correto ao tempo eram diferentes das atuais, Inquérito parlamentar belga de 2001.
Porque razão tinha Lumumba dois apetitosos dentes de ouro?
Transcrevo aqui aquele que foi o notável “Discurso da Proclamação da Independência do Congo”, proferido a 30 de junho de 1960 em Léopoldville (agora Quinxassa) por Patrice Emery Lumumba, então Primeiro-ministro do Congo, perante o Rei Balduíno Primeiro da Bélgica e demais altos representantes das nações creditadas para o acontecimento:
“Congoleses e Congolesas. Combatentes da Independência hoje vitoriosa. Saúdo-vos em nome do governo congolês. A todos vós, meus amigos, que lutaram connosco sem desfalecimento, peço-vos para que façam deste 30 de junho de 1960 uma data ilustre que fique indelevelmente gravada nos vossos corações, uma data cuja significação ensinarão com orgulho aos vossos filhos, para que estes por sua vez a deem a conhecer aos seus filhos e aos seus netos, a da história da nossa luta gloriosa pela conquista da liberdade. Porque se esta Independência do Congo é hoje proclamada em acordo com a Bélgica, país amigo que tratamos de igual para igual, nenhum Congolês digno desse nome poderá jamais esquecer que foi pela luta que ela foi conquistada, numa luta de todos os dias, numa luta ardente e idealista, numa luta onde não escamoteámos as nossas forças, nem os sofrimentos, nem o nosso sangue. Foi uma luta de lágrimas, de fogo e de sangue à qual nos mantivemos fiéis até ao mais profundo dos nossos seres, porque foi uma luta nobre e justa, uma luta indispensável para pôr fim à humilhante escravidão que nos foi imposta pela força. Aquilo que nos aconteceu durante 80 anos de regime colonialista, as nossas feridas estão ainda tão frescas e são tão dolorosas que não as podemos afastar da nossa memória. Nós sofremos o trabalho impiedoso e exaustivo em troca de salários miseráveis que não nos permitia dar de comer à nossa fome, nem de nos vestir ou de nos alojar decentemente, nem de educar os nossos filhos como entes queridos. Nós sofremos ironias, insultos, agressões e pancadas infligidas de manhã, à tarde e à noite, apenas porque éramos negros. Quem se esquecerá que éramos tratados por “tu”, não por sermos considerados como amigos, mas porque o “vós” estava reservado apenas para os Brancos? Sofremos a espoliação das nossas terras em nome de textos pretensamente legais que o único que faziam era reconhecer o direito do mais forte. Sofremos a desigualdade de tratamento perante a lei que não era nunca a mesma conforme se tratasse de um Branco ou de um Negro: flexível e acomodatícia para uns, cruel e desumana para os outros. Sofremos atrozmente pelas nossas opiniões políticas ou religiosas; exilados dentro da nossa própria pátria, num destino mais cruel que a própria morte. Sofremos o vexame de vermos a existência nas nossas cidades de casas magníficas para os Brancos e de palhotas decrépitas para os negros; que um Negro não podia entrar nem nos cinemas, nem nos restaurantes, nem nas grandes lojas; que um Negro viajava sempre na parte de trás, ficando reservada a cabine de luxo para os Brancos. Quem se esquecerá dos disparos das espingardas com que muitos dos nossos irmãos foram mortos, das jaulas para onde foram brutalmente metidos todos aqueles que não se queriam submeter à justiça de um regime de opressão e exploração? Tudo isto, meus irmãos, nós sofremos profundamente. Mas também vos dizemos, que tudo isso que sofremos no nosso corpo e no nosso coração durante a opressão colonialista, nós que o voto dos vossos representantes elegeu para dirigir o nosso querido país, tudo isso acabou. A República do Congo foi proclamada e o nosso querido país está agora na mão dos seus próprios filhos. Juntos, meus irmãos, minhas irmãs, iremos começar uma nova luta, uma luta sublime que conduzirá o nosso país à paz, à prosperidade à grandeza. Juntos, iremos estabelecer a Justiça social e assegurar que cada um receba a justa remuneração pelo seu trabalho. Juntos iremos mostrar ao mundo aquilo que o homem negro pode fazer quando ele trabalhar pela liberdade, fazendo do Congo o centro de irradiação para toda a África inteira. Juntos iremos assegurar que as terras da nossa pátria sejam utilizadas a favor dos seus filhos. Juntos iremos rever todas as leis do passado e fazer novas leis que sejam justas e nobres. Juntos iremos pôr fim à opressão do pensamento livre e tudo faremos para que os cidadãos possam gozar plenamente das liberdades fundamentais previstas na declaração dos Direitos do Homem. Juntos iremos suprimir eficazmente todo o resquício de discriminação seja ela qual for e dar a cada um o seu justo lugar que lhe assegure a sua dignidade humana, o seu trabalho e a sua devoção ao país. Juntos iremos fazer reinar, não a paz das armas e das baionetas, mas a paz dos corações e das boas vontades. E para que tudo isto se cumpra, caros compatriotas, estejam certos que iremos poder contar, não somente com as nossas enormes forças e com as nossas imensas riquezas, mas também com a assistência de numerosos países estrangeiros que connosco querem colaborar lealmente sem nos quererem impor uma política, seja ela qual for. Neste domínio, a Bélgica que, compreendendo enfim o sentido da história, não tentou opor-se à nossa independência, está pronta a conceder-nos a sua ajuda e a sua amizade, pelo que já assinámos um tratado entre os nossos dois países iguais e independentes. Esta cooperação, estou seguro, será vantajosa para os dois países. Pela nossa parte, embora nos mantenhamos vigilantes, saberemos respeitar os compromissos livremente assumidos. Assim, tanto internamente como exteriormente, o Congo novo, a nossa querida República que o meu governo vai criar, será um país rico, livre e próspero. Mas para conseguirmos alcançar sem demora estes objetivos, peço-vos a todos vocês legisladores e cidadãos congoleses, que me ajudem com todas as vossas forças. Peço-vos a todos que esqueçam as querelas tribais que só nos esgotam e que nos fazem parecer não respeitáveis aos olhos estrangeiros. Peço à minoria parlamentar que ajude o meu governo através de uma oposição construtiva, mantendo-se estritamente dentro das vias legais e democráticas. Peço-vos a todos que não enjeitem qualquer sacrifício por forma a garantir este empreendimento grandioso. Peço-vos por fim que respeitem incondicionalmente a vida e os bens dos vossos concidadãos e dos estrangeiros estabelecidos no nosso país. Se a conduta desses estrangeiros não se conformar com as nossas leis, a nossa justiça prontamente os expulsará do território da República; se pelo contrário a sua conduta for boa, devem ser deixados em paz, porque eles também trabalham para a prosperidade do nosso país. A Independência do Congo marca um passo decisivo na libertação de todo o continente africano. Eis pois, Excelências, Senhoras e Senhores, caros compatriotas, meus irmãos de raça, meus irmãos de luta, o que eu vos quis dizer em nome do meu governo neste dia magnífico da nossa Independência completa e soberana. O nosso governo, forte, nacional, popular será o orgulho deste povo. Honra aos combatentes da liberdade nacional! Viva a Independência e a Unidade Africana! Viva o Congo independente e soberano.”
Ainda não tinham decorrido sete meses após este discurso, e já Patrice Lumumba jazia assassinado sem julgamento por mercenários catangueses a soldo de Moisés Tshombe (com o apoio tácito da Bélgica e o envolvimento do MI6 inglês) a 17 de janeiro de 1961.
O seu corpo foi inicialmente enterrado, depois desenterrado e transportado para outro local a 200 km de distância, enterrado de novo, novamente desenterrado, desmembrado, regado com ácido e os pedaços espalhados por vários locais.
O comissário da polícia belga, Gerard Soete, que supervisionou e participou na destruição do corpo por forma a “nada restar” (1), equipou os homens encarregados da missão com serrotes, ácido sulfúrico, máscaras e whisky.
Como “recordação”, Soete, guardou para si dois dentes e dois dedos. “Troféus de caça”, conforme disse num documentário em que apareceu em 1999. Contudo, na sua posse disse ter então apenas um dente.
Dente esse, que reapareceu em 2016 quando a sua filha, Godelieve, numa entrevista que deu à revista belga Humo, publicada imediatamente antes do 55º aniversário da morte de Lumumba, contava o sofrimento que o seu pai passara durante todos aqueles anos de serviços prestados à Bélgica, certamente merecedor de, pelo menos, um pedido de desculpa. Entre os vários objetos que trouxe para a entrevista, estava o dente de Lumumba, que foi mostrado e fotografado.
De imediato, Ludo de Witte, intentou uma ação para que o dente fosse restituído à família de Lumumba. A polícia belga confiscou o dente. Até que ao fim de quatro anos o tribunal deu razão a Witte.
Finalmente, numa recente “cerimónia” ocorrida em Bruxelas a 20 de junho, foi oficialmente entregue o dente de ouro de Patrice Lumumba a membros da sua família. O funeral do dente de Lumumba parece que está planeado para acontecer em Quinxassa no 62º aniversário do discurso da independência, 30 de junho.
Como agora a comunicação social tem voltado a falar sobre crimes de guerra e crimes contra a humanidade, pareceu-me ser interessante trazer estes dois casos (deveriam ser pelo menos três, se as instituições e as nações pudessem ser incluídas), o de Patrice Lumumba e o de Gerard Soete.
Lumumba, deveria ser julgado por, independentemente de pensar que estava a defender o seu povo, se ter colocado no lado errado da história quando se viu forçado a optar pela ajuda da União Soviética em vez da ajuda americana, inglesa ou belga. Com essa decisão atrasou o desenvolvimento do colonialismo, do neocolonialismo, e da futura globalização, convencido de que devia primeiro olhar pelo seu povo quando deveria colocar à frente o desenvolvimento das nações colonizadoras (2) que era o que lhe iria permitir que o seu povo melhorasse mais tarde as condições de vida e morte.
Gerard Soete, no máximo arriscaria uma condenação leve, porquanto, como se pode ler nas conclusões do inquérito parlamentar belga de 2001, “as normas internacionais do pensamento politicamente correto ao tempo eram diferentes das atuais”. Inquérito esse que, dentro do espírito da maior justiça e correção com que foi elaborado, não deixou, por isso mesmo, de considerar que certos membros do governo “foram moralmente responsáveis pelas circunstâncias que levaram à morte” de Lumumba. Além do mais, os troféus de caça eram uma norma instituída, vulgarizada e por todos aceite. Porque razão tinha Lumumba dois apetitosos dentes de ouro?
Quando não alcançamos os nossos objetivos, quando os nossos sonhos são inatingíveis, somos ensinados que tal não é devido à injustiça económica, social ou política, mas a falhas dentro de nós.
A classe dominante, por meio de gurus de autoajuda como Oprah, pregadores do “evangelho da prosperidade” e da indústria do entretenimento, privatizou a esperança.
O único poder que os cidadãos têm é através do coletivo, sem esse coletivo somos tosquiados como ovelhas.
Pode-se saber o que os oligarcas mais temem, por aquilo que eles mais procuram destruir – os sindicatos, C. Hedges.
Em 1973, a cantora francesa Dalida e Alain Delon, interpretaram uma canção de grande sucesso, “Paroles, paroles” (Palavras, palavras). Vale a pena ouvi-la. Permito-me transcrever a parte final:
Que tu es belle Como tu és bela Paroles et paroles et paroles Palavras e palavras e palavras Que tu est belle Como tu és bela Paroles et paroles et paroles Palavras e palavras e palavras Que tu es belle Como tu és bela Paroles et paroles et paroles Palavras e palavras e palavras Que tu es belle Como tu és bela Paroles et paroles et paroles et paroles Palavras e palavras e palavras Et encore des paroles que tu sèmes au vent E mais palavras que semeias ao vento
Parece que se está a verificar nos Estados Unidos um ressurgimento dos sindicatos, com uma vaga de novas sindicalizações que começaram após a crise de 2008 que têm vindo progressivamente a aumentar, e com a incorporação de novos quadros mais qualificados.
Várias explicações têm sido avançadas, desde os despedimentos provocados pela crise de 2008, depois pela pandemia e retração económica que se lhe seguiu, etc. Mas para a alteração e melhoria do nível qualitativo dos quadros sindicais, o fator mais importante talvez tenha sido o da dificuldade de emprego e baixos salários com que os licenciados se enfrentaram, que os tem levado a integrarem-se nos sindicatos, elevando com isso os níveis das discussões laborais para outro patamar. Ou seja, argumentos primários e missangas patronais já não os convencem facilmente.
Esta aparente importância das novas lutas sindicais é reconhecida como uma realidade que está a acontecer quando os principais órgãos de comunicação social colocam como notícias de primeira página a formação de sindicatos em algumas das grandes empresas, conglomerados, ou o que queiram chamar desde que sejam adjetivadas como grandes ou enormes, como a Amazon e a Starbucks, e quando o Presidente Biden recebe na Casa Branca a seu convite o presidente do Sindicato dos Trabalhadores do centro de distribuição de Staten Island (Nova Iorque) da Amazon, Christian Smalls, juntamente com outros trabalhadores sindicais da Starbucks e de outras empresas.
Só que, ao mesmo tempo, o governo Biden, recompensou a Amazon, que faz de tudo contra a sindicalização dos trabalhadores, com mais um contrato de 10 biliões de dólares para o fornecimento de ‘serviços de informática’ a prestar à Agência de Segurança Nacional (NSA).
Atente-se que este contrato com a NSA é um dos 26 contratos que a Amazon tem com o Exército e a Força Aérea dos EUA, com o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, com o Departamento de Segurança Interna, com o Departamento do Interior e com o do Censo.
Se na realidade Biden quisesse demonstrar uma posição poderosa em nome dos trabalhadores, como aliás prometera (“to make sure that federal dollars do not flow into the hands of unscrupulous employers who engage in union-busting, participate in wage theft, or violate labor law”), poderia antes ter optado por reter esses contratos federais até que a Amazon permitisse a organização sindical livre e aberta.
Uma pequena nota: após a vitória sindical em Staten Island, a Amazon, umas semanas depois, despediu meia dúzia de chefes desse centro de trabalho por não terem sabido fazer abortar o nascimento do sindicato.
Eis alguns excertos de um recente artigo mais informado de Chris Hedges sobre este assunto:
“[…] Pode-se saber o que os oligarcas mais temem, por aquilo que eles mais procuram destruir – os sindicatos. A Amazon, o segundo maior empregador do país depois do Walmart, despeja recursos impressionantes para bloquear a organização sindical, tal como o Walmart. De acordo com documentos do tribunal, formou uma equipe com 10 departamentos, que incluía um grupo de segurança composto por militares veteranos, para combater a organização sindical de Staten Island, com planos para destruir a atividade sindical de acordo com o que constava do seu “Manual de Resposta a Protestos” (Protest Response Playbook) e do “Manual de Atividade Laboral” (Labor Activity Playbook). As equipes antigrevistas organizavam reuniões obrigatórias exaustivas, tipo maoísta, até 20 por dia, com trabalhadores, onde os supervisores denegriam os sindicatos. Utilizaram subterfúgios tornando difícil a votação num sindicato. Colocaram cartazes antissindicais nas casas de banho. Demitiram trabalhadores suspeitos de pertencerem à organização sindical.”
“[…] A Amazon, como a maioria das grandes corporações, não tem quaisquer compromissos com os direitos dos trabalhadores nem com a nação. Foge aos impostos por meio de uma série de escapadelas criadas pelos seus lobistas em Washington e aprovadas pelo Congresso. A empresa evitou cerca de 5,2 biliões de dólares em impostos federais em 2021, apesar de ter registrado lucros recordes de mais de 35 biliões de dólares. Desses lucros pagou apenas 6% no imposto de renda federal. A Amazon registou receitas de mais de 11 biliões de dólares em 2018, mas não pagou impostos federais e ainda recebeu 129 milhões de dólares de devolução de impostos. Jeff Bezos, da Amazon, o segundo homem mais rico do mundo, vale mais de 180 biliões de dólares. Ele, como Elon Musk, o homem mais rico do mundo, com património de 277 biliões de dólares, brinca com foguetões espaciais como se fossem brinquedos e está a acabar a construção do seu iate de 500 milhões de dólares, o maior do mundo.
Bezos é dono do Washington Post. O bilionário biocientista Patrick Soon-Shiong é dono do Los Angeles Times. Os fundos de risco e outras empresas financeiras possuem metade dos jornais diários nos Estados Unidos. A televisão está nas mãos de cerca de meia dúzia de corporações que controlam 90% do que os americanos veem. A WarnerMedia, atualmente de propriedade da AT&T, é proprietária da CNN e da Time Warner. A MSNBC é propriedade da Comcast, que é uma subsidiária da General Electric, a 11ª maior empreiteira da defesa nos EUA. A News Corp é proprietária do The Wall Street Journal e do New York Post. Os oligarcas dominantes não se importam com o que vemos e ouvimos, desde que permaneçamos fascinados pelos espetáculos triviais e emocionalmente motivantes que eles proporcionam. Nenhum desses veículos desafia os interesses de seus proprietários, acionistas ou anunciantes, que orquestram o ataque aos trabalhadores. Quanto mais poderosos os trabalhadores se tornarem, mais a comunicação social se armará contra eles.”
“[…] Os Estados Unidos tiveram as guerras contra os trabalhadores mais violentas do mundo industrializado, com centenas de trabalhadores assassinados por capangas de empresas e milícias, milhares de feridos e dezenas de milhares colocados na lista negra. A luta pelos sindicatos, e com eles salários decentes, benefícios e proteção ao emprego, foi paga com rios de sangue da classe trabalhadora e tremendo sofrimento. A formação de sindicatos, como no passado, acarretará uma longa e cruel guerra de classes. O aparato de segurança e vigilância, incluindo a Segurança Interna e o FBI, será implantado, juntamente com empreiteiros privados e bandidos contratados por corporações, para monitorar, infiltrar e destruir organizações sindicais.
Os sindicatos possibilitaram, por um tempo, um salário de classe média para trabalhadores da indústria automóvel, motoristas de autocarros, eletricistas e trabalhadores da construção civil. Mas esses ganhos foram revertidos. Se o salário mínimo tivesse acompanhado o aumento da produtividade, como apontou o New York Times, os trabalhadores estariam a ganhar pelo menos 20 dólares por hora.
A organização de sindicatos nascente na Amazon, Starbucks, Uber, Lyft, John Deere, Kellogg, a fábrica de metais especiais em Huntington, West Virginia, propriedade da Berkshire Hathaway; REI, Northwest Carpenters Union, Kroger, professores em Chicago, Sacramento, West Virginia, Oklahoma e Arizona; trabalhadores de fast food, centenas de enfermeiros em Worcester, Massachusetts, e os membros da International Alliance of Theatrical Stage Employees são sinais de que os trabalhadores estão a descobrir que o único poder real que têm é como coletivo, embora apenas uns míseros 9% da força de trabalho dos EUA seja sindicalizada. Mil e quatrocentos trabalhadores de uma fábrica da Kellogg's em Omaha, que fabrica os Cheez-Its, conseguiram um novo contrato com aumentos salariais de mais de 15% ao longo de três anos depois de no outono passado terem entrado em greve por quase três meses.
A traição da classe trabalhadora pelo Partido Democrata, especialmente durante o governo Clinton, que fez acordos comerciais que permitiram que trabalhadores explorados no México ou na China substituíssem os trabalhadores sindicalizados nos EUA. A legislação anti trabalhista foi aprovada por políticos nos dois partidos, comprados e pagos pelo poder em nome das grandes empresas. A desindustrialização e a insegurança no emprego transformaram-se na economia do faz de conta (gig), onde os trabalhadores são reduzidos a viver com salários de subsistência, sem benefícios ou segurança no emprego, e com poucos direitos.
Os capitalistas, como Karl Marx apontou, têm apenas dois objetivos: reduzir o custo do trabalho, o que significa empobrecer e explorar os trabalhadores, e aumentar a taxa de produção, o que geralmente ocorre por meio da automação, como os omnipresentes robôs laranja da Amazon carregando prateleiras amarelas em andares de armazém de milhões de pés quadrados. Quando os seres humanos interferem nesses dois objetivos capitalistas, eles são os sacrificados.
As dificuldades financeiras que afligem os trabalhadores, presos na servidão por dívidas e perseguidos por bancos, empresas dos cartões de crédito, empresas de empréstimos estudantis, serviços públicos privatizados, a economia gig, um sistema de saúde com fins lucrativos que não impediu os EUA de terem cerca de um sexto de todas as mortes relatadas por COVID-19 em todo o mundo - embora tenhamos menos de um décimo segundo da população mundial - e os empregadores que pagam salários baixos e não fornecem benefícios estão a ficar cada vez piores, especialmente com o aumento da inflação.
Biden, enquanto esbanja 13,6 biliões de dólares na Ucrânia e expande o orçamento militar para 754 biliões de dólares, supervisionou a extensão da perda de benefícios de desemprego, a assistência de aluguer de habitação, a tolerância para empréstimos estudantis, os cheques de emergência, a moratória sobre despejos e agora o fim da expansão do crédito de imposto infantil. Ele recusou-se a cumprir até mesmo as suas promessas de campanha mais ligeiras, como o aumentar o salário mínimo para 15 dólares por hora e o perdoar os empréstimos estudantis. O seu projeto Build Back Better foi destruído sem regresso.
Os trabalhadores da Amazon, como muitos trabalhadores americanos, enfrentam condições de trabalho terríveis. Eles são forçados a trabalharem por turnos obrigatórios de 12 horas. Eles são impedidos de irem à casa de banho, tendo muitas vezes de urinar em garrafas. Eles, no verão, suportam temperaturas sufocantes dentro do armazém. Eles têm de digitalizar um novo item a cada 11 segundos para atingirem a sua quota. A empresa sabe imediatamente quando eles se atrasam. Se deixarem de cumprir a quota, é demitido.
Will Evans, num artigo de investigação “Reveal”, do The Center for Investigative Reporting, descobriu que ‘a obsessão da empresa com a velocidade transformou os seus armazéns em fábricas de lesões’. Evans acumulou relatórios de lesões internas de 23 dos 110 ‘centros de atendimento’ da empresa em todo o país. ‘Em conjunto’, escreve ele, ‘a taxa de lesões graves nessas instalações foi mais que o dobro da média nacional do setor de armazenamento: 9,6 lesões graves por 100 trabalhadores em tempo integral em 2018, em comparação com uma média da indústria naquele ano de 4’.
Aqueles que estão lesionados, Evans descobriu, são ‘postos de lado como bens danificados ou enviados de volta para trabalhos que os prejudicam ainda mais’.
‘O que aconteceu a Parker Knight na Amazon, um veterano com deficiência que trabalhou no armazém de Troutdale, Oregon, este ano, mostra a precisão implacável do sistema da Amazon’, escreve Evans. ‘Knight teve permissão para trabalhar em turnos mais curtos depois de sofrer lesões nas costas e no tornozelo no armazém, mas o ADAPT [programa de rastreamento de software] não o poupou. Knight foi multado três vezes em maio por não cumprir sua cota. As expectativas eram precisas. Ele tinha que escolher 385 itens pequenos ou 350 itens médios a cada hora. Ao fim de uma semana, ele tinha atingido 98,45% da sua taxa esperada, mas isso não foi considerado suficientemente bom. Esse déficit de velocidade de 1,55% fez-lhe receber mais um aviso por escrito – o último antes da rescisão.’
O New York Times revelou no ano passado que a Amazon também tem regularmente como alvo os que foram pais recentes, os doentes que se debatem com crises médicas e outros trabalhadores vulneráveis em licença.
‘Trabalhadores em todo o país que enfrentam problemas médicos e outras crises de vida, foram demitidos quando o software de atendimento erroneamente os marcou como faltosos, isto segundo antigos e atuais membros da equipe de recursos humanos, alguns dos quais falariam apenas anonimamente por medo de represálias’. informou o jornal. ‘As notas dos médicos desapareceram em buracos negros dos bancos de dados da Amazon. Os funcionários pugnavam até mesmo para conseguirem entrar em contacto com os gerentes do caso, percorrendo redes telefónicas automatizadas que encaminhavam as suas chamadas para funcionários sobrecarregados do back-office na Costa Rica, Índia e Las Vegas. E todo o sistema de licenças era uma manta de retalhos de programas que muitas vezes não falavam uns com os outros. Alguns trabalhadores que estavam prontos para regressar descobriram que o sistema estava com muito backup para os processar, o que resultava em semanas ou meses de perda de vencimento. Funcionários mais bem pagos, que tiveram que navegar pelos mesmos sistemas, descobriram que arranjar uma licença de rotina podia-se transformar num pântano.’
A história demonstrou que o único poder que os cidadãos têm é através do coletivo, sem esse coletivo somos tosquiados como ovelhas. Esta é uma verdade que a classe dominante passa muito tempo obscurecendo.
A classe dominante, por meio de gurus de autoajuda como Oprah, pregadores do ‘evangelho da prosperidade’ e da indústria do entretenimento, efetivamente privatizou a esperança. Eles vendem a fantasia de que a realidade nunca é um impedimento para o que desejamos. Se acreditarmos em nós mesmos, se trabalharmos duro, se entendermos que somos verdadeiramente excecionais, podemos ter o que quisermos. A privatização da esperança é perniciosa e autodestrutiva. Quando não alcançamos os nossos objetivos, quando os nossos sonhos são inatingíveis, somos ensinados que tal não é devido à injustiça económica, social ou política, mas a falhas dentro de nós. A história demonstrou que o único poder que os cidadãos têm é através do coletivo, sem esse coletivo somos tosquiados como ovelhas. Esta é uma verdade que a classe dominante passa muito tempo obscurecendo.
Qualquer avanço que façamos na justiça social, política e económica é imediatamente atacado pela classe dominante. A classe dominante reduz os ganhos que obtemos, que foi o que aconteceu após a ascensão dos movimentos de massa na década de 1930 e mais tarde na década de 1960. Os oligarcas procuram extinguir o que o cientista político Samuel Huntington cinicamente chamou de ‘excesso de democracia’. O sociólogo Max Weber, por isso, chamou a política de vocação. A mudança social não pode ser alcançada simplesmente pelo voto. Exige um esforço constante e incessante. É uma luta interminável por uma nova ordem política, que exige dedicação ao longo da vida, organizando-se para manter os excessos vorazes do poder sob controle e o sacrifício pessoal. Esta vigilância eterna é a chave para o sucesso.
Enquanto escrevo, a vasta maquinaria da Amazon está sem dúvida a planear destruir o sindicato em Staten Island. Não pode permitir que seja um exemplo de sucesso. Possui 109 ‘centros de atendimento’ que está determinada a manter não sindicalizados. Mas, se não nos acomodarmos, se nos continuarmos a organizar e a resistir, se unirmos as nossas armas com os nossos aliados sindicalizados em todo o país, seremos capazes.”
Quem com certas coisas não perde a cabeça, é porque não tem nada a perder, Lessing.
Na verdade, a sociedade não pode aceitar a realidade da minha culpa sem reconhecer ao mesmo tempo que a sua culpa é muito mais profunda, Claude Eatherly.
Bem-aventurada a época em que os loucos falam assim, desventurada a época em que só os loucos falam assim.
Uma vez que adquirimos a capacidade para por fim ao tempo, já não há marcha atrás; poderemos ser capazes de aprender coisas novas, mas o que nunca poderemos fazer é desaprender o que aprendemos, G. Anders.
A 6 de agosto de 1945, o major aviador Claude Eatherly (1918–78) descolou de Tinian, uma ilha no Pacífico, para, com o seu avião B-29 Straight Flush sobrevoar Hiroxima, verificar as condições do tempo (a bomba teria de atingir um determinado alvo que teria de estar visível) e o nível da oposição armada inimiga presente, e mediante as condições encontradas informar por rádio o chefe da missão, o tenente coronel Paul Tibbets, indicando que podia prosseguir para o objetivo.
Tibbets, pilotando o B-29 Enola Gay, assim fez, e largou a histórica primeira bomba atómica sobre Hiroxima, matando instantaneamente mais de 92.000 pessoas (japoneses) e pulverizando a cidade. Três dias depois seguiu-se Nagasáqui e mais 40.000 mortos.
Dois anos depois, em 1947, Eatherly é dispensado pela Força Aérea (terminada a Guerra, havia que reduzir os efetivos, e no seu caso porque o comportamento deixava dúvidas - ele copiara num exame escrito). Os próximos 17 anos passa-os a entrar e a sair de prisões (por crimes estranhos, como o de assaltar uma loja de conveniência com uma pistola partida, exigir que as vítimas pusessem todo o dinheiro numa mala, e depois sair deixando a mala em cima do balcão da loja), hospitais (duas tentativas de suicídio) e do Hospital dos Veteranos em Waco, Texas, acabando em 1961 por, apesar do pedido do irmão e com a conivência do hospital para ser declarado o seu internamento definitivo como doente mental (o que implicaria que o internamento não seria voluntário e do qual não poderia sair por sua vontade) ser declarado pelo tribunal como suficientemente competente para poder gerir a sua vida.
Tentando assim sair legalmente do hospital, viu-se impedido de o fazer por a Força Aérea ter solicitado o seu internamento definitivo, o que veio invalidar a sentença do tribunal. Segundo o seu médico, ele deveria de deixar de escrever artigos contra as armas nucleares e de os enviar para publicação.
Decidiu-se então por fugir do hospital, e viveu livre durante dois meses, até que foi mandado parar por um polícia que lhe disse que tinha passado um semáforo vermelho (o que não era verdade, porquanto não era ele que estava a conduzir), sendo de novo internado no hospital.
É na sequência deste episódio que Günther Anders vai escrever ao presidente Kennedy, a seguinte carta:
De Günther Anders para o Presidente John F. Kennedy
13 de janeiro de 1961.
Prezado senhor Presidente,
O motivo porque lhe escrevo esta carta, e que simultaneamente a revelo à imprensa internacional, é o seguinte: dado o grande número de assuntos que tem tido de despachar durante estes últimos meses, é possível que lhe possa ter escapado um determinado caso, mais corretamente um escândalo moral que herdou ao assumir as rédeas do governo; um escândalo moral que ameaça passar para a história como o Caso Dreyfus do século XX -ou melhor, como um caso talvez ainda mais grave, pois devido à rapidez das comunicações atuais, faz com que aqueles que provocam ou mesmo que apenas toleram um escândalo como este, possam perder o seu bom nome e respeitabilidade mais rapidamente e mais profundamente do que a França perdeu o seu bom nome com o Caso Dreyfus. Estou a falar-lhe do caso de Claude Eatherly, o piloto de Hiroxima que, como naturalmente sabe, foi quem deu o sinal de «Prossigam» nas duas «missões» atómicas.
Provavelmente, perguntar-se-á que direito tenho eu, um filósofo vienense que vive longe de Waco, o local de residência de Eatherly, e longe de Hiroxima, o lugar da sua ruína, para emitir um juízo sobre este caso. Resposta: há ano e meio que mantenho correspondência com Eatherly, e tenho em meu poder um sem número de cartas que não só transmitem uma imagem completa deste homem, mas que o retratam como uma pessoa digna de respeito.
Pode também perguntar como o conheci. Resposta: não o conheço pessoalmente. Mas como desde 1945 tenho tentado dilucidar os problemas morais que a era atómica nos coloca – as minhas publicações sobre este assunto não são inteiramente desconhecidas – sigo com interesse os destinos e as manifestações das figuras principais que abriram a porta que nos conduziu a esta nova era; numa palavra: num certo dia caiu nas minhas mãos um artigo da Newsweek sobre Eatherly, artigo esse que me comoveu tanto que me decidi escrever-lhe. A minha carta e a resposta de Eatherly acabaram publicadas em todo o mundo. E foi assim que nasceu a correspondência a que acima referi.
Mas o verdadeiro motivo desta carta é a notícia que hoje, 13 de janeiro, chega vinda de Waco (Texas), segundo a qual um informe forense declara que Eatherly é considerado como doente mental.
Falando o mais claramente possível: este veredicto não se ajusta à realidade dos factos. E não duvido nem por um momento que também o senhor presidente, após dar uma vista de olhos nos extratos das cartas de Eatherly que aqui junto como apêndice, considerará estranho o diagnóstico dos médicos forenses.
A um homem como este só se pode qualificá-lo como «anormal» se, como se costuma fazer nestes tempos de conformismo, se identificar 'comportamento normal' como 'comportamento médio'; certamente, se por conduta «anormal» se entende aquela conduta que não se ajusta à norma, então a inflexibilidade e a permanente vigilância da consciência de Eatherly tem de considerar-se algo «anormal». Mas, se assim o fizermos, deveríamos também incluir as obras de santo Agostinho ou de Kierkegaard (só para mencionar dois homens espiritualmente muito distintos de Eatherly) nas prateleiras da secção de psiquiatria da nossa biblioteca, em vez de as colocar na secção de teologia ou de filosofia moral.
Pode-se objetar que Eatherly, através de seu comportamento estranho (os seus repetidos assaltos simulados e outras coisas similares) na verdade provaram a sua anormalidade (no sentido médico do termo). Naturalmente, enquanto tais, estes atos são indiscutíveis, mas quando se os interpreta, adquirem outro sentido, ou melhor dito, adquirem sentido.
Qualquer médico sensato o sabe: não é normal atuar com normalidade durante ou depois de uma situação anormal. Não é normal que alguém, depois de sofrer um choque terrível, se comporte como se nada se tivesse passado. Assim sendo, desde um ponto de vista médico é ainda menos normal que uma pessoa continue a comportar-se de uma forma «normal» quando o espoletar desse choque exceder tudo aquilo que uma pessoa é capaz de imaginar, assimilar e lamentar – e este é o caso de que falamos, pois Eatherly deixou atrás de si centenas de milhar de mortos e uma cidade arrasada. Reagindo de forma «anormal», ele reagiu da forma adequada. Para nomear aqueles casos em que se produz uma reação inadequada por defeito, a psicologia académica tem um termo técnico, o conceito de «agnosia» (cegueira da alma), cujo exemplo paradigmático é o das declarações célebres e infames do seu predecessor, o presidente Truman que, por ocasião do seu aniversário aos 75 anos, ao lhe ser perguntado se ao longo da sua vida tinha existido qualquer coisa que lhe tivesse causado dor ou arrependimento, respondeu que sim, que lamentava profundamente não se ter casado antes. Hiroxima nem lhe veio à mente; aparentemente esse acontecimento fora muito grande para entrar numa mente tão pequena. Ou, nas palavras de Lessing: «Quem com certas coisas não perde a cabeça, é porque não tem nada a perder».
Por outro lado, considerar fenómenos isolados de Eatherly como «ações criminosas», em vez de interpretá-las como reações, é muito pouco científico e impróprio da profissão médica. Isto é o mesmo que nós, frente a um homem espancado até a morte, nos limitássemos a constatar a extraordinária altura dos seus gritos e os interpretássemos como prova da sua anormalidade, passando por alto a anormalidade da situação em si.
Infelizmente, existem muitas razões para pensar que os médicos de Eatherly tenham considerado as suas reações de forma isolada, desligando-as das ações às quais eram resposta: efetivamente (veja-se a Newsweek de 25 de maio de 1959), estes médicos falaram de «complexo de culpa», tratando assim de fazerem crer, inclusivamente a quem tivesse algum conhecimento de psicologia, que, na realidade, Eatherly tinha um sentimento de culpabilidade injustificado e absurdo, algo que só se podia entender como uma doença. Vulgarizando vergonhosamente um termo psicanalítico, tiveram até o atrevimento de dizer que padecia de um «complexo de Édipo», como se por detrás do seu comportamento houvesse um desejo de incesto, e não a imagem inapagável de centenas de milhar de mortos. Permita-me, senhor presidente, que à margem lhe diga que este uso absurdo e inapropriado de linguagem científica, cuja autêntica finalidade é de ataviar de cientificidade o que não passam de meias verdades, tem vindo há vários anos a prejudicar o prestígio dos Estados Unidos perante os intelectuais do mundo inteiro.
Se Eatherly cometeu aparentes atos ilícitos, transgrediu a lei, fê-lo por um motivo muito plausível. Enquanto tentava desesperadamente assumir os efeitos de uma ação em que tinha ficado incorporado como mais uma peça entre os milhares de peças desenhadas para cumprirem perfeitamente a sua função; enquanto que, em virtude da inutilidade do seu intento, conseguia compreender que o que ali tinha acontecido excedia a capacidade de todo o ser humano para se responsabilizar pelos seus atos; enquanto chegava à conclusão que era dever de todos intentar conceber a enormidade do sucedido e a horrível facilidade técnica com que tal monstruosidade tinha podido acontecer, com o fim de que algo assim não voltasse jamais a acontecer; enquanto que nele amadurecia lentamente a determinação de consagrar a sua vida a esta causa; enquanto tudo isto ocorria no seu interior, Eatherly era celebrado como um herói nacional, e nem uma só revista deixou de oferecer este patriótico must: a formosa fotografia do dito rapaz do Texas. Para Eatherly, esta fama era-lhe simplesmente insuportável. E os seus atos ilícitos têm de ser vistos como o resultado desta insofrível incongruência entre culpa e glamour. Como a sua participação na missão de Hiroxima não era reconhecida como um crime, teve de arquitetar e fazer uso de outros métodos para conseguir eu lhe dessem o castigo. Existe também um direito ao castigo – expressão introduzida por Hegel – e se há algo que carateriza a quem não é um criminoso, é precisamente a insistência no seu direito a ser castigado. Foi exatamente isto que fez Heatherly: com os seus aparentes atos ilícitos, procurou que se lhe desse o castigo que não se lhe queria conceder.
Naturalmente, não é uma casualidade que lhe negassem o castigo e que o seu permanente arrependimento – que só podia resultar ineficaz, uma vez que diante aqueles factos todo o arrependimento é impotente – se apresentasse publicamente como um arrependimento injustificado, pois reconhecer que um arrependimento é justificado equivale a considerar como provado o crime que o provoca. Por outras palavras: o seu arrependimento seria uma acusação, uma acusação contra a missão de Hiroxima e contra quem tinham sido os seus verdadeiros artífices, cuja absoluta falta de imaginação os tinha inclusivamente levado a crer que eram capazes de se responsabilizarem pelo sucedido. Ou para dizer com as palavras do doente mental: «Na verdade, a sociedade não pode aceitar a realidade da minha culpa sem reconhecer ao mesmo tempo que a sua culpa é muito mais profunda». (Carta sem data que Eatherly me escreveu entre 10 e 15 de agosto de 1959). Perante uma frase como esta, só se pode exclamar: Bem-aventurada a época em que os loucos falam assim, desventurada a época em que só os loucos falam assim.
Provavelmente, ao lerem esta carta alguns leitores menearão a cabeça, perguntando-se: «Mas, porquê ele? Porquê ele arrepender-se quando apenas se limitou a dar o sinal que podiam prosseguir; ele, que não se inteirou da descoberta da divisão do átomo a não ser depois de fazer o que fez; ele, cuja única coisa que fez foi cumprir ordens e que foi só um instrumento?»
Senhor presidente, esta é uma objeção que eu nunca poderia aceitar. Não quero aqui entrar na ambiguidade, e isto exprimindo-me eufemisticamente, que se incorre quando se dão ordens a alguém para fazer algo sem lhe permitir que nada saiba sobre o efeito da ação ordenada. Limitar-me-ei a falar sobre o “não saber” como desculpa de um crime. Eu sou judeu, perdi muitos amigos nas câmaras de gás de Hitler. Com estas palavras, «Limitei-me a cumprir ordens», os funcionários do extermínio intentaram lavar as mãos; estas palavras parecem-se demasiado com aquelas que pronunciou Eichmann e que ainda circulam na imprensa internacional: «Na verdade, eu não fui senão uma pequena peça na engrenagem, limitando-me a cumprir as instruções e as ordens do Reich. Não sou um criminoso nem um assassino em série» (Life, 9 de janeiro de 1961).
Não, Eatherly não é o irmão gémeo de Eichmann, mas ainda bem para nosso consolo, ele é justamente o seu polo oposto. Não é o homem que pretende desculpar a sua inconsciência apelando para a engrenagem de que foi parte, mas antes é um homem que reconhece que esta máquina representa uma terrível ameaça para a consciência. E deste modo aponta certeiramente para o que hoje constitui o nosso principal problema moral, alertando-nos para um risco fundamental: quando apelamos para a engrenagem da que acreditamos ser meramente uma peça inconsciente e consideramos totalmente justificada a frase: «Nós só fizemos o que os outros faziam», cancelamos a liberdade da decisão moral e a liberdade da consciência, convertemos a palavra «livre» da expressão «o mundo livre» no termo mais vazio e hipócrita. Temo que não tenhamos sabido evitar este risco. A grandeza de Eatherly consiste precisamente em ter a valentia de dar a volta ao argumento, e assim se ter subtraído à perversão moral dominante. Eatherly proclama: aquilo em que eu só participei é também algo que eu fiz; o objeto da minha responsabilidade não são apenas os meus atos individuais, mas sim todos «os atos em que participei»: a pergunta da nossa consciência não é apenas: «O que devemos de fazer?», mas também: «Em que e até que ponto é que devemos participar ou não participar?» Ou melhor: Eatherly sente-se inclusivamente mais responsável dos atos que realizou com outros que com os seus próprios atos enquanto indivíduo, pois as consequências destes últimos, comparados com os efeitos catastróficos dos primeiros, acabam por serem totalmente insignificantes. Comportar-se de forma irrepreensível na vida privada não é grande coisa, pois nesta esfera o costume costuma substituir a consciência. É para se enfrentar com o terror subtil da participação que se requer uma autêntica autonomia moral e um verdadeiro valor cívico; e quando este enfrentamento, como acontece no caso de Eatherly, consiste num questionamento da acumulação de armas nucleares por parte de um país, o círculo infernal da mera participação rompe-se, a ação converte-se verdadeiramente em ação individual no sentido clássico do termo. Eatherly foi constantemente celebrado como herói. Mas o seu feito não foi que, após a sua célebre missão, Hiroxima não exista, mas antes o ter ousado gritar «Nunca mais Hiroxima» depois de fazer o que fez.
Normalmente, a engrenagem desculpa a todos – incluindo os que a dirigem e aos seus proprietários – de toda a responsabilidade, de modo que no final ninguém assuma qualquer responsabilidade, e o único que fica é a terra carbonizada das vítimas e a radiante boa consciência dos néscios. Quando Eatherly se responsabiliza por aquilo em que participou, faz justamente o contrário: intenta manter viva a consciência na época em que a engrenagem prevalece sobre o indivíduo; e é isto que não se lhe consente, pois, a consciência implica sempre crítica, e, portanto, é sempre inconformista.
Não, isto não se lhe consente. Da informação que tenho sobre o que aconteceu em Waco, parece-me indubitável que as Forças Aéreas como as autoridades do Veterans Administration Hospital, fizeram todo o possível para que os médicos retivessem indefinidamente Eatherly no centro hospitalar. Infelizmente, não conheço em profundidade o Direito norte-americano. Por isso não sei e que lei se podem basear as forças Aéreas para disporem de um civil (Eatherly foi afastado do serviço em 1947) nem em que disposições jurídicas se baseiam para atrasar as audiências a pedido dos médicos, nem que cláusula permite que um cidadão considerado oficialmente como um «doente voluntário» possa ficar detido contra a sua vontade, sendo preso após abandonar o hospital por vontade própria, voltando a ser internado. Como digo, como leigo no respeitante à Federal Law e ao Direito público do Estado do Texas, todas estas medidas, cuja correção não ponho em dúvida, excedem o meu conhecimento, e não creio que seja pertinente continuar a aborrecê-lo com o meu desconhecimento destes temas.
Sem dúvida, que pelo tom desta carta, o senhor presidente, terá dado conta que não é minha intenção solicitar o indulto de Eatherly. A concessão de indulto, mas também o simples facto de o solicitar, equivaleriam a reconhecer implicitamente a culpa da pessoa para quem se solicita o indulto. Ora bem, o facto que Eatherly tenha a consciência e valor suficientes para se sentir culpado de um crime urdido por outros, não pode considerar-se como algo punível, mas antes um comportamento digno de respeito e de gratidão. E, segundo o meu entendimento, para aqueles que se sentem orgulhosos de ser norte-americanos seria não só lamentável, mesmo vergonhoso, que Eatherly seja considerado como um estorvo ou uma vergonha no seu país; e que, pelo contrário, justamente ali onde o ódio para com a sua pessoa fosse mais compreensível, em Hiroxima e Nagasaki, seja alguém respeitado e inclusivamente querido. Sei que é assim tanto pelo que as próprias vítimas dizem – uma vez que falei com algumas delas sobre a sorte dos pilotos de Hiroxima, e que consideram Eatherly como mais uma vítima daquela catástrofe -, como pelas demonstrações de afeto que ele próprio tem recebido daquele país e que me deu a conhecer. «Esta carta – escreveu em 29 de julho de 1959 um grupo de trinta raparigas de Hiroxima contaminadas pela radioatividade – foi escrita para lhe expressar a nossa mais profunda simpatia e para lhe assegurar que não sentimos nenhum ódio para consigo. Tal como nós, você é mais outra vítima de Hiroxima». Sem dúvida, estas palavras só nos podem deixar mudos a todos os que por um instante tenham nascido iguais, pois saem da boca dessas pessoas que nos permitem sentir orgulhosos de pertencer ao género humano.
Poderia o senhor presidente considerar a possibilidade de organizar um grupo de psiquiatras para voltarem a examinar a saúde mental de Eatherly, por forma a que a sorte dependesse do diagnóstico dessa nova comissão? Essa comissão deveria utilizar os mesmos critérios para a sua formação que os seguidos para idênticas comissões das Nações Unidas, ou seja: deveria ter um caráter internacional e os seus membros deveriam de ser científicos de renome de vários países, por exemplo um sueco, um indiano, um polaco e um japonês. Se o senhor presidente der satisfação a este meu pedido, não haveria dúvida que a sua iniciativa confirmaria claramente a respeitabilidade e a estatura moral dos Estados Unidos. Por outro lado, um passo como este no início do seu mandato, poderia ser interpretado como uma declaração de princípios do seu governo, e inspiraria em todos os países do mundo uma absoluta confiança sobre os passos que pudesse vir a tomar enquanto estivesse no poder.
Poderia imaginar perfeitamente, uma vez que o senhor presidente passa por ser um homem moderno e sem preconceitos, vê-lo um dia numa qualquer ocasião que viesse a falar com Eatherly. Mas não como primus inter pares, mas de igual para igual, pois, com efeito, a enorme responsabilidade que agora tem – e que o desenvolvimento da física nuclear converteu praticamente na responsabilidade sobre o «Ser ou não ser» da humanidade – esta responsabilidade, esta carga, não é muito distinta da que Eatherly suporta desde há quinze anos, pois durante todos este tempo ele não a esqueceu nem um só momento. E mesmo no caso de o homem Eatherly, seu possível interlocutor fosse um pobre diabo (que não o é), se visse a ser condenado por realizar inconsciente e involuntariamente aquela ação e a arrastar durante toda a sua vida esta carga, tal convertê-lo-ia numa figura trágica, num símbolo de hoje, num homem da mesma condição que o senhor presidente, e não só enquanto nascido igual.
Atenciosamente,
Günther Anders
Finalmente, no início de 1962, Eatherly é solto. Viverá até 1978, casado, com duas filhas, sem problemas de maior e regressando no fim da vida ao hospital em Waco para morrer de cancro.
Nesse verão, Anders transcreve na Monthly Review, (1) NY, toda a sua correspondência com Eatherly, a que acrescenta um epílogo em que destaco:
“[…] É possível que, quando se publiquem estas linhas, a situação tenha voltado a alterar-se. Nenhum intento de compreender a nossa época goza do privilégio dos jornalistas e apresentadores de televisão, que podem permitir-se ao luxo de sincronizar as suas palavras com os factos que estão a informar; diferentemente deles, nós outros não temos outro remédio que ir a reboque da atualidade, e somos disso conscientes. Mas tal não nos deve inquietar, pois não é a nossa tarefa o apresentar os últimos sucessos, mas sim interpretar uma situação permanente. Isto evita-nos o ter que ir a reboque desses sucessos, evidentemente só no melhor e nos casos menos prováveis, porquanto o único que permanece na nossa situação sempre cambiante é a constante ameaça de que nada seja permanente, e o facto de que todas as nossas advertências chegam sempre tarde.
[…] Porque de agora em diante – se ainda tivermos tempo – estamos condenados, e continuaremos estando, a viver numa situação cuja natureza é já imutável; estamos condenados a viver na «última época», uma época que só pode pôr-se fim a si mesma, e que continuará a ser a última ainda que logremos atrasar dia a dia o «fim dos tempos» […] Este rasgo distintivo da nossa época jamais desaparecerá, pois uma vez que adquirimos a capacidade para por fim ao tempo, já não há marcha atrás; poderemos ser capazes de aprender coisas novas, mas o que nunca poderemos fazer é desaprender o que aprendemos”.
Guns don’t kill people – people kill people, mote da NRA (National Rifle Association).
A teoria aparece como uma construção, um meio auxiliar para compensar a falta de dados, Chris Anderson.
Qualquer tentativa para nos pôr a atuar racionalmente tem de ter em consideração todos os preconceitos porque somos constituídos, Daniel Kahneman.
Nós somos Utópicos Invertidos: ao passo que os Utópicos normais são incapazes de produzir o que não conseguem visualizar, nós já não conseguimos visualizar o que estamos a produzir, Günther Anders.
Já aqui falámos várias vezes sobre “mito”, nomeadamente no artigo de 24 de fevereiro de 2019, “As razões que a razão desconhece”, que iniciámos tentando explicar que perante uma realidade difícil de perceber e dominar, os primeiros homens viram-se na necessidade de “construírem um racional” que lhes permitisse simultaneamente entendê-la e protegerem-se a si próprios e às suas comunidades. Surgiu assim uma das estruturas compreensivas face-a-face com a realidade, uma primeira forma do humano se confrontar com a realidade, a que posteriormente se veio chamar de “mito”.
Independentemente das várias explicações e compreensão que possam acompanhar o mito, é importante perceber que ele funciona sempre através daquilo que chamamos ser pensamento por correlação.
Exemplificando: Se durante a noite em que uma mulher grávida está para dar à luz, um lobo uivar e logo de seguida ela tiver uma criança saudável, então forma-se o mito de que sempre que um lobo uivar na noite em que uma mulher grávida estiver para dar à luz, tal é bom para a criança. Ou seja, apesar de não haver qualquer ligação entre as duas ocorrências, conclui-se pela sua relação.
A partir do momento em que a humanidade encontrou um método (a escrita) para transmitir, de geração em geração, séries de observações feitas, passando a ser possível classificá-las e coordená-las para daí tirar conclusões e induções, então a chamada “filosofia natural” (ciência) vai começar a substituir a mitologia. O mito é substituído pela hipótese, pela teoria científica. Causas e consequências, lógica. Um pensamento racional, com que temos vivido os últimos 2.700 anos, e que começa a ser atacado por desnecessário e por obstruir o “progresso”.
Em 2008, Chris Anderson, escreveu um artigo muito interessante, “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete” (O fim da teoria: o dilúvio dos ‘data’ torna obsoleto o método científico), que começa com uma citação do matemático George E. P. Box: “Todos os modelos estão errados, há é alguns que são úteis”.
Para Anderson, a teoria aparece como uma construção, um meio auxiliar para compensar a falta de dados. Se dispusermos de dados suficientes, a teoria passa a ser supérflua. Em vez da criação de modelos de teorias hipotéticas, podemos passar diretamente à análise matemática sem o estabelecimento de hipóteses sobre o que poderão significar, deixando para depois o estabelecimento do contexto.
Podemos lançar números para as maiores constelações de computadores existentes e deixar que sejam os algoritmos estatísticos a encontrar os padrões que a ciência não consegue. A correlação passa a substituir a causalidade. O “é assim” substitui o “porque”.
Transcrevendo Anderson:
“Empresas como a Google, que cresceram numa época de massas de dados enormemente grandes, hoje em dia não têm que decidir-se por modelos errados. Aliás, não têm mesmo que decidir-se em geral por nenhum modelo […] Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos.”
A Google não sabe porque é que uma página é melhor do que outra: é suficiente que as estatísticas que lhe chegam dos enlaces, lhe digam que é melhor. Não é necessária qualquer análise semântica ou causal. É por isto que a Google pode traduzir linguagens sem as ‘conhecer’, e é por isso que pode adicionar anúncios a conteúdos sem conhecer nem os anúncios nem os conteúdos.
Daniel Kahneman, um notável psicólogo e economista, Prémio Nobel de Economia em 2002, apresentava nas suas masterclasses que deu entre 2007 e 2008, “A short course of thinking about thinking”, uma enorme quantidade de dados de exemplos da vida, desde influências nas decisões judiciais até às dos negócios, para nos levar a concluir que não sabemos quem somos ou como somos, não sabemos o que na realidade estamos a fazer e porque o estamos a fazer.
Kahneman queria com isto demonstrar que nós não somos criaturas racionais, sendo antes instintivas, pelo que nos avisava que qualquer tentativa para nos pôr a atuar racionalmente tinha de ter em consideração todos os preconceitos porque somos constituídos, caso contrário, o falhanço seria inevitável.
Parece que ao fim de milhares de anos, o pensamento de correlação base do mito, menosprezado e menorizado, tenha conseguido permanecer, acabando mesmo por ressuscitar. Ou seja, o mito pode encerrar verdades escondidas, não reveladas.
Prometeu, que etimologicamente parece querer significar “aquele que vê antes”, que é “clarividente”, e o seu irmão Epimeteu, que ao contrário era “aquele que vê depois”, foram os titãs encarregados de criarem os mortais, os seres vivos, quer animais quer humanos.
Prometeu ficaria encarregue de supervisionar as criações do irmão. Este fez os animais e concedeu-lhes dons como força, coragem, velocidade, presas, garras, asas e agilidade. Quando chegou a vez dos humanos, criados a partir do barro, encontrou-se sem mais qualidades para distribuir.
“Tinham olhos para ver, mas não tiravam proveito do que viam; tinham ouvidos, mas não compreendiam os sons; como vultos em um sonho, ao longo dos dias, andavam sem propósito em total confusão. E viviam no fundo do solo, em cavernas escuras, como bandos de formigas”, Ésquilo, Prometeu Agrilhoado, século V a. C.
Assim que Prometeu viu o que o irmão tinha feito, apiedou-se dos humanos, pelo que resolveu roubar o fogo aos deuses dando-o aos homens para assim estes ficarem em vantagem face aos animais.
Quando Zeus, o deus dos deuses, descobriu o que Prometeu fizera, jurou vingar-se:
“Filho de Jápeto, que ultrapassou a todos em astúcia, está feliz por me ter enganado. Mas o seu presente será uma grande praga para a humanidade. Em troca do fogo, darei aos homens um mal que vai seduzi-los, e que eles acolherão com alegria, sem saber que abraçam a sua própria destruição”, Hesíodo, Trabalhos e Dias, século VIII a. C.
Resolve ainda castigá-lo: mandou Hefesto, deus da metalurgia, acorrentá-lo no cimo do Monte Cáucaso. Onde todos os dias pela manhã aparecia uma águia para lhe comer o fígado, que regenerava durante a noite para voltar a ser comido no dia seguinte.
Mas antes de ser castigado, Prometeu avisou o irmão para que tivesse cuidado e não aceitasse nenhum presente de Zeus. Mas Zeus encarrega a lindíssima Pandora (“um mal belo”, Hesíodo, Teogonia) de o seduzir, dando-lhe como presente de casamento uma caixa, a ainda hoje conhecida como “caixa de Pandora”, que continha todas as desgraças que assolariam a humanidade.
Na sua interpretação clássica, o fogo significa a possibilidade de
transformação da natureza e o conhecimento. O fogo como tecnologia, um marco na história da humanidade que permitiu a possibilidade de criar e habitar estruturas artificiais, um salto na evolução e adaptação humana. E o fogo como conhecimento que podia ser usado tanto para o bem como para o mal.
Neste sentido, Prometeu representa um salvador da humanidade, mas que, contudo, devido ao seu temperamento transgressor foi cruelmente punido, “o castigo da hybris por ultrapassar os limites da justa medida”, uma advertência para se ser obediente aos poderosos.
Se o associarmos ao irmão, pode representar o símbolo da ambiguidade ou da dualidade entre aquele que prevê ou que age com sensatez e discernimento, e aquele que não reflete antes de tomar atitudes.
Não admira que perante a importância de tal mito a grande maioria dos pensadores, escritores e artistas tenham deixado a sua interpretação. De Sócrates e Platão, de Bacon a Nietzsche, Goethe, Kafka e Mary Shelley (que no seu Frankenstein colocou como subtítulo O Prometeu Moderno), de Ibsen a Sartre (As moscas), na música erudita, ópera, ballet e ainda no cinema, com o Prometheus (2012) de Ridley Scott, a que se lhe seguiu a continuação Alien: Covenant (2017), todos tentam comunicar-nos a sua visão.
GüntherAnders (nascido Günther Stern,1902-1992), filósofo judeu alemão, primeiro marido de Hannah Arendt, aluno de Edmund Husserl e de Martin Heidegger, primo de Walter Benjamin, publicou em 1956 o ensaio “Da Vergonha Prometeica” como parte da sua obra A Obsolescência dos Seres humanos 1: Sobre a Alma na Idade da Segunda Revolução Industrial.
A ideia para esse ensaio já o vinha acompanhando desde 1930, quando na “The Pathology of Freedom: An Essay on Non-Identification” expressava que os seres humanos tinham nascido inacabados, como seres que para se sentirem à vontade no mundo necessitavam de se refazerem com a ajuda de artifícios.
É que, contrariamente aos outros animais, os humanos foram deixados nus, sem defesas e sem abrigo, o que fez com que eles só se pudessem desenvolver no mundo se, com a ajuda de artifícios, se transformassem noutros seres. Tinham de se “retirar”, de se afastar dessa sua falta de poder inicial e dessa sua exposição às contingências do mundo. Retiraram-se para abrigos, para a utilização de vestuário, para o endurecimento das mãos ou para a utilização de ferramentas e de instrumentos, ou para o ludibriar a natureza através de plantações. Só pela utilização desses artifícios puderam encontrar o espaço que lhes permitisse emergir neste mundo e conseguir moldá-lo.
É o mito de Prometeu que permite estabelecer a ligação entre a humanidade e a tecnologia, ao tornar visível a “invisibilidade” do seu efeito formativo, apresentando o humano não como um utilizador de artefactos, mas como um ser tecnológico, um ser que existe não só devido à sua relação com a tecnologia, mas que também tem sido continuadamente reformado por essa relação.
Qualquer inovação tecnológica tem consequências e efeitos imprevisíveis, indo ao mesmo tempo reconfigurando os parâmetros da existência humana.
Acontece que, quanto mais a tecnologia avança, mais impressionados e embaraçados vamos ficando por termos nascido como nascemos, obsoletos, sem utilização. Sentimos que não estamos à altura da perfeição dos nossos produtos.
Por comparação com a alta qualidade dos objetos feitos pelo homem e pela sua infinitude (o aparecimento de produtos fabricados em série constituem uma reincarnação industrial), o homem surge como uma falha que nos envergonha:
“[…] Os humanos sentem-se indignados não por terem sido feitos por outros (Deus, deuses ou natureza), mas por não terem mesmo sido feitos e por isso serem inferiores a todas as coisas por eles fabricadas.”
É “a vergonha de termos nascido em vez de termos sido feitos”.
Esta vergonha, este mal-estar, resulta da artificialidade da natureza dos seres humanos que tem vindo a aumentar ao longo da história, na medida em que os humanos se vão tornando em produtos dos seus próprios produtos. E o que acontece atualmente é que os humanos já não conseguem acompanhar as necessidades que os seus próprios produtos lhes impõe.
Algo que já Anders notara nas “Teses para a Idade Atómica”, quando diz que “nós somos Utópicos Invertidos: ao passo que os Utópicos normais são incapazes de produzir o que não conseguem visualizar, nós não conseguimos agora visualizar o que estamos a produzir”.
Como humanos nascemos estranhos a um mundo que apenas conseguimos habitar por nos termos retirado para estruturas artificiais. Estamos assim obrigados a viver dentro de um mundo que não é o nosso, dentro de um mundo que, apesar de estar produzido e ser mantido em movimento por nós com o nosso trabalho cotidiano, não está construído para nós. Dentro de um mundo para o qual nós fomos pensados, utilizados, mas cujas normas, aspirações, linguagem e gosto não são os nossos, não nos são permitidos.
Num mundo em que a tecnologia se tem vindo a impor como neutral, uma vez que podendo tanto ser usada para o bem como para o mal dependendo de quem a usa (recordemos o mote da NRA, Associação Nacional de Espingardas, “Guns don’t kill people – people kill people”), se tende a esquecer o que Hesíodo pôs na boca de Zeus:
“Em troca do fogo, darei aos homens um mal que vai seduzi-los, e que eles acolherão com alegria, sem saber que abraçam a sua própria destruição”
Prometeu evoluiu. Já não é apenas “o que vê antes”, mas “o que vê de longe”. Passou a Palantir. Cumpriu-se a profecia de Zeus.
Se não se lembra de alguma vez ter visto uma tão intensa campanha de meios de comunicação à volta de uma guerra, é porque não viu mesmo.
Se se está a sentir um pouco como Keanu Reeves no início do Matrix logo antes do véu ser arrancado, recomendo seguir o coelho branco e ver o quão profunda é a toca do coelho.
Se lhe está começar a parecer que estamos todos a ser manipulados em grande escala para pensar, agir e votar de uma maneira que beneficie uma vasta estrutura de poder que nos governa enquanto ela esconde a sua verdadeira natureza, eu diria que vale a pena seguir a pista.
Raras são as vezes que se consegue escrever algo que exprima num só trabalho aquilo que somos, quanto mais incluir nesse escrito tudo aquilo que de mais importante produzimos. Caitlin Johnstone, jornalista australiana, estando no presente com o conhecimento do passado e olhos postos no futuro, fê-lo num dos seus últimos artigos, o de 11 de abril de 2022, que intitulou “If It Feels Like You’re Being Manipulated, It’s Because You Are” (Se você sente que está a ser manipulado, é porque está mesmo).
Reproduzo-o aqui, com as ligações por ela sugeridas (para o que basta clicar sobre as mesmas).
“Se tem o pressentimento de que os que nos governam estão a trabalhar para controlar a sua perceção sobre a guerra na Ucrânia, é mais seguro confiar nesse sentimento.
Se sente que existe um esforço conjunto das instituições governamentais e dos meios de comunicação mais poderosos do mundo ocidental para manipular a sua compreensão sobre o que está a acontecer com esta guerra, é porque é exatamente isso que está a acontecer.
Se não se lembra de alguma vez ter visto uma tão intensa campanha de meios de comunicação à volta de uma guerra, é porque não viu mesmo.
Se tiver a nítida impressão de que esta pode ser a guerra mais agressivamente dirigida à perceção e com o uso mais intensivo de operações psicológicas na história da humanidade, é porque é.
Se parece que as plataformas de Silicon Valley estão a controlar o conteúdo que as pessoas veem para lhes dar uma perspetiva sobre essa guerra que é extremamente tendenciosa a favor da narrativa dos EUA, é porque esse é realmente o caso.
Se parece uma coincidência suspeita que o Russiagate tenha fabricado o consentimento maioritário para todas as agendas obscuras que estamos a ver crescer agora, como a guerra fria contra Moscovo, a censura na internet, e o de ser constantemente enganado pelos meios de comunicação de massa para um bem maior, é porque é mesmo uma coincidência muito suspeita.
Se lhe parece um pouco hipócrita que o império nos esteja a atacar todo o dia com narrativas sobre crimes de guerra russos enquanto esse mesmo império está a prender um jornalista por expor os seus crimes de guerra, é porque é mesmo totalmente hipócrita.
Se lhe parece algo de errado o facto de estarmos prestes a ver um juiz aprovar a extradição de Julian Assange para os Estados Unidos por praticar jornalismo enquanto esses mesmos Estados Unidos continuam a divulgar narrativas sobre a necessidade de proteger a liberdade e a democracia da Ucrânia, é porque deverá estar mesmo errado.
Se está a começar a ter a sensação incómoda de que a visão consensual do mundo dominante é uma construção fabricada pelos poderosos, para os poderosos, e tudo o que você aprendeu sobre a sua nação, o seu governo e o seu mundo é uma mentira, essa é mesmo definitivamente uma possibilidade que vale a pena considerar.
Se lhe está começar a parecer que estamos todos a ser manipulados em grande escala para pensar, agir e votar de uma maneira que beneficie uma vasta estrutura de poder que nos governa enquanto ela esconde a sua verdadeira natureza, eu diria que vale a pena seguir a pista.
Se tem uma insidiosa suspeita de que as mentiras possam ser ainda mais profundas do que isso, até mesmo relativamente às deceções sobre quem fundamentalmente você é e sobre o que essa vida é realmente, essa suspeita provavelmente vale a pena explorar.
Se se está a sentir um pouco como Keanu Reeves no início do Matrix logo antes do véu ser arrancado, recomendo seguir o coelho branco e ver o quão profunda é a toca do coelho.
Se já lhe ocorreu que a humanidade precisa acordar da matriz da ilusão antes que os nossos governantes sociopatas nos levem à extinção por meio da catástrofe ambiental ou de um apocalipse nuclear, então as suas notas coincidem com as minhas.
Se acredita que é possível que essas crises existenciais a que nos estamos a aproximar rapidamente possam ser o catalisador que precisamos para arrancar coletivamente a venda dos nossos olhos e começar a mover-nos sobre esta terra de uma maneira baseada na verdade e criar um mundo saudável, então estamos na mesma página.
Se há algo que lhe sussurra que existe uma boa oportunidade de conseguirmos, apesar das grandes probabilidades contra que parecemos enfrentar, vou contar-lhe um segredo: eu também ouço.”