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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(369) Intolerância

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Os fundamentos teóricos do Mein Kampf podem refutar-se com uma série de argumentos bastante simples, mas se as ideias que propunha sobreviveram e sobreviverão a qualquer objeção, é porque se apoiam numa intolerância selvagem, impermeável a qualquer crítica, Umberto Eco.

 

Os intelectuais não se podem bater contra a intolerância selvagem, porque, ante a pura animalidade sem pensamento, o pensamento encontra-se desarmado, Umberto Eco.

 

O fundamentalismo, integrismo e racismo, partem de uma base comum que é a intolerância.

 

A maior intolerância é a dos pobres, que são as primeiras vítimas da diferença.

 

 

 

 

 

Como foi possível que países considerados como sendo culturalmente dos mais desenvolvidos, com reconhecidas figuras de relevo mundial nos vários campos da intelectualidade, das Humanidades à Ciência, permitissem (e em alguns casos até encorajassem) o seu envolvimento com a barbárie mais que animalesca que foi o Holocausto programado e sistemático dos judeus e a consequente (por inscrita na mesma raiz) destruição de outras populações, ou segmentos de população, consideradas como sub-humanas?

 

Em termos históricos o “fundamentalismo” é um princípio hermenêutico vinculado à interpretação de um livro sagrado. O fundamentalismo ocidental moderno nasce em ambientes protestantes dos Estados Unidos no século XIX, caraterizando-se pela decisão de interpretar literalmente as Escrituras, sobretudo no que dizia respeito às noções de cosmologia que pareciam por em dúvida a ciência da época.

Este fundamentalismo estrito que tem por base que a verdade resulta da interpretação da Bíblia, só poderia originar-se no protestantismo, porquanto, como para o catolicismo apenas a autoridade da Igreja é que é o garante da interpretação, faz deste fundamentalismo católico, um “tradicionalismo”.

 

Significa isto que o fundamentalismo é necessariamente intolerante? Sim, no plano hermenêutico, e não necessariamente no plano político. Pode-se perfeitamente imaginar uma seita fundamentalista que acredita que os seus próprios eleitos têm direito a correta interpretação da Bíblia, sem com isso obrigar os demais ou a compartir as suas crenças, ou a lutar para criar uma sociedade política com base nelas.

 

Já por “integrismo” se entende a posição religiosa e política pelo qual os princípios religiosos devem converter-se em modelo da vida política e fonte das leis do Estado. E curiosamente, se o fundamentalismo e o tradicionalismo são, por princípio, conservadores, já o integrismo pode ser progressista e revolucionário. Há movimentos católicos integristas que não são fundamentalistas, que lutam por uma sociedade inspirada nos princípios religiosos, sem com isso imporem uma interpretação literal das Escrituras.

Todos estes vários matizes que nos aparecem podem levar-nos a fazer crer do seu relacionamento com o elemento religioso. Mas foi nos Estados Unidos que, sem qualquer motivação religiosa, apareceu o politicamente correto, para promover tolerância e reconhecimento de qualquer diferença, fosse religiosa, racial, sexual. Rapidamente se transformou numa nova forma de fundamentalismo ao espartilhar de uma forma quase ritual a linguagem do dia-a-dia. É assim que, sem retirar qualquer discriminação efetiva ao assunto ou agente, se pode agora falar dele sem pudor. Por exemplo, pode-se falar sobre cegos bastando chamar-lhes de “invisuais”. Mas quem não seguir estas regras de correção política, será discriminado!

E o mesmo se passa com os matizes do racismo: ao passo que o racismo nazi era totalitário e se pretendia científico, embora não havendo nada fundamentalista na doutrina da raça, o racismo vulgar não tem essas mesmas pretensas raízes culturais do racismo nazi. Na realidade não têm qualquer raiz cultural, mas continua a ser racismo.

 

Não é difícil concluir-se que fundamentalismo, integrismo e racismo, partem de uma base comum que é a intolerância. Acontece que existem formas de intolerância que não são racistas, como a intolerância para com os hereges e a intolerância das ditaduras para com os seus opositores. É isto que faz com que a intolerância seja algo muito mais profundo que está na raiz de todos estes fenómenos.

Fundamentalismo, integrismo, racismo pseudocientífico, são posições teóricas que pressupõem uma doutrina. A intolerância aparece antes de qualquer doutrina, o que faz com que a intolerância tenha raízes biológicas, que se manifesta pela territorialidade nos animais e por reações emotivas, a maior parte das vezes superficiais, entre nós: não suportamos os que nos são diferentes, ou por causa da cor da pele, ou porque falam outra língua que não entendemos, ou porque comem rãs, cães, macacos, porco, alho, ou porque fazem tatuagens …

 

A intolerância pelo diferente ou pelo desconhecido é natural na criança, bem como o instinto de se apoderar de tudo o que deseja. Tem assim de aos poucos ser educado na tolerância, bem como no relativo à propriedade alheia. Como consequência, vamos ser expostos ao longo de toda a vida, na vida quotidiana, à diferença para com o outro.

Mas há uma outra intolerância mais profunda, mais difusa, que se crê preexistente: a intolerância selvagem. O exemplo mais vulgar, o da caça ás bruxas.

Como diz Umberto Eco, a doutrina da caça ás bruxas, embora já referida na antiguidade clássica, só aparece na idade moderna. O Malleus Maleficarum é escrito pouco antes do descobrimento da América, sendo contemporâneo do humanismo florentino; La Démonomanie des sorciers é de um homem do Renascimento que escreve depois de Copérnico, Jean Bodin. Esta doutrina só se conseguiu impor porque já antes existia um receio popular para com as bruxas. Sem essas crenças populares não se poderia ter difundido uma doutrina da bruxaria e uma prática sistemática da perseguição.

O antissemitismo pseudocientífico surge no decorrer do século XIX e só se converte em antropologia totalitária e prática industrial de genocídio no século XX. Mas ele não poderia nascer se já há séculos não tivesse existido, vindo desde os padres da Igreja, com a polémica anti-judia e um antissemitismo instalado entre o povo em lugares onde existiam guetos.

As teorias anti-jacobinas da conspiração judia do início do século XIX não criaram o antissemitismo popular, explorara apenas o ódio para com os diferentes que já existia antes.

A intolerância mais perigosa é precisamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, como resultado de pulsões elementares. Daí que não possa ser criticada ou contida com argumentos racionais.

Os fundamentos teóricos do Mein Kampf podem refutar-se com uma série de argumentos bastante simples, mas se as ideias que propunha sobreviveram e sobreviverão a qualquer objeção, é porque se apoiam numa intolerância selvagem, impermeável a qualquer crítica.

A intolerância selvagem baseia-se num curto-circuito categórico que acaba por ser um campo para qualquer teoria racista futura: alguns ciganos são ladrões (é verdade), portanto, todos os ciganos são ladrões.

Este curto-circuito é uma tentação para todos nós: em Roma roubaram-me a carteira no aeroporto. Logo dizemos aos nossos conhecidos, Atenção às carteiras nos aeroportos italianos. Cambada de ladrões.

Eco, vai tirar duas conclusões:

 

A maior intolerância é a dos pobres, que são as primeiras vítimas da diferença. Não há racismo entre os ricos. Quando muito, os ricos produziram as doutrinas do racismo, mas os pobres produzem a sua prática, que é muito mais perigosa. (Dito popular português: “não há pior fascista que o criado do fascista”).

 

Os intelectuais não se podem bater contra a intolerância selvagem, porque, ante a pura animalidade sem pensamento, o pensamento encontra-se desarmado. Mas, quando se batem contra a intolerância doutrinal, é demasiado tarde, porque quando a intolerância se faz doutrina já é demasiado tarde para a combater, e os que deveriam tê-lo feito convertem-se nas suas primeiras vítimas.

 

 

E é exatamente por não termos conseguido responder aquela interrogação inicial (Como foi possível …?) que não conseguimos erradicar os seus efeitos, cada vez hoje mais ás vistas. Pode até dar-se o caso de não se ter querido responder ou de apesar de se terem obtido respostas parciais não se tenha querido erradicar os seus efeitos, pelo menos na totalidade. Lembremos que na época havia que lutar contra o comunismo internacional e contra o imperialismo capitalista (se não fosse isso seria contra outras coisas), pelo que alguns daqueles génios deveriam ser aproveitados. Como foram.

Pode mesmo dar-se o caso de esta humanidade não ter capacidade para responder à pergunta formulada, e assim sendo, teremos de ir vivendo com o que temos: autocracias e/ou fascismos.

 

Os seres e as sociedades humanas até poderiam ser entidades com alguma graça se não estivessem sempre prontos para matarem os outros. Eis o que Marcel Proust diz no parágrafo final do Em busca do tempo perdido:

 

“[…] se tais forças me fossem concedidas pelo tempo suficiente para realizar a minha obra, não deixaria acima de tudo de descrever nela os homens, ainda que tal os fizesse parecerem-se com uns seres monstruosos, uns seres que ocupam um lugar tão considerável comparado com o tão restrito lugar que lhes está reservado no espaço, um lugar de facto desmedidamente prolongado […]”

 

 

Sugestões de leitura:

              Sugiro a leitura do blog de 30 de novembro de 2016, “ A captura da democracia pelas falsas notícias institucionalizadas …”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-captura-da-democracia-pelas-falsas-24001)

 

e do blog de 18 de novembro de 2015, “A cartilha do fundamentalismo”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-cartilha-do-fundamentalismo-8885).

(368) Considerações sobre a invasão russa da Ucrânia

Tempo estimado de leitura: 15 minutos.

 

Invasão e guerra da Rússia contra a Ucrânia, o papel da comunicação social e da propaganda, a responsabilização dos poderosos e como acabar com o banho de sangue.

 

 

 

Aqui fica a transcrição integral das respostas de Noam Chomsky à entrevista que lhe fez Jeremy Scahill no The Intercept, a 14 de abril de 2022, que poderão ainda ver/ouvir no YouTube. Devido à extensão das perguntas-opiniões do entrevistador, optei por eliminá-las ou substituí-las por curtos resumos. Nas respostas de Chomsky optei por não corrigir as frases ou sua construção, para assim podermos disfrutar da oralidade de um pensamento em ação.

 

P: O que pensa sobre a ajuda dos EUA, da NATO e da Europa à invasão da Ucrânia?

 

NC: Penso que o apoio ao esforço da Ucrânia para se defender é legítimo. Se for, claro, tem de ser cuidadosamente dimensionado, para que realmente melhore a situação da Ucrânia e não leve ao aumento do conflito, por forma a levar à destruição da Ucrânia e para que a sanção contra o agressor não vá para além do apropriado, tal como sanções contra Washington teriam sido apropriadas quando invadiu o Iraque, o Afeganistão ou muitos outros casos. Claro, isso é impensável dado o poder dos EUA e, de facto, nas primeiras vezes que foi feito – a única vez que foi feito – os EUA simplesmente encolheram os ombros e aumentaram o conflito. Isso foi na Nicarágua, quando os EUA foram levados ao Tribunal Internacional, condenados por uso ilegal da força ou por indemnizações, responderam com a escalada do conflito. Portanto, é impensável no caso dos EUA, mas seria apropriado.

 

No entanto, ainda acho que essa não é exatamente a pergunta certa. A pergunta certa é: qual é a melhor coisa a fazer para salvar a Ucrânia de um destino sombrio, de mais destruição? E a resposta é avançar para um acordo negociado.

 

Existem alguns factos simples que não são realmente controversos. Há duas maneiras para uma guerra terminar: Uma maneira é que um lado ou o outro seja basicamente destruído. E os russos não serão destruídos. Então isso significa que uma maneira é destruir a Ucrânia.

 

A outra maneira é por algum acordo negociado. Se existe uma terceira via, ainda ninguém a descobriu. Portanto, o que devemos fazer é dedicar todas as coisas que você mencionou se devidamente moldadas, mas principalmente avançar para um possível acordo negociado que salve os ucranianos de mais desastres. Esse deve ser o foco principal.

 

Isso exige saber que não podemos olhar para as mentes de Vladimir Putin e do pequeno grupo ao seu redor; podemos especular, mas não podemos fazer muito sobre isso. Podemos, no entanto, olhar para os Estados Unidos e podemos ver que a nossa política explícita – explícita – é de rejeição de qualquer forma de negociação. A política explícita remonta há muito tempo, mas recebeu uma redação definitiva em setembro de 2021 na declaração de política conjunta de 1 de setembro que foi reiterada e ampliada na carta de acordo de 10 de novembro.

 

E se você olhar para o que diz, basicamente diz que não há negociações. O que lá vem é pedir à Ucrânia que avance para o que eles chamaram de um programa especialmente desenhado para entrar na NATO, que mata as negociações; — isso ainda antes do aviso de invasão — um aumento no envio de armas avançadas para a Ucrânia, mais treinos militares, exercícios militares conjuntos, armas colocadas na fronteira. Não podemos ter a certeza, mas é possível que essas fortes declarações possam ter sido um fator para levar Putin e o seu círculo a passar dos avisos para a invasão direta. Nós não sabemos. Mas enquanto essa política estiver a guiar os Estados Unidos, está basicamente a dizer, para citar o embaixador Chas Freeman, está a dizer: “Vamos lutar até o último ucraniano”. [Isso é] basicamente, o que significa.

 

Portanto, as questões que você levantou são importantes, interessantes, qual é exatamente o tipo apropriado de ajuda militar a dar aos ucranianos que se defendem, que seja o suficiente para se defenderem, mas não para levar a uma escalada que simplesmente levará à destruição em massa? E que tipos de sanções ou outras ações poderiam ser eficazes para dissuadir os agressores? Tudo isso é importante, mas torna-se insignificante quando comparado com a necessidade primária de avançar para um acordo negociado, que é a única alternativa à destruição da Ucrânia, o que, é claro, a Rússia é capaz de realizar.

 

P: Está-se a criar uma mitologia à volta de Zelensky?

 

NC: Sim, você está absolutamente certo. Se você olhar para a cobertura dos mídia, as declarações muito claras, explícitas e sérias de Zelenskyy sobre o que poderia ser um acordo político - crucialmente, a neutralização da Ucrânia - foram literalmente suprimidas por um longo período, depois marginalizadas em favor de imitações heroicas de Winston Churchill pelo congressista, e outros realçando esse tom em Zelenskyy.

 

Então, sim, claro. Ele deixou bem claro que se preocupa com a sobrevivência da Ucrânia, se os ucranianos sobrevivem e, portanto, apresentou uma série de propostas razoáveis ​​que podem ser a base para a negociação.

 

Devemos ter em mente que a natureza de um acordo político, a sua natureza geral, tem sido bastante clara por todos os lados há algum tempo. Na verdade, se os EUA estivessem dispostos a considerá-los, poderia não ter havido uma invasão.

 

Antes da invasão, os EUA tinham basicamente duas opções: uma era seguir a sua postura oficial, que acabei de resumir, o que impossibilita as negociações e pode ter levado à guerra; a outra possibilidade era procurar as opções disponíveis. Até certo ponto, elas ainda se encontram disponíveis, atenuadas pela guerra, mas os termos básicos são bastante claros.

Sergey Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, anunciou no início da invasão que a Rússia tinha dois objetivos principais – dois objetivos principais. Neutralização da Ucrânia e desmilitarização. A desmilitarização não significa livrarem-se de todas as suas armas. Significa livrarem-se de armas pesadas ligadas à interação com a NATO apontadas para a Rússia. O que os seus termos significavam basicamente era transformar a Ucrânia em algo como o México. Portanto, o México é um estado soberano que pode escolher o seu próprio caminho no mundo, sem limitações, mas não pode participar em alianças militares administradas por chineses colocando armas avançadas, armas chinesas, na fronteira dos EUA, realizando operações militares conjuntas com o Exército Popular de Libertação, recebendo treino e armas avançadas de instrutores chineses e assim por diante. Na verdade, isso é tão inconcebível que ninguém se atreve a falar sobre isso. Quero dizer, se qualquer indício de algo assim acontecer, sabemos qual seria o próximo passo – não há necessidade de falar sobre isso. Então é simplesmente inconcebível.

E, basicamente, as propostas de Lavrov poderiam ser interpretadas plausivelmente como dizendo: vamos transformar a Ucrânia no México. Bem, essa era uma opção que poderia ter sido perseguida. Em vez disso, os EUA preferiram fazer o que acabei de descrever como inconcebível para o México.

 

Agora, essa não é a história toda. Existem outras questões. Uma questão é a Crimeia. O fato é que a Crimeia está fora de questão. Podemos não gostar. A Crimeia aparentemente gosta. Mas os EUA dizem: nunca vamos admitir isso. Bem, essa é a base para o conflito permanente. Zelenskyy disse sensatamente: vamos adiar isso para uma discussão mais aprofundada. Isso faz sentido.

 

Outra questão é a região de Donbas. Ela é uma região de extrema violência há oito anos em ambos os lados: bombardeamentos ucranianos, bombardeamentos russos, minas terrestres por toda parte, muita violência. Há observadores da OSCE, observadores europeus no terreno que fazem relatórios regulares. Você pode lê-los, eles são públicos. Eles não tentam avaliar a origem da violência – essa não é a missão deles – mas falam sobre o seu aumento radical. Segundo eles, se a minha memória estiver correta, cerca de 15.000 pessoas ou algo assim naquelas imediações podem ter sido mortas no conflito durante os últimos oito anos desde a Revolta de Maidan.

 

Bem, algo tem que ser feito sobre Donbas, uma reação adequada, que talvez os russos aceitassem, seria um referendo, um referendo supervisionado internacionalmente para ver o que as pessoas da região querem. Uma possibilidade, que estava disponível antes da invasão, era a implementação dos acordos de Minsk II, que previam alguma forma de autonomia na região dentro de uma federação ucraniana mais ampla, algo como a Suíça ou a Bélgica ou outros lugares onde existem estruturas federais – conflito, mas confinados dentro de estruturas federais. Essa seria uma possibilidade. Se poderia ter funcionado, só há uma maneira de descobrir: tentar. Os EUA recusaram-se a tentar; em vez disso, insistiram numa posição supermilitante, uma posição oficial, que, tanto quanto sei, a imprensa ainda não divulgou. Você pode dizer-me se estou errado, mas nunca vi uma referência em qualquer parte na grande imprensa. Ocasionalmente, estamos nas margens; qualquer referência à posição oficial dos EUA de 1 de setembro de 2021, a reiteração ou expansão dela em novembro na carta.

 

Na verdade, eu vi uma referência no American Conservative, um jornal conservador americano, que se referia a ela. E, claro, na esquerda as pessoas falaram sobre isso. Mas os EUA insistiram nessa posição, que a alternativa seria buscar o oposto, a opção de dizer: OK, os seus principais objetivos são a neutralização e a desmilitarização, ou seja, um arranjo ao estilo do México, vamos procurar isso. Com relação à Crimeia, vamos aceitar a posição sensata de Zelenskyy de que vamos atrasá-la, não podemos lidar com isso agora. No que diz respeito à região de Donbass, trabalhar para algum tipo de quadro com autonomia, baseado nas opiniões das pessoas que ali vivem, o que pode ser determinado por um referendo supervisionado internacionalmente. Os russos concordariam? Nós não sabemos. Os Estados Unidos concordariam? Nós não sabemos. Tudo o que sabemos é que oficialmente eles rejeitam. Eles poderiam ser pressionados a aceitá-lo? Não sei. Nós podemos tentar. Essa é a única coisa que podemos esperar fazer.

 

Quer dizer, há uma espécie de princípio orientador que devemos ter em mente, não importa qual seja o problema, a pergunta mais importante é: O que podemos fazer a esse respeito? Não: O que pode outra pessoa fazer sobre isso? Sobre isso vale a pena falar. Mas, do ponto de vista mais elementar, a grande questão é: o que podemos fazer a esse respeito? E podemos, em princípio, pelo menos fazer muito sobre a política dos EUA, menos sobre as outras coisas. Então eu acho que é onde o foco da nossa atenção e energia deve estar.

 

P: A política americana joga na queda de Putin como a sua grande oportunidade?

 

NC: Sim, acho que as ações indicam isso. Mas lembre-se, há algo que anda junto com a ação – ou seja, a inação. O que é que os Estados Unidos não estão a fazer? Bem, o que não estão a fazer é rescindir as políticas que descrevi, talvez a imprensa americana não deixe os americanos saberem sobre elas, mas pode ter a certeza que a ‘inteligência’ russa lê o que está no site oficial da Casa Branca, obviamente. Então talvez os americanos possam ser mantidos no escuro, mas os russos leem e sabem disso. E eles sabem que uma forma de inação é não mudar isso.

 

A outra forma de inação é não se mover para participar nas negociações. Agora, há dois países que poderiam, por causa de seu poder, facilitar um acordo diplomático – não digo fazer, mas facilitar, torná-lo mais provável. Um deles é a China; o outro são os Estados Unidos. A China está sendo criticada com razão por se recusar a dar esse passo; críticas aos Estados Unidos não são permitidas, por isso os Estados Unidos não estão sendo criticados por não darem esse passo e, além disso, pelas suas ações, o que torna esse passo mais remoto, como as declarações que você cita nos talk shows de domingo.

Imagine como elas chegam a Putin e ao seu círculo, o que eles estão a dizer, o que eles retiram como significado delas, é: não há nada que você possa fazer. Vá em frente e destrua a Ucrânia à sua vontade. Não há nada que você possa fazer, porque você vai ficar fora. Nós vamos garantir que você não tenha futuro. Então, portanto, você também pode ir em frente porque não tem nada a perder.

 

É isso que os pronunciamentos heroicos no talk show de domingo significam. Podem parecer, novamente, imitações muito emocionantes de Winston Churchill. Mas o que eles traduzem é: Destrua a Ucrânia. Essa é a tradução. Inação, recusando-se a retirar as posições políticas das quais os russos certamente estão plenamente conscientes, mesmo que os americanos sejam mantidos no escuro, é o que se retira. A segunda é: fazer o que culpamos a China por não fazer. Junte-se aos esforços para facilitar um acordo diplomático e pare de dizer aos russos: não há saída; você também pode ir para a falência; as suas costas estão contra a parede.

 

São coisas que poderiam ser feitas.

 

P: O que pensa sobre a cobertura dos mídia e as falsas notícias?

 

NC: Como você disse, não é de forma alguma novo. Você pode rastreá-la de forma concentrada e organizada até a Primeira Guerra Mundial, desde que os britânicos estabeleceram um Ministério da Informação. Sabemos o que isso significa. O objetivo do Ministério da Informação era publicar histórias de horror sobre crimes de guerra alemães que induziriam os americanos a entrar na guerra, Woodrow Wilson – e funcionou. Se você ler os intelectuais liberais dos EUA, eles foram levados. Eles aceitaram. Eles disseram: Sim, temos que parar esses crimes horríveis que o Ministério da Informação britânico está engendrando para nos enganar.

 

O presidente Wilson criou o seu próprio ministério de informação pública, o que significa mentiras para o público, para tentar encorajar os americanos a odiar tudo o que é alemão. Por isso, por exemplo, a Orquestra Sinfônica de Boston não tocaria Beethoven.

 

E isto continua. Reagan tinha o que é chamado de Escritório de Diplomacia Pública, ou seja, um escritório para mentir ao público e aos mídia sobre o que estamos a fazer. Tal não é uma tarefa difícil para o governo.

E a razão foi realmente declarada, com bastante clareza, pelo oficial de relações públicas da United Fruit Company, em 1954, quando os EUA estavam a movimentar-se para derrubar o governo democrático da Guatemala e instalar uma ditadura cruel e brutal, que matou centenas de milhares de pessoas com apoio dos EUA desde então. Quando foi questionado pelas mídia sobre os esforços que a United Fruit Company tinha feito para tentar convencer os jornalistas a apoiar o golpe, ele disse: “Sim, nós fizemos isso. Mas tem que se lembrar como eles estavam ansiosos pela experiência.”

 

OK? Não foi difícil. Eles queriam. Nós os alimentamos com essas mentiras. Eles ficaram encantados porque queriam apoiar o Estado e a sua violência e terror.

 

Agora, não são os jornalistas no terreno. Há uma divisão, como você descreve. É verdade para todas as guerras. Assim, na Nicarágua, nas guerras centro-americanas da década de 1980, havia grandes repórteres no terreno. Na Guerra do Vietnam, a mesma coisa, fazendo um trabalho sério e corajoso – muitos sofrendo por isso. Você chega às redações; parece totalmente diferente. Isso é um facto sobre os mídia.

E não precisamos olhar para muito longe. Você pode dar uma olhada no The New York Times. É o melhor jornal do mundo, o que não é uma barra alta. O seu principal pensador, um grande pensador, que escreve artigos sérios, teve um artigo, um editorial há um ou dois dias, a dizer: Como podemos lidar com criminosos de guerra? O que podemos fazer? Estamos presos. Há um criminoso de guerra comandando a Rússia. Como podemos lidar com ele?

 

O interessante desse artigo não é tanto o ele ter aparecido. Você espera esse tipo de coisa. É que não provocou o ridículo. Na verdade, não houve nenhum comentário sobre isso. Não sabemos como lidar com criminosos de guerra? Claro, nós sabemos. Na verdade, tivemos uma exibição clara disso apenas alguns dias atrás. Um dos principais criminosos de guerra nos Estados Unidos é o homem que ordenou a invasão do Afeganistão e do Iraque; não é preciso ter feito muito mais para ser um criminoso de guerra. E, de facto, no 20º aniversário da invasão do Afeganistão, houve uma entrevista na imprensa. Para seu crédito, o The Washington Post entrevistou-o para a seção de Estilo. Vale a pena ler a entrevista: é sobre esse adorável e pateta vovô brincando com os seus netos; família feliz, exibindo os retratos que pintou de grandes pessoas que conheceu.

Portanto, sabemos como lidar com criminosos de guerra. Qual é o problema? Lidamos com eles com muita facilidade. No entanto, essa coluna poderia aparecer no maior jornal do mundo, o que é bastante interessante, e não suscitar uma palavra de comentário, o que é muito mais interessante.

 

Bem, isso diz muito sobre o que você está a falar, como disse Tom McCann, o rosto das relações públicas da United Fruit Company: “Eles estão ansiosos pela experiência”.

 

Não é preciso muita propaganda. Assim, o governo pode trabalhar duro com seus sistemas de controle cognitivo. Mas está a abrir uma porta no nível editorial. E isto tem sido verdade desde sempre, e ainda é.

 

P: Sobre crimes de guerra e Tribunal Internacional?

 

NC: Bem, duas perguntas, pontos de facto: você está certo, que a massa esmagadora dos crimes de guerra, aqueles que deveríamos considerar, são realizados pelos russos. Isso não está em disputa. E são grandes crimes de guerra. Também é verdade que os Estados Unidos bloquearam totalmente o TPI. Mas observe que não há nada de novo nisso. Há ainda um caso mais forte, que foi esquartejado. Os Estados Unidos são o único país que rejeitou uma sentença do Tribunal Penal Internacional – do Tribunal Mundial. Eles costumavam ter dois companheiros, Hoxha da Albânia e Kadafi na Líbia. Mas eles já se foram. Então agora os EUA estão num esplêndido isolamento por terem rejeitado a sentença do Tribunal Mundial, que foi em 1986, sobre um dos crimes menores de Washington, a guerra contra a Nicarágua. O tribunal condenou os Estados Unidos por – as palavras eram – “uso ilegal da força”, significando terrorismo internacional, ordenou que os EUA desistissem e pagassem reparações substanciais.

Bem, houve uma reação do governo Reagan e do Congresso: escalar os crimes. Essa foi a reação. Houve uma reação na imprensa: o editorial do New York Times dizendo que a decisão do tribunal é irrelevante, porque o tribunal é um fórum hostil. Por que é um fórum hostil? Porque ousa acusar os Estados Unidos de crimes. Então isso tudo justifica. Então a reação é escalar os crimes.

 

Na verdade, a Nicarágua patrocinou primeiro uma resolução do Conselho de Segurança, que não mencionou os Estados Unidos, apenas conclamou todos os estados a observar o direito internacional; os EUA vetaram. Ficou registado como tendo dito ao Conselho de Segurança que os estados não devem observar a lei internacional. Em seguida, foi para a Assembleia Geral, que aprovou por maioria esmagadora uma resolução semelhante. Os EUA opuseram-se, Israel opôs-se, dois estados que não deveriam observar a lei internacional. Bem, tudo isso não faz parte da história no que diz respeito aos Estados Unidos. Esse é o tipo de história, de acordo com os republicanos, que você não deve ensinar porque é divisivo, faz as pessoas sentirem-se mal. Você não deve ensiná-lo. Mas você não precisa contar a ninguém porque não é ensinado. E não é lembrado – praticamente ninguém se lembra.

E vai além disso. Os Estados Unidos, de facto, quando os principais tratados, como o tratado da Organização dos Estados Americanos, foram assinados na década de 40, os Estados Unidos acrescentaram reservas, dizendo basicamente não ser aplicável aos Estados Unidos. Na verdade, os Estados Unidos raramente assinam convenções – muito raramente. Quero dizer, ratifica – às vezes assina. E quando as ratifica, é com reservas, excluindo os Estados Unidos.

 

Isso inclui até a Convenção sobre Genocídio. Existe uma Convenção sobre Genocídio. Os Estados Unidos finalmente ratificaram-na depois de, acho, cerca de 40 anos, mas com uma reserva dizendo que não se aplica aos Estados Unidos. Temos o direito de cometer genocídio. Isso chegou aos tribunais internacionais: tribunal da Iugoslávia, ou talvez fosse a Corte Mundial. não me lembro. A Iugoslávia acusou a NATO de crimes no seu ataque à Sérvia. As potências da NATO concordaram em entrar nos detalhes das operações judiciais. Os EUA recusaram. E fê-lo porque a Iugoslávia tinha mencionado o genocídio. E os Estados Unidos são autoimunes, imunizados da acusação de genocídio. E corretamente o tribunal aceitou isso. Os países estão sujeitos à jurisdição apenas se a aceitarem. Bem, isso somos nós. (1)

Podemos continuar. Somos um estado desonesto, o estado desonesto líder numa dimensão enorme - ninguém chega nem lá perto. E, no entanto, podemos pedir julgamentos de crimes de guerra de outros, sem pestanejar. Podemos até ter colunas do principal colunista, o colunista mais respeitado, a dizer: “Como podemos lidar com um criminoso de guerra?”

 

É interessante observar a reação a tudo isso na parte mais civilizada do mundo, o eu global. Eles olham para isso; eles condenam a invasão, dizem que é um crime horrível. Mas a resposta básica é: O que há de novo? Qual é o alvoroço? Temos sido submetidos a isso por vocês desde o início, Biden chama Putin de criminoso de guerra; sim, é preciso um para conhecer o outro. É a reação básica.

 

Você pode vê-lo simplesmente ao olhar para o mapa das sanções. Os Estados Unidos não entendem por que é que a maior parte do mundo não aderiu às sanções. Que países aderiram às sanções? Dê uma olhada. O mapa é revelador. Os países de língua inglesa, a Europa e aqueles que fizeram o apartheid na África do Sul e que se chamaram de brancos honorários: o Japão, com algumas de suas ex-colónias. É isso. O resto do mundo diz: Sim, terrível, mas o que há de novo? Qual é o alvoroço? Por que nos devemos envolver na sua hipocrisia?

Os EUA não conseguem entender isso. Como podem eles deixar de condenar os crimes da mesma forma que nós fazemos? Bem, eles condenam os crimes da mesma forma que nós fazemos, mas vão um passo além do que nós não vamos –nomeadamente, no respeitante ao que acabei de descrever. Bem, isso significa que há muito trabalho a fazer nos Estados Unidos simplesmente para elevar o nível de civilização para o lugar de onde podemos ver o mundo, da maneira como as vítimas tradicionais o veem. Se conseguirmos chegar a esse nível, também poderemos agir de forma muito mais construtiva em relação à Ucrânia.

 

P: Consequências da postura americana perante a Índia e a China?

 

NC: Bem, é diferente. Por um lado, os Estados Unidos apoiam bastante o governo indiano. A Índia tem um governo neofascista. O governo Modi está a trabalhar duro para destruir a democracia indiana, transformar a Índia numa cleptocracia hindu racista, atacar muçulmanos, conquistar a Caxemira – nem uma palavra sobre isso. Os Estados Unidos apoiam tudo isso. É muito apoio. É um aliado próximo, um aliado próximo de Israel – o nosso tipo de amigo, por outras palavras, portanto não há problema.

 

E o problema com a Índia é que ela não vai longe o suficiente. Não vai tão longe quanto queremos, não vai juntar-se ao ataque contra a Rússia. É jogar um jogo neutro como todo o Sul Global, dizendo: Sim, é um crime, mas não nos vamos envolver nesse teu jogo.

 

E a outra coisa é que a Índia está a participar, mas não tão ativamente quanto os EUA gostariam, na política que o governo Biden chama de “cercar a China”. Uma das nossas maiores políticas, a Rússia é uma espécie de linha lateral, mas a principal política é cercar a China – a contenção está fora de moda, por isso cercar a China – com estados sentinelas, esse é o termo usado, armados até os dentes com capacidade ofensiva massiva para nos proteger do que é chamado a ameaça da China. É um anel de estados da Coreia do Sul, Japão, Austrália, Índia - exceto que a Índia não se está a juntar ativamente o suficiente – a quem forneceremos, o governo Biden anunciou recentemente o fornecimento de mísseis de precisão avançados apontados para a China.

No caso da Austrália, os Estados Unidos, juntamente com a Grã-Bretanha, o seu cachorrinho, estão a fornecer à Austrália submarinos nucleares avançados, anunciados como capazes de entrar nos portos chineses sem serem detetados e destruir a frota chinesa em dois ou três dias. A China tem aí uma antiga frota pré-histórica – eles nem têm submarinos nucleares – submarinos a diesel antiquados.

 

Enquanto isso, os Estados Unidos estão a aumentar a sua própria capacidade defensiva. Até agora, temos submarinos nucleares Trident, que são capazes de cada um, um submarino, destruir quase 200 cidades em qualquer lugar do mundo com um ataque nuclear. Mas isso não é suficiente. Agora estamos a mudar para submarinos mais avançados, julgo que são os chamados submarinos da classe Virgínia, que serão muito mais destrutivos. E essa é a nossa política relativamente à China.

 

Também temos uma política económica. Os Estados Unidos acabaram de aprovar uma lei bipartidária, apoiada pelas duas partes, para melhorar a tecnologia dos EUA, a infraestrutura científica, não porque seria bom para os Estados Unidos – não poderíamos considerar isso – mas porque competiria com a China. É o projeto de competir com a China. Então, se queremos ter ciência e tecnologia melhores, é porque temos que derrotar a China, garantir que a China não fique à nossa frente. Não vamos trabalhar com a China, para lidar com problemas realmente existenciais como o aquecimento global, ou problemas menos sérios, mas graves, como pandemias e armas nucleares. Vamos competir com eles e garantir que possamos derrotá-los – isso é o que importa – e ficar à frente deles.

 

É uma patologia. Você não pode imaginar nada mais lunático. Aliás: Qual é a ameaça da China? Não é que a China tenha um governo muito brutal e severo. Os EUA nunca se importam com coisas assim. Lida com eles facilmente. A ameaça da China, há um artigo interessante sobre isso de um estadista australiano, conhecido estadista internacional, ex-primeiro-ministro Paul Keating, que analisa os vários elementos da ameaça da China e conclui, finalmente, que a ameaça da China é que a China existe. E ele está correto. A China existe e não segue as ordens dos EUA. Isso não é bom. Você tem que seguir as ordens dos EUA. Se você não fizer isso, você está em apuros.

 

Bem, a maioria dos países fá-lo. A Europa sim. A Europa despreza as sanções dos EUA contra Cuba, Irão, opõe-se fortemente a elas, mas, no entanto, segue-as porque assim não pisa os calos do padrinho. Então eles seguem as sanções dos EUA. A China não. A China está focada no que o Departamento de Estado uma vez chamou de “desafio bem-sucedido” às políticas dos EUA. Isso foi na década de 1960, quando o Departamento de Estado estava a explicar por que temos que torturar Cuba, realizar uma guerra terrorista contra ela, quase levando a uma guerra nuclear, impor sanções altamente destrutivas - ainda estamos nisso depois de 60 anos, abandonadas ​​pelo mundo inteiro. Veja os votos na Assembleia Geral, 184 contra 2, EUA e Israel. Temos que fazer isso, como o departamento de estado liberal explicou na década de 1960, por causa do desafio bem-sucedido de Cuba às políticas dos EUA desde 1823.

 

A Doutrina Monroe, que afirmava a determinação dos EUA em dominar o hemisfério – [nós] não éramos fortes o suficiente para fazê-lo na época, mas essa é a política. E Cuba está a desafiar isso com sucesso. Isso não é bom.

 

A China não é Cuba, é muito maior. Está a desafiar com sucesso as políticas dos EUA. Então, não importa o quão brutal seja, quem se importa? Apoiamos outros estados brutais todo o tempo, mas não o desafio bem-sucedido das políticas dos EUA. Portanto, temos que cercar a China, com estados sentinela, com armas avançadas apontadas para a China, que temos que manter e atualizar, e garantir que subjuguemos qualquer coisa nas proximidades da China. Isso faz parte da nossa política oficial. Foi formulada pela administração Trump, Jim Mattis, em 2018, assumida depois por Biden. Temos que ser capazes de lutar e vencer duas guerras, com a China e a Rússia.

 

Quero dizer, isto está para além da insanidade. A guerra com a China ou a Rússia significa: “Foi bom conhecê-lo, adeus civilização, terminamos”. Mas temos que ser capazes de vencer e lutar contra os dois. E agora com Biden, temos que expandir para cercar a China com estados sentinela aos quais fornecemos armas mais avançadas, enquanto melhoramos a nossa enorme capacidade destrutiva. Como não queremos esses submarinos nucleares fracos que podem destruir 200 cidades. Isso é coisa de maricas. Vamos para além disso.

E então Putin deu aos Estados Unidos um enorme presente. A guerra na Ucrânia foi criminosa, mas também, do ponto de vista dele, totalmente estúpida. Ele deu aos Estados Unidos o que mais desejavam; poderia ter entregado a Europa aos Estados Unidos numa bandeja de ouro.

 

Quero dizer, durante toda a Guerra Fria, uma das principais questões nos assuntos internacionais era se a Europa se tornaria numa força independente nos assuntos internacionais, o que foi chamado de terceira força, talvez nos moldes que Charles de Gaulle delineou, ou que Gorbachev delineou quando a União Soviética entrou em colapso; casa comum europeia, sem alianças militares, cooperação entre a Europa e a Rússia, numa integração comercial pacífica. Essa é uma opção.

 

A outra opção é o chamado programa atlantista, implementado pela NATO. Os Estados Unidos dão as ordens e você obedece, esse é o programa atlantista. Claro, os EUA sempre apoiaram isso e sempre venceram. Agora Putin resolveu isso para os Estados Unidos. Ele disse: tudo bem. Vocês têm a Europa como subordinada. A Europa vai em frente e arma-se até os dentes para se proteger de um exército que a Europa diz jocosamente ser incapaz de conquistar cidades a 20 milhas de sua fronteira. Portanto, temos que nos armar até os dentes para nos defendermos do ataque desta força extraordinariamente poderosa contra a NATO. Quero dizer, se alguém estiver a observar isto do espaço sideral, devem se estar a rir. Mas não nos escritórios da Lockheed Martin. Eles acham ótimo. Ainda melhor nos escritórios da Exxon Mobil.

 

Essa é a parte interessante. Havia algumas esperanças, não grandes esperanças, mas algumas esperanças de lidar com uma crise climática que destruirá a vida humana organizada na Terra. Não amanhã, mas no processo de fazê-lo. As projeções atuais e mais plausíveis são de três graus centígrados de aumento em relação aos níveis pré-industriais de 20 até o final do século. Isso é catastrófico. Quer dizer, não significa que todo mundo morra, mas é uma catástrofe total. Bem, houve movimentos para impedir isso. Agora eles foram invertidos.

 

Você olha para as coisas que estão a sair das corporações de energia, elas estão eufóricas. Primeiro, tiramos todos esses ambientalistas irritantes do nosso cabelo. Eles não nos incomodam mais. Na verdade, agora estamos a ser amados por salvar a civilização. E isso não é suficiente. Eles dizem: queremos ser “abraçados” – palavra deles – queremos ser abraçados por salvar a civilização, expandindo rapidamente a produção de combustíveis fósseis, que destruirá tudo, mas colocará mais dinheiro nos nossos bolsos durante o período que resta. Isso é o que alguém do espaço sideral estará a ver. Somos nós, OK?

 

P: Sobre o jornalismo independente e o ataque que o poder lhe faz?

 

NC: Como sempre foi o caso. Temos um exemplo dramático disso bem à nossa frente: Julian Assange. Um exemplo perfeito de um jornalista que fez o trabalho de fornecer ao público informações que o governo quer que sejam suprimidas. Informações, algumas sobre crimes dos EUA, mas outras coisas. Então ele foi submetido a anos de tortura – tortura – essa é a definição de tortura do Relatório da ONU, agora mantido numa prisão de alta segurança, sujeito à possibilidade de extradição para os Estados Unidos, onde será severamente punido por ousar fazer o que um jornalista deve fazer.

 

Agora dê uma olhada para a forma como a mídia está a reagir a isso. Em primeiro lugar, eles usaram tudo o que o WikiLeaks expôs, felizmente usaram, ganharam dinheiro com isso, melhoraram as suas reputações.  Estão eles a apoiar Assange, e esse ataque à pessoa que cumpriu o honroso dever de jornalista e que agora está a ser torturado? Não que eu tenha visto. Eles não estão a apoiar isso. Usámos o que ele fez, mas depois juntámo-nos aos chacais que lhe estão a morder os pés. OK? Isso é agora. Mas vai muito para trás.

Você volta a 1968, no auge da guerra no Vietnam, quando a verdadeira opinião popular de massa estava a desenvolver-se. Quando McGeorge Bundy, conselheiro de segurança nacional de Kennedy e Johnson, escreveu um artigo muito interessante no Foreign Affairs, um importante jornal do establishment, no qual ele disse: Bem, há críticas legítimas sobre algumas coisas que fizemos no Vietnam, como os erros táticos que fizemos, deveríamos ter feito as coisas de forma um pouco diferente. E depois disse, há também os homens dos extremos que questionam as nossas políticas para além das decisões táticas – pessoas terríveis. Como somos um país democrático, não os matamos. Mas você tem que se livrar desses homens dos extremos – [isso é] 1968.

 

Você vai para 1981: a embaixadora da ONU Jeane Kirkpatrick cria a noção de equivalência moral. Ela disse: Se você se atreve a criticar os Estados Unidos, você é culpado de equivalência moral. Você está a dizer que somos como Stalin e Hitler. Então você não pode falar sobre os Estados Unidos.

 

Há outro termo que é usado agora. É: whataboutism. Se você fala sobre o que os EUA estão a fazer agora, é whataboutism, você não pode fazer isso. Você tem que aderir firmemente à linha do partido, estritamente à linha do partido. Não temos o tipo de força que Hitler e Stalin tinham. Mas podemos usar obediência, conformidade – muitas coisas sobre as quais falamos. E você obtém um resultado semelhante – não é novo.

 

E sim, você está certo, tem que ser combatido. Temos que lidar com o que está a acontecer. E isso inclui o que estamos a fazer agora com a Ucrânia, como discutimos, tanto por inação quanto por ação, estamos a lutar até o último ucraniano para citar novamente o embaixador Freeman. E deve ser legítimo dizer isso se você se importa com os ucranianos. Se você não se importa com eles, tudo bem, apenas silêncio.

 

 

Nota (1): Por exemplo, em 2002, George W. Bush assinou um projeto de lei aprovado por ambos os partidos, que veio a ficar conhecido como o Ato de Invasão de Haia (Hague Invasion Act). Numa das suas cláusulas está lá expresso que as forças armadas dos EUA podem ser autorizadas a conduzir uma operação militar na Holanda com o fim de libertarem qualquer americano que seja presente ao tribunal com a acusação de ter praticado crimes de guerra ou que esteja a ser investigado por tal prática.

 

 

 Adenda: Sugiro ainda a leitura do blog de 15 de novembro de 2016, “As fronteiras indefinidas da guerra”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/as-fronteiras-indefinidas-da-guerra-23353

 

e do blog de 1 de junho de 2016, “As forças que nós armamos”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/as-forcas-que-nos-armamos-16630

 

e do blog de 19 de abril de 2017, “ Matar, mas com ética”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/no107-matar-mas-com-etica-28952

(367) As outras vigilâncias

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

O mundo inteiro é considerado como uma zona de conflito a vigiar.

 

É hoje consensualmente adquirido que todos somos vigiados através de uma extração massiva e abusiva de dados que voluntariamente obrigados (do lado de cá) ou obrigados voluntariamente (na China) fornecemos.

 

O aparecimento da nação-estado está interligado ao aparecimento da agricultura, especialmente no que se refere à opção pelas sementeiras de cereais.

 

A União Europeia usa satélites para controlar o uso que os agricultores fazem das ajudas diretas que recebem da Política Agrícola Comum (PAC). Atualmente, não se pode plantar um alqueire sem que o Estado o saiba, quer se receba ou não qualquer ajuda estatal.

 

 

 

 

 

Eis como Humberto Maturana na Árvore do Conhecimento (1), descreve como se deu o processo da evolução humana:

 

“Imaginemos uma colina com cume estreito. Do alto desse cume, lançamos umas gotas de água sempre na mesma direção, ainda que a mecânica do lançamento cause variações no seu modo de cair. Imaginemos que as gotas de água sucessivamente atiradas, deixam marcas sobre a superfície da terra, que servirão como registos da sua queda. Claro que ao repetirmos várias vezes a experiência, obteremos resultados ligeiramente diferentes. Algumas gotas cairão diretamente para baixo, na direção escolhida, enquanto outras encontrarão obstáculos que contornarão de maneiras diferentes, dependendo das suas pequenas diferenças de peso e impulso, desviando-se para um ou outro lado. Mudanças na direção do vento talvez forcem algumas gotas ara caminhos mais sinuosos, afastando-as da direção inicial. E assim indefinidamente. Os caminhos que obtivermos representam adequadamente as múltiplas derivas naturais das gotas de água sobre a colina, resultados dos seus diferentes modos individuais de interagirem com as irregularidades do terreno, dos ventos e assim por diante.”

 

Acontece que, por vezes até conjunturalmente, acontecem fenómenos extraordinários que podem alterar esta “deriva natural”, lançando a sociedade por caminhos inesperados. Alguns deles, inofensivos. Outros, perigosos e sem retorno.

 

A introdução da Agricultura é por todos considerada como um enorme passo na alteração da sociedade. Para os historiadores e sociólogos, existe uma ligação entre o aparecimento da nação-estado com o da agricultura, mormente no que se refere à opção seguida pelas sementeiras de cereais.

Também hoje já se sabe (2) que embora as populações que dependiam da agricultura fossem pior alimentadas e tivessem mais doenças que as populações de caçadores nómadas, tinham em contrapartida mais filhos e estavam mais inseridas nas comunidades, o que lhes acabou por facilitar a sobrevivência.

Alguns estudos recentes têm provado que a preferência pelo cultivo de cereais está mais relacionada com as facilidades que proporcionava aos que detinham o poder ao permitir-lhes um maior controle sobre as colheitas e a correspondente arrecadação de impostos, do que com o gosto ou propensão natural de cada um pelo seu cultivo ou ainda pela facilidade do seu plantio.

E isto porque se tornava difícil a um agricultor ocultar do poder uma colheita feita por cima do solo (as comunidades que produziam batatas e outros tubérculos que cresciam debaixo da terra, podiam colhê-los à vez, conforme a necessidade) e que necessitava de ser colhida e processada mais tarde, em momentos específicos do ano. Vigiar os cereais, era também vigiar o cultivador.

 

 

A forte ligação e dependência existente entre as comunidades científicas e os Ministérios de Defesa dos vários países, tem vindo a crescer desde o início da Segunda Guerra Mundial. Nos EUA isso foi particularmente notório não só pelo colossal projeto integrado necessário para a feitura das primeiras bombas atómicas, como pelas tentativas de decifração das comunicações dos alemães e dos japoneses.

Terminada a Guerra, vai ser na ARPA (Agência de Projetos de Investigação Avançados) que se vão coordenar e centralizar essas ligações. Dos seus vários ramos e projetos vai nascer o SAGE (Semi Automatic Grund Environment), projeto que previa a utilização interligada de estações de radar computorizadas destinado a detetar previamente qualquer possível ataque por aeronaves a partir da União Soviética (para visualizar o clima que se vivia, ver o filme de Stanley Kubrick de 1964, “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb”, com Peter Sellers e George C. Scott).

O SAGE era um sistema extremamente ambicioso, mais caro que o projeto Manhattan, mas que se deparou com uma grande limitação quando a União Soviética colocou em órbita o primeiro Sputnik.

A partir daí, os Estados Unidos perceberam que para este modelo de vigilância por controle remoto sobreviver, ele teria de ser expandido por forma a abarcar países inteiros, grupos políticos, manifestações. O mundo inteiro passava a ser considerado como uma zona de conflito a vigiar.

É importante lembrar que se estava no tempo da vitória da Revolução cubana, do seu contágio a outros países da América Latina, do processo de independência das colónias, da Guerra do Vietname. E o que se pretendia era que as novas tecnologias de vigilância remota fossem capazes de observar todos estes acontecimentos, apresentando resultados previsíveis para poderem ser corrigidos a tempo. Como dizia Yasha Levine no seu Surveillance Valley: The Secret Military History of Internet:

 

Parecia ser uma ideia progressista. Era melhor que bombardear essa gente. Com uma quantidade de dados suficiente, podia-se arranjar o mundo sem derramar sangue”.

 

Outra das ideias que tiveram os quarenta e cinco génios de várias universidades, quase todos físicos, que se reuniam a cada seis semanas em La Jolla, Califórnia, foi a de colocar uma rede eletrónica de sensores acústicos e de temperatura, na selva do Vietname, para identificar as rotas de abastecimento dos Vietcongue e bombardeá-las. Foi a chamada Barreira Eletrónica ou Linha McNamara.

O conceito subjacente era o de uma guerra sem baixas, “a guerra do futuro em que as forças inimigas eram localizadas, rastreadas e atacadas de maneira quase instantânea através da conjugação de dados, avaliação computorizada assistida e sistemas de disparo automático”, como afirmou William Westmoreland, comandante em chefe das operações no Vietname.

Rapidamente o inimigo aprendeu a detonar bombas em lugares por onde não passaria, passando por outras rotas.

 

Terminada a guerra, o sistema continuou a ser apoiado financeiramente pelo Departamento de Defesa nas universidades e nas grandes empresas tecnológicas (Texas Instruments, Magnavox, General Electics, West Electric) com vista ao desenvolvimento de todos os tipos de sensores acústicos, sísmicos, químicos, e de radiofrequência. Toda essa tecnologia foi reciclada para ser aplicada na fronteira com o México e nos que se manifestavam a favor dos direitos civis.

Ou seja, apesar de já se não estar em guerra, essa tecnologia iria continuar a desenvolver-se para ser usada como parte do sistema de vigilância do Estado.

Posteriormente, o ataque às Torres Gémeas justificou as alterações tidas como necessárias à legislação, contidas no Patriot Act, colocando todas as infraestruturas de comunicação nas mãos das agências de inteligence, incluindo a então ainda incipiente indústria de serviços online e o seu enorme banco de dados.

 

Hoje todos somos vigiados através de uma extração massiva e abusiva de dados que voluntariamente obrigados (do lado de cá) ou obrigados voluntariamente (na China) fornecemos: “tudo o que se procura, escreve, envia, calcula, recebe, carrega, comparte, lê, apaga ou junta, faz com que o utilizador seja digerido pelos algoritmos da Google e armazenado nos seus servidores para exploração eterna.”

Dispenso-me de falar sobre os telemóveis, as suas câmaras e microfones, que tudo podem fazer (e fazem) sem qualquer comando do proprietário (o que poderia por o problema interessante de saber quem é o verdadeiro proprietário), pois tudo isso é já do conhecimento comum. No entanto, talvez seja interessante contar o caso que se passou com o então jovem estudante austríaco, Max Scherm.

Quando estava a fazer uma disciplina do curso de Direito na Universidade de Santa Clara, Silicon Valley, Max escutou uma palestra dada por Ed Palmieri, um advogado da Facebook especializado em privacidade, e verificou que o conferencista sabia muito pouco da legislação europeia sobre proteção de dados, pelo que decidiu que o trabalho que iria apresentar para a disciplina fosse sobre a Facebook e as diretivas europeias.

Durante a investigação, descobriu que a Facebook não só acumulava enormes dossiers sobre os seus utilizadores americanos como o faziam também com os europeus, sem respeitarem o tratado de Safe Harbour sobre proteção de dados negociado com a União Europeia. Um dos direitos desse acordo era o de o utilizador poder saber quais eram os dados que a companhia tinha sobre ele.

Ao fim de muito procurar, Max encontrou finalmente a página onde poderia fazer tal pedido. Feito o pedido, recebeu um CD com um documento com 1.200 páginas. Lá estava um dossier onde constava todas as vezes que se tinha ligado, de onde o tinha feito, durante quanto tempo e com que computador. Que outras pessoas se tinham ligado a partir dos mesmos sítios. Todas as pessoas que tinha marcado como amigos e também as que tinha desmarcado, com a data e a duração. Todos os endereços de correio dos seus amigos, todas as mensagens e chats que escrevera, incluindo os que tinha depois apagado. Todas as fotos que tinha visto, todas as coisas que tinha lido, todos os enlaces em que tinha carregado.

O registo era automático, fazia parte do algoritmo. Isto significava que todos e cada um dos utilizadores do Facebook tinham um dossier semelhante. E que a falta de supervisão era extensível a todas as companhias estrangeiras que guardavam dados de cidadãos europeus, incluindo a Google, Apple, Twitter, Dropbox, Amazon e Microsoft.

No passo seguinte, Max pediu os seus dados biométricos (derivados do seu rosto), mas a Facebook recusou-se a entregar, argumentando que a tecnologia empregue para os obter constituía segredo industrial.

 Depois do Guardian ter publicado os documentos da denúncia de Edward Snowden sobre o projeto PRISMA, Max entendeu levar o seu caso ao Tribunal de Justiça Europeu e ganhou. O acordo de transferência de dados entre a União Europeia e os EUA foi anulado. Em seu lugar apareceu cinco meses depois um novo acordo, o Privacy Shield. Eis o que disse Snowden:

 

A NSA guarda um registo de tudo o que um cidadão europeu faz, independentemente de se faz mal ou bem, e pode aceder a esse registo sem necessitar de nenhuma autorização, bem como examinar todos os arquivos. A única diferença é como são tratados depois de os terem investigado”.

 

Lembremos: PRISMA, era o nome de código de um programa segundo o qual o Governo dos Estados Unidos, através da NSA (National Security Agency), mantinha contacto e acesso direto com os servidores de várias empresas tecnológicas, incluindo a Google, Facebook, Apple, Amazon e Microsoft, compartindo também o acesso com outros países da chamada Aliança dos Cinco Olhos (Reino unido, Austrália, Nova Zelândia e Canadá).

Este programa tinha sido legalizado por Barack Obama com o concurso de vários tribunais secretos e de leis antiterrorismo. A secção 702 da lei de Vigilância da Inteligência estrangeira (FISA) concedia à NSA o acesso a todas as comunicações privadas que transcendessem as fronteiras americana. A secção 215 da US-Patriot Act autorizava a intromissão do Governo nos registos que estivessem em mãos de terceiras partes, incluindo contas bancárias, bibliotecas, agências de viagem, alugueres de vídeos, telefones, dados médicos, de igrejas, sinagogas, mesquitas e plataformas digitais. Tudo isto era feito mediante autorização de um tribunal secreto, concebido para os assuntos secretos, e sem o conhecimento ou consentimento das pessoas espiadas.

Quando Barack Obama, para tranquilizar as pessoas vem assegurar que a lei não permitia às agências lerem o conteúdo das comunicações, mas apenas registar os metadados, devia saber que não estava a dizer a verdade.

Se tivermos suficientes metadados, sabemos coisas que a vigilância desconhece. Stewart Baker, conselheiro geral da NSA, confessou que “os metadados contam-te absolutamente tudo sobre a vida de alguém. Se tiveres suficientes metadados, não necessitas de conteúdo”; “Matamos gente usando metadados”, general Michael Hayden (The Price of Privacy: Re-Evaluating the NSA, The John Hopkins Foreign Affairs Symposium Presents, abril de 2014).

Sobre a colaboração entre a NSA e as grandes tecnológicas, leia-se o comunicado da Google: “Nós facilitamos dados dos utilizadores ao Governo de acordo com a lei, e revemos todos os casos cuidadosamente […] A Google não tem uma porta atrás pela qual o governo possa aceder aos dados privados dos nossos utilizadores”.

Um porta-voz da Apple disse também sobre o assunto que nunca tinha ouvido falar do PRISMA, contradizendo os documentos oficiais comprovados e publicados pelos principais órgãos de comunicação. E todas as outras tecnológicas afinaram pelo mesmo diapasão.

 

 

Sempre que um foguetão vai para o espaço, normalmente carregado de satélites, maiores ou mais pequenos, em vez de ficarmos muito excitados a vê-lo subir tipo, “Espantoso!” seria bom que pensássemos sobre o que ele vai lá fazer. Claro que para isso precisaríamos de ser informados corretamente, o que acontece cada vez menos, até porque a maior parte dos lançamentos são feitos por empresas privadas pelo que ninguém tem nada que saber, mesmo apesar de serem feitos com dinheiros do Estado. Segredos que nós pagamos.

Atualmente, os sistemas de imagem por satélite fazem parte de um circuito fechado de vigilância a nível planetário que está nas mãos de uma meia dúzia de empresas que trabalham para os vários governos. Acontece que estas empresas trabalham também para os seus clientes e associados, pelo que aquela noção bonita da Google de” organizar a informação do mundo e torna-la acessível e útil para todos os utilizadores” já era.

Pensar que esses dados obtidos são usados para o “bem comum”, principalmente para predizer o tempo ou para detetar fogos ou inundações, é uma visão romântica e muito ingénua sobre o mundo da vigilância e dos negócios. Muito embora se possa dizer simplificadamente que o que essas empresas de analise de dados fazem não é mais do que contar.

Contam, por exemplo, os carros parados nos parques de estacionamento, e vendem essa informação aos hipermercados e centros comerciais das vizinhanças para que estes possam calcular ao minuto a esperança de vendas.

Contam também as quantidades de cereais, de legumes ou de grãos para que as empresas que compram essas informações possam, por exemplo, calcularem o que vão colher nessa temporada, ou para saberem quantas cabeças de gado cada um tem.

É que as predições dessas empresas de satélites são melhores que as dos Ministérios da Agricultura, e isto porque os Ministérios podem saber o que foi plantado, mas não necessariamente o que vai ser colhido.

Os satélites vigiam as colheitas minuto a minuto, e podem medir entre outras coisas os níveis de clorofila. Sabem o que cada agricultor plantou e podem adicionar esses dados e outros ao que se passa com as colheitas no Brasil, na China, na Argentina, na Rússia, na União Europeia. Comparando esses dados com dados anteriores de até um século atrás e com as previsões meteorológicas que se seguem e outras medições relevantes sobre o estado da terra (minerais, humidade, insetos presentes, contaminação das áreas circundantes) conseguem predizer o comportamento do mercado.

De notar que os agricultores não se podem negar a fornecerem os dados sobre o que se passa nas suas próprias propriedades, até porque estão a serem vigiados pelos satélites. Já as empresas que registam todas estas informações podem ocultar os seus algoritmos e até as suas listas de clientes. Há sempre uma propriedade privada mais privada que a outra. É a luta de propriedades a definir a classe dos proprietários.

A União Europeia usa satélites para controlar o uso que os agricultores fazem das ajudas diretas que recebem da Política Agrícola Comum (PAC). Vigiam para que cumpram as áreas acordadas, a rotação das culturas, a manutenção de terraços, etc. Atualmente, não se pode plantar um alqueire sem que o estado o saiba, quer se receba ou não qualquer ajuda estatal.

 

 

Mas, não são só os cereais e o gado que são contáveis. As pessoas também. E não são só contadas, são identificadas. Estas empresas de “contagem” oferecem o reconhecimento facial, que é involuntário e invisível, na medida em que as pessoas não dão por isso e não oferecem resistência, pois é feito sem sua autorização. E fazem-no a todos os níveis: são democráticas.

Por exemplo, para identificar os convidados do casamento do Príncipe Harry e Meghan Markle, a Sky News sobrevoou a capela de S. Jorge com uma frota de drones especialmente equipados para fazerem o reconhecimento facial.

Em quase todos os grandes acontecimentos atuais, públicos ou privados, se faz o mesmo: os enormes espaços (campos de desporto, espaços de concertos, etc.) são equipados com software de reconhecimento facial que fotografa todos os assistentes e os envia para um servidor onde se vai fazer a comparação com uma base de dados de pessoas previamente consideradas como suspeitas. E isto cada vez mais em tempo real.

Exatamente para isso (e muito mais, evidentemente) a Space X de Musk tem já 2.110 satélites em órbita baixa (mais precisão de imagem, etc.) como parte da sua rede Starlink, o governo inglês com a OneWeb já colocou em órbita 428 dos 684 satélites planeados, e agora a Amazon de Zebos com o seu Projeto Kuiper, vai colocar mais 3.236 satélites. Isto sem contar com os dos chineses, russos, europeus, etc. Estamos a ser fotografados do espaço. Sorriam, digam “cheese.

Entretém-te filho! Vai para casa que eles estão a tratar-te da saúde!(3)

 

E é isto: os governos mentem ou mudam, os executivos das empresas mudam ou mentem ou são despedidos ou estão sujeitos a legislações limitativas que os impedem de dizer a verdade.

 

 

Serão estas “derivas naturais”, naturais? E se forem, aonde vão dar?

 

 

 

Nota 1: ver blog de 15 de junho de 2016, “O caso da deriva das gaivotas lésbicas”.

Nota 2: ver blog de 20 de outubro de 2021, “No Paraíso não havia agricultores”.

Nota 3: ouvir “FMI” de José Mário Branc

(366) “O Fascismo Eterno”

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Por detrás de um regime e da sua ideologia há sempre uma maneira de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e pulsões insondáveis, Umberto Eco.

 

O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diferentes ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições.

 

“Deus devia estar distraído, evidentemente”.

 

Se retirarmos ao fascismo o imperialismo, teremos Franco ou Salazar; se retirarmos o colonialismo, teremos o fascismo balcânico; se lhe adicionarmos um anticapitalismo radical, teremos Erza Pound…

 

Seria muito cómodo para nós que se identificassem dizendo: “Quero voltar a abrir Auschwitz, quero que os camisas negras voltem a desfilar pelas praças italianas!

 

 

 

 

A Columbia University organizou em 25 de abril de 1995 um congresso para comemorar o aniversário da insurreição geral da Itália do Norte contra o nazismo e pela libertação da Europa. Foi orador Umberto Eco com o “Eternal Fascism”, publicado na The New York Review of Books (22 de junho de 1995).

 Na sua dissertação começou por expor a seguinte tese:

 

Partindo do princípio que mesmo que se pudessem deitar abaixo os regimes políticos, e se criticassem e retirassem legitimidade às ideologias, o facto é que por detrás de um regime e da sua ideologia há sempre uma maneira de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e pulsões insondáveis.”

 

E prosseguiu, explicando:

No caso do nazismo, de que o Mein Kampf é o manifesto completo do seu programa político, vemos que ele tem uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa do que é a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e do Super-homem (Ubermensch).

O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, com a mesma clareza que o Diamat de Stalin (o materialismo dialético como versão oficial do marxismo soviético) se entende como um regime que subordina todos os atos individuais ao estado e à sua ideologia, sendo, por isso ambos, o nazismo e o estalinismo, regimes totalitários.

O fascismo, foi sem qualquer dúvida, uma ditadura, mas não era cabalmente totalitário, não tanto pela sua tibieza, mas pela debilidade filosófica da sua ideologia: o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. Mussolini não tinha nenhuma filosofia, tinha apenas uma retórica.

 

 Tendo começado como ateu militante, assinou depois a Concordata com a Igreja, simpatizando com os bispos que lhe benziam as bandeiras fascistas. Nos seus primeiros anos anticlericais diz-se que uma vez pediu a Deus para que o fulminasse logo ali naquele lugar, isto para provar que Deus não existia. Comenta Eco: “Deus devia estar distraído, evidentemente”. Posteriormente, nos seus discursos Mussolini citava sempre o nome de Deus e não desdenhava intitular-se como “o homem da Providência”.

 

O fascismo italiano foi a primeira ditadura das direitas que dominou um país europeu, e em que todos os movimentos análogos encontraram nele como que um arquétipo. O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e, inclusivamente, uma forma de vestir. Só nos anos trinta apareceram movimentos fascistas na Inglaterra, Letónia, Estónia, Lituânia, Polónia, Hungria, Roménia, Bulgária, Grécia, Jugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega, e na América do Sul e Alemanha.

Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus que o novo regime estava a levar a cabo interessantes reformas sociais, capazes de oferecerem uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista. Mas, o que explica que se passassem a chamar de fascistas todos os outros regimes nas várias nações? A simples prioridade histórica não o justifica. Será que o fascismo continha em si todos os elementos dos totalitarismos que o sucederam, uma “quinta essência do estado”?

 

Muito pelo contrário, o fascismo não possuía nenhuma quinta essência, nem sequer mesmo uma só essência. Não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diferentes ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições.

Pode-se por acaso conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência, o controle absoluto da economia e o mercado livre?

O partido fascista nasceu proclamando a sua nova ordem revolucionária e, contudo, eram os latifundiários mais conservadores que o financiavam. O fascismo dos primeiros tempos era republicano e sobreviveu vinte anos a proclamar a sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” andasse de braço dado com um “rei”, a quem inclusivamente ofereceu o título de “imperador”.

Mas quando em 1943 o rei destituiu Mussolini, o partido voltou a aparecer dois meses mais tarde, com a ajuda dos alemães, debaixo da bandeira de uma república “social”, reciclando a sua velha partitura revolucionária.

Contudo, esta imagem incoerente não tem nada que ver com tolerância (basta lembrar que Gramsci foi preso e lá ficou até à sua morte; Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a imprensa livre foi suprimida, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos foram exilados para ilhas remotas; o poder legislativo passou a mera ficção e o executivo – que controlava o judicial, bem como os meios de comunicação - emanava diretamente das novas leis entre as quais a da defesa da raça), mas sim com o exemplo de um desconchavo político e ideológico organizado, uma confusão estruturada.

 

Aqui chegado, Eco desenvolve o segundo ponto da sua tese:

 

Houve um só nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” ao falangismo hipercatólico da Espanha de Franco, uma vez que o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Pelo contrário, há muitas maneiras para se chamar de fascismo, e o seu nome não se altera.”

 

O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível de eliminar de um regime fascista um ou mais aspetos, que sempre o podemos reconhecer como sendo fascista. Se retirarmos ao fascismo o imperialismo, teremos Franco ou Salazar; se retirarmos o colonialismo, teremos o fascismo balcânico; se lhe adicionarmos um anticapitalismo radical, teremos Erza Pound; se lhe adicionarmos o culto da mitologia celta, teremos um dos gurus fascistas mais respeitáveis, Julius Evola.

 

Apesar desta confusão, Eco acredita ser possível indicar uma lista de caraterísticas típicas do fascismo, do “fascismo eterno”. Estas caraterísticas não constituem um sistema, muitas até se contradizem mutuamente e até são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo, mas basta que uma delas esteja presente para indicar a sua pertença à nebulosa fascista.

 

  1. Culto da tradição. O tradicionalismo é mais antigo que o fascismo. E nem é só típico do pensamento contrarrevolucionário católico posterior à Revolução Francesa: ele aparece na idade helenística tardia como reação ao racionalismo grego.

Na orla do Mediterrâneo, povos de religiões diferentes começaram a sonhar com uma revelação recebida do dealbar da história da humanidade. Esta revelação há muito que se encontrava escondida nos hieróglifos egípcios, nas runas dos celtas, nos textos sagrados das religiões asiáticas.

Essa nova cultura seria “sincrética” na medida em que permitiria a combinação de formas diferentes de crenças ou práticas e que devesse tolerar as contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando dizem coisas diferentes, é apenas porque todos aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.

Consequentemente, já não pode haver avanço no saber.

A verdade já foi anunciada de uma vez para sempre, e o único que podemos fazer é ir interpretando a sua mensagem obscura. Basta ver as bases recomendadas de qualquer movimento fascista para encontrarmos os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazi alimenta-se de elementos tradicionalistas, sincretistas, ocultos, numa mistura do Gral com os Protocolos dos Anciães de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano, e até de Santo Agostinho (que não era fascista) com Stonhenge!

  1. Renegar o modernismo. Apesar dos fascistas e nazistas adorarem a tecnologia e de estarem orgulhosos dos seus feitos industriais, este aplauso estava, contudo, assente numa ideologia baseada no “sangue” e “terra” (Blut und Boden). O renegar do mundo moderno aparecia como uma condenação da forma de vida capitalista, muito embora na verdade ele assentasse na repulsa do espírito do Iluminismo, da idade da Razão, que era visto como o princípio da depravação moderna. O “fascismo eterno” é irracionalista.
  2. Culto da ação pela ação. A ação é bela por si e, portanto, deve ser sempre prosseguida antes de, e sem, qualquer reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso a cultura é suspeita na medida em que se a identifica com atitudes críticas. Por alguma razão Goebbels declara que “Quando ouço a palavra cultura, levo a mão à pistola”, e se normalizavam expressões como “porcos intelectuais”, “morte à inteligência”, “universidade, albergue de comunistas”. A suspeita do mundo intelectual foi sempre um sintoma do “fascismo eterno”. O maior empenho dos intelectuais fascistas foi sempre o de acusar a cultura moderna e a intelectualidade liberal por terem abandonado os valores tradicionais.
  3. Não aceitação do pensamento crítico. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica entende o desacordo como um instrumento de progresso dos conhecimentos. Para o “fascismo eterno”, o desacordo é traição.
  4. Medo à diferença. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O fascismo cresce e procura o consenso explorando e exacerbando o medo á diferença. A primeira chamada dos movimentos fascistas é contra os intrusos. O “fascismo eterno” é, pois por definição, racista.
  5. Cresce da frustração individual ou social. O “fascismo eterno” surge da frustração individual ou social, o que explica porque é que uma das caraterísticas dos fascismos históricos tenha sido o chamamento das classes médias frustradas, descorçoadas por crises económicas ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Na nossa época, é na pequena burguesia oriunda da conversão dos antigos proletários, que o fascismo encontra o seu público.
  6. O nacionalismo e a obsessão pelo complot. A todos aqueles que carecem de uma qualquer identidade social, o “fascismo eterno” diz-lhes que o seu único privilégio é o mais vulgar de todos, o terem nascido no mesmo país. Eis a origem do E quem pode oferecer uma identidade à nação são os inimigos. Esta é a origem da obsessão pelo complot. Os sequazes devem sentir-se assediados. A maneira mais fácil de o conseguir é apelar à xenofobia. Mas este complot deve também surgir do interior: os judeus são os que melhor servem para isso, por terem a vantagem de estarem ao mesmo tempo dentro e fora.
  7. Os inimigos são simultaneamente demasiado fortes e demasiado débeis. Os sequazes devem sentir-se humilhados pela riqueza ostentada e pela força dos inimigos. Os judeus são ricos e ajudam-se mutuamente graças a uma rede secreta de assistência recíproca. Os sequazes devem estar convencidos que apesar de tudo podem derrotar os inimigos. Os fascismos estão condenados a perderem as suas guerras, porque são incapazes de valorizar com objetividade a força do inimigo.
  8. A vida como guerra permanente. Para o fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Daí o pacifismo, o conluio com o inimigo, ser mau na medida em que a vida é uma guerra permanente. Como os inimigos devem e podem ser derrotados, então terá que haver uma batalha final, a partir da qual o movimento ficará com o controle do mundo. Uma solução final que acaba por implicar uma época sucessiva de paz, uma Idade de Ouro, o que contradiz o princípio da guerra permanente. Outra incoerência nunca explicada.
  9. Um elitismo de massa. No decurso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicam o desprezo pelos fracos. O fascismo não pode deixar de predicar um “elitismo popular”. Cada cidadão pertence ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, cada cidadão pode converter-se num membro do partido.

O líder, sabe perfeitamente que o seu poder não foi obtido por          mandato, pois foi conquistado pela força, e sabe também que a sua força se baseia na debilidade das massas, tão débeis que necessitam e merecem um “dominador”. Uma vez que o grupo está organizado hierarquicamente, todo o líder subordinado deprecia os seus subalternos, e cada um deles deprecia os seus inferiores. Tudo isto reforça um elitismo de massa.

  1. Cada um é educado para se converter num herói. Em todas as mitologias, o “herói” era um ser excecional, mas na ideologia fascista o heroísmo é a norma. O seu culto de heroísmo está vinculado com o culto da morte: recorde-se o lema dos falangistas “Viva la muerte!”. Ás pessoas normais diz-se que a morte é nojenta, mas que se a deve encarar com dignidade; aos crentes diz-se que é uma forma dolorosa de alcançar a felicidade sobrenatural. Já o herói fascista aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa de uma vida heroica. O problema é que esta sua impaciência por morrer acaba, na maior parte das vezes por fazer que morram os demais.
  2. Inveja permanente do pénis. Dado que a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o fascista transfere a sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do seu machismo (que implica desdém para com as mulheres e uma condenação intolerante de costumes sexuais não conformistas, da castidade á homossexualidade). E como o sexo é também um jogo difícil de jogar, o herói fascista joga com as armas, que são o seu Ersatz fálico: os seus jogos de guerra devem-se a uma inveja permanente do pénis.
  3. Oposição aos governos parlamentários. O Fascismo eterno baseia-se num “populismo qualitativo”. Numa democracia os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto dos cidadãos só está dotado de um impacto político de um ponto de vista quantitativo (quando se seguem as decisões da maioria). Para o Fascismo Eterno os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos, e o “povo” concebe-se como uma qualidade, uma entidade monolítica que expressa a “vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode possuir uma vontade comum, o líder pretende ser o seu intérprete. Tendo perdido o seu poder de mandato, os cidadãos não atuam, são chamados apenas para desempenharem o papel de povo. O povo é só uma ficção teatral. Podemos perceber melhor porque para este populismo qualitativo já não precisamos hoje do estádio de Nuremberg ou da Piazza Venezia: através da Televisão ou da Internet teremos a resposta emotiva de um grupo selecionado de cidadãos apresentada ou aceitada como a “voz do povo”. É devido ao seu populismo qualitativo que o Fascismo eterno se opõe a todos os “apodrecidos” governos parlamentários. Cada vez que um político levanta dúvidas sobre a legitimidade do parlamento por ele já não representar a “voz do povo”, podemos perceber o cheiro do Fascismo Eterno.
  4. O Fascismo Eterno fala numa “neolíngua”. Todos os textos escolares nazis ou fascistas têm por base um léxico pobre e uma sintaxe elementar, propositadamente para limitar os instrumentos para o raciocínio complexo e crítico. Mas devemos de estar preparados para identificar outras formas de neolíngua, que podem inclusivamente tomar a forma inocente e popular de reality-show. Devemos prestar muita atenção para que palavras como “liberdade”, “liberdade de palavra”, “liberdade de imprensa”, “liberdade de associação política” e “ditadura” não se lhe percam o sentido. O Fascismo Eterno permanece à nossa volta, ás vezes com trajes civis. Seria muito cómodo para nós que alguém se identificasse dizendo: “Quero voltar a abrir Auschwitz, quero que os camisas negras voltem a desfilar pelas praças italianas!” Infelizmente, a vida não é tão fácil. O Fascismo Eterno pode voltar com aparências mais inocentes. O nosso dever é desmascara-lo e apontar com o indicador cada uma das suas formas novas, todos os dias, em qualquer parte do mundo.

 

 

 

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