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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(356) Alguns Raciocínios Divinos

Tempo estimado de leitura: 14 + 7 minutos.

 

Do modo como ainda hoje continuamos a pensar e a construir argumentos, nem que seja para enganarmos os outros.

 

Deus é algo acima do qual nada maior possa ser pensado, Santo Anselmo.

 

Deus tem, por definição, todas as perfeições; a existência é uma perfeição; logo, Deus existe, Descartes.

 

Kant nega a possibilidade de se demonstrar racionalmente a existência de Deus, remetendo-a para o âmbito da filosofia moral, da Razão Pura Teórica.

 

Diante da possibilidade da salvação, que não pode ser racionalmente demonstrada, o homem tem de apostar: ou aposta que a salvação existe e tenta alcançá-la, ou que ela não existe, desistindo de a procurar, Pascal.

 

 

 

Quando correntemente usamos o dinheiro, acreditamos que o pagamento do seu valor está a ser garantido por uma autoridade estatal, como um banco central, público ou privado, mesmo sabendo que esse estado pode estar a abusar da sua autoridade imprimindo moeda, causando inflação, etc.

Já com as moedas digitais ou cripto moedas julgamos ultrapassar essa crença numa autoridade estatal, porquanto os seus valores são determinados por aquilo que as pessoas querem pagar no momento. O que significa, pelos vistos, que estão prontas a pagar e a aceitá-las como dinheiro, ou seja, a acreditarem nelas. Em qualquer dos casos, elas só existem se um número suficiente de pessoas acreditar nelas.

 

Dei-me conta que alguns dos livros que tenho nas estantes, há muito que não eram minimamente folheados ou utilizados. Mais atentamente, notei que muitos dos assuntos a que diziam respeito, e que estiveram em grande evidência na época, como que deixaram de ter qualquer importância, ali jazendo imóveis, livros e assuntos, sem se lhes prestar atenção. Passado como enterrado.

Daí que, por exemplo, hoje já não se fale, nem crítica nem não criticamente, de colónias, colonialismo, campanhas de ocupação, estatutos de indigenato, governadores-gerais, etc. (entre outros, dos documentos que contêm a base legal do colonialismo português, como o  «Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique», de 1926, do «Ato Colonial», de 1930, do «Diploma Orgânico das Relações de Direito Privado entre Indígenas e Não Indígenas», de 1929, e do «Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique», de 1954). Como não se fala de muitas outras coisas que julgamos (acreditamos ou desejamos) enterradas para sempre no passado.

Tal como a avestruz que com medo esconde a cabeça na areia (não vendo, o objeto desaparece), nós, seres pensantes superiores, que até temos o aforismo de não haver pior cego do que aquele que não quer ver, mas que também julgávamos que Plutão não existia só porque dele não tínhamos conhecimento, confundindo significado com existência (as coisas só têm significado a partir da altura em que delas tomamos conhecimento).

Não é assim de admirar que, por exemplo, sobre Moçambique falemos hoje das belas praias, dos Bilenes, dos Xonguenes, das ilhas, do Bazaruto, dos camarões, da caça, do clima, de tudo menos das pessoas (as outras) e suas organizações que muito poucos se esforçaram por conhecer, nem da guerra que nunca existiu. E, no entanto, muitos livros e artigos se escreveram, alguns dos quais se encontram estacionados nas estantes sem nem ao menos serem folheados.

 

Mas tal não se passa apenas com certos acontecimentos conjunturalmente passados, com história (seja ela qual for). Outros, muito mais importantes, por serem estruturantes, lhes tem acontecido o mesmo. Há quanto tempo não se lê ou não se ouve falar sobre o problema da existência de Deus? E, no entanto, houve tempo em que ninguém que se acreditava como esclarecido, ou que se quisesse ser considerado como tal, não se pronunciasse sobre o assunto.

 

A aquisição do conceito de Deus, seja ele qual for, foi lenta e feita a muito custo. Impérios cresceram e desmoronaram-se. Os monoteísmos foram-se impondo. Milhares de estudiosos penaram para fundamentarem as bases teóricas das suas religiões. A maneira (as subtilezas até) com que foram construindo a sua fé, constitui um monumento imprescindível para o conhecimento do progresso do conhecimento. Do modo como até agora continuamos a pensar, como construímos argumentos, nem que seja para enganarmos os outros. Estão lá todos.

Escutemos sobre o assunto uma pequena historieta do insuspeito para o caso (por ser marxista ateu) Bertolt Brecht:

 

Alguém perguntou ao senhor K. se Deus existia. O senhor K. disse: Aconselho-te a refletir sobre se o teu comportamento mudaria segundo o tipo de resposta que desses à pergunta. Se não mudasse, podemos deixar cair a pergunta. Se mudasse, então posso pelo menos ajudar-te ao dizer-te que já decidiste: Precisas de um Deus.

 

 

Santo Anselmo (1033? -1109)

 

Resumidamente, a sua argumentação começa por partir da ideia que “Deus é algo acima do qual nada maior possa ser pensado. Portanto, se Deus não existisse, não seria na realidade esse algo maior do que ao qual nada se possa pensar. E contudo, poder-se-ia sempre pensar algo ainda maior, algo que além de comportar a existência possível, existisse realmente. Ou seja, algo que não existisse somente no pensamento, mas que existisse também na realidade.

Mas Deus, se entendido como algo maior do que o qual nada se possa pensar, não pode existir apenas no pensamento e isso, porque se assim fosse não poderia ao mesmo tempo ser, e não ser, algo maior do que o qual nada se possa pensar. E tal não poderia ser, porque infringiria o princípio da não-contradição.

Sobre Santo Anselmo, aconselho o blog de 5 de fevereiro de 2020, “Grandes controvérsias”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/253-grandes-controversias-66536.

 

 

René Descartes (1596-1650)

 

Descartes parte de uma ideia concreta que se impõe à inteligência, a ideia de perfeição. Essa Ideia considera-a como sendo inata: ela não provém da experiência, não é fruto de aquisição, encontra-se na mente do homem e é evidente.

Basicamente, apresenta duas formulações da demonstração da existência de Deus. A primeira:

Tenho em mim a ideia de Deus, ou seja, reconheço que ela está na minha mente;

Esta ideia tem uma causa, porque tudo tem uma causa ou uma razão de ser (princípio da razão suficiente);

Não pode haver mais realidade no efeito do que na causa. É o contrário, há sempre mais realidade na causa do que no efeito (princípio da adequação causal);

Se a ideia de Deus tivesse como causa qualquer outro ente que não Deus, por exemplo, a minha própria mente, então o efeito era superior à causa, o que repugna;

Logo, Deus existe.

 

Eis a formulação sumária da segunda:

 

Por definição, Deus tem todas as perfeições;

A existência é uma perfeição;

Logo, Deus existe.

 

Mais no blog de 29 de dezembro de 2021, “O Círculo do Conhecimento”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/352-o-circulo-do-conhecimento-112554).

 

 

Gottfried W. Leibniz (1646-1716)

 

Para Leibniz, Descartes não terminou o argumento, por isso não poderia ser considerado conclusivo. Seria preciso primeiro provar para que ele pudesse existir, que as perfeições desse tal ser infinitamente perfeito pudessem coexistir.

Ou seja, para Leibniz, esse ser infinitamente perfeito só seria possível desde que as suas perfeições para além de serem muitas, fossem simples e não se contradissessem. Só assim o ser infinitamente perfeito será possível, pelo que então deve existir necessariamente:

 

Se Deus é possível, existe;

Ora, porque não encerra qualquer contradição, qualquer negação, a essência divina é possível;

Logo, Deus existe necessariamente.

 

Como nos comunica nos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano e na Monadologia:

 

 “Assim, só Deus (ou o Ser Necessário) possui este privilégio: se Ele é possível, tem de existir. E como nada pode impedir a possibilidade daquilo que não tem quaisquer limites, qualquer negação e, por conseguinte, qualquer contradição, isto é suficiente para que conheçamos a priori a existência de Deus.”

 

Tomás de Aquino (1225-1274)

 

Para Aquino, o conhecimento humano tem origem nos sentidos, pelo que o caminho da inteligência humana para Deus parte do sensível, que vai expondo ao logo de várias das suas obras. Foram cinco as vias que enunciou, em que a mais acabada aparece na Suma de Teologia.

 

A primeira via: prova pelo devir

Parte da constatação irrefutável da existência de movimento que percecionamos sensorialmente, ato que é o mais evidente, mais visível.

Ora, “tudo o que se move é movido por outro”.

O movido encontra-se em potência e o movente encontra-se em ato.

Mover é induzir algo da potência ao ato.

Nada pode ser levado ao ato senão por um ente em ato.

E dá o exemplo da madeira e do fogo: A madeira não é quente por si; ela pode, no entanto, aquecer. Por esta razão a madeira pode ser dita “quente”, não em ato, mas em potência. Esse aquecimento, que constitui uma mutação, um movimento, acontece pela ação do fogo, que é “quente”, não em potência, mas em ato.

Pelo princípio da identidade, é impossível que algo esteja sob o mesmo aspeto simultaneamente em ato e em potência. Como exemplo diz que se uma coisa está quente em ato, então não pode estar fria em ato, mas apenas em potência. Analogamente “é impossível que sob o mesmo aspeto e do mesmo modo algo seja movente e movido, ou que se mova a si próprio”. Se o movido não pode ser o movente, então, a causa do movimento é necessariamente anterior ao movido.  Daí que tudo o que se move seja movido por outro.

Daqui infere sobre a necessidade de um primeiro motor que não é movido por nenhum outro, sem o que o movimento que percecionamos não seria inteligível nem mesmo possível de experienciar. Sem um primeiro motor, não teríamos um primeiro ato. Existe, pois, um Ato Puro, sem mescla de potência, que é a causa da atualização dos restantes atos.

Conclui Aquino que todos entendemos que este primeiro movente não pode ser outro senão Deus.

 

A segunda via: prova pela causa eficiente

Seguindo o mesmo esquema de raciocínio, Aquino vai agora aplicá-lo às causas eficientes para inferir da necessidade de uma Primeira Causa, razão de toda a causalidade eficiente.

Uma vez que a causa é, por definição, anterior ao efeito, nada pode ser causa eficiente de si mesmo. Para que algo fosse causa de si próprio, teria de ser anterior a si mesmo, o que é uma impossibilidade.

Contudo, estas vias são diferentes, na medida em que a primeira diz respeito ao movimento e a segunda diz respeito à mudança.

Não havendo uma causa eficiente que seja causa de si mesmo e sendo toda a causa sempre anterior ao seu efeito, não podemos, então, remontar ao infinito na ordem das causas eficientes. Por esta razão, há que concluir sobre a existência de uma primeira causa eficiente, razão de todas as outras causas.

 

A terceira via: prova pela contingência

No tempo de Aquino não se percecionava ainda a diferença entre o possível (o que pode vir a ser) e o contingente (a capacidade para ser e não ser, o possível que veio à existência).  Aquino considerava-os como sinónimos, significando os seres que não são necessários.

Esclarecido isto, Aquino vai afirmar que se não houvesse algum ser necessário, nada existiria; que sem um ente necessário (ou seja, em ato) os entres possíveis (ou seja, que têm o ser em potência) não viriam à existência.

Contudo, é impossível que todas as coisas que existam sejam dessa maneira, pois o que pode não ser não é em algum momento. Se, portanto, todas as coisas podem não ser, houve um começo em que nada havia. Mas se isso é verdadeiro, ainda hoje nada existiria, pois algo que não é só começa a ser através de algo que já é. Por conseguinte, se não houve ente algum, foi impossível que algo começasse a ser. E desse modo, [hoje] nada existiria, o que é manifestamente falso.

Breve: porque existem realidades contingentes, tem de existir algo necessário entre as coisas. Se não existisse o ente necessário, não existiriam os entes contingentes. Todavia, experienciamo-los. Logo, tem de haver entre os entes, algum ente necessário.

 

A quarta via: prova pelos graus de perfeição

É a única que não parte do movimento, mas de algo estático: a experiência da gradação da perfeição nas coisas, o que obriga a ascender no reconhecimento da perfeição em último grau.

As coisas mostram-se à inteligência como mais ou menos boas, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos nobres, etc. Mais ou menos são graus relativos que se distinguem na medida em que se aproximam mais ou menos daquilo que é, em si, o máximo, o sumo grau. Se determinadas realidades, como a bondade, fossem próprias dos entes, então não encontraríamos disparidade de grau, seriam todas igualmente boas, verdadeiras, nobres, etc. Mas, não são. Por essa razão compreendemos que os entes não são essas mesmas realidades (não são essencialmente bons, verdadeiros, nobres, etc.). São, assim, participantes dessas realidades de algo que é veracíssimo e ótimo e nobilíssimo, que é o ente ao máximo.

Existe algo que é, para todos os entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós chamamo-lo Deus”.

 

A quinta via: prova pelo governo do mundo

Partindo também da experiência das realidades sensíveis, vai referir-se à ordem, à harmonia que reina entre as coisas.

Observamos que seres carentes de inteligência, como os corpos naturais, agem em vista de uma finalidade e que, na maior parte das vezes, o fazem da mesma maneira, ou de maneira semelhante, quase sempre alcançando o que é ótimo (ex.: voos das andorinhas, migrações do salmão).

Esta regularidade natural resulta numa ordem, ordem essa que transcende esses mesmos seres desprovidos de conhecimento. Se eles não são os autores de tal ordem (porque a desconhecem), então a razão de tal ordem deve ser procurada acima.

Por outra parte, o facto de esta regularidade natural alcançar o ótimo, não pode ser por acaso. Pela sua constância, a ordem não pode ser acidental, mas voluntária, porque se dirige a um fim. A existência de uma finalidade requer a existência de um sujeito inteligente:

 “As coisas que não têm conhecimento não tendem para um fim, a não ser dirigidas por algo que conhece e é inteligente, como a flecha pelo arqueiro”.

Tal instinto existente nos animais exprime qualquer coisa que está acima dele mesmo: uma inteligência providencial que tudo rege. Ou seja, as coisas naturais acontecem segundo uma certa ordem, não havendo ordem sem ordenador, pelo que é necessário que haja um ordenador das coisas visíveis:

“Existe algo inteligente ao qual as coisas naturais são ordenadas como fim, e a isso nós chamamos Deus”.

                       

Em adenda, pode-se ler a Suma Teológica, Parte 1ª, Questão 2, ou em https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/sumateolc3b3gica.pdf.

 

Immanuel Kant (1724-1804)

 

O grande categorizador-mor só poderia começar por proceder à categorização das provas da existência de Deus até aí apresentadas. É assim que as vai dividir em três grupos de acordo com o argumento que utilizam:

Argumento ontológico, que é totalmente a priori (interno ao pensamento – fundamenta-se em puros conceitos da razão - e sem recurso à experiência sensorial), que conclui de uma causa suprema a partir de simples conceitos.

Argumento cosmológico, que tem como fundamento a experiência de uma existência qualquer, de uma existência indeterminada.

Argumento físico-teológico, que parte da experiência de um aspeto determinado do nosso mundo sensível, e com base na lei da causalidade, vai remontar à causa primeira, fora do mundo.

 

A prova ontológica parte do conceito de sumo ser como ser sumamente real que é “o todo da realidade”, e que por ser sumamente perfeito não lhe poderá faltar a existência, pois que se não existisse faltar-lhe-ia uma perfeição: a existência.

Kant entende que não se pode pensar a essência divina negando os predicados que lhe são próprios, mas que, não obstante, se pode negar a sua existência, porquanto a existência é uma posição e não uma perfeição.

A existência não é um conteúdo efetivo encerrado numa coisa. A coisa existente não contém nada mais do que a coisa pensada. Assim, se disser que Deus é omnipotente, bom, etc., ponho um sujeito em relação com o seu predicado, mas se disser que “Deus existe”, nada acrescento ao conceito de Deus, a não ser que além de existir no meu pensamento também existe na realidade.

A proposição “Deus existe” não é um juízo analítico. A constatação da existência de algo é sempre um juízo sintético que só pode ser demonstrado a posteriori (procedem, invariavelmente, do efeito para a causa), nunca a priori:

Pode, pois, o nosso conceito conter o que queira e quanto se queira, que teremos sempre de sair fora dele para conferir existência ao objeto […] O conceito de um ser supremo é uma ideia muito útil sob diversos aspetos, mas, precisamente porque é simplesmente uma ideia, é totalmente incapaz, por si só, de alargar o nosso conhecimento relativamente ao que existe”.

 

Na sua crítica à prova cosmológica, Kant começa por notar que, contrariamente à anterior, esta parte da experiência de qualquer coisa, mas de qualquer coisa indeterminada. Dado que o objeto de toda a experiência possível é o mundo, dá-lhe o nome de prova cosmológica.

 

Segundo ele, esta prova (refere-se à de Leibniz) divide-se em duas fases:

Na primeira, procede da experiência de qualquer coisa real para o conceito de um ser absolutamente necessário. Esta fase é a posteriori.

Na segunda, procede do conceito de um ser absolutamente necessário para o conceito de um ser sumamente real. Esta fase é a priori.

 

Kant considera que o raciocínio da primeira fase até tem alguma verdade, porque se se supõe que algo existe, então alguma coisa existe necessariamente.

Quanto à segunda fase, Kant resume os passos do seu raciocínio:

1º no conceito de ser necessário (aquele ser que, por definição, existe e não pode não existir) está contido o conceito de realidade suma;

2º isso implica que o conceito de ser real é o único graças ao qual pode ser pensado um ser necessário;

3º logo, existe necessariamente um ser em grau sumo.

 

Para Kant, esta segunda fase é falsa, porquanto ela não é mais que uma versão da prova ontológica, já refutada. No seu centro temos a ligação entre a necessidade absoluta com a totalidade do real, sem que nada disto se encontre na experiência, ou seja, a prova parte apenas de puros conceitos.

 

Já na crítica à prova físico-teológica, Kant vem dizer-nos que a considera a mais respeitável, entre outros por partir da experiência de uma determinada caraterística da natureza, ao fazer das finalidades da natureza a própria causa suma da natureza.

Mas não a deixa de considerar como falsa, porquanto ao partir do ordenamento do mundo, remete para a contingência desse mesmo ordenamento, ou seja, remete para o argumento cosmológico, que vai remeter ulteriormente para o argumento ontológico.

A prova desenrola-se por quatro pontos:

1º em todo o mundo encontram-se sinais claros de um ordenamento traçado com grande sabedoria, um ordenamento que executa uma finalidade definida;

2º- tal ordenamento conveniente a um fim, é, no entanto, alheio às coisas do mundo: há um princípio ordenador fundamental que as põe todas de acordo quanto à finalidade;

3º- existe, portanto, uma causa sublime e sábia, uma inteligência que atua livremente;

4º- a unidade desta causa deve ser concluída da unidade da relação recíproca entre as causas do mundo, enquanto por analogia, membros de uma única obra de arte.

 Para Kant, esta prova centra-se na contingência do mundo deduzida do ordenamento e finalidade do próprio mundo. Apenas a partir desta contingência, e apenas através de conceitos transcendentes, se chega à existência de um ser absolutamente necessário e, a partir do conceito de necessidade absoluta da primeira causa, se chega ao mesmíssimo conceito, completamente determinado ou determinante, de uma realidade compreensiva. Ou seja, esta prova físico-teológica é uma prova ontológica mascarada.

Mais, a causalidade invocada apenas faz sentido no mundo fenoménico. Não se pode utilizar a causalidade do mundo fenoménico para o mundo sobrenatural.

 

Em resumo:

Kant não apresenta uma prova racional da existência de Deus, mas desconstrói as provas tradicionais existentes.

Reduz as três modalidades das provas ao argumento ontológico.

Nega a possibilidade de se demonstrar racionalmente a existência de Deus, pois transcende o mundo da experiência, que é o único mundo em que os juízos do entendimento têm aplicação, remetendo-a para o âmbito da filosofia moral, da Razão Pura Teórica.

 

Blaise Pascal (1623-1662)

 

Identicamente a Descartes, Pascal também confia nas capacidades da razão humana. Só que tem menos confiança nela, quando entregue a si própria. Daí que vá distinguir entre a razão (esprit géometrique) e o coração (esprit de finesse): a verdade é cognoscível não apenas pela razão, mas também pelo coração.

Ou seja, para Descartes a razão tem a possibilidade de alcançar o infinito, ao passo que para Pascal a razão é finita e limitada. Pelo que Deus será sempre de natureza misteriosa para a razão humana. A essência e a natureza de Deus não são cognoscíveis pela razão, mas somente pela fé.

 

Conhecemos, portanto, a existência e a natureza do finito, porque somos finitos e extensos como ele. Conhecemos a existência do infinito e ignoramos a sua natureza, porque tem extensão como nós, mas não limites como nós. Mas não conhecemos nem a existência nem a natureza de Deus, porque ele não tem extensão nem limites. Mas pela fé conhecemos a sua existência; pela glória conhecemos a sua natureza.”

 

E passa a expor o que ficou conhecido como a “aposta”:

Diante da possibilidade da salvação, que não pode ser racionalmente demonstrada, o homem tem de apostar: ou aposta que a salvação existe e tenta alcança-la, ou que ela não existe, desistindo de a procurar.

Nenhuma das alternativas é racionalmente demonstrável: eu não posso provar nem que a salvação é possível, nem que não existe. Por isso, tenho que apostar.

Se eu apostar positivamente e ganhar, ganharei tudo. Mas, e se eu apostar positivamente, e afinal perder? Ou seja: e se a salvação não existir, se não houver sentido, se a morte for a última palavra?

Explica Pascal que nada terei perdido, porque nada havia para perder. E, ainda assim, ganhei em dignidade. Por outro lado, o próprio objeto em causa justifica a aposta: diante da possibilidade de ganhar o infinito, não é razoável não o tentar.

 

 

Adenda:


Questão 2

A EXISTÊNCIA DE DEUS

em três artigos


O objetivo principal da doutrina sagrada é transmitir o conhecimento de Deus, não somente enquanto existente em si, mas ainda como princípio e fim dos seres, e, especialmente, da criatura racional, conforme ficou demonstrado. No intento de expor esta doutrina, havemos de tratar: 1o. de Deus; 2o. do movimento da criatura racional para Deus; 3o. de Cristo que, enquanto homem, é para nós o caminho que leva a Deus.


A consideração de Deus abrange três seções: 1o. A que se refere à essência divina; 2o. A que se refere à distinção das pessoas; 3o. A que se refere às criaturas enquanto procedem de Deus.

Quanto à essência divina, porém, devemos considerar: 1o. se Deus existe; 2o. como é Ele ou, antes, como não é; 3o. Como age, isto é, sua ciência, sua vontade e seu poder.


A respeito da primeira questão, três são as perguntas:

  1. A existência de Deus é evidente por si mesma?
  2. Pode-se demonstrá-la?
  3. Será que Deus existe?

 


Art. 1 —A existência de Deus é evidente por si mesma?

(I Sent., dist. 3, q. 1, a. 2; Cont. Gent. I, 10, 11; III, 38; De Verit., q. 10, a. 12; De Pot., q. 7, a. 2, ad 2; in Os 8; in Boet. De Trin., q. 1, a. 3, ad 6)


O primeiro artigo discute-se assim — Parece que a existência de Deus é evidente por si mesma.


  1. — Com efeito, diz-se que é evidente por si aquilo cujo conhecimento nos é natural, como é o caso dos primeiros princípios. Ora, diz Damasceno: “O conhecimento da existência de Deus está naturalmente ínsito em todos”. Logo, a existência de Deus é por si evidente.
  2. ALÈM DISSO— Dizem-se por si mesmas conhecidas as proposições que, conhecidos os termos, imediatamente se conhecem, o que o Filósofo, nos Primeiros Analíticos, atribui aos primeiros princípios da demonstração; pois sabido o que são o todo e a parte, imediatamente se sabe ser qualquer todo maior que a parte. Ora, basta compreender o que significa o nome Deus, imediatamente se intelige o que é Deus. Pois, tal nome significa aquilo do que se não pode exprimir nada maior; ora, maior é o existente real e intelectualmente, do que o existente apenas intelectualmente. Donde, como o nome de Deus, uma vez inteligido, imediatamente existe no intelecto, segue-se que também existe realmente. Logo, a existência de Deus é por si mesma evidente.

3.ADEMAIS— A existência da verdade é por si mesma conhecida, pois quem lhe nega a existência concede que ela existe; porquanto, se não existe, é verdade que não existe. Portanto, se alguma coisa é verdadeira, é necessária a existência da verdade. Ora, Deus é a própria verdade, como se diz no Evangelho de João (Jo 14, 6): “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Logo, a existência de Deus é evidente por.

EM SENTIDO CONTRÁRIO— Ninguém pode pensar o contrário do que é conhecido por si, como se vê no Filósofo, livro IV da Metafísica e nos Primeiros Analíticos, quanto aos primeiros princípios da demonstração. Ora, podemos pensar o contrário da existência de Deus, pois de acordo como Salmo 52 (Sl 52, 1): “O insensato diz em seu coração: Deus não existe”. Logo, a existência de Deus não é evidente por si.

 

RESPONDO. — De dois modos pode uma coisa ser evidente por si: seja em si mesmo e não para nós; seja em si mesmo e para nós. Pois qualquer proposição é evidente por si, quando o predicado se inclui em a noção do sujeito, p. ex.: O homem é um animal, pertencendo animal à noção de homem. Se, portanto, for conhecido de todos o que é o predicado e o sujeito, tal proposição será para todos evidente; como se dá com os primeiros princípios da demonstração, cujos termos — o ser e o não ser, o todo e a parte e semelhantes — são tão comuns que ninguém os ignora. Mas, para quem não souber o que são o predicado e o sujeito, a proposição não será evidente, embora o seja considerada em si mesma. E por isso, como diz Boécio, certas conceções de espírito são comuns e conhecidas por si, mas só para os sapientes, como p. ex.: as coisas imateriais não ocupam lugar. Digo, portanto, que a proposição Deus existe, quanto à sua natureza, é evidente, pois o predicado se identifica com o sujeito, sendo Deus o seu ser, como adiante se verá (q. 3, a. 4). Mas, como não sabemos o que é Deus, ela não nos é por si evidente, mas necessita de ser demonstrada, pelos efeitos mais conhecidos de nós e menos conhecidos por natureza.

QUANTO À 1ª— Conhecer a existência de Deus de modo geral e com certa confusão, é-nos naturalmente ínsito, por ser Deus a felicidade do homem: pois, este naturalmente deseja a felicidade e o que naturalmente deseja, naturalmente conhece. Mas isto não é pura e simplesmente conhecer a existência de Deus, assim como conhecer alguém que está chegando não é conhecer Pedro, embora seja Pedro que está chegando. Pois, uns pensam que este bem perfeito do homem, a felicidade, consiste nas riquezas; outros, a colocam nos prazeres ou em qualquer outra coisa.

QUANTO À 2ª. — Talvez quem ouve o nome de Deus não o intelige como significando o ser, maior que o qual nada possa ser pensado; pois, alguns acreditam ser Deus corpo. Porém, mesmo concedido que alguém interligue o nome de Deus com tal significação, a saber, maior do que o qual nada pode ser pensado, nem por isso daí se conclui que interliga a existência real do que significa tal nome, senão só na apreensão do intelecto. Nem se poderia afirmar que existe realmente, a menos que se não concedesse existir realmente algum ser tal que não se possa conceber outro maior, o que não é concedido pelos que negam a existência de Deus.

QUANTO À 3ª. — A existência da verdade em geral é conhecida por si; mas a da primeira verdade não o é, relativamente a nós.

 


Art. 2 —É possível demonstrar a existência de Deus?

(Infra, q. 3, a. 5; III Sent., dist. 24, q. 1, a. 2, q. 1ª 2; Cont. Gent. I, 12; De Pot., q. 7, a. 3; in Boet. De Trin, q. 1, a. 2)

QUANTO AO SEGUNDO; ASSIM SE PROCEDE: — Parece que não é possível demonstrar a existência de Deus.

  1. Pois, tal existência é artigo de fé. Ora, as coisas da fé não são demonstráveis, porque a demonstração dá a ciência, e a fé é própria do que não se vê, como declara o Apóstolo na Carta aos Hebreus (Heb 11,1). Logo, a existência de Deus não é demonstrável.
  2. ALÈM DISSO— O termo médio da demonstração é o que ele é. Ora, não podemos saber o que Ele é, mas unicamente o que não é, como diz Damasceno. Logo, não lhe podemos demonstrar a existência.

3.ADEMAIS— Se se demonstrasse a existência de Deus, só poderia sê-lo pelos seus efeitos. Ora, sendo Deus infinito e estes, finitos, e não havendo proporção entre o finito e o infinito, os efeitos não lhe são proporcionados. E, como a causa se não pode demonstrar pelo efeito, que não lhe é proporcionado, conclui-se que não se pode demonstrar a existência de Deus.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, o Apóstolo diz na Carta aos Romanos (Rm 1, 20): “As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência, por suas obras”. Ora, isto não se daria, se a existência de Deus não se pudesse demonstrar pelas coisas feitas, pois o que primeiro se deve conhecer de algo é se ele existe.

RESPONDO— Há duas espécies de demonstração. Uma, pela causa, pelo porquê das coisas, a qual se apoia simplesmente nas causas primeiras. Outra, pelo efeito, que é chamada a posteriori, embora se baseie no que é primeiro para nós; quando um efeito nos é mais manifesto que a sua causa, por ele chegamos ao conhecimento desta. Ora, podemos demonstrar a existência da causa própria de um efeito, sempre que este nos é mais conhecido que aquela; porque, dependendo os efeitos da causa, a existência deles supõe, necessariamente, a preexistência desta. Por onde, não nos sendo evidente, a existência de Deus é demonstrável pelos efeitos que conhecemos.

QUANTO AO 1º. — A existência de Deus e outras noções semelhantes que, pela razão natural, podem ser conhecidas de Deus, não são artigos de fé, como diz o Apóstolo (Rm 1,19), mas preâmbulos a eles; pois, como a fé pressupõe o conhecimento natural, a graça pressupõe a natureza, e a perfeição, o perfectível. Nada, entretanto, impede ser aquilo, que em si é demonstrável e cognoscível, aceito como crível por alguém que não compreende a demonstração.

QUANTO AO 2º. — Quando se demonstra a causa pelo efeito, é necessário empregar este em lugar da definição daquela, cuja existência se vai provar: e isto sobretudo se dá em relação a Deus. Pois, para provar a existência de alguma coisa, é necessário tomar como termo médio o que significa o nome e não o que a coisa é, porque a questão — o que é — segue-se à outra — se existe. Ora, os nomes de Deus lhe são dados de acordo com os seus efeitos, como depois se mostrará; donde, demonstrando a existência de Deus, pelo efeito, podemos tomar como termo médio a significação do nome de Deus.

QUANTO AO 3º. — Efeitos não proporcionados à causa não levam a um conhecimento perfeito dela; todavia, por qualquer efeito nos pode ser, manifestamente, demonstrada a existência da causa, como se disse. E assim, pelos seus efeitos, pode ser demonstrada a existência de Deus, embora por eles não possamos perfeitamente conhecê-lo na sua essência.

 


Art. 3 —Deus existe?

(I Sent., dist. 3, div. Prim. Part. Textus; Cont. Gent. I, 13, 15, 16, 44; II, 15; III, 44; De Verit., q. 5, a. 2; De Pot., q. 3, a. 5; Compend. Theol., c. 3; VII Physic., lect. 2; VIII, lect. 9 sqq; XII Metaph., lect. 5 sqq.)

QUANTO AO TERCEIRO; ASSIM SE PROCEDEParece que Deus não existe.


1.Porque de dois contrários, se um é infinito, o outro deixa de existir totalmente. E como, pelo nome de Deus, se intelige um bem infinito, se existisse Deus, o mal não existiria. O mal, porém, existe no mundo. Logo, Deus não existe.

2.ADEMAIS— O que se pode fazer com menos não se deve fazer com mais. Ora, tudo o que no mundo aparece pode ser feito por outros princípios, suposto que Deus não exista; pois, o natural se reduz ao princípio, que é a natureza; e o proposital, à razão humana ou à vontade. Logo, nenhuma necessidade há de se supor a existência de Deus.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, diz a Escritura no livro do Êxodo (Ex 3, 14), da pessoa de Deus: “Eu sou Aquele que sou”.

 

RESPONDO. — Por cinco vias se pode provar a existência de Deus.

A primeira e mais manifesta é a procedente do movimento; pois, é certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo. Ora, todo o movido por outro o é. Porque nada é movido que não esteja em potência, relativamente àquilo a que é movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma coisa da potência ao ato; assim, o quente atual, como o fogo, torna a madeira, quente potencial, em quente atual e dessa maneira, a move e altera. Ora, não é possível uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em pontos de vista diversos; pois, o cálido atual não pode ser simultaneamente cálido potencial, mas, é frio em potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de vista e do mesmo modo, pois, tudo o que é movido há-de sê-lo por outro. Se, portanto, o motor também se move, é necessário seja movido por outro, e este por outro. Ora, não se pode assim proceder até ao infinito, porque não haveria nenhum primeiro motor e, por consequência, outro qualquer; pois, os motores segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão. Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de Deus.


A segunda via procede da natureza da causa eficiente. Pois, descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível que uma coisa seja causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e como, removida a causa, removido fica o efeito, se nas causas eficientes não houver primeira, não haverá média nem última. Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus.


A terceira via, procedente do possível e do necessário, é a seguinte — Vemos que certas coisas podem ser e não ser, podendo ser geradas e corrompidas. Ora, impossível é existirem sempre todos os seres de tal natureza, pois o que pode não ser, algum tempo não foi. Se, portanto, todas as coisas podem não ser, algum tempo nenhuma existia. Mas, se tal fosse verdade, ainda agora nada existiria pois, o que não é só pode começar a existir por uma coisa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a existir, e portanto, nada existiria, o que, evidentemente, é falso. Logo, nem todos os seres são possíveis, mas é forçoso que algum dentre eles seja necessário. Ora, tudo o que é necessário ou tem de fora a causa de sua necessidade ou não a tem. Mas não é possível proceder ao infinito, nos seres necessários, que têm a causa da própria necessidade, como também o não é nas causas eficientes, como já se provou. Por onde, é forçoso admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa da sua necessidade, antes, sendo a causa da necessidade dos outros; e a tal ser, todos chamam Deus.


A quarta via procede dos graus que se encontram nas coisas. — Assim, nelas se encontram em proporção maior e menor o bem, a verdade, a nobreza e outros atributos semelhantes. Ora, o mais e o menos se dizem de diversos atributos enquanto se aproximam de um máximo, diversamente; assim, o mais cálido é o que mais se aproxima do maximamente cálido. Há, portanto, algo verdadeiríssimo, ótimo e nobilíssimo e, por consequente, maximamente ser; pois, as coisas maximamente verdadeiras são maximamente seres, como se diz no livro II da Metafísica. Ora, o que é maximamente tal, em um gênero, é causa de tudo o que esse gênero compreende; assim o fogo, maximamente cálido, é causa de todos os cálidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, há um ser, causa do ser, de bondade, e de toda a perfeição em tudo quanto existe, nós o chamamos Deus.

 

A quinta procede do governo das coisas — Pois, vemos que algumas, como os corpos naturais, que carecem de conhecimento, operam em vista de um fim; o que se conclui de operarem sempre ou frequentemente do mesmo modo, para conseguirem o que é ótimo; donde resulta que chegam ao fim, não pelo acaso, mas pela intenção. Mas, os seres sem conhecimento não tendem ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor e inteligente, como a seta, pelo arqueiro. Logo, há um ser inteligente, pelo qual todas as coisas naturais se ordenam ao fim, e a que chamamos Deus.

QUANTO AO Iº— Como diz Agostinho, Deus sumamente bom, de nenhum modo permitiria existir algum mal nas suas obras, se não fosse onipotente e bom para, mesmo do mal, tirar o bem. Logo, pertence à infinita bondade de Deus permitir o mal para deste fazer jorrar o bem.

QUANTO AO 2º. — A natureza, operando para um fim determinado, sob a direção de um agente superior, é necessário que as coisas feitas por ela ainda se reduzam a Deus, como à causa primeira. E, semelhantemente, as coisas propositadamente feitas devem-se reduzir a alguma causa mais alta, que não a razão e a vontade humanas, mutáveis e defetíveis; é, logo, necessário que todas as coisas móveis e suscetíveis de defeito se reduzam a algum primeiro princípio imóvel e por si necessário, como se demonstrou.

 

 

(355) “O destino da América: oligarquia ou autocracia”

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Os sistemas de poder em competição dividem-se entre alternativas que alargam a divisão social e política – aumentando o potencial para um conflito violento.

 

O enfraquecimento político e económico que é consequência da oligarquia, infantiliza uma população, que em desespero gravita em torno de um demagogo que promete prosperidade e restauração de uma era de ouro perdida.

 

Aparentemente, qualquer número entre os 15 milhões a 28 milhões de adultos apoiaria o derrube violento do governo Biden para reinstalar Trump na presidência, dados da última pesquisa Harvard/Harris.

 

 

 

 

 

O clérigo e jornalista com o Prémio Pulitzer, Chris Hedges, publicou recentemente no Scheerpost, um artigo de análise crítica sobre os últimos acontecimentos nos EUA, “America’s Fate: Oligarchy or Autocracy” (O destino da América: Oligarquia ou Autocracia). Dada a sua importância para a compreensão sobre o que se passa não só nos EUA, mas também nos diferentes matrixes a que voluntariamente obrigados nos fomos deixando ser relegados para viver, aqui o deixo na sua tradução integral:

 

 

Os sistemas de poder concorrentes nos Estados Unidos estão divididos entre oligarquia e autocracia. Não há outras alternativas. Nenhuma deles é agradável. Cada um tem características peculiares e desagradáveis. Cada um apela à boca cheia às ficções da democracia e dos direitos constitucionais. E cada um exacerba a crescente divisão social e política e o potencial para conflitos violentos.

Os oligarcas do Partido Republicano, figuras como Liz Cheney, Mitt Romney, George e Jeb Bush e Bill Kristol, uniram forças com os oligarcas do Partido Democrata para desafiarem os autocratas do novo Partido Republicano que se uniram em cultos e seitas à volta de Donald Trump ou, se ele não concorrer novamente à presidência, à volta do seu inevitável duplo Frankenstein.

 

A aliança entre oligarcas republicanos e democratas expõe o caricato que caracterizou o antigo sistema bipartidário, onde os partidos no poder lutaram pelo que Sigmund Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”, em que se encontravam unidos em todas as principais questões estruturais, incluindo gastos maciços com a defesa, acordos de livre comércio , cortes de impostos para os ricos e corporações, as guerras sem fim, a vigilância do governo, o processo eleitoral saturado de dinheiro, o neoliberalismo, a austeridade, a desindustrialização, a polícia militarizada e o maior sistema prisional do mundo.

 

A classe liberal, temendo a autocracia, jogou a sua sorte juntando-se aos oligarcas, desacreditando e tornando impotentes as causas e questões que afirma defender. A falência da classe liberal é importante, pois efetivamente transforma os valores democráticos liberais em platitudes vazias que aqueles que abraçam a autocracia condenam e desprezam.

Assim, por exemplo, a censura é errada, a menos que o conteúdo do laptop de Hunter Biden seja censurado ou Donald Trump seja banido dos mídias sociais. As teorias da conspiração estão erradas, a menos que essas teorias, como o dossier Steele e o Russiagate, possam ser usadas para prejudicarem o autocrata.

O uso indevido do sistema legal e da autoridade das agências para a aplicação da lei, com o fim de realizar vinganças pessoais é errado, a menos que essas vinganças sejam direcionadas ao autocrata e àqueles que o apoiam. Monopólios gigantes de tecnologia e as suas plataformas monolíticas de mídia social estão errados, a menos que esses monopólios usem os seus algoritmos, controle de informações e contribuições de campanha para garantirem a eleição do candidato presidencial ungido pelo oligarca, Joe Biden.

 

A perfídia dos oligarcas, mascarada pelos apelos à civilidade, tolerância e respeito pelos direitos humanos, supera muitas vezes a da autocracia. O governo Trump, por exemplo, expulsou 444.000 requerentes de asilo sob o Título 42, uma lei que permite a expulsão imediata daqueles que potencialmente representam um risco para a saúde pública e nega aos migrantes expulsos o direito de fazerem uma petição para permanecerem nos EUA antes de serem presentes a um juiz de imigração.

O governo Biden não apenas abraçou a ordem de Trump em nome do combate à pandemia, como expulsou mais de 690.000 requerentes de asilo desde que assumiu o cargo em janeiro.

A administração Biden, na esteira de outro furacão monstruoso desencadeado pelo menos em parte pelas mudanças climáticas, autorizou a abertura de 80 milhões de acres para perfuração de petróleo e gás no Golfo do México,  gabando-se que a venda produzirá 1,12 biliões de barris de petróleo ao longo do próximos 50 anos.

A administração Biden, bombardeou a Síria e o Iraque e, na retirada do Afeganistão, assassinou 10 civis, incluindo sete crianças, num ataque com drones. Encerrou três programas de alívio à pandemia, cortando os benefícios da Assistência ao Desemprego na Pandemia que tinham sido concedidos a 5,1 milhões de pessoas que trabalhavam como empreendedores, ou como cuidadores. Outros 3,8 milhões de pessoas que receberam assistência da Compensação de Desemprego de Emergência à Pandemia para os desempregados de longa duração, também perderam o acesso aos seus benefícios.

 A eles juntam-se 2,6 milhões de pessoas que deixam de receber o suplemento semanal de US$ 300 e que estão a lutar para lidar com uma queda de US$ 1.200 nos seus ganhos mensais.

As promessas da campanha eleitoral de Biden sobre o aumentar o salário mínimo, perdoar dívidas estudantis, reforma da imigração e tornar a habitação um direito humano, foram esquecidas. Ao mesmo tempo, a liderança democrata, proponente de uma nova guerra fria contra a China e a Rússia, autorizou manobras militares provocatórias ao longo das fronteiras da Rússia e no Mar da China Meridional, e acelerou a produção do bombardeiro furtivo de longo alcance, o B-21 Raider.

 

Os oligarcas vêm do alfobre tradicional das escolas de elite, do dinheiro das heranças, dos militares e das corporações, aqueles que C. Wright Mills chama de “elite do poder”. “O sucesso material”, observa Mills, “é sua única base de autoridade”.

A palavra “oligarquia” é derivada da palavra grega “oligos” que significa “poucos” e é o oligos que vê o poder e a riqueza como um seu direito de nascença, que eles passam para a sua família e filhos, como exemplificado por George W. Bush ou Mitt Romney. A palavra “autocracia” é derivada da palavra grega “auto” que significa “eu”, como de alguém que governa por si mesmo.

 

Nas democracias decadentes, a luta pelo poder é sempre, como aponta Aristóteles, entre essas duas forças despóticas, embora se houver uma séria ameaça de socialismo ou radicalismo de esquerda, como aconteceu na República de Weimar, os oligarcas forjam uma aliança incómoda com o autocrata e seus capangas para esmagá-lo.

Embora no espectro político Bernie Sanders não seja um radical, a classe doadora e a hierarquia do Partido Democrata sabotaram a sua candidatura, declarando publicamente, como o ex-CEO da Goldman Sachs Lloyd Blankfein fez, que se Sanders fosse nomeado o candidato, eles apoiariam Trump. A aliança entre os oligarcas e os autocratas dá origem ao fascismo, no nosso caso a um fascismo cristianizado.

 

Os oligarcas abraçam uma falsa moralidade da cultura atenta (woke) e de política de identidade, que é antipolítica, para darem a si próprios o verniz de liberalismo, ou pelo menos o verniz de uma oligarquia esclarecida. Os oligarcas não têm ideologia genuína. O seu objetivo único é acumular riqueza, daí as quantidades obscenas de dinheiro acumuladas por oligarcas como Bill Gates, Elon Musk ou Jeff Bezos, e as quantias impressionantes de lucro feitas por corporações que, essencialmente, orquestraram um boicote fiscal legal, forçando o estado a aumentar a maior parte das suas receitas de enormes déficits governamentais, agora totalizando US$ 3 triliões, e tributando desproporcionalmente as classes trabalhadora e média.

 

As oligarquias, que vomitam devoções e chavões açucarados, envolvem-se em mentiras que muitas vezes são muito mais destrutivas para o público do que as mentiras de um autocrata narcisista. No entanto, a ausência de uma ideologia entre os oligarcas, dá ao governo oligárquico uma flexibilidade que falta nas formas autocráticas de poder. Como não há lealdade cega a uma ideologia ou a um líder, há espaço numa oligarquia para reformas limitadas, moderação e para aqueles que procuram retardar ou frear as formas mais flagrantes de injustiça e desigualdade.

 

Uma autocracia, no entanto, não é flexível. Ela queima esses últimos resquícios de humanismo. Baseia-se unicamente na adulação do autocrata, por mais absurda que seja, e por medo de o ofender. É por isso que políticos como Lindsey Graham e Mike Pence, pelo menos até que ele se recusou a invalidar os resultados das eleições, humilharam-se abjeta e repetidamente aos pés de Trump. O pecado imperdoável de Pence ao certificar os resultados das eleições, transformou-o instantaneamente num traidor. Um pecado contra um autocrata é um pecado a mais. Apoiantes de Trump invadiram a capital a 6 de janeiro gritando “Enforquem Mike Pence”. Como Cosimo de’ Medici observou: “Não há nenhum lugar em que nos deem ordem para perdoar os nossos amigos”.

 

O enfraquecimento político e económico que é consequência da oligarquia, infantiliza uma população, que em desespero gravita em torno de um demagogo que promete prosperidade e restauração de uma era de ouro perdida, renovação moral baseada em valores “tradicionais” e vingança contra os bodes expiatórios do declínio da nação.

 

A recusa do governo Biden em abordar as profundas desigualdades estruturais que assolam o país, já de si é sinistra. Na última pesquisa Harvard/Harris, Trump ultrapassou Biden em índices de aprovação, com Biden caindo para 46% e Trump subindo para 48%. Junte-se a isso o relatório do Projeto sobre Segurança e Ameaças da Universidade de Chicago, que descobriu que 9% dos americanos acreditam que o “uso da força é justificado para reinstalar Donald J. Trump na presidência”.

Segundo o estudo, mais de um quarto dos adultos concorda, em graus variados, que “a eleição de 2020 foi roubada e Joe Biden é um presidente ilegítimo”. A pesquisa indica que 8,1% - 21 milhões de americanos - compartilham essas duas crenças. Aparentemente, qualquer número entre os 15 milhões a 28 milhões de adultos apoiaria o derrube violento do governo Biden para reinstalar Trump na presidência.

 

O movimento insurrecional é mais mainstream, multipartidário e mais complexo do que muitas pessoas gostariam de pensar, o que não é um bom presságio para as eleições intercalares de mandato em 2022, ou para as eleições presidenciais de 2024”, constatam os autores do relatório de Chicago.

 

O medo é a cola que mantém um regime autocrático no poder. As convicções podem mudar. O medo não. Quanto mais despótico um regime autocrático se torna, mais ele recorre à censura, coerção, força e terror para lidar com sua paranoia endémica e muitas vezes irracional. As autocracias, por esta razão, abraçam inevitavelmente o fanatismo. Aqueles que servem à autocracia envolvem-se em atos cada vez mais extremos contra aqueles que o autocrata demoniza, buscando a aprovação do autocrata e o avanço de suas carreiras.

 

A vingança contra inimigos reais ou percebidos é o objetivo obstinado do autocrata. O autocrata tem um prazer sádico no tormento e na humilhação de seus inimigos, como Trump fez quando viu a multidão invadir a capital a 6 de janeiro, ou, de uma forma mais extrema, como Joseph Stalin fez quando se fartou de rir quando os seus subalternos encenaram a súplica desesperada que o condenado Grigori Zinoviev fez pela sua vida a caminho de sua execução em 1926, ele que já tinha sido uma das figuras mais influentes da chefia soviética e presidente da Internacional Comunista.

Líderes autocráticos, como escreve Joachim Fest, muitas vezes são “não-entidades demoníacas”.

 

Mais do que as qualidades que o elevaram das massas, foram essas qualidades que ele compartilhou com elas e das quais ele era um exemplo representativo que lançaram as bases para seu sucesso”, escreveu Fest sobre Adolf Hitler, palavras que podem ser aplicadas a Trump. "Ele era a encarnação da média, 'o homem que emprestou a sua voz às massas e por meio de quem as massas falavam'. Nele as massas encontraram-se."

 

O autocrata, que celebra uma grotesca hipermasculinidade, projeta uma aura de omnipotência. Ele exige uma bajulação obsequiosa e obediência total. A lealdade é mais importante que competência. Mentiras e verdades são irrelevantes. As afirmações do autocrata, que podem em curtos espaços de tempo serem contraditórias, atendem exclusivamente às necessidades emocionais transitórias dos seus seguidores. Não há nenhuma tentativa de ser lógico ou consistente. Não há nenhuma tentativa para atrair os oponentes. Em vez disso, há um constante avivamento de antagonismos que ampliam constantemente as divisões sociais, políticas e culturais. A realidade é sacrificada pela fantasia. Aqueles que questionam a fantasia são marcados como inimigos irredimíveis.

 

Quem quer governar os homens tenta primeiro humilhá-los, enganá-los nos seus direitos e na sua capacidade de resistência, até que sejam tão impotentes diante dele quanto os animais”, escreveu Elias Canetti em “Massa e Poder” (Crowds and Power) sobre o autocrata. E, acrescenta:

 

    “Ele usa-os como animais e, mesmo que não lhes diga, ele sabe sempre muito claramente o que eles tão pouco significam para ele; quando ele fala com seus íntimos, ele chama-os de ovelhas ou gado. O seu objetivo final é incorporá-los em si mesmo e sugar-lhes a substância. O que resta deles depois, não lhe importa. Quanto pior os tratou, mais os despreza. Quando não têm mais utilidade, ele descarta-os como faz com os excrementos, tendo o simples cuidado para que não envenenem o ar da sua casa.”

 

São, ironicamente, os oligarcas que constroem as instituições de opressão, a polícia militarizada, os tribunais disfuncionais, a série de leis antiterroristas usadas contra dissidentes, governando através de ordens executivas em vez do processo legislativo, vigilância em massa e a promulgação de leis que por simples decreto derrubem os direitos constitucionais mais básicos.

Assim, o Supremo Tribunal, determina que as corporações têm o direito de injetar quantias ilimitadas de dinheiro nas campanhas políticas porque é uma forma de liberdade de expressão e porque as corporações têm o direito constitucional de fazerem petições ao governo. Os oligarcas não usam esses mecanismos de opressão com a mesma ferocidade dos autocratas. Eles empregam-nos de forma irregular e, portanto, muitas vezes sem eficácia. Mas são eles que criam os sistemas físicos e legais de opressão que mais tarde possibilitem a um autocrata, com o apertar de um botão, o estabelecimento de uma ditadura de facto.

 

 O autocrata supervisiona uma cleptocracia nua no lugar da cleptocracia oculta dos oligarcas. Mas é discutível se a cleptocracia mais refinada dos oligarcas é melhor do que a cleptocracia crua e aberta do autocrata. A atração do autocrata é que, ao tosquiar o público, ele diverte a multidão. Ele orquestra espetáculos envolventes. Ele dá vazão, muitas vezes através da vulgaridade, ao ódio generalizado das elites dominantes. Ele fornece uma série de inimigos fantasmas, geralmente os fracos e os vulneráveis, que se tornam não-pessoas. Os seus seguidores recebem licença para atacar esses inimigos, incluindo os liberais e intelectuais irresponsáveis ​​que são um apêndice patético da classe oligárquica. As autocracias, ao contrário das oligarquias, contribuem para a envolvência do teatro político.

Devemos desafiar tanto os oligarcas quanto os autocratas. Se replicarmos a covardia da classe liberal, se nos vendermos aos oligarcas como forma de impedir a ascensão da autocracia, desacreditaremos os valores centrais de uma sociedade civil e alimentaremos a própria autocracia que buscamos derrotar. O despotismo, em todas as suas formas, é perigoso. Se não conseguirmos mais nada na luta contra os oligarcas e os autocratas, pelo menos salvaremos a nossa dignidade e integridade."

(354) A forma de bem pensar

Tempo estimado de leitura: 14 minutos.

 

Se os modernos e contemporâneos se esforçam por parecer que estão a inovar, mesmo quando estão apenas a repetir, acontece o inverso com os medievais, que se esforçam por parecer que estão a repetir, mesmo quando estão a inovar.

 

Questão 154, Das Partes da Luxúria, Tomás Aquino.

 

Terão sido convenientemente assinaladas seis espécies de luxúria,
a saber: a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e
o vício contra a natureza?

 

 

 

A forma como hoje pensamos e desenvolvemos raciocínios é diretamente herdada da mal-amada Escolástica daqueles tempos da Idade Média, que temos por hábito considerar como tendo sido de retrocesso e estagnação, a “Idade das Trevas”.

Segundo esses, a escolástica, para além de espartilhar o conhecimento e o ensino, convicta de que a verdade que salvará o homem já foi dita e está escrita nos Evangelhos, não pretendia, portanto, descobrir uma outra verdade, mas apenas explicar esta, obrigando à apresentação dos textos segundo uma certa ordenação e obedecendo a uma certa exposição.

Dizem esses críticos que esta obrigação impedia os seus pensadores de inovar, porque estariam sempre de acordo com a tradição. Contudo, a realidade parece ter sido outra: “se os modernos e contemporâneos se esforçam por parecer que estão a inovar, mesmo quando estão apenas a repetir, acontece o inverso com os medievais, que se esforçam por parecer que estão a repetir, mesmo quando estão a inovar.”

Vou socorrer-me do mais lido e considerado autor dessa época, São Tomás de Aquino, e de parte da sua obra Suma Teológica, reproduzindo na íntegra a resposta à “Questão 154, Das Partes da Luxúria” (a Suma Teológica (1) tem 3 partes, compostas por mais de 500 questões e de 2000 artigos). Apreciem.

 

 

Questão 154: Das partes da luxúria.
Em seguida devemos tratar das partes da luxúria.


E, nesta questão, discutem–se doze artigos:


Art. 1 – Se foram convenientemente assinaladas seis espécies de luxúria,
a saber: a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e
o vício contra a natureza.

O primeiro discute–se assim. – Parece que foram inconvenientemente assinaladas seis espécies de luxúria, a saber a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e o vício contra a natureza.


  1. – Pois, a diversidade de matéria não diversifica a espécie. Ora, a referida divisão funda-se na diversidade de matéria, pois, distingue-se a conjunção foi com casada, com virgem ou com mulher de outra condição. Logo, parece que por si não se podem diversificar as espécies de luxúria.

  2. Demais. – Um vício não se diversifica pelo que pertence a outro. Ora, o adultério não difere da simples fornicação senão porque o adúltero, tendo relações com a mulher de outrem, comete uma injustiça. Logo, parece que o adultério não deve ser considerado espécie da luxúria.

  3. Demais. – Assim como pode alguém ter relações com a mulher ligada a outro homem pelo matrimónio, assim também pode tê–la com a que está consagrada a Deus pelo voto. Se, portanto, o adultério é considerado espécie de luxúria, também espécie de luxúria deve ser o sacrilégio.

  4. Demais. – Quem está unido em matrimónio não somente peca se tiver relações com a mulher de outro, mas também se usar da sua indevidamente. Ora, este pecado está compreendido na luxúria.
    Logo, deve ser tido como uma espécie dela.

  5. Demais. – O Apóstolo diz: Para que não suceda que, quando eu vier outra vez, me humilhe Deus entre vós, e que chore a muitos daqueles, que antes pecaram e não fizeram penitência da imundícia e fornicação e desonestidade, que cometeram. Logo, parece que também a imundícia e a desonestidade devem ser consideradas, como a fornicação, espécies de luxúria.

  6. Demais. – O género não pode fazer parte da espécie. Ora, a luxúria, é uma espécie como o são os outros membros da enumeração supra segundo aquilo do Apóstolo: As obras da carne estão patentes, como são a fornicação, a impureza, a desonestidade, a luxúria. Logo, a fornicação foi inconvenientemente considerada espécie de luxúria.

 

Mas, em contrário, a referida divisão está nas Decretais.

 

CORPO DA RESPOSTA. – Como dissemos o pecado da luxúria consiste em se gozar do prazer venéreo contrariamente à razão reta. O que de dois modos pode dar–se: quanto à matéria em que se busca esse prazer, e quanto à não observância das outras condições relativas ao uso da matéria devida. E como as circunstâncias, como tais, não especificam os atos morais, que só tiram a sua espécie do objeto, que é a matéria deles, por isso as espécies de luxúria devem-se deduzir da matéria ou do objeto. E este pode não convir com a razão reta de dois modos. Primeiro, por repugnar ao fim do ato venéreo. E assim, quando impede a geração da prole, há lugar para o vício contra a natureza, sempre que do ato venéreo não resulta a geração. E há fornicação simples, de solteiro com solteira, quando fica impedida a educação devida e a criação da prole nascida. De outro modo, a matéria sobre que se exerce o ato venéreo pode não convir com a razão reta, relativamente aos outros homens. E isto duplamente. – Primeiro, quanto à mulher mesma para com a qual quem, tendo com ela relação, não lhe conservou a devida honorabilidade. E então dá-se o incesto, que consiste no abuso de uma mulher ligada ao incestuoso pelos laços da consanguinidade ou da afinidade. – Segundo, relativamente àquele de quem a mulher depende. Se depende de um marido, há o adultério; se do pai, o estupro, não havendo violência, e o rapto, se houver.


Estas espécies, porém, diversificam-se mais pelo lado da mulher do que pelo do varão; porque, no ato venéreo, a mulher comporta-se como paciente e a modo de matéria, ao passo que o homem, como agente; pois, dissemos que as referidas espécies se fundam na diferença de matéria.


DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A referida diversidade de matéria vai junta com a diversidade formal do objeto, fundada nos diversos modos por que repugna à razão reta, como se disse.


RESPOSTA À SEGUNDA. – Nada impede que um mesmo ato implique as deformidades concorrentes de dois vícios, como dissemos. E, neste sentido, o adultério está incluído na luxúria e na injustiça. Nem a deformidade da injustiça se relaciona acidentalmente com a luxúria, absolutamente falando; pois, mostra ser a luxúria tanto mais grave quanto segue a concupiscência a ponto de ser levada até a injustiça.


RESPOSTA À TERCEIRA. – A mulher, fazendo voto de continência, contraiu de certo modo matrimônio espiritual com Deus. Por onde, o sacrilégio cometido pela violação dessa mulher é, de certo modo, um adultério espiritual. E semelhantemente as outras formas de sacrilégio, em matéria libidinosa, reduzem–se às demais espécies de luxúria.


RESPOSTA À QUARTA. – O pecado cometido pelo casado com a sua própria esposa não o é por ter matéria indébita, mas, pelas outras circunstâncias, que não especificam o ato moral, como dissemos.


RESPOSTA À QUINTA. – Como diz a Glosa no mesmo lugar, a imundícia é tomada pela luxúria contra a natureza. E desonestidade é a cometida pelo varão com mulheres solteiras, o que implica, pois, o estupro. – Ou pode–se dizer que a desonestidade implica certos atos circunstantes aos atos venéreos, como, beijos, contatos e outros semelhantes.


RESPOSTA À SEXTA. – A luxúria é tomada, no lugar aduzido, no sentido de qualquer excesso, como diz a Glosa.

 


Art. 2 – Se a simples fornicação é pecado mortal.

O segundo discute–se assim. – Parece que a simples fornicação não é pecado mortal.


  1. – Pois, as partes de uma mesma enumeração devem ser da mesma natureza. Ora, a fornicação é enumerada com outros atos que não são pecados mortais; assim, diz a Escritura: Que se abstenham das contaminações dos ídolos, e do sangue e da fornicação e das carnes sufocadas. Ora, a prática de tais atos não é pecado mortal, segundo o Apóstolo: Não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças. Logo, a fornicação não é pecado mortal.

  2. Demais. – Nenhum pecado mortal pode ser objeto de preceito divino. Ora, o Senhor ordena a Oseas: Vai, toma por tua mulher a uma pública meretriz e tem dela filhos que te nasçam duma mulher que foi meretriz. Logo, a fornicação não é pecado mortal.

 

  1. Demais. – Nenhum pecado mortal é mencionado na Escritura Santa, sem censura. Ora, a Escritura Sagrada menciona a simples fornicação dos Patriarcas Antigos, sem a censurar. Assim, lê–se nela que Abraão teve relações com Agar, sua escrava; e que Jacó teve conjunção com as escravas das suas mulheres Balam e Zelfa; e ainda, que Judas coabitou com Samar, que sabia ser meretriz. Logo, a simples fornicação não é pecado mortal.

  2. Demais. – Todo pecado mortal contraria a caridade. Ora, a fornicação simples não contraria à caridade, nem quanto ao amor de Deus, por não ser um pecado diretamente contra Deus, nem quanto ao amor do próximo, porque, cometendo–a, a ninguém se faz injustiça. Logo, a fornicação simples não é pecado mortal.

  3. Demais. – Todo pecado mortal leva à perdição eterna. Ora, tal não faz a fornicação simples; pois, àquilo do Apóstolo – A piedade para tudo é útil – diz a Glosa do Ambrósio: O resumo de toda disciplina cristã é a misericórdia e a piedade; se lhe formas fiéis, poderemos sem dúvida ser punidos se cairmos em alguma fraqueza da carne, mas nem por isso pereceremos. Logo, a fornicação simples não é pecado mortal.

  4. Demais. – Como diz Agostinho, o que é a comida para a vida do indivíduo, é a união dos sexos para a do gênero humano. Ora, nem todo usar desordenadamente da comida é pecado mortal. Logo, nem toda união sexual desordenada; o qual sobretudo é o caso da fornicação simples, a menos importante entre as espécies enumeradas.


Mas, em contrário, a Escritura: Preserva–te de toda impureza e fora de tua mulher nunca consintas em conhecer o crime. Ora, crime importa em pecado mortal. Logo, a fornicação e toda união sexual sem ser com a esposa, é pecado mortal.


Demais. – Só o pecado mortal exclui do reino de Deus. Ora, a fornicação exclui dele; assim o Apóstolo, depois de se ter referido a ela e a certos outros vícios, acrescenta: Os que tais causas cometem não possuirão o reino de Deus. Logo, a simples fornicação é pecado mortal.


Demais. – Uma Decretal diz: Devem saber que ao perjúrio deve–se impor a mesma penitência que ao adultério, à fornicação, ao homicídio livremente perpetrado e aos demais vícios criminosos. Logo, simples fornicação é um pecado criminal ou mortal.

 

CORPO DA RESPOSTA. – Sem nenhuma dúvida devemos afirmar que a fornicação simples é pecado mortal, embora àquilo da Escritura: Não haverá meretriz, diga a Glosa: Proíbe ter relações com meretrizes, o que constitui uma desonestidade venial. Pois, não se deve ler a venial, mas, venal, o que é próprio às meretrizes.


Para provar o que afirmamos devemos considerar que pecado mortal é todo pecado cometido diretamente contra a vida do homem. Ora, a fornicação simples importa uma desordem, que redunda em dano da vida do que nascerá dessa união sexual. Pois, vemos que todos os animais, que precisam dos cuidados do macho e da fêmea para criarem os filhos, não praticam o concúbito vago, mas o de um macho com uma determinada fêmea, uma ou várias, como bem o mostram todas as aves. Vago concubinato, ao contrário, exercem certos animais, como os cães e outros, curas fêmeas só por si são capazes de criar os filhos. Ora, é manifesto, que para a criação dos filhos, na espécie humana, não bastam só os cuidados da mãe, que os amamenta; mas muito mais, os do pai que deve educá–los, defendê-los e dotá-los de bens tanto internos como externos. Por onde, é contra a natureza do homem praticar o concubinato vago, mas é necessário a união de um varão com uma determinada mulher, com a
qual conviva, não por pouco tempo, mas diuturnamente e mesmo por toda a vida. E daí vem para a espécie–humana a solicitude natural do varão pela certeza da sua paternidade, porque lhe incumbe a educação da prole. Ora, essa certeza desapareceria com o concúbito vago. E essa vida com uma determinada mulher é o que se denomina matrimónio, que, por isso, é considerado de direito natural. Mas, como a união dos sexos se ordena ao bem comum de todo o gênero humano, e o bem comum é o objeto da lei, como estabelecemos, resulta por consequência, que essa conjunção do homem e da mulher, chamada matrimónio, há de ser regulada por lei. E como essa matéria é entre nós determinada, na Terceira Parte desta obra o diremos, quando tratarmos do sacramento do matrimónio. Portanto, sendo a fornicação um concúbito vago e fora das regras do matrimónio, vai contra o bem da prole a ser criada. Logo, é pecado mortal. – Nem o impede o caso de quem, praticando a união sexual fora do matrimônio, provê apesar disso à educação da prole, porque os preceitos legais se apreciam pelo que geralmente se dá e não pelo que pode ocorrer num caso particular.


DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. A fornicação vem, no texto citado, enumerada com esses outros pecados, não por ter a mesma culpa que eles, mas porque, como eles, podia gerar dissídios entre os Judeus e os Gentios e impedir–lhe a mútua união. Pois, os Gentios pela corrupção da razão natural, não reputavam ilícita a simples fornicação; mas os Judeus, instruídos pela lei divina, consideravam–na ilícita. Quanto ao mais, que na objeção se enumerou, os Judeus o abominavam, por causa dos seus hábitos derivados da lei. E por isso os Apóstolos o proibiram aos Gentios, não por se tratar de coisas em si mesmas ilícitas, mas por serem abomináveis aos Judeus, como dissemos.


RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz–se que a fornicação é pecado por ser contrária à razão reta. Ora, a nossa razão é reta quando regulada pela vontade divina, que é a primeira e a suma regra. Portanto, o que fazemos por vontade de Deus, obedecendo–lhe à ordem, não é contra a razão reta, embora possa contrariar a ordem comum da razão; assim como também não é contra a natureza o que se faz milagrosamente, por virtude divina, embora seja contrário ao curso comum da natureza. E, portanto, assim como não pecou Abraão, querendo matar o filho inocente, por obediência a Deus, embora esse ato, em si mesmo considerado e em geral, vá contra a retidão da razão humana, assim também Oseas não pecou, fornicando por ordem divina. Nem se pode propriamente chamar fornicação a esse concúbito, embora seja assim denominado conforme o uso comum de falar. Por isso diz Agostinho: Quando Deus dá uma ordem contrária aos costumes ou às leis, devemos cumpri–la, embora antes nunca se fizesse nada de tal. E depois acrescenta: Assim como, na ordem social humana, o poder maior é preposto ao menor, que lhe deve obedecer, assim Deus deve ser obedecido por todos.


RESPOSTA À TERCEIRA. – Abraão e Jacó tiveram relações com escravas, não por um concúbito fornicário, como a seguir se verá, quando tratarmos do matrimónio. E quanto a Judas, não é necessário escusá–Io de pecado, a ele que também foi o vendedor de José.


RESPOSTA À QUARTA. – A fornicação simples contraria ao amor do próximo, porque repugna ao bem da prole nascitura, como se mostrou; isto é, porque dá lugar a uma geração como não convém à referida prole.


RESPOSTA À QUINTA. – As obras de piedade livram da perdição eterna a quem praticou atos carnais, enquanto que essas obras dispõem para a consecução da graça, que leva ao arrependimento; e enquanto elas levam a satisfazer pela lubricidade carnal cometida. Mas não que livrem quem ficou impenitente até a morte, na prática de tais atos.


RESPOSTA À SEXTA. – Um só concúbito pode dar lugar à geração. Portanto, o concúbito desordenado, que impede o bem da prole nascitura é, pelo gênero mesmo desse ato, pecado mortal, e não só por causa da concupiscência desordenada. Mas, um só ato de comer não impede o bem da vida total de um homem. Por isso, um ato de gula não é genericamente pecado mortal; se–Io–ia, porém, se alguém tomasse uma comida cientemente, de modo tal que lhe transformasse toda a condição da vida, como se deu com Adão. Nem, contudo, a fornicação é o menor dos pecados, que a luxúria inclui; pois, o concúbito libidinoso com a esposa é menor.

 


Art. 3 – Se a fornicação é o gravíssimo dos pecados.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a fornicação é o gravíssimo dos pecados.


  1. – Pois, o pecado é tanto mais grave quanto maior é a lascívia de que procede. Ora, a maior lascívia é a da fornicação; assim, como diz a Glosa, o amor lascivo, na luxúria, é o máximo. Logo, a fornicação é o gravíssimo dos pecados.

  2. Demais. – Pecamos tanto mais gravemente quanto o fazemos com quem nos é mais chegado; assim, peca mais gravemente quem fere o pai que quem fere um estranho. Ora, como diz o Apóstolo, o que comete fornicação peca contra o seu próprio corpo, que é o ser mais unido connosco. Logo, parece que a fornicação é o gravíssimo dos pecados.

  3. Demais. – Quanto maior é um bem tanto mais grave é o pecado cometido contra ele. Ora, o pecado de fornicação vai contra o bem de todo o gênero humano, como do sobre dito resulta. – E é também contra Cristo, segundo o Apóstolo: Tornarei eu os membros de Cristo e fá–los–ei membros de urna prostituta? Logo, a fornicação é o gravíssimo dos pecados.
    Mas, em contrário, diz Gregório, que os pecados carnais têm menor culpa que os pecados espirituais.

 

CORPO DA RESPOSTA. – A gravidade de um pecado pode ser considerada a dupla luz: essencial e acidentalmente. Essencialmente, a gravidade de um pecado se deduz da sua espécie, que depende do bem a que ele contraria. Ora, a fornicação contraria o bem do nascituro. Logo, é especificamente mais grave que os pecados contra os bens exteriores, como o furto e outros; menos grave, porém que os pecados que vão diretamente contra Deus, e que o pecado do homicídio, contrário à vida do homem já nascido.


DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A lascívia que agrava o pecado é a consistente na inclinação da vontade. Ao contrário, a do apetite sensitivo o diminui; pois, quanto maior é o ímpeto da paixão que nos faz pecar, tanto mais leve é o pecado. E deste modo a lascívia na fornicação é máxima. Por isso, diz Agostinho, que, de todas as lutas em que os Cristãos vivem empenhados, as mais duras são as da castidade, onde a pugna é quotidiana e rara a vitória. E Isidoro diz, que pela luxúria da carne, mais do que por qualquer outro pecado, o género humano se faz presa do diabo, isto é, porque é difícil vencer a veemência dessa paixão.


RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz–se que quem fornica peca contra o próprio corpo, não só porque o prazer da fornicação se consuma na carne, o que também se dá com a gula, mas ainda porque age contra o bem do próprio corpo quem fornica, enfraquecendo–o e inquinando–o, como não deve, e tendo relação carnal pecaminosa. Mas nem por isso daqui se segue, que a fornicação seja o gravíssimo dos pecados; pois, no homem, a razão prevalece sobre o corpo; e por isso, mais grave será o pecado mais contrário à razão.


RESPOSTA À TERCEIRA. – O pecado da fornicação é contra o bem da espécie humana, por impedir a geração de um determinado nascituro. Pois, mais propriamente realiza a essência da espécie o que dela já participa em ato, do que o homem apenas em potência. E, por isso, também o homicídio é mais grave que a fornicação e que todas as espécies de luxúria, por contrariar mais ao bem da espécie humana. Mas, o bem divino é ainda maior que o da espécie humana. Donde o serem maiores os pecados contra Deus. Nem é a fornicação pecado diretamente contra Deus, como se o fornicador visasse a ofensa de Deus; mas o é só por consequência, como todos os pecados mortais. Pois, assim como os membros do
nosso corpo são membros de Cristo, assim também o nosso espírito é um com Cristo, segundo o Apóstolo: O que está unido ao Senhor é um mesmo espírito com ele. Por onde, também os pecados espirituais são mais contra Cristo, que a fornicação.

 


Art. 4 – Se os contados e os beijos constituem pecado mortal.

O quarto discute–se assim. – Parece que os contatos e os beijos não constituem pecado mortal.


  1. – Pois, o Apóstolo diz: Portanto, a fornicação e toda impureza ou avareza, nem sequer se nomeie entre vós outros, como convém a santos. E acrescenta: Nem palavras torpes, o que a Glosa comenta: como os beijos e os abraços; nem palavras loucas – como as palavras doces; nem chocarrices – ou a chamada, pelos estultos curialitas, isto é, a jocosidade. E depois ajunta: Porque haveis de saber e entender que nenhum fornicário ou imundo, ou avaro, o que é cultor de ídolos, não tem herança no reino de Cristo e de Deus; e já não se refere às palavras torpes, nem às palavras loucas nem às chocarrices. Logo, não são elas pecado mortal.

  2. Demais. – Diz–se, que a fornicação é pecado mortal, porque ela impede o bem da prole ser gerada e educada. Ora, para tal em nada concorrem os beijos e os contatos ou abraços. Logo, não constituem pecado mortal.

  3. Demais. – Atos que são em si mesmo pecado mortal não podem nunca ser praticados licitamente. Ora, os beijos, os contatos e coisas semelhantes podem às vezes existir sem pecado. Logo, não são em si mesmo o pecado mortal.

 

Mas, em contrário. – Olhares lascivos são menos que os contatos, os abraços ou os beijos. Ora, os olhares lascivos constituem pecado mortal, segundo o Evangelho: Todo o que olhar para uma mulher cobiçando–a, já no seu coração adulterou com ela. Logo, com maior razão, os beijos lascivos e cousas semelhantes são pecados mortais.


Demais. – Cipriano diz: O concúbito, os abraços, os colóquios amorosos, os beijos, o desonesto e impuro contato de dois corpos no mesmo leito, quanto, por certo, não encerram de vergonha e de criminoso! Logo, a prática de tais atos torna o homem réu de crime, isto é, de pecado mortal.

 

CORPO DA RESPOSTA. – De dois modos pode um ato ser pecado mortal. – Pela sua espécie; e então, os beijos, os abraços ou contatos não implicam, por natureza, pecado mortal. Pois, podem ser praticados sem lascívia, ou por costume pátrio ou por qualquer necessidade ou causa racional. – De outro modo, um pecado pode ser mortal na sua causa; assim, quem faz esmola, para induzir a outrem em heresia, peca mortalmente, por causa da intenção perversa. Pois, como dissemos consentir no prazer de um pecado mortal é pecado mortal, e não só o consentimento no ato. Por onde, sendo a fornicação pecado mortal, e muito mais as outras espécies de luxúria, resulta, por consequência, que o consentimento no prazer desse pecado é pecado mortal, e não só o consentimento no ato. Logo, como os beijos, os abraços e coisas semelhantes se pratiquem por causa do prazer que encerram, são por consequência pecados mortais. E só neste sentido se consideram lascivos. Portanto, tais atos, enquanto libidinosos, constituem pecados mortais.

 

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O Apóstolo não citou os três referidos atos, porque não têm a denominação de pecado, senão enquanto ordenados aos precedentemente aludidos.

 

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os beijos e os contatos, embora em si mesmos não impedem o bem da prole humana, nascem, contudo da lascívia, que é a raiz desse impedimento. Pois, por isso é que são por natureza pecado mortal.


RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção conclui que tais atos não são especificamente pecados mortais.

 

 

 

 

  • Como ler e citar obras de Tomás de Aquino.

 

Os textos começam sempre pela enunciação de uma Questão (Quaestio), com o título da questão em análise e com as objeções levantadas em obras de referência [ob. 1, ob. …] seguida da invocação da autoridade com a qual o autor concorda [s. c.] (Sed contra – Em sentido contrário). Depois vinha o Corpo da resposta [co. – abreviatura para corpo]. Seguiam-se as respostas às objeções levantadas [ad. 1, ad. …].

As questões agrupam-se em partes. Subdividem-se em artigos, que são perguntas dentro da questão.

Se quisermos compreender o pensamento do autor, a primeira coisa a ler é o corpo da resposta (não confundir com a solução das objeções).

 

Devemos lembrar que os textos clássicos e medievais não são citados pela página. Assim, para se ler ou fazer uma citação do texto:

Tomás Aquino, Suma Teológica Iq2a2ad1, significa

Tomás de Aquino, Suma Teológica, Primeira parte, Questão 2, Artigo 2, Solução da primeira objeção.

 

 



 

 

 

(353) A tradição das Festas

Tempo estimado de leitura: 3 minutos.

 

Acordai, humanidade! Para vossa salvação Deus fez-se homem, Santo Agostinho.

 

A crítica da religião é em embrião, a crítica daquele vale de lágrimas de que a religião é a auréola, Karl Marx.

 

O que é a tradição? Uma autoridade superior a que se obedece, não porque comanda o que nos é útil, mas porque comanda, F. Nietzsche.

 

Se eu fosse um médico, deveria prescrever férias para qualquer paciente que considerasse o seu trabalho importante, Bertrand Russel.

 

As pessoas, nem no seu trabalho nem na sua consciência, dispõem de si mesmas com inteira liberdade, Theodor Adorno.

 

 

 

Muitos de nós, religiosos ou não, ansiamos pelo período do Natal por variadas razões: para o celebrar, para nos reunirmos com a família, para termos um período de descanso, para fazermos compras, ou ainda para perspetivarmos a época ou o que andamos cá a fazer.

Imbuído deste espírito festivaleiro, aqui deixo algumas citações de autores consagrados que nos poderão auxiliar a melhor entender a época e o seu significado.

 

Começando por Santo Agostinho que compôs aquela que veio a ser considerada a versão histórica oficial do que é o Natal, como celebração do nascimento de Jesus, filho de Deus:

 

“Acordai, humanidade! Para vossa salvação Deus fez-se homem. Acordai, vós que dormis, levantem-se dos mortos, e Cristo vos iluminará. Digo-vos de novo: para vossa salvação, Deus fez-se homem. Vós padeceríeis de morte eterna, não tivesse ele nascido a tempo. Nunca se libertariam da vossa carne pecadora, não tivesse ele tomado para si todos os vossos pecados carnais. Vós sofreríeis para sempre de uma infelicidade, não fosse pela sua misericórdia. Vós nunca mais ressuscitaríeis, não tivesse ele compartilhado da vossa morte. Vós perder-se-iam se ele não tivesse vindo em vossa ajuda.

Celebremos então com alegria a vinda da nossa salvação e redenção. Celebremos este dia festivo no qual ele que é o dia maior e eterno veio pelo dia maior e sem fim da eternidade ao nosso pequeno e curto dia no tempo.”

 

 

É na Contribuição para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que Karl Marx vai condensar o seu pensamento sobre a religião:

 

“A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de uma condição sem alma. É o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória das pessoas é a exigência da sua felicidade real. Exigir que desistam das suas ilusões sobre a sua condição é exortá-los a desistir de uma condição que requer ilusões. A crítica da religião é, portanto, em embrião, a crítica daquele vale de lágrimas de que a religião é a auréola”.

 

 

Em A Gaia Ciência, Nietzsche vai escrever que “o Natal é celebrado por muitos que não são religiosos, um fenómeno que ecoa”, como se a morte de Deus projetasse para longe o seu longo manto. Acontece que a maior parte de nós não pensa sobre o significado da quadra festiva, encarando-a mais como uma tradição herdada pela nossa cultura ou pela nossa família. E sobre essa tradição, eis o que Nietzsche nos diz na Alvorada:

 

 “O que é a tradição? Uma autoridade superior a que se obedece, não porque comanda o que nos é útil, mas porque comanda. O que distingue esse sentimento da presença do sentimento da presença da tradição do sentimento de medo em geral? É o medo na presença de um intelecto superior que aqui comanda, de um poder incompreensível e indefinido, de algo mais do que pessoal - há superstição neste medo.”

 

 

Bertrand Russel foi dos primeiros a preocupar-se com a obsessão da sociedade pelo trabalho em detrimento dos tempos livres. Tem mesmo um pequeno ensaio de 1932, “In Praise of Idleness” contido em A Conquista da Felicidade (The Conquest of Happiness), em que diz que a maior parte das pessoas sobrevaloriza o trabalho, a produtividade e a eficiência, a ponto de deixarem de saber o que é o prazer e o valor de nada fazerem:

 

Um dos sintomas da aproximação de um colapso nervoso é a crença de que o trabalho de alguém é terrivelmente importante e que tirar férias traria todo tipo de desastre. Se eu fosse um médico, deveria prescrever férias para qualquer paciente que considerasse o seu trabalho importante.”

 

 

Só que se sabe que para a maior parte das pessoas este disfrute das festas, férias ou tempos livres de trabalho são quase inacessíveis. É o que nos vem demonstrar Theodor Adorno quando no seu “Free Time” (conferência realizada em 1969 na Alemanha sobre “O Tempo Livre”) nos diz que esse tempo que nós consideramos como “livre”, nas nossas sociedades modernas não passa de uma extensão do trabalho:

 

“[A] expressão 'tempo livre' de origem recente, além disso – antes se dizia ‘ócio´, que designava o privilégio de um estilo de vida desafogado, confortável e sem restrições, e portanto, algo qualitativamente diferente e muito mais agradável, ainda sob o ponto de vista do conteúdo -, aponta para uma diferença específica que o distingue do tempo não livre, do qual o trabalho é feito, e a que poderíamos acrescentar um condicionalismo que lhe é exterior. O tempo livre é inseparável o seu oposto. Esta oposição, a relação em que ela se apresenta, imprime-lhe por sua vez caraterísticas especiais. Além do mais, e fundamentalmente, o tempo livre depende da situação geral da sociedade. Mas, agora como dantes, esta tem proscritas as pessoas. As pessoas, nem no seu trabalho nem na sua consciência, dispõem de si mesmas com inteira liberdade (…) A existência que a sociedade impões aos homens, não se identifica com aquilo que os homens são ou poderiam ser por si próprios.”

 

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