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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(373) Os pobres que não se veem

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

“Empreende, empreende”, é o que dizem. Reinventa-te. Estou farta desse discurso. Para a merda com a resiliência. No fim, culpam-te a ti por não te darem trabalho, Marisol Galdón.

 

Nos últimos dois anos, criou-se um novo bilionário a cada 30 horas e um milhão de pessoas empurradas para a extrema pobreza a cada 33 horas, relatório da Oxfam.

 

No sistema de dominação atual, o poder estabilizador já não é repressor, mas antes sedutor, cativante, e muito pouco visível. A repressão visível foi substituída pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.

 

O empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.

 

 

 

 

Marisol Galdón, 59 anos, natural de Barcelona, foi uma presença regular e muito popular na televisão nos anos noventa e os primeiros dois mil (com os programas Plastic e Peligrosamente juntas, e outros), escritora e atriz na série Sentimos las moléstias, encontra-se na situação de desempregada, pelo que em setembro de 2021 resolveu colocar um vídeo no Twitter focando o seu vasto currículo, pedindo trabalho.

A 8 de maio de 2022 deu uma entrevista ao El País, da qual retiro alguns excertos:

 

MG: “[…] A ruína chegou com a crise de 2008, em que baixaram brutalmente os vencimentos, e, sobretudo, com a pandemia. Parou tudo. Tive de vender a minha casa, pagar as dívidas. Até que chegou o momento em que não tive outra saída que gravar e por no ar o tal vídeo.

 

P: Custou-te muito publicá-lo?

 

MG: Muitíssimo. É muito duro sair do armário da pobreza, ainda para mais numa época e numa profissão onde abunda a pose e a impostura. Ficarias doida com a quantidade de colegas que estão tão lixados como eu e só mostram o seu lado ideal.

 

P: Mas também há pessoas que passam bastante pior …

 

MG: Claro, eu não estou numa guerra na Ucrânia fechada num sótão nem me mutilaram o clitóris nem passo fome. Mas necessito de trabalhar e ninguém me contrata. E depois vem essa ditadura da autoajuda e do autoemprego. “Empreende, empreende”, é o que dizem. “Empreende, empreende”, é o que dizem. Reinventa-te. Eu escrevo livros, tenho um blog, acabo de rodar uma curta, invento mil coisas, mas de isso não vivo. Estou farta desse discurso. Para a merda com a resiliência. No fim, culpam-te a ti por não te darem trabalho.

 

P: Como é ser pobre quando antes se vivia confortavelmente?

 

MG: Muito uro. Modestamente, eu tive tudo. Vais-te empobrecendo, vais ter que ir deixando de fazer coisas. Parecerá frívolo, mas é uma derrota intima, por exemplo, ter de deixar de usar cremes bons por marcas brancas do super, e mesmo assim racionando-a. E o pedir aos amigos …. É tudo não, não, não. […]

 

P: No vídeo, oferece-se como jornalista, DJ, apresentadora de eventos, guionista. Está em dia em todos esses campos?

 

MG: Sou muito boa a fazer tudo isso. Já o fiz, e agora com a minha idade, fá-lo-ia muito melhor. Tenho experiência, pose, aprumo. Mas não me querem. Esse é o drama. […]

 

P: Chegou mesmo a pensar em suicidar-se?

 

MG: Sim, sem dramas, até porque a vida pertence a cada um e ninguém se importa que o faças. Desde pequena que nos ensinam coisas maravilhosas como a bondade e quando entras no mundo vês que tudo isso são patranhas, que tudo é mentira. E se fores boa pessoa, passas mal. […] Então, e este mundo não está interessado em mim, dizes como Fernán Gómez: “Vão todos à merda”. […]

 

P: E as rugas?

 

MG: Porque o patriarcado nos vendeu que para um homem maduro, é igual que tenha rugas, barriga, brancas, e que o importante é a sua sabedoria e a sua experiência. E que as mulheres podemos ser sábias, mas que passada certa idade mal nos veem. Esse é o problema em que nos meteram e caímos que nem idiotas. Como permitimos que nos magoem assim?

 

P: Sente-se culpada por não encontrar trabalho?

 

MG: A culpa a única coisa que faz é pôr-nos veneno e ter-nos controlados. Mas sim. Quando és autocrítica, o primeiro que fazes é culpabilizar-te. Penso sempre que terei feito qualquer coisa mal, em que fiz merda. Mas isso é perverso. Este mundo não me merece. Têm uma tipa como eu, superválida, que pode fazer mil coisas num montão de frentes, e não lhes interessa. Essa é a realidade.”

 

 

No último relatório apresentado pela Oxfam, lê-se que nos últimos dois anos, devido ao escalar dos preços da energia e das matérias primas por causa da pandemia e da invasão da Ucrânia, as fortunas dos bilionários ligados a esses ramos cresceram 453 biliões de dólares.

Aponta para a criação nos últimos dois anos (março 2020 a março 2022) de um novo bilionário a cada 30 horas. Ao mesmo tempo, mais de 260 milhões de pessoas foram empurradas para a extrema pobreza (viver com menos de um dólar e noventa por dia), o que dá uma média de um milhão de pessoas por cada 33 horas.

As dez pessoas mais ricas do mundo, mais que duplicaram a sua fortuna, passando de 700 biliões de dólares para 1,5 triliões de dólares, ou seja, ficam com uma riqueza superior ao que têm os 40% do escalão mais baixo da humanidade que são 3,1 biliões de pessoas.

Eis o que diz Abb Maxman, o presidente da Oxfam America:

 

Não é um acidente que estejamos a assistir a estes espantosos níveis de desigualdade quer nos EUA quer no resto do mundo. É por intenção deliberada. Durante décadas, os ultra ricos e as corporações, utilizaram o seu poder económico para pressionarem aqueles que estão no poder para escreverem as regras para que eles pudessem fugir aos impostos, pagarem salários de pobreza e eximirem-se às suas responsabilidades. Ao mesmo tempo, as famílias trabalhadoras têm sentido a faca da insegurança económica e a perca de esperança no futuro”.

 

 

O poder estabilizador da anterior sociedade industrial era repressivo e visível. Mas os trabalhadores industriais explorados de forma brutal sabiam então perfeitamente quem eram os seus opressores. Sabiam perfeitamente contra quem tinham de resistir.

No sistema de dominação atual, o poder estabilizador já não é repressor, mas antes sedutor, cativante, e muito pouco visível. A repressão visível foi substituída pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.


Uma das formas de sedução é a utilizada pelas Googles, Microsofts, Face Books, Intels, e outras similares, que fazem parte dum conjunto de grandes empresas onde se contratam e trabalham os hackers e programadores modernos, para que continuem a praticar os seus passatempos num ambiente legal e informal, sem restrições de maior, tudo isto em espaços arquitetonicamente envolventes que nos comunicam sensações de bem-estar e liberdade e onde todos nós gostaríamos de trabalhar.

 Podem continuar a ir para o emprego como se estivessem em casa, não há normas sociais de trajo e comportamento. Ténis, havaianas, skates, jeans, fato completo ou meio fato, camisa ou t-shirt, calções e sapatos, e tudo o mais que a imaginação à venda ditar, tudo serve para a realização dessa espécie de utopia proto socialista em que se pretende anular a oposição entre a atividade comercial alienada, mas pela qual se ganha dinheiro, e o passatempo privado que se leva a cabo por prazer.

A finalidade é fazer com que o trabalho apareça transformado em passatempo, levando assim que se passem longas horas no local de trabalho, sábados e domingos, à frente do computador: é que quando alguém é pago para desenvolver e finalizar o seu passatempo, fica exposto por ele próprio a uma maior pressão do que se estivesse a trabalhar segundo a ‘boa velha ética de trabalho protestante’.


Uma outra forma de sedução passa por converter o trabalhador oprimido em empresário, empreendedor, empregador de si próprio. O que se pretende é que cada um seja um trabalhador que se explore a si mesmo na sua própria empresa. Cada um é ao mesmo tempo explorador e explorado, amo e escravo. Assim, quando alguém fracassar, culpa-se a si próprio e não à sociedade. Se a pessoa fracassar no seu projeto, aparece (assume-se a si própria) como culpada. Contra quem protestar? Contra si próprio? A luta de classes passa a ser uma luta interna consigo mesmo.


Neste sistema os novos empreendedores trabalhadores nem sequer se dão conta da sujeição em que se encontram, e isto porque acreditam que são livres por trabalharem em algo que é “seu”. Assim, esta ‘exploração com liberdade’ não origina qualquer efeito de resistência, o que torna estável o sistema neoliberal.

É por isso que hoje, após um programa violento de restrições impostas pelos Credores (aqueles que sendo ‘científicos’ nos dizem para termos fé no sistema), assistimos a um grande conformismo e consenso, originando depressões, fadiga crónica, ineficácia, aumento no número de suicídios. A violência é empregue contra si mesmo, em vez de se a utilizar para mudar a sociedade.

Ou seja, em vez da agressão dirigida contra o exterior, que poderia ter como resultado uma forte contestação, fica-se pela autoagressão.


É um mundo que se quer de autoempregados isolados, separados, depressivos, que se dedicam com euforia ao trabalho até à exaustão, até à fadiga crónica. É por isso que não há hoje uma multidão cooperante, interligada, capaz de se converter numa massa protestante e globalmente revolucionária. Não vale a pena esperar que tal multidão de pessoas algumas vez esteja disposta a alterar ou instaurar seja qualquer novo tipo de sociedade.


O neoliberalismo é adepto, conduz à despolitização radical da economia. A necessidade de acabar ou reduzir ao mínimo a segurança social, a escola pública, os serviços de saúde públicos, as atividades culturais públicas, etc., (tudo em nome da “sustentabilidade” e da “liberdade”) são exemplos de como se pretende que a economia funcione: como simples manifestação do estado de coisas objetivo.

Ou seja, a aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade, que não exista qualquer forma de limitação radical da liberdade do capital, nem qualquer subordinação do processo de produção ao controle social. O velho sonho de que “À política o que é da política, à economia o que é da economia”. Não é por acaso que apareceu a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.

Na sua alegoria sobre o amo e o escravo, Hegel pretendeu demonstrar como o progresso histórico para a liberdade se tornava possível através do jogo dialético entre o amo e o escravo: só com a libertação do escravo é que o amo se sentiria também libertado. A história só chegaria ao fim quando fossemos na realidade livres de fato, quando não fossemos nem amos nem escravos, nem escravos do amo, nem amos do escravo.

O que acontece hoje é que nos encontramos numa fase histórica em que o amo e o escravo formam uma unidade. O escravo não trabalha para o amo, mas explora-se voluntariamente a si mesmo. Como empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.


Na sua Política, Aristóteles escreve:

Em consequência, algumas pessoas supõem que é uma função da administração doméstica o aumentar a propriedade e vivem continuamente com a ideia que é um dever salvaguardar as suas posses monetárias ou aumentá-las para um patamar ilimitado. A causa desta atitude da mente reside no fato de os seus interesses se concentrarem apenas na vida, e não na vida boa”.

 

Traduzido para a atualidade, tal significará que o capitalismo de hoje, com a sua compulsão para a acumulação e para o crescimento, absolutiza a mera vida. O seu fim não é a “vida boa”. Perdida esta teleologia da vida boa, o processo do capital e da produção acelera-se até ao infinito, perdendo a sua direção, a sua finalidade. Estamos nisto. Estaremos nisso.

 

 

 

(372) Quais são os desejos que importam?

Tempo estimado de leitura: 12 minutos.

 

Se um homem lhe oferecer democracia e outro lhe oferecer um saco de grãos, em que fase da fome se prefere o grão ao voto?

 

Eu nunca ouvi falar de uma guerra que procedesse de salões de dança.

 

Qualquer pessoa encontrada a defender uma guerra preventiva devia ser condenada a duas horas por dia com esses monstros engenhosos.

 

As escolas estão lá para ensinar o patriotismo; os jornais, para provocarem a excitação; e os políticos para serem reeleitos.

 

Há, é claro, várias razões para odiar os comunistas […] nós os odiamos porque eles não permitem a liberdade; isso sentimos tão fortemente que decidimos imitá-los.

 

 

 

 

 A noção de que vivemos num mundo de sombras projetadas ou entrevistas de uma realidade exterior que se mantém eterna e imutável, deve-se a Platão. Em algures exterior reside um círculo perfeito; todos os outros círculos que conseguimos ver não são mais que simples e pálidas cópias desse único Círculo, poeiras e cinza dessa unidade etérea.

Talvez tenham sido os matemáticos os primeiros a lidarem com esta noção de uma verdade imutável existente desde o princípio dos tempos quando nos seus estudos provavam para sempre que os números primos eram infinitos ou que a raiz quadrada de dois era um número irracional. Verdades incontestáveis.

Acontece que com o passar dos tempos esses cálculos tidos como irrefutáveis começaram a parecer mais como argumentos que assentavam em axiomas autoevidentes que, embora aparentemente verdadeiros, se baseavam em pouco mais do que o consenso tido entre os matemáticos.

Quando Bertrand Russell descobriu que os axiomas da geometria de Euclides, como “duas retas paralelas não se intercetam”, não passavam de presunções, e que o mesmo se passava com o sistema de números que se baseava em verdades autoevidentes, propõe-se a dedicar a sua vida a tentar resolver a incerteza existente nas matemáticas.

É assim que nos seus Principia Mathematica (1910-13), Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, uns densos três volumes que levaram três anos a escrever e foram publicados às expensas deles, se propuseram a provar racionalmente que 1 + 1 = 2, esperando provavelmente que tal proposição viesse a ser “ocasionalmente útil”.

Os ‘estragos’ provocados no edifício das matemáticas conduziram ao aparecimento do princípio da inconsistência e da incompletude.

 

Mas Russel não foi só matemático. Também foi filósofo, lógico, historiador, crítico social e ativista político. Em 1950 vai ganhar o Nobel da Literatura, que lhe é atribuído como “reconhecimento dos seus variados e significativos escritos nos quais se destacou como campeão dos ideais humanitários e liberdade de pensamento”.

No seu discurso de aceitação (palestra), a 11 de dezembro de 1950 em Estocolmo, subordinado ao título “Que desejos são politicamente importantes”, começa por dizer:

 

“Escolhi este assunto para a minha palestra esta noite porque acho que a maior parte das discussões atuais sobre política e teoria política levam em pouca conta a psicologia. Factos económicos, estatísticas populacionais, organização constitucional e outros, são minuciosamente apresentados. Não se tem dificuldade em se saber quantos sul-coreanos e quantos norte-coreanos existiam quando a Guerra da Coreia começou. Se procurarem nos livros certos, pode-se saber qual era a renda média per capita deles e quais eram os tamanhos dos seus respetivos exércitos. Mas se se quiser saber que tipo de pessoa é um coreano, e se existe alguma diferença apreciável entre um norte-coreano e um sul-coreano; se se desejar saber o que é que eles, respetivamente, querem da vida, quais são os seus descontentamentos, quais são as suas esperanças e quais os seus medos; numa palavra, o que é que, como eles dizem, «faz com que eles funcionem», procurar-se-á em vão nos livros de referência. E por isso não se pode dizer se os sul-coreanos estão entusiasmados com a ONU, ou se preferem a união com seus primos do Norte. Nem se pode adivinhar se eles estão dispostos a abrir mão da reforma agrária pelo privilégio de votar em algum político de quem nunca ouviram falar. É a negligência por tais questões por parte dos homens eminentes que se sentam em capitais remotas, que tão frequentemente causa deceção. Para que a política se torne científica, e para que o acontecimento não surpreenda constantemente, é imperativo que o nosso pensamento político penetre mais profundamente nas fontes da ação humana. Qual é a influência da fome sobre os slogans? Como é que a sua eficácia flutua com o número de calorias da nossa dieta? Se um homem lhe oferecer democracia e outro lhe oferecer um saco de grãos, em que fase da fome se prefere o grão ao voto? Tais questões são muito pouco consideradas. Mas vamos, por enquanto, esquecer os coreanos e considerar a raça humana.”

 

Concentra-se depois nos vários desejos dos seres humanos, dissecando-os um a um. Eis alguns excertos:

 

“A ganância – o desejo de possuir o máximo possível de bens, ou o título de bens – é um motivo que, suponho, tem a sua origem numa combinação de medo com desejo de necessidades […] Mas seja qual for a psicanálise da ganância, ninguém pode negar que ela é um dos grandes motivos – especialmente entre os mais poderosos, pois, como disse antes, é um dos motivos infinitos. Por mais que você possa possuir, sempre desejará possuir mais; a saciedade é um sonho que sempre lhe escapará.”

 

“[…] Um dos problemas da vaidade é que ela cresce com aquilo de que se alimenta. Quanto mais se é conhecido, mais se vai querer ser conhecido. O assassino condenado que tem permissão para ver o relato de seu julgamento na imprensa fica indignado se encontra um jornal que o noticiou de forma inadequada. E quanto mais descobrir sobre si mesmo noutros jornais, mais indignado ficará com aquele cujas reportagens são escassas. Políticos e literatos estão no mesmo caso. E quanto mais famosos eles se tornam, mais difícil é para a agência de recortes da imprensa satisfazê-los. Dificilmente é possível exagerar a influência da vaidade em toda a extensão da vida humana, desde a criança de três anos até ao poderoso que todo o mundo estremece só de ver a cara. A humanidade cometeu até mesmo a impiedade de atribuir desejos semelhantes à Divindade, ao imaginarem-na ávida por elogios continuados.”

 

Sobre o apego ao poder:

 

“A procura do conhecimento é, penso eu, principalmente acionada pelo apego ao poder. Bem como todos os avanços na técnica científica. Por mais que você possa possuir, sempre desejará possuir mais; a saciedade é um sonho que sempre lhe escapará. Seria um completo erro condenar completamente o amor ao poder como motivo. O ser-se levado por esse motivo a praticar ações que são úteis ou ações que são nefastas, depende do sistema social e das nossas capacidades. Se as nossas capacidades são teóricas ou técnicas, contribuiremos para o conhecimento ou técnica e, via de regra, a nossa atividade será útil. Se formos um político, podemos ser movidos pelo apego ao poder, mas via de regra esse motivo se unirá ao desejo de ver realizado algum estado de coisas que, por alguma razão, preferimos ao status quo. Um grande general pode, como Alcibíades, ser bastante indiferente quanto ao lado em que luta, mas a maioria dos generais preferiu lutar pelo seu próprio país e, portanto, teve outros motivos além do apego ao poder. O político pode mudar de lado com tanta frequência que se encontra sempre na maioria, mas a maioria dos políticos prefere um partido ao outro e subordina o seu apego ao poder a essa preferência. O apego ao poder tão puro quanto possível pode ser visto em vários tipos diferentes de homens. Um tipo é o soldado da fortuna, de que Napoleão é o exemplo supremo. Napoleão não tinha, creio eu, nenhuma preferência ideológica pela França sobre a Córsega, mas se se tivesse tornado imperador da Córsega não teria sido um homem tão grande como se tornou fingindo ser francês. Tais homens, porém, não são exemplos puros, pois também obtêm imensa satisfação da vaidade. O tipo mais puro é o da eminência parda – o poder por trás do trono que nunca aparece em público, e apenas se abraça com o pensamento secreto: “Quão pouco estes bonecos sabem quem está a puxar as cordas”. O Barão Holstein, que controlou a política externa do Império Alemão de 1890 a 1906, ilustra esse tipo com perfeição. Ele morava numa favela; nunca apareceu na sociedade; evitou encontrar o imperador, exceto numa única ocasião em que a imposição do imperador não pode ser ignorada; ele recusou todos os convites para funções na corte, alegando que não possuía trajes de corte. Ele tinha conquistado segredos que lhe permitiram chantagear o chanceler e muitos dos íntimos do Kaiser. Ele usou o poder da chantagem, não para adquirir riqueza, fama ou qualquer outra vantagem óbvia, mas apenas para obrigar a adoção da política externa que preferia. No Oriente, personagens semelhantes não eram muito incomuns entre os eunucos.”

 

Chama à liça outros motivos que embora num certo sentido sejam menos fundamentais, têm, contudo, uma considerável importância:

 

“O primeiro deles é o amor pela emoção. Os seres humanos mostram a sua superioridade sobre os brutos pela sua capacidade de tédio, embora algumas vezes eu tenha pensado, ao examinar os macacos no zoológico, que eles, talvez, tenham os rudimentos dessa emoção cansativa. Seja como for, a experiência mostra que escapar do tédio é um dos desejos realmente poderosos de quase todos os seres humanos. Quando os homens brancos contatam pela primeira vez com alguma raça intocada de selvagens, oferecem-lhes todos os tipos de benefícios, desde a luz do evangelho até à torta de abóbora. Estes, no entanto, por mais que nos arrependamos, a maioria dos selvagens recebe-os com indiferença. O que eles realmente valorizam entre os presentes que lhes trazemos é a bebida inebriante que lhes permite, pela primeira vez nas suas vidas, ter a ilusão por alguns breves momentos de que é melhor estar vivo do que morto. Os índios, quando ainda não tinham sido afetados pelos homens brancos, fumavam os seus cachimbos, não calmamente como nós, mas orgiasticamente, inalando tão profundamente que desmaiavam. E quando a excitação pela nicotina falhava, um orador patriótico incitava-os a atacarem uma tribo vizinha, o que lhes daria todo o prazer que nós (segundo o nosso temperamento) tiramos de uma corrida de cavalos ou de uma eleição geral. O prazer do jogo consiste quase inteiramente na excitação. Monsieur Huc descreve os comerciantes chineses na Grande Muralha no inverno, jogando até perder todo o seu dinheiro, depois perdendo todas as suas mercadorias e, finalmente, jogando fora as suas roupas e saindo nus para morrerem de frio. Com os homens civilizados, como com as tribos primitivas dos índios, é, penso eu, principalmente o amor à excitação que faz a população aplaudir quando a guerra rebenta; a emoção é exatamente a mesma de um jogo de futebol, embora os resultados às vezes sejam um pouco mais sérios.”

 

E continua:

 

“Eu costumava, quando era mais jovem, gozar as minhas férias caminhando. Eu percorria vinte e cinco milhas por dia e, quando a noite chegava, não precisava de nada para me afastar do tédio, já que o prazer de estar sentado era suficiente. Mas a vida moderna não pode ser conduzida com base nesses princípios fisicamente extenuantes. Grande parte do trabalho é sedentário, e a maioria dos trabalhos manuais exercita apenas alguns músculos especializados. Quando multidões se reúnem em Trafalgar Square para aplaudir o eco de um anúncio de que o governo decidiu mandá-los matar, eles não o fariam se todos tivessem caminhado vinte e cinco milhas naquele dia. Essa cura para a belicosidade é, no entanto, impraticável, e para que a raça humana sobreviva – algo que talvez seja indesejável – outros meios devem ser encontrados para garantir uma saída inocente para a energia física não utilizada que produz o amor pela excitação. Este é um assunto que tem sido muito pouco considerado, tanto pelos moralistas quanto pelos reformadores sociais. Os reformadores sociais são da opinião de que têm coisas mais sérias para considerar. Os moralistas, por outro lado, ficam imensamente impressionados com a seriedade de todas as saídas possíveis permitidas do amor pela excitação; no entanto, nas suas mentes, a seriedade é a do Pecado. Salões de dança, cinemas, esta era do jazz, são todos, se podemos acreditar nos nossos ouvidos, portas de entrada para o inferno, e estaríamos melhor se ficássemos sentados em casa a contemplar os nossos pecados. Acho-me incapaz de estar inteiramente de acordo com os homens sérios que proferem estas advertências. O diabo tem muitas formas, algumas destinadas a enganar os jovens, outras destinadas a enganar os velhos e os sérios. Se é o diabo que tenta os jovens a divertirem-se, não é, talvez, o mesmo personagem que convence os velhos a condenarem essa diversão? E a condenação não é talvez apenas uma forma de excitação própria da velhice? E não é, talvez, uma droga que – como o ópio – deve ser tomada em doses cada vez mais fortes para produzir o efeito desejado? Não se deve temer que, começando pela maldade do cinema, sejamos levados passo a passo a condenar o partido político oposto, asiáticos e, em suma, todos, exceto os companheiros de nosso clube? E é exatamente dessas condenações, quando generalizadas, que as guerras procedem. Eu nunca ouvi falar de uma guerra que procedesse de salões de dança.”

 

E preconiza:

 

“Acho que toda a cidade grande deveria conter quedas de água artificiais que as pessoas pudessem descer em canoas muito frágeis, e deveriam conter piscinas cheias de tubarões mecânicos. Qualquer pessoa encontrada a defender uma guerra preventiva devia ser condenada a duas horas por dia com esses monstros engenhosos. Mais a sério, o esforço deve ser feito para fornecer saídas construtivas para o amor pela excitação. Nada no mundo é mais emocionante do que um momento de descoberta ou invenção repentina, e muito mais pessoas são capazes de experimentar esses momentos do que às vezes se pensa.”

 

Sobre o ódio:

 

[…] É normal odiar o que tememos, e acontece com frequência, embora nem sempre, que tenhamos medo do que odiamos. Acho que pode ser tomado como regra entre os homens primitivos que eles tanto temem quanto odeiam o que não é familiar. Eles têm o seu próprio rebanho, originalmente muito pequeno. E dentro de um rebanho, todos são amigos, a menos que haja algum motivo especial de inimizade. Outros rebanhos são inimigos potenciais ou reais; um único membro de um deles que se perder por acidente será morto. Um rebanho alienígena como um todo será evitado ou combatido de acordo com as circunstâncias. É esse mecanismo primitivo que ainda controla a nossa reação instintiva às nações estrangeiras. A pessoa completamente não viajada verá todos os estrangeiros como o selvagem considera um membro de outro rebanho. Mas o homem que viajou, ou que estudou política internacional, terá descoberto que, para que o seu rebanho prospere, ele deve, até certo ponto, fundir-se com outros rebanhos. Se você é inglês e alguém lhe diz: «Os franceses são seus irmãos», o seu primeiro sentimento instintivo será: «Parvoíce. Eles encolhem os ombros e falam francês. E até me dizem que comem rãs.» Se ele lhe explicar que talvez tenhamos de lutar contra os russos, que, nesse caso, será desejável defender a linha do Reno, e que, para defender a linha do Reno, a ajuda dos franceses é essencial, você começará a ver o que ele quer dizer quando diz que os franceses são seus irmãos. Mas se algum companheiro de viagem dissesse que os russos também são seus irmãos, ele não seria capaz de persuadi-lo, a menos que pudesse mostrar que estamos em perigo por causa dos marcianos. Amamos aqueles que odeiam os nossos inimigos e, se não tivéssemos inimigos, haveria muito poucas pessoas a quem deveríamos amar.

Tudo isso, no entanto, só é verdade enquanto estivermos preocupados apenas com atitudes em relação a outros seres humanos. Você pode considerar o solo como seu inimigo porque ele produz com relutância uma subsistência mesquinha. Você pode considerar a Mãe Natureza em geral como sua inimiga e encarar a vida humana como uma luta para obter o melhor da Mãe Natureza. Se os homens encarassem a vida dessa maneira, a cooperação de toda a raça humana se tornaria fácil. E os homens poderiam facilmente ser levados a ver a vida dessa maneira se escolas, jornais e políticos se dedicassem a esse fim. Mas as escolas estão lá para ensinar o patriotismo; os jornais, para provocarem a excitação; e os políticos para serem reeleitos. Nenhum dos três pode, portanto, fazer alguma coisa para salvar a raça humana do suicídio recíproco.”

 

 

Sobre o medo:

 

“Existem duas maneiras de lidar com o medo: uma é diminuir o perigo externo e a outra é cultivar a resistência estoica [..] Se pudesse ser estabelecido um sistema internacional que eliminasse o medo da guerra, a melhoria na mentalidade cotidiana das pessoas comuns seria enorme e muito rápida. O medo, atualmente, ofusca o mundo. A bomba atômica e a bomba bacteriana, manejadas pelo perverso comunista ou perverso capitalista, conforme o caso, fazem Washington e o Kremlin tremerem, e empurram os homens mais adiante na estrada em direção ao abismo. Para que as coisas melhorem, o primeiro e essencial passo é encontrar uma maneira de diminuir o medo. O mundo atual está obcecado pelo conflito de ideologias rivais, e uma das causas aparentes do conflito é o desejo pela vitória de nossa própria ideologia e a derrota da outra. Não acho que o motivo fundamental aqui tenha muito a ver com ideologias. Acho que as ideologias são apenas uma forma de agrupar as pessoas, e que as paixões envolvidas são apenas aquelas que sempre surgem entre grupos rivais. Há, é claro, várias razões para odiar os comunistas. Em primeiro lugar, acreditamos que eles desejam tirar a nossa propriedade. Mas os ladrões também, e embora desaprovemos os ladrões, a nossa atitude em relação a eles é muito diferente de nossa atitude em relação aos comunistas – principalmente porque eles não inspiram o mesmo grau de medo. Em segundo lugar, odiamos os comunistas porque são irreligiosos. Mas os chineses são irreligiosos desde o século XI, e só começamos a odiá-los quando deram origem a Chiang Kai-shek. Em terceiro lugar, odiamos os comunistas porque eles não acreditam na democracia, mas não consideramos isso motivo para odiar Franco. Em quarto lugar, nós os odiamos porque eles não permitem a liberdade; isso sentimos tão fortemente que decidimos imitá-los. É óbvio que nada disso é o verdadeiro fundamento do nosso ódio. Nós odiamo-los porque os tememos e eles nos ameaçam. Se os russos ainda aderissem à religião ortodoxa grega, se tivessem instituído um governo parlamentar e se tivessem uma imprensa completamente livre que diariamente nos vituperasse, então – desde que ainda tivessem forças armadas tão poderosas quanto agora – ainda deveríamos odiar se eles nos dessem motivos para considerá-los hostis. Existe, é claro, o odium theologicum, e pode ser causa de inimizade. Mas acho que isso é um desdobramento do sentimento de manada: o homem que tem uma teologia diferente sente-se estranho, e tudo o que é estranho deve ser perigoso. As ideologias, de facto, são um dos métodos pelos quais os rebanhos são criados, e a psicologia é praticamente a mesma, independentemente de como o rebanho possa ter sido gerado.”

 

Finalmente, para resumir a discussão:

 

“A política preocupa-se mais com rebanhos do que com indivíduos, e as paixões que são importantes na política são, portanto, aquelas em que os vários membros de um determinado rebanho podem sentir-se semelhantes. O amplo mecanismo instintivo sobre o qual os edifícios políticos devem ser construídos é de cooperação dentro do rebanho e hostilidade em relação a outros rebanhos. A cooperação dentro do rebanho nunca é perfeita. Há membros que não se conformam, que são, no sentido etimológico, «egrégios», isto é, fora do rebanho. Esses membros são aqueles que caíram abaixo ou subiram acima do nível ordinário. São eles: idiotas, criminosos, profetas e descobridores. Um rebanho sábio aprenderá a tolerar a excentricidade daqueles que se elevam acima da média e a tratar com um mínimo de ferocidade aqueles que estão abaixo dela.

 

No que diz respeito às relações com outros rebanhos, a técnica moderna produziu um conflito entre o interesse próprio e o instinto. Antigamente, quando duas tribos iam à guerra, uma delas exterminava a outra e anexava o seu território. Do ponto de vista do vencedor, toda a operação foi totalmente satisfatória. A matança não era nada cara, e a excitação era agradável. Não é de admirar que, em tais circunstâncias, a guerra persistisse. Infelizmente, ainda temos as emoções apropriadas para essa guerra primitiva, enquanto as operações reais da guerra mudaram completamente. Matar um inimigo numa guerra moderna é uma operação muito cara. Se você considerar quantos alemães foram mortos no final da guerra e quanto os vencedores estão a paga de imposto de renda, você pode, por uma soma em divisão longa, descobrir o custo de um alemão morto, e você o achará considerável. No Oriente, é verdade, os inimigos dos alemães conseguiram as antigas vantagens de expulsar a população derrotada e ocupar as suas terras. Os vencedores ocidentais, no entanto, não obtiveram tais vantagens. É óbvio que a guerra moderna não é um bom negócio do ponto de vista financeiro. Embora tenhamos vencido as duas guerras mundiais, agora seríamos muito mais ricos se elas não tivessem ocorrido. Se os homens fossem movidos pelo interesse próprio, o que eles não são – exceto no caso de alguns santos – toda a raça humana cooperaria. Não haveria mais guerras, exércitos, marinhas, bombas atómicas. Não haveria exércitos de propagandistas empregados em envenenar as mentes da Nação A contra a Nação B, e reciprocamente da Nação B contra a Nação A. Não haveria exércitos de oficiais nas fronteiras para impedir a entrada de livros e ideias estrangeiras, por mais excelentes que fossem. Não haveria barreiras alfandegárias para garantir a existência de muitas pequenas empresas onde uma grande empresa seria mais económica. Tudo isso aconteceria muito rapidamente se os homens desejassem a sua própria felicidade com tanto ardor quanto desejavam a miséria de seus vizinhos. Mas, você vai dizer-me, para que servem esses sonhos utópicos? Os moralistas cuidarão para que não nos tornemos totalmente egoístas, e até que o façamos o milénio será impossível.”

 

E termina:

 

“E entre aquelas ocasiões em que as pessoas ficam abaixo do interesse próprio estão a maioria das ocasiões em que estão convencidas de que estão a agir por motivos idealistas. Muito do que passa como idealismo é ódio disfarçado ou amor disfarçado pelo poder. Quando você vê grandes massas de homens influenciadas pelo que parecem ser motivos nobres, é melhor olhar abaixo da superfície e perguntar-se o que torna esses motivos eficazes. É em parte porque é tão fácil ser enganado por uma fachada de nobreza que vale a pena fazer uma investigação psicológica, como o tenho tentado […]”

 

 

 

Estávamos em 1950 …

 

(371) Por quem dobram os sinos?

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Se antes as guerras acabavam com o rei derrotado a abraçar o seu primo vencedor, na Segunda Guerra enforcaram-se os derrotados. Alguns.

 

Diante comportamentos intoleráveis há que ter a coragem de mudar as regras e as leis, Umberto Eco.

 

Reconhecer o intolerável quer dizer que em Nuremberga todos deviam de ser condenados à forca.

 

Todos lavam as mãos: existem leis, deixemos que os tribunais julguem esta canalha.

 

 

 

Sob o ponto de vista estritamente legal ou de costumes internacionais, o processo de Nuremberga foi uma arbitrariedade. Se até aí as guerras acabavam com o rei derrotado a abraçar o seu primo vencedor, nesta enforcaram-se os derrotados. Alguns.

E esta alteração das regras aconteceu porque os vencedores consideraram que nessa guerra aconteceram coisas que iam para além do tolerável. Mas a consideração deste intolerável era feita de acordo com os valores dos vencedores ou com os valores dos derrotados?

Como ganhámos, e como entre os vossos valores estava a celebração da força, aplicamos a força: enforcámo-los. Mas, ‘vocês também cometeram atrocidades!’, dizem os derrotados. Pois sim, isso é o que dizem vocês que foram derrotados, mas nós que ganhámos, somos nós que vos enforcamos! “E assumimos a responsabilidade!”

Este raciocínio de Nuremberga é impecável: diante comportamentos intoleráveis há que ter a coragem de mudar as regras e as leis. É assim que segundo as novas regras um tribunal na Holanda pode julgar as condutas de alguém que está na Sérvia ou na Bósnia.

Foi em finais de 1982 que se celebrou em Paris um congresso sobre o tema da intervenção: Com que direito e com que critérios de prudência se pode intervir em assuntos de outro país quando se considera que nele algo de intolerável acontece para a comunidade internacional? Quem me pede para intervir? Uma parte dos cidadãos? Em que medida é representativa do país, em que medida é que uma intervenção não encobre debaixo dos propósitos mais nobres uma ingerência, uma vontade imperialista? Intervém-se quando o que sucede noutro país vai contra os nossos princípios éticos? Mas os nossos princípios são os princípios deles? Intervém-se porque um país há milhares de anos pratica o canibalismo ritual, o que para nós é um horror, mas que para eles é um ritual religioso? Não foi assim que o homem branco carregou o seu virtuoso fardo e submeteu povos de civilizações mais antigas, embora diferentes da nossa?

 

A única resposta que parece ser aceitável é que uma intervenção é como uma revolução: não há uma lei prévia que nos diga que se a deve fazer, e mais, faz-se contra as leis e os costumes.

A intervenção internacional noutro país só é justificada mediante algo que nos pareça intolerável. Há que assumir a responsabilidade e decidir que é intolerável e depois atuar, dispostos a pagar o preço do erro.

O que se passou com o nazismo e o Holocausto levou a um novo umbral de intolerabilidade. Muitos genocídios existiram, ao longo dos séculos, e sempre os fomos tolerando. Éramos fracos, éramos bárbaros, não sabíamos o que se passava a dez léguas do nosso povoado.

Mas este foi sancionado (e realizado) em termos ditos “científicos”, com petição explícita de consenso, incluso filosófico, e venderam-nos como modelo planetário a implantar. Golpeou não só a nossa consciência moral, pôs em jogo a nossa filosofia e a nossa ciência, a nossa cultura, as nossas crenças no bem e no mal. Quis anulá-las. Era uma chamada a que não se podia deixar de responder.

É com respeito a esse intolerável que resulta purulenta a sórdida contabilidade dos negacionistas que começam por calcular se os números de mortos foram na verdade seis milhões, ou terão sido cinco, quatro, três, dois, um, como se tratasse de uma mera transação. E se não tivessem sido gaseados e tivessem antes morrido porque se tivessem posto nas câmaras sem demasiado cuidado? E se só tivessem morrido por alergia às tatuagens?

Reconhecer o intolerável quer dizer que em Nuremberga todos deviam de ser condenados à forca, mesmo que só uma pessoa tivesse sido morta e pela simples omissão de socorro. O intolerável não é só o genocídio, mas a sua teorização. E esta implica e responsabiliza também aos peões da matança. Ante o intolerável caem as distinções sobre as intenções, a boa fé, o erro: existe só responsabilidade objetiva. Mas a única coisa que fazia era empurrar as pessoas para dentro da câmara de gás porque me mandavam, na realidade até pensava que os estava a mandar desinfetar.

Não me interessa, sinto muito, mas aqui estamos numa epifania do intolerável, onde não valem as leis antigas com as suas circunstâncias atenuantes: pelo que te condenaremos também à forca.

Para adotar esta regra de conduta (que também vale para o futuro intolerável, que nos obriga a decidir todos os dias onde está o intolerável), uma sociedade deve de estar preparada para tomar muitas decisões, mesmo as duras, e de ser solidária em assumir todas as responsabilidades.

Mas verificamos que ainda estamos muito longe dessa decisão. Quer jovens quer velhos. Todos lavam as mãos: existem leis, deixemos que os tribunais julguem esta canalha.

Naturalmente hoje poderíamos dizer que, depois da sentença de Roma (1), esta capacidade solidária de definir o intolerável está ainda mais longe. Mas também antes estava demasiado longe. E é isto que nos consome. Descobrir-nos (mas sem nos confessarmos) corresponsáveis.

E depois não nos perguntemos por quem os sinos dobram.

 

 

Foi isto o que escreveu Umberto Eco no La Republica, “Non chiediamoci per chi suona la campana”, após a sentença quase libratória do tribunal militar de Roma do nazi Erik Priebke.

 

  • O Massacre de Ardeatine foi o assassinato de 335 civis e presos políticos italianos feito em Roma a 24 de março de 1944 por tropas da Alemanha nazi, chefiadas pelos oficiais das SS, EriK Priebke e Karl Hass. Após a guerra, em 1946, Priebke escapou de um campo inglês de prisioneiros na Itália, fugindo primeiro para o Tirol, regressando depois a Roma, onde com papéis falsos fornecidos pelo Vaticano conseguiu emigrar para a Argentina. Em 1994 conta num programa de televisão da ABC do jornalista Sam Donaldson como tinha feito o massacre. Extraditado para Itália, o tribunal de Roma em 1996 considera-o “não culpado” porque “tinha obedecido a ordens”. Talvez devido à onda de protestos que se lhe seguiu, é de novo preso e julgado, desta vez condenado a 15 anos de prisão, reduzidos devido à idade para 10 anos de “prisão domiciliária” em casa do seu advogado, Paolo Giachini. Morreu com 100 anos de causas naturais em 2013. Apesar de proibido pelo Vaticano, o funeral religioso efetuou-se pela Sociedade do Santo Pio X na cidade de Albano Laziale, oficiado pelo ex-capelão das SS, D. Florian Abrahamowicz: “Priebke era um meu amigo, um Cristão e um soldado leal”.

 

Adenda:

Sugiro a leitura do blog de 26 de dezembro de 2018, “O barro dos artistas”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/195-o-barro-dos-artistas-51486), onde consta a frase de Steiner, “Como é possível ler-se Rilke à noite, ouvir-se Schubert de manhã e torturar ao meio-dia?”

(370) “O narcisismo das pequenas diferenças”

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Certamente aquele que tem o poder para vos fazer acreditar em coisas absurdas, tem o poder para vos levar a cometer injustiças, Voltaire.

 

Um dos paradigmas base da nossa civilização ocidental é o da existência de um paraíso terrestre.

 

“Mas tu és circuncisado, acrescentou o quacker? Não tenho a honra de sê-lo, digo eu. Bem, amigo, continua o quacker, tu és um cristão sem ser circuncisado, e eu sou um cristão sem ser batizado,'” Voltaire.

 

Se vocês acreditam que são cidadãos do mundo, são cidadãos de nenhuma parte. Não sabem o que cidadania quer dizer, Theresa May.

 

 

 

 

 

A ideia de que o desenvolvimento das sociedades reproduz o desenvolvimento do indivíduo é muito apelativa, embora dificilmente demonstrável. Na sua versão mais simples, recordemos a “evidência” tida que as civilizações, tal como os indivíduos, nascem, crescem, desenvolvem-se, atingem um apogeu, declinam e acabam por desaparecer.

 A um nível mais erudito, eis o que, por exemplo, nos diz Freud no Totem e Tabu:

 

O primeiro resultado do que estabelecemos é muito digno de nota. Se o animal totémico é o pai, então, as duas principais proibições do totemismo, as duas prescrições-tabu que constituem o seu cerne – a saber: não matar e não utilizar nenhuma mulher que pertence ao totem para fins sexuais – coincidem com os dois crimes de Édipo, que matou o seu pai e tomou por mulher a sua mãe; e com os dois desejos originários da criança, cujo recalcamento insuficiente ou cujo renascer constitui, talvez, o núcleo de todas as psiconeuroses. Se esta analogia for mais do que uma brincadeira desorientadora do acaso, ela deverá permitir-nos lançar luz sobre a origem do totemismo em tempos imemoriais. Por outras palavras, deverá permitir-nos tornar plausível o fato de o sistema totémico ter resultado das condições do complexo de Édipo …”

 

Freud sabe que está a entrar num campo pouco científico quando estabelece o paralelismo entre as perspetivas ontogenética (relativa ao desenvolvimento do indivíduo) e filogenética (relativa ao desenvolvimento da espécie). Daí, o seu “Se esta analogia for mais que uma brincadeira desorientadora do acaso […]”.

 

Mas a tentação é muito forte. Friedrich Engels, após a morte de Karl Marx (1883) propõe-se passar o resto da pouca vida que lhe sobrou (1895) a organizar e a publicar as notas e os inéditos de Marx.

Logo em 1884 publica A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, a que se seguiram em 1885 e 1894 o segundo e terceiro volumes de O Capital.

A Origem talvez tenha sido a obra que mais contribuiu para a aceitação e expansão do imaginário marxista, ao abordar o aparecimento da propriedade, do patriarcado, da monogamia e do materialismo, bem como a progressão ascendente (evolução) da própria sociedade a partir de um estado selvagem inicial, sua passagem para a barbárie e finalmente para a civilização.

E a ideia do comunismo primitivo segundo a qual nas primeiras sociedades a propriedade privada era desconhecida, a alimentação era repartida por todos conforme as suas necessidades e em que todos eram cuidados, e que encontra acolhimento e respaldo na imagem Edénica que se tinha da humanidade, segundo a qual a modernidade foi corrompendo a bondade natural.

 

É bom lembrar que um dos paradigmas base da nossa civilização ocidental é o da existência de um paraíso terrestre (1) como jardim plantado por Deus no Éden, único lugar na Terra onde toda a felicidade era possível. Mas, atenção, ele é também o lugar de onde a natureza humana foi expulsa para sempre.

Pelo que ao longo dos tempos se tem assistido, por um lado às tentativas de um regresso ao Éden contidas nos sonhos revolucionários dirigidos contra os guardiões que lhe impedem o acesso, e por outro lado condicionando ao falhanço todas as tentativas de alcançar a felicidade terrestre.

Em qualquer dos casos, estamos perante a assunção de que o paraíso é um paraíso perdido, e que a natureza humana contém em si qualquer coisa de defeituoso. Pelo que o paraíso terrestre nos aparece sempre como um passado perdido, ou como um futuro a chegar.

 

Atualmente, vários economistas, antropólogos, põem em dúvida não só a existência desse comunismo primitivo como o do aparecimento da propriedade privada. Infelizmente, muitos dos seus argumentos caem exatamente no mesmo processo de não cientificidade que imputam aos marxistas (e não só) ao basearem-se no que se passa com as culturas de povos primitivos atuais (os Aché do Paraguai, os Hiwi da Venezuela, os Kung do Calaári, os Agta das Filipinas, os Deg Hit do Alasca, os Mbuti da África Central, os Ute do Colorado e outros) para presumirem que o povo primitivo primigénio se comportaria de igual modo. Isso é também acreditar (ter fé) não só que a progressão histórica existe, como que ela se produziria exatamente da mesma maneira.

Se presumirmos que as sociedades passaram de pequenas a grandes, ou de igualitárias a despóticas, de um passado angelical a um presente ganancioso, então faz sentido acreditar que elas também tenham transitado de uma harmonia sem propriedade para a competição egoísta. Mesmo que os factos do comunismo primitivo estejam errados, a história parece certa, na medida em que está de acordo (até agora) com as crenças induzidas, ou difundidas, ou naturais, sobre o percurso da história humana.

Contudo, qualquer destas crenças são (podem ser) mutuamente exclusivas, pelo que o seguimento de uma ou outra torna impeditivo o prosseguimento dos seus valores nas sociedades presente e futuras. Daí que a discussão à volta destas bandeiras tenha originado zangas, conflitos, lutas, guerras. Continua a originar. E se o ataque ao marxismo tenha vindo a ficar para trás, assiste-se hoje ao aumento de ataques aos valores religiosos mormente cristãos. (2)

 

Quando da sua estadia em Inglaterra entre 1726 e 1729, Voltaire escreveu vinte e quatro ensaios em forma de cartas sobre as suas vivências na Grã-Bretanha, primeiramente publicadas em Londres (1733) e em inglês, com o título Letters Concerning the English Nation (ou Philosophocal Letters on the English), ainda antes de serem publicadas em francês, em Rouen e Paris em 1734 (Lettres philosophiques sur les Anglais).

As primeiras cartas que se referem a várias das conversas tidas sobre religião, vão dar o tom cordial em que os encontros e as discussões ocorreram. Quando visita um Quaker numa casa de campo nos arredores de Londres, descreve-nos a cena da apresentação inicial: o francês, que faz uma reverência e acena com o chapéu de modo respeitoso, fica totalmente confuso com o Quaker que vestido com simplicidade se recusa a inclinar-se, e que se dirige ao visitante francês com o familiar "tu":

Ele não se descobriu quando eu apareci, e veio na minha direção sem inclinar o corpo uma única vez; mas parecia haver mais polidez no ar aberto e humano do seu semblante do que no costume de pôr uma perna atrás da outra e tirar o chapéu da cabeça, que é feito para cobri-la. E diz-me com ar de amigo: ‘Percebo que tu és estrangeiro’…”

O francês reconhece que tenha tido, ao princípio, dificuldade em desaprender os modos sociais franceses:

 “Continuei a fazer algumas cerimónias muito fora de época, não sendo fácil desvencilhar-me de hábitos aos quais estamos acostumados há muito tempo.”

Depois de comerem juntos, começam a discutir sobre religião. O visitante católico explica ao seu anfitrião quacker que para ser considerado um verdadeiro cristão ele precisaria de ser batizado, ao que o quacker objeta que o batismo é uma cerimónia herdada do judaísmo e que o próprio Cristo nunca batizou os seus seguidores: “Não somos de opinião que o espargir água sobre a cabeça de uma criança faça dela um cristão”.

O narrador francês, que havia começado por declarar a sua razoabilidade, acha que não tem resposta a dar sobre esse ponto de doutrina, mas também não pode admitir que perdeu o argumento: “Tive o juízo suficiente para o não o contestar, pois não há possibilidade de convencer um entusiasta”, declara pomposamente, antes de mudar rapidamente de assunto.

Sugere que diferentes tradições cristãs escolhem entre diferentes partes da Bíblia, e que a superioridade de uma forma deísta de crença transcende as cerimónias particulares de qualquer seita:

 “Mas tu és circuncisado, acrescentou o quacker? Não tenho a honra de sê-lo, digo eu. Bem, amigo, continua o quacker, tu és um cristão sem ser circuncisado, e eu sou um cristão sem ser batizado.'”

“E não têm padres?” “Não, não, amigo (replica o quacker) para nossa grande felicidade”.

 

Ao longo de todos estes ensaios, Voltaire vai-nos dando uma lição objetiva sobre a diferença cultural, demonstrando como essas diferenças podem ser superadas por uma compreensão tolerante. Aconselho a leitura da carta XI, “Sur l’insertion de la petite vérole”, tão atual sobre a vacinação.

Consideram os entendidos que esta obra, escrita para a elite europeia, constitui o primeiro clássico cosmopolita do Iluminismo. Apesar do termo ter como origem o grego Diógenes quando há dois mil e quinhentos anos o usou, kosmou polites, um cidadão do mundo, posteriormente quase que desapareceu, voltando a emergir no século XVI na língua francesa, passando no século XVIII a ser referida conotada aos homens e mulheres educados desse período que experienciavam um sentimento de companheirismo para com uma humanidade alargada.

Sentimento bem expresso por Voltaire numa missiva de 1742 dirigida a César de Missy, residente em Londres:

Não sei se o país que é o vosso é o inimigo deste que por sorte do nascimento se tornou o meu, mas sei bem que os espíritos que pensam como vós são do meu país, e são os meus verdadeiros amigos”.

Hoje, ser cosmopolita pouco mais quer dizer que ser alguém que tenha viajado bastante. Não é de admirar que a Primeira Ministra inglesa Theresa May, ao dirigir-se ao seu partido em 2016, tenha dito que:

Se vocês acreditam que são cidadãos do mundo, são cidadãos de nenhuma parte. Não sabem o que cidadania quer dizer.”

 

O próprio Voltaire se encarrega de lhe responder na Collection des lettres sur les miracles:

 

Há pessoas que outrora vos tenham dito: ‘Vocês acreditam em coisas incompreensíveis, contraditórias e impossíveis, porque nós vos ordenámos; ou seja, cometeram coisas injustas porque nós vos ordenámos para as praticarem. Nada pode ser mais convincente. Certamente aquele que tem o poder para vos fazer acreditar em coisas absurdas, tem o poder para vos levar a cometer injustiças. Se não usarem a inteligência com que Deus dotou os vossos espíritos para resistirem à ordem que vos leve a creditarem em impossibilidades, vocês não serão capazes de usar o senso de injustiça que Deus plantou nos vossos corações para resistirem às ordens do diabo. Uma vez que uma simples faculdade da vossa alma seja tiranizada, todas as outras faculdades seguirão pelo mesmo caminho. E tem sido isso a causa de todos os crimes de religião que têm inundado a terra.”

 

Como diz Cristina Cordeiro da faculdade de Letras de Coimbra:

 

O diálogo inter-religioso só pode existir entre mulheres e homens de boa-fé e de boa vontade, mas também conhecedores da história da sua própria crença e da dos outros, dito de outra maneira, capazes de relativizar, senão o Absoluto, pelo menos o valor das suas expressões e manifestações […] E não esqueçamos … o pomo de discórdia que constitui o que Freud denomina, em Malaise dans la Culture, ‘O narcisismo das pequenas diferenças’, de onde surgiram as terríveis guerras de religião no século XVI.”

 

 

Notas

1: Blog de 17 de março de 2021, “Pecado no Paraíso”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/311-pecado-no-paraiso-90452).

2:  Blog de 28 de junho de 2015, “Cristianismo como resistência à barbárie”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/cristianismo-como-barreira-a-barbarie-2202).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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