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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(343) A primeira globalização

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Fazemos sempre como aquele treinador de futebol ao explanar a tática a seguir: “Pontapé para a frente e fé em Deus”. Como escreveram os anarquistas: “O último a sair que feche a porta”. Ou como do alto dos seus galões dizia aquele oficial: “Cagando e andando, e não se olha para trás para tapar”.

 

As Descobertas, lucidamente vistas por Peter Sloterdijk como a Primeira Globalização, estão intimamente ligadas à escravatura do Atlântico, a sua face negra, e à procura de ouro.

 

Para lá do equador não há pecado, Gaspar Baelus.

 

 

 

 

Desde que Parménides enunciou que não nos podíamos banhar duas vezes na água do mesmo rio, qualquer pensamento que implique a possibilidade de regresso ao passado não tem qualquer exequibilidade.

Quando se demonstra que os nossos distantes antepassados tinham um tipo de vida mais saudável que o nosso, não se pretende com isso concluir que a solução dos nossos problemas hoje, esteja num regresso ao passado. Pretende-se apenas chamar a atenção para as alternativas perdidas, para erros cometidos, melhor, para as suas consequências e irreversibilidades, sabendo também que muitos deles teriam sido inevitáveis, cometidos de boa fé e fruto de total desconhecimento.

Exemplo conhecido e recente foi, e é, o da exploração do petróleo feito pela indústria petrolífera. Ninguém na altura tinha a noção do que ela acabaria por provocar ao planeta. Só que a partir de certa altura os industriais, seus políticos e cientistas, sabiam perfeitamente quais estavam a ser, e seriam, as consequências daquele tipo de exploração e, no entanto, continuaram a fazê-lo em nome do “progresso” e “crescimento”.

O mesmo se passa atualmente com a chamada segunda globalização, a quarta revolução industrial: de novo em nome do “progresso” e “crescimento”, lá  vem a lengalenga idêntica às que a precederam, invocando a grande melhoria das novas (no futuro, evidentemente, sempre no futuro) condições de vida (de todos, evidentemente), tentando introduzir alterações no viver da humanidade só porque tal lhes confere mais poder (já não a todos), mais dinheiro, sem saberem onde o processo irá parar, apenas com a certeza que os seus bolsos sairiam reforçados.

Independentemente de terem sido realizadas de boa ou má fé, intencionalmente ou não, qualquer destas grandes revoluções têm, contudo, dois pontos em comum: partem sempre do princípio que o que está na Terra é para ser apropriado e usado a seu bel prazer, e iniciam sempre o processo sem terem pleno conhecimento de quais as suas implicações futuras e de como as controlar (1).

Fazem sempre como aquele treinador de futebol ao explanar a tática a seguir: “Pontapé para a frente e fé em Deus”. Como escreveram os anarquistas: “O último a sair que feche a porta”. Ou como do alto dos seus galões dizia aquele oficial: “Cagando e andando, e não se olha para trás para tapar”.

 

As Descobertas, lucidamente vistas por Peter Sloterdijk como a Primeira Globalização, estão intimamente ligadas à escravatura do Atlântico, a sua face negra (curiosa a cor que se atribui a essa face, e a que se atribui à fome) e à procura de ouro.

Para quem ainda acredite que foram feitas para cristianizar os povos, basta notar que aquelas expedições ficavam então mais caras que qualquer ida à Lua hoje, e que o seu financiamento tinha de ser pago sem ser por rezas.

Nada melhor que socorrermo-nos de descrições do diário de bordo da Primeira Viagem às Índias, compendiada por Frei Bartolomeu de las Casas, realizada por Cristóvão Colombo (2). Eis a sua descrição do desembarque nas Bahamas, na primeira ida a terra, juntamente com os seus marinheiros armados de espadas, em que os índios correram para os saudar, levando-lhes comida, água e presentes:

 

Eles […] trouxeram-nos papagaios e bolas de algodão e posteiras e muitas outras coisas, que trocavam por bolas de vidro. De boa vontade trocavam o que possuíam por outras coisas […] Eram bem constituídos, com bons corpos e feições agradáveis […] Não traziam armas, e não as conheciam, por isso mostrei-lhes uma espada e eles pegaram-lhe pelo fio pelo que na sua ignorância acabaram por se cortarem. Não possuíam ferro. As ponteiras eram feitas de cana […] Dariam bons criados […] Com cinquenta homens poderíamos subjugá-los a todos e fazer o que quiséssemos com eles.”

 

Mais à frente, Colombo escreve:

 

Assim que cheguei às Índias, na primeira ilha que encontrei, aprisionei à força alguns nativos, para que eles me fornecessem informações sobre o que havia naquelas regiões.”

 

A informação que ele mais queria saber era onde encontrar ouro, como diz no relatório para o Rei, em que pede a Suas Majestades uma pequena ajuda (para equipar uma segunda viagem), e que como retribuição lhes trará na próxima viagem “todo o ouro que necessitarem […] e tantos escravos quantos pedirem”.  Finalizando com a religiosidade habitual: “Assim o Deus eterno, nosso Senhor, conceda a vitória a todos aqueles que seguem o Seu caminho ultrapassando impossibilidades aparentes.”

Conseguida a segunda expedição (17 barcos e duzentos homens), percorreu as ilhas das Caraíbas uma a uma, capturando índios. Estabelecendo base no Haiti, Colombo enviou expedições para o interior, uma vez que os índios começaram a fugir despovoando as costas. Em 1495 embarcaram para Espanha 500 índios, homens, mulheres e crianças, todos presos. Desses, duzentos morreram na viagem. À chagada a Espanha foram vendidos como escravos. Colombo concluiu: “Que nós em nome da Santa Trindade continuemos a mandar todos os escravos que possam ser vendidos”.

Mas só os escravos não davam para pagar a dívida aos armadores, pelo que a procura do ouro que julgava existir alargou-se. Obrigou cada índio com mais de 14 anos a entregar uma certa quantia em ouro todos os três meses. Aos índios que cumpriam a entrega, eram-lhe dados colares com peças de cobre. A todos os que fossem apanhados sem esses colares eram-lhes cortadas as mãos. Aos que fugiam, eram perseguidos com cães, e mortos.

Estima-se que no início existiam cerca de 250.000 índios no Haiti. Em 1550, existiam 500. Um relatório de 1650, mostra que dos índios originais ou dos seus descendentes, não restava nenhum.

 

A fonte para o conhecimento do que aconteceu aos índios sob controle espanhol, é essencialmente a descrita por Frei Bartolomeu de las Casas:

 

O controle total conduz à crueldade total. Os espanhóis não tinham qualquer pejo em esfaquear os índios às dezenas ou vintenas, e em cortar-lhes pedaços apenas para se certificarem sobre o fio da lâmina das suas espadas. […] dois desses chamados cristãos encontraram dois rapazes índios, cada um deles com um papagaio; tiraram-lhes os papagaios e apenas por gozo cortaram a cabeça aos miúdos.”

 

Após cada seis ou oito meses de trabalharem nas minas, que era o tempo necessário para que cada turno escavasse para encontrar ouro suficiente para derreter, um terço dos índios tinha morrido. Enquanto os homens eram mandados para longe para as minas, as mulheres eram mantidas para trabalharem a terra, escavando e fazendo elevações para as plantações.

Assim, os homens e as mulheres apenas se encontravam cada oito ou dez meses, e quando isso acontecia, estavam tão exaustos e depressivos […] que deixavam de procriar. Os recém-nascidos morriam logo de seguida porque as mães, famintas e exaustas, não tinham leite para as amamentar, e por isso, enquanto estive em Cuba, 7.000 crianças morreram em três meses. Algumas mães desesperadas afogavam os filhos […] Desta forma, os maridos morriam nas minas, as mulheres morriam no trabalho, e as crianças morriam por falta de leite […] e em breve esta terra que era tão grande e poderosa e fértil […] ficou despovoada.”

 

Quando chegou à Hispaniola em 1508, escreveu:

 

Na ilha viviam 60.000 pessoas, incluindo os índios; ou seja, de 1494 até 1508, mais de três milhões de pessoas morreram da guerra, da escravatura e das minas. Quem das futuras gerações acreditará nisto? Eu próprio que estou a escrever isto como testemunha tenho dificuldade em acreditá-lo […]”

 

Foi assim que começou a invasão e conquista europeia das povoações índias das Américas. Mesmo que o número avançado por Las Casas possa ser considerado exagerado (uns historiadores dirão 1 milhão, outros 8 milhões), a realidade é que se tratou de conquista, selvajaria e morte.

Conquista, selvajaria e morte que tem sido escamoteada pela história contada pelos conquistadores, governos, diplomatas e chefes das nações. Que continua a não ser refletida, por exemplo, nos livros escolares.

 

A colonização portuguesa do Brasil não foi aqui focada, na medida em que já tinha sido tratada no artigo de 8 de agosto de 2018, “Para lá do equador não há pecado”.

Relembro, contudo, alguns excertos:

                                                                                                                         

“Para perseguirem os franceses de S. Luís do Maranhão, os portugueses fundam Belém em 1616. Mas só em 1637 é que o português Pedro Teixeira sobe o mar doce (do Amazonas) até Quito com 70 barcos e 1200 homens matando os índios que avistava – “descer índios”, mencionavam as suas instruções – cuja lenda persistente dizia que escondiam o ouro e as pedras pediosas. […] Iniciou-se o genocídio; as margens estavam antão densamente habitadas. O piloto-chefe da expedição escrevia:

“Os índios são tão numerosos que se se lançasse uma flecha para o ar, ela não cairia no chão, mas sobre a cabeça de algum”.

 

[…] “Tudo o que se pudesse escrever sobre a barbárie dos primeiros colonos, ficaria abaixo da verdade”. Em poucos anos as margens do Amazonas ficaram desertas: em fuga, escravos ou mortos, os índios tinham desaparecido. Fora os cativos, os soldados e os padres, Belém só tinha, em 1650, 80 habitantes: praça forte na entrada doo Amazonas, porta real do inferno verde, base da pirataria, ela impede a vinda de estrangeiros aos lugares de caça dos portugueses e permite a estes, expedições intermitentes ao interior.

Por exemplo, em 1664, o capitão Pedro da Costa Favela, só ao longo do rio Urubu, incendiou 300 aldeias, matou 800 índios e trouxe 400 como escravos

[…] em 1729, Belchior Mendes de Morais, passava pelas armas 20.800 índios, segundo a sua própria comunicação ao governador de Belém. Os índios retiravam-se cada vez para mais longe e as flotilhas seguiam-nos: entre 1725 e 1750 o governo de Belém trouxe do alto do Rio Negro, para os seus trabalhos, tribos inteiras que não regressaram mais. […] Belém crescia lentamente… até à aventura da borracha.” […]

 

 […] Com o aparecimento do automóvel no fim do século, o mundo tem fome de borracha e só a Amazónia pode fornecê-la […] Inicia-se a corrida ao ouro líquido.

 

[…] Mas, os índios sobreviventes … acostumados a cuidar da seringueira, a defumar o látex e a transportá-lo em pirogas até ao lugar de trocas …não percebem que o mundo precisa de borracha … com regularidade, montanhas de borracha em datas fixas.

[…] Então os revendedores de Manaus expedem aventureiros pesquisadores para a floresta; uma espécie de polícia da borracha invade e controla os caminhos da Amazónia. Um armazém de víveres, alguns pistoleiros e um livro de contas. Distribuem-se bugigangas a troco de borracha. Mas o que eles (os índios) apanham jamais liquida a dívida do livro. O homem da floresta, aprisionado pelos números, perdia fôlego a tentar saldar as contas falsificadas.

 

Os que protestavam eram chicoteados ou obrigados a sentar-se sobre formigueiros, ou amputados de uma orelha. Os que fugiam eram perseguidos e apanhados e, como exemplo, atirados aos cães, esquartejados, torturados até à morte. Ou então, no meio desta vida monótona entre a água e o látex, era pretexto de distrações: amarrado, o indígena servia de alvo, e, a revólver ou a carabina, o divertimento consistia em arrancar-lhe sucessivamente uma orelha, um dedo, o nariz ou o sexo, ou regá-lo de petróleo antes de lhe deitar o fogo, ou violar, na sua frente, a mulher dele.

 

[…] ‘Para lá do Equador não há pecado’, resumiu em Recife o capelão (Gaspar Baelus) de Maurício de Nassau […] Tudo estava corrompido pelo açúcar e pela escravatura. As mulheres brancas dos senhores dos engenhos de açúcar, reclusas, submissas, tremendo ao falar ao seu marido e senhor, fumando cachimbo como as camponesas, casadas aos 12, 13 ou 14 anos, empanturradas de doces e de aborrecimentos, desdentadas aos 25 anos … são a outra face desta fornicação animal. Ainda hoje, os fazendeiros do Nordeste que permanecem nas suas terras, quando se procura por eles ou estão em sua casa ou na casa da amante. E hoje como ontem, eles praticam o provérbio brasileiro:

Para o casamento a branca, para o prazer a mulata, para o trabalho a negra”. […] Quanto mais a sociedade está próxima da escravatura, menos invejável é a sorte das mulheres.

 

[…] A cana-de-açúcar veio e chamou o Negro. O açúcar e o Negro fizeram o Nordeste brasileiro e os latifundiários. Isto é de todos os tempos, a agricultura esclavagista gera o latifúndio, como o arquiteto o betão armado. […] Portugal ditava os preços […] E (os latifundiários) proibiram qualquer outra cultura que não fosse a cana nas suas terras. A monocultura da cana expulsou os rebanhos para o sertão, como se se tratasse de bestas malditas. Expulsou os rebanhos, como expulsou as florestas, os pássaros e as plantas. Daí, quatro séculos de fome.

[…] Esta fúria da cana sem outra preocupação além do lucro imediato, devastou e desequilibrou. A desmatação pelo fogo, a cultura repetida da mesma planta, a supressão de toda a vida animal, a desaparição de qualquer vegetação que não fosse a açucareira, arrastaram o esgotamento rápido da terra, uma erosão intensa; daí novas áreas sujeitas a corte, a novas desmatações, um alargamento da pilhagem, ao ponto de alterar-se o clima, a temperatura e o regime hidrológico. Que resta disso hoje em dia? A fome.

 

Esta compulsão na procura de riquezas, espaço, e terras, que aparecem debaixo da entendida como natural necessidade humana, tem vindo a resultar na matança de populações inteiras, e não só. E, pelos vistos, vai continuar.

 

  • Ler blog de 21 de março de 2018 sobre “Biodiversidade …” onde constam as dez ações para a sua conservação propostas por Holmes Rolston III.
  • Howard Zinn, escreveu A People History of the United States, onde no primeiro capítulo trata “Columbus, the Indians, and Human Progress”, com versão falada no YouTube.

(342) No Paraíso não havia agricultores

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Na nossa civilização, os mitos de “progresso” e “crescimento”, independentemente dos sistemas económicos em que se verifiquem, conduzem sempre a uma enorme mortandade.

 

Forçados a escolher entre o limitar a população ou tentar aumentar a produção de comida, escolhemos a última e acabámos com fome, guerra e tirania.

 

A introdução da agricultura foi em muitos aspetos uma catástrofe da qual ainda não recuperámos.

 

Se resumirmos toda a nossa história num dia de 24 horas, em que, portanto, cada hora represente 100.000 anos, então a agricultura só aparece às 23:54! Até aí, fomos sempre caçadores/coletores.

 

 

 

 

O sociólogo americano Peter Berger expôs, no seu livro de 1974 Pirâmides de Sacrifício (Pyramids of Sacrifice: Political Ethics and Social Change), dedicado ao estudo do significado das pirâmides aztecas nas quais os sacerdotes procediam à morte ritual das vítimas para assim apaziguarem os deuses e salvarem a civilização, a teoria segundo a qual esses sacrifícios impostos aconteciam e acontecem em todas as civilizações em nome do desenvolvimento.

E notou que na nossa civilização, os mitos de “progresso” e “crescimento”, independentemente dos sistemas económicos em que se verifiquem, têm também conduzido sempre a enormes mortandades.

Ou seja, para Berger, a crença sagrada de que nos últimos milhões de anos a história da humanidade tem sido uma longa história de progressos contínuos, deve ser reequacionada.

E, pelo menos a arqueologia moderna, parece dar-lhe razão quando nos vem sugerir que possivelmente a maior das grandes revoluções, a da introdução da agricultura, que supostamente deveria ser o passo mais decisivo para uma vida melhor, foi em muitos aspetos uma catástrofe da qual ainda não recuperámos.

 

O que até agora nos têm dito é que quando eramos caçadores/coletores, caçando animais selvagens e colhendo e guardando plantas silvestres, tínhamos uma vida curta, penosa e cruel, em que todos os dias tínhamos de lutar para encontrar comida a fim de evitarmos passar fome.

Até que há cerca de 10.000 anos se começou, em diferentes partes do mundo, a domesticar plantas e animais. Foi o início da grande revolução agrícola.

 

Esta passagem da fase de caçadores/coletores para a de agricultores, tem sido apresentada como um processo natural e pacífico, dado a agricultura ser uma forma mais eficiente de se conseguir mais comida com menos trabalho.

E como as colheitas podiam ser guardadas, e se levava menos tempo a ir buscar comida ao quintal do que a procurá-la no mato, a agricultura ainda nos dava tempo de sobra para não se fazer nada, ou para se fazer arte.

 

Mas como se consegue demonstrar que a vida das pessoas que viviam há 10.000 anos melhorou com a introdução da agricultura?

 

Ao estudar a questão, o antropólogo Jared Diamond, publicou a 1 de maio de 1999, “The Worst Mistake in the History of the Human Race” (O pior erro na história da raça humana), onde concluiu o contrário ao demonstrar que a introdução da agricultura foi um erro. Vejamos os seus argumentos:

Até agora, os únicos vestígios humanos que tínhamos para estudar o passado eram os esqueletos, que, apesar de tudo, permitiam retirar um certo número de informações: o sexo, peso, altura e idade aproximada. Nos casos onde aparecessem muitos esqueletos, podiam-se construir tabelas de mortalidade (idênticas às que as companhias de seguro utilizam para calcularem o tempo possível de vida e o risco de morte para uma determinada idade).

Mas para além disso, agora “os paleontologistas podem calcular os índices de crescimento medindo os ossos das pessoas de diferentes idades, examinar os dentes para deficiências de esmalte (sinais de malnutrição na juventude), e reconhecer deformações deixadas nos ossos provenientes de anemia, tuberculose, lepra, e outras doenças.”

 

Por exemplo: em esqueletos recolhidos na Grécia e Turquia, verificou-se que a altura dos caçadores/coletores perto do fim das idades do gelo era de 5’ 9’’ para os homens e 5’ 5’’para as mulheres. Com a adoção da agricultura, a altura diminui, e no ano 3.000 a.C. os homens mediam 5’ 3’’ e as mulheres 5’. A partir da idade clássica, as alturas começaram lentamente a crescer, mas mesmo assim os gregos e turcos ainda não atingiram a altura média dos seus antepassados.

Outro exemplo: um estudo de 800 esqueletos de índios caçadores/coletores descobertos nos vales dos rios Illinois e Ohio, quando comparados com esqueletos de índios cultivadores de milho provenientes do mesmo local, mas do ano 1150 d.C., mostram que os índios agricultores tinham  um aumento de 50% de deficiência de esmalte indicativo de malnutrição, de quatro vezes mais deficiência de ferro evidenciando anemia, três vezes mais lesões nos ossos indicando doenças infeciosas na generalidade, e um aumento de degenerescências na coluna, indicador provável de excessivo labor físico.

Mais, como notou George Armelagos, da University of Massachusetts, “o tempo médio de vida à nascença na comunidade pré-agricultura era cerca de 26 anos, mas na comunidade pós-agricultura era de 19 anos”.

 

São vários os estudos que indicam que o regime da agricultura era pior para a saúde da população, e que tal acontecia basicamente por três ordens de razões:

A primeira, porque os caçadores/coletores tinham uma dieta mais variada, ao passo que os agricultores obtinham a sua dieta a partir de um ou dois alimentos, cada um deles (arroz, milho e trigo, ou similares) deficiente em certas vitaminas ou em aminoácidos essenciais para a vida.

A segunda, porque devido à dependência de um número limitado de colheitas, os agricultores corriam o risco de fome sempre que uma colheita falhasse.

A terceira prende-se com o facto de a agricultura encorajar à concentração de pessoas em locais que vão ser pontes para o comércio com outras sociedades, tendendo a espalhar parasitas e outras doenças infeciosas.

Para além da malnutrição, fome e das doenças epidémicas, a agricultura contribuiu em muito para o aparecimento das divisões de classe. Como os caçadores/coletores não usavam, ou raramente usavam, comida armazenada (um quintal ou manada de vacas), vivendo antes de plantas selvagens ou de animais que obtinham dia a dia, não tinham outros (reis ou similares) que se apoderassem das suas posses. Só com o aparecimento da agricultura é que surgiram aqueles que se apropriavam do que outros produziam: esqueletos de túmulos micénicos de 1500 a.C. mostram que a realeza disfrutava de melhor alimentação que os outros (os seus esqueletos eram duas a três polegadas maiores e tinham melhores dentes – em média uma em cada seis cavidades ou com dentes em falta).

Também a agricultura encorajou o aparecimento da desigualdade entre os sexos. Libertas da necessidade de transportarem os filhos a quando da sua existência nómada, e sob a pressão de produzir mais mãos para os campos, as mulheres da agricultura tinham mais gravidezes, com as consequentes percas de saúde (verificam-se mais lesões de ossos provocadas por doenças infeciosas).

 

Isto põe o problema de tentar saber porque havendo tantos inconvenientes na agricultura, como (porquê) fomos sendo convencidos que a agricultura era melhor?

 Possíveis respostas: a densidade populacional dos caçadores/coletores era muito baixa, raramente atingindo uma pessoa por dez milhas quadradas, ao passo que a densidade dos agricultores era 100 vezes superior. Apesar da qualidade de vida ser menor, a agricultura permitia suportar mais pessoas que a caça; um campo plantado permitia alimentar mais bocas que uma floresta com plantas comestíveis.

Por outro lado, como os caçadores/coletores eram nómadas, e as mulheres tinham de transportar os filhos ao colo até serem mais crescidos, os filhos apareciam espaçados com um intervalo de quatro anos (recorriam ao infanticídio, e outros métodos). O mesmo já não acontecia com as mulheres da agricultura.

Ou seja, à medida que a densidade populacional dos caçadores/coletores foi crescendo (até ao fim das idades do gelo), para alimentar mais bocas os grupos tiveram de escolher entre a conversão à agricultura ou encontrar uma forma para limitar o crescimento.

Os grupos que escolheram a conversão à agricultura (não tendo qualquer forma de prever os malefícios resultantes), passada a sedução pela abundância imediata, depararam-se depois com o problema do grande crescimento populacional.

 Isso levou-os a expulsarem e a matarem os outros grupos que se mantiveram como caçadores/coletores, na medida em que uma centena mesmo de malnutridos agricultores sobrepõe-se a um caçador/coletor. Todos os caçadores/coletores que não quiseram abandonar o seu estilo de vida, tiveram de procurar outros locais que os agricultores não quisessem.

 

Breve:

forçados a escolher entre o limitar a população ou tentar aumentar a produção de comida, escolhemos esta última e acabámos com fome, guerra e tirania”.

 

Para pensar:

Vivem hoje em dia pior os poucos caçadores/coletores existentes que os agricultores?

Os bosquímanos do Calaári continuam a sustentar-se da mesma forma que o faziam. Continuam a ter muito tempo livre, a dormir bastante, e a trabalharem menos que os seus vizinhos agricultores.

O tempo médio dedicado à procura de comida é de apenas 12 a 19 horas para um grupo de bosquímanos. O seu consumo diário de alimentos é de 2140 calorias e 93 gramas de proteína, consideravelmente mais do que o necessário. Alimentando-se de 75 ou mais plantas silvestres, é pouco concebível que possam morrer de fome da mesma forma que morreram milhares de agricultores irlandeses e as suas famílias durante a fome da batata de 1840.

 

Que sentido é que faz hoje para os americanos e europeus falar-lhes nas virtudes dos caçadores/coletores?

Para uma população que vive dependente do petróleo e de minerais, uma população de elite, quase não tem sentido a comparação. Mas talvez faça sentido para a população daqueles países de onde são importados esses produtos, e que vivam em condições de falta de saúde e nutrição. “Se eles pudessem escolher entre serem agricultores na Etiópia ou caçadores/coletores no Calaári, o que deveriam escolher?

Isto, evidentemente, se eles não forem já “artistas de TikTok”.

 

Quão recente é a adoção da agricultura?

Se resumirmos toda a nossa história num dia de 24 horas, em que, portanto, cada hora represente 100.000 anos, então a agricultura só aparece às 23:54! Até aí, fomos sempre caçadores/coletores. No Paraíso, não existiam agricultores.

 

 

Nota: no próximo blog serão abordadas as outras revoluções importantes, os descobrimentos/escravatura/primeira globalização, a revolução industrial e a segunda globalização.

 

 

(341) Grandes pequenas coisas

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Exemplos de pequenas coisas que na medida em que forem sendo continuadas poderão vir a ter grande influência nas sociedades.

 

Os autores medievais dão-nos vulgarmente relatos parciais e enviesados das vidas das mulheres, suas motivações e aspirações, quando mesmo não as ignoram.

 

O que procurámos foi, através de documentos, apreciar as menções a essas mulheres como mães, esposas e filhas […] (para que) as suas vidas merecessem ser o foco da atenção em vez de apenas um nome facilmente esquecido perdido no meio de uma grande narrativa, Laura Ingallinelli.

 

Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados, Elizabeth Bishop.

 

 

 

A Wikipedia é uma enciclopédia aberta que, desde a sua fundação a 21 de janeiro de 2001, tem sido escrita e mantida por uma comunidade mundial de voluntários (com mais de 33 milhões de editores) que esboçam, escrevem, editam e verificam o melhor possível a imparcialidade e veracidade dos seus conteúdos.

Quem escreve para ela sabe que a sua composição não será como se fosse um ensaio. Deve evitar floreados, tentar ser imparcial, sem preconceitos, apoiando sempre as suas afirmações em referências exteriores. Em vez de intentar produzir um argumento, deve concentrar-se em oferecer a quem o lê, instrumentos que lhes possibilitem construírem eles próprios um argumento.

Embora pouco apreciada por parte dos corpos universitários, a Wikipedia pode dar uma primeira visão geral dos problemas a tratar, poupando horas de deslocações por vezes infrutíferas a bibliotecas.

Vem tudo isto a propósito de um artigo sobre Sapia Salvani com que dei nas minhas deambulações pela Wikipedia, em que vim a saber ter sido uma das mulheres caraterizadas por Dante na Divina Comédia. Através das ligações, constatei que sobre esse assunto (mulheres caraterizadas na Divina Comédia) existiam mais de uma dúzia de biografias: Alagia Fieschi, Beatrice d’Este, Beatrice Portinari, Cianghella della Tosa, Constance of Sicily, Cunizza da Romano, Francesca da Rimini, Gaia da Camino, Ghisolabella Caccianemico, Giovanna da Montefeltro, Gualdrada Berti, Joanna of Gallura, Matelda, Nella Donati, Pia de’ Tolomei, Piccarda Donati e Sapia Salvani.

 

Verifiquei que tais artigos se devem a Laura Ingallinella, professora de Estudos Italianos no famoso Wellesley College (Massachusetts, EUA, universidade privada de artes liberais que só aceita mulheres), que, juntamente com as suas alunas, resolveram empreender este trabalho.

O motivo porque o fizeram:

 

Entre as 600 personagens que fazem parte da Divina Comédia, as mulheres são aquelas que menos aparecem como fazendo parte de uma narrativa histórica. Os autores medievais dão-nos vulgarmente relatos parciais e enviesados das vidas das mulheres, suas motivações e aspirações, quando não as ignoram mesmo. Daí que a Divina Comédia seja muitas vezes a única fonte acessível de informação sobre essas mulheres.”

 

Por outro lado, esses retratos de mulheres dados por Dante são elusivos, e isto porque:

 

“O tratamento dado às mulheres por Dante tem algo de misoginia. Como Victoria Kirkham, Marianne Shapiro e Teodolinda Barolini demonstraram, Dante utiliza as mulheres como metáforas, que vão da criada piedosa à vilã capaz de por de joelhos dinastias inteiras.”

“O que procurámos foi, através de documentos, apreciar as menções a essas mulheres como mães, esposas e filhas […] (para que) as suas vidas merecessem ser o foco da atenção em vez de apenas um nome facilmente esquecido perdido no meio de uma grande narrativa.”

 

Laura Ingallinella apresenta-nos três pequenos exemplos:

 

O caso de Sapia Salvani que encontra Dante e o seu guia, Virgílio, no segundo terraço do purgatório. Ela conta-lhes como o seu destino para lá da morte ficou selado: tendo ficado à janela do castelo da sua família e, vendo as tropas reunidas à distância orou para que a sua própria cidade, Siena, fosse tomada. Apesar da vantagem que tinham, os sienenses foram massacrados - incluindo o seu sobrinho, cuja cabeça foi exibida espetada numa lança à volta de Siena. E conta como nesse momento se sentiu triunfante.

Segundo Dante e os teólogos medievais, ela tinha sido vítima de um dos sete pecados capitais, a “invidia” (inveja).

Dante aproveita a descrição para a apresentar como uma representação condenável da violência existente no seu tempo em que, devido à arrogância e à ganância, alguns se voltavam contra as suas próprias comunidades.

Fontes documentais pesquisadas pelas alunas de Wellesley mostram, no entanto, Sapia como sendo uma verdadeira filantropa: juntamente com o marido, fundou um hospício para os pobres na Via Francigena, numa rota de peregrinação para Roma. Cinco anos após a queda de Siena, doou todos os seus bens ao hospício.

 

E o caso de Ghisolabella Caccianemico, uma jovem de Bolonha vendida pelo irmão, Venèdico, como escrava sexual, esperando formar uma aliança com um vizinho marquês. Dante expõe o caso como “um conto nojento” de seres sem dignidade. Ghisolabella é a vítima silenciosa no meio de homens.

O que as alunas fizeram foi tornar Ghisolabella como centro da história, tentando dar uma visão objetiva sobre a violência que lhe foi infligida, preservando a sua dignidade.

A inclusão por Dante de Ghisolabella, eterniza o pecado de Venèdico”.

 

E ainda o caso da célebre Beatrice d’Este, a aristocrata a quem Dante criticava por se ter casado de novo após o falecimento do marido. Dante ficava horrorizado com as viúvas que se atreviam a casar em vez de se manterem fiéis para sempre aos seus falecidos maridos.

Mas esta não era a verdadeira história de Beatrice. Segundo Deborah W. Parker, Beatrice foi pressionada para um segundo casamento e tentou negociar o seu lugar no mundo para não se sujeitar aos maldizeres, conseguindo que no seu túmulo figurassem os dois maridos ao seu lado.

 

Estamos perante pequenos trabalhos que não fazendo mal a ninguém permitem aclarar certos aspetos da vida humana: exemplos de pequenas coisas que na medida em que forem sendo continuadas poderão vir a ter grande influência nas sociedades.

Mas como os que normalmente viajam de barco não fixando o horizonte preferindo antes olhar para o mar junto à embarcação, acabam por enjoar com tudo, até estes singelos trabalhos criticam.

Ou porque é uma produção da Wellesley, um anacronismo e mau exemplo da “nossa” sociedade, um colégio só para mulheres (ignorando que maior parte das universidades da Ivy League até 1960 só admitiam homens – brancos e anglo-saxónicos, evidentemente), ou porque é uma introdução forçada de mulheres na Wikipedia alterando a proporcionalidade existente, ou porque as obras literárias não devem ser lidas ou apreciadas pela sua historicidade, ou porque sei lá que mais. Por tudo, menos pelo trabalho apresentado.

 

Ouçamos antes o que nos diz Elizabeth Bishop:

 Tendo sido por várias vezes convidada para participar em antologias poéticas femininas, como The Women Poets in English (Mulheres Poetisas em Inglês), recusou sempre porque para ela “Os homens e as mulheres não escrevem de maneiras diferentes”.

Além disso “imaginam o ridículo que seria o aparecimento do título Men Poets in English?” […] Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados”.

A segregação, seja ela artística ou social, acabará sempre por ser contra a aceitação da igualdade entre as mulheres e os homens:

 

Literatura é literatura, independente de quem a produz”.

 

 

Nota: sugiro a leitura do blog de 7 de novembro de 2018, “Éticas” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/188-eticas-49840).

 

(340) Dos tiros nos pés

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

As promessas que são feitas por essas empresas que garantem “bebés saudáveis”, assentam não em garantias, mas em probabilidades.

 

Se os governos impõem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos. Se os governos impedem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos.

 

Uma das primeiras Revoluções Culturais aconteceu na Espanha de Franco, entre 1951 e 1968, com o lançamento do Serviço Universitário do Trabalho (SUT)

  

Os campos de trabalho surgiram como a realização na prática do discurso populista e operário falangista, permitindo além disso ganhar algum prestígio entre os trabalhadores.

 

 

 

 

 

Para a maior parte das pessoas mídiamente informadas, Revolução Cultural foi algo que aconteceu na China durante o governo de Mao Zedong, entre 1966 e 1976.  No entanto, uma dessas primeiras revoluções culturais já acontecera na Espanha de Franco, entre 1951 e 1968, iniciada pelo padre jesuíta, José Maria Llanos, importante apoiante falangista do regime, quando lança o Serviço Universitário do Trabalho (SUT).

   

No seguimento dos movimentos sociais-católicos que apareceram após a revolução industrial nos bairros miseráveis dos trabalhadores, com os chamados padres-operários que acompanharam durante a Segunda Guerra Mundial as deslocações para a Alemanha dos operários obrigados pelo Serviço do Trabalho Obrigatório imposto pelos nazis em toda a Europa ocupada. Desta sua experiência, os padres-operários verificaram, por um lado, a forte descristianização do mundo do trabalho e, por outro, o efeito evangelizador da convivência.

 

Ao mesmo tempo que isso acontecia, a doutrina fascista propunha contra a luta de classes marxista, a existência de uma irmandade entre os homens dentro de uma comunidade nacional unificada e disciplinada, mesmo que conseguida pela repressão e eliminação da dissidência. O falangismo espanhol revia-se neste discurso populista da unidade dos homens de Espanha para além da sua classe social, para o que procedeu à criação de vários Serviços Sociais.

Esta nova sensibilidade pessoal começa por aparecer no meio universitário, perante as evidentes desigualdades económicas e culturais, e pela separação entre os vários estratos da sociedade.

O padre jesuíta José Maria de Llanos vai organizar no Colegio Santa Maria del Campo de Madrid uma série de campos de trabalho com a finalidade de permitir aos universitários entrarem em contacto direto com o mundo operário para compartirem a realidade das suas condições de trabalho e de vida:

 

O tipo de estudante meramente aluno, apenas aluno, é o tipo que se desejava superar pensando num tipo de homem mais completo, capaz de formar-se no ar da sua época, adquirindo aquele sentido social que falta à grande maioria dos espanhóis. E não só pela maneira fácil e já usada das conferências e encontros, mas pela experiência existencial, do trabalho das mãos, vivido o mais próximo possível dos seus irmãos e companheiros, "os outros".

Permitia “apagar da face de Espanha a figura do estudante despreocupado e egoísta […] Ombro a ombro na fábrica, na mina, ou no mar, procura-se a convivência com uma realidade dura”.

 

O seu sucesso foi quase imediato, passando rapidamente de dois campos de trabalho e trinta estudantes para mais de 500 campos e 13.000 estudantes. Para a chefia, os campos de trabalho surgiam como a realização na prática do discurso populista e operário falangista, permitindo ainda ganhar algum prestígio entre os trabalhadores, na sua luta pela legitimação.

O SUT foi desenvolvendo várias atividades, como o Serviço de intercâmbio com o Estrangeiro, a Oficina de Viagens, as Campanhas de Alfabetização. Conferências e palestras após as jornadas laborais, teatro, cinema e atuações musicais, a ajuda à construção de vivendas, saneamento e acessória jurídica. Em 1962, institucionalizaram as campanhas de Educação Popular, reduzindo significativamente o elevado índice de analfabetismo existente.

Eis os que nos conta uma das estudantes, Alicia Rios, sobre o que era a vida num campo de trabalho e a realidade que encontraram:

 

“Íbamos por las mañanas a cortar hierba, no había agua y ninguna forma de comunicación con el exterior. Yo había viajado mucho y no imaginaba que pudiese existir dentro de España un sitio de tamaño contraste cultural. Un día llevamos una televisión. Ellos se arreglaron, miraron la tele como si fuera un acto social y me preguntaron: ‘Hija, ¿los que están allí nos ven a nosotros?”.

 

Todas estas atividades acabaram por mostrar o descuido e a falta de atenção do poder instituído pelas populações mais carenciadas. À vista as injustiças da estrutura social e a repartição desigual da riqueza.

A agitação universitária não parava de crescer, e o regime foi dando conta que estavam a alimentar o antifranquismo. A gota de água foi a greve organizada pelos mineiros da firma Antracitas de Gaiztarro em 1968, em cuja organização participaram seis sutistas. A diretora da SUT, Teresa Alba, foi demitida e a sua equipa, por solidariedade, demitiu-se. Chegara ao fim o projeto que nascera com o apoio falangista.

 

 

Apoiado nos desenvolvimentos científicos mais recentes da altura, não constituía nenhum espanto de maior que o movimento progressista nazi liderado por Hitler pensasse em produzir efetivamente uma raça superior. O que começara como propaganda política, foi-se transformando numa prática eugénica assumida: a seleção dos melhores espécimes para a reprodução.

Esse conceito de “melhoria” do ser humano conta com uma certa implantação nas sociedades, e tem vindo regularmente ao de cima. Com a possibilidade da seleção de embriões, a audiência expande-se ao ponto de o assunto ser tratado pelo grande cinema com o filme de 1997, Gattaca (de Andrew Niccol, com Uma Thurman, Jude Law). Recordemos que o título do filme tinha por base as letras G, A, T, C, iniciais de guanina, adenina, tiamina e citosina, os quatro constituintes básicos do DNA.

Atualmente, existem já um certo número de empresas nos EUA e na Europa que oferecem a possibilidade de os embriões não conterem riscos de esquizofrenia, câncer da mama e diabetes.

Ou seja, a todos aqueles pais que recorrem a tratamentos de fertilidade, na altura de escolherem quais os embriões a implantar, poderão optar pelos que lhes deem melhores garantias para evitarem certas doenças. Quais os pais que não o farão?

 

Recentemente (julho de 2021) a The New England Journal of Medecine publicou um estudo sobre a seleção de embriões possível de utilizar oferecida (comercializada) pelas várias empresas que operam no campo da fertilização in vitro.

O estudo alerta para o facto de a ciência utilizada ser ainda muito recente pelo que existe muito que se não conhece, para o facto de todos os dados recolhidos se referirem apenas a caucasianos, e para a seleção poder ainda aumentar mais as desigualdades da saúde entre as várias classes e raças, uma vez que os testes são vendidos de 400 dólares/embrião a 1.000 dólares.

Chama também a atenção para aquilo que são as promessas feitas por essas empresas que garantem “bebés saudáveis”, dado que tais campanhas assentam não em garantias, mas em probabilidades.

 

Apesar de até agora nenhuma empresa ter oferecido a possibilidade de se poder vir a ter um filho mais inteligente, ou mais dotado para a música, ou para o que os pais mais desejarem, as investigações nesse sentido não param de perseguir esses objetivos. Aliás, não é considerado ilegal que uma empresa ofereça a possibilidade de escolha de maior inteligência, outra aptidão, altura, peso ou outra caraterística física.

O que põe pelo menos dois problemas graves: ao possibilitar uma suposta pretendida perfeição genética dos filhos, poder-se-ia estar a limitar a sociedade ao impedir a humanidade do aparecimento de personagens tão influentes como, por exemplo, Bethoven, VanGogh, Lincoln, Miles Davis, Rainha Vitória, Albert Einstein, todos eles com problemas genéticos.

O outro problema é o que se relaciona com o poder dos estados, dos seus cidadãos e das suas empresas. Se os governos impõem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos. Se os governos impedem a eugenia, são tidos como autoritários, não democráticos. Se forem os pais a poderem escolher, então a eugenia já pode ser considerada como liberal, democrática, mesmo não tendo a mesma riqueza ou pobreza, ou inteligência e saber. Apenas por serem pais, o grande nivelador. “Parental choice”, como diz Steven Hyman.

Se repararem, o mesmo se passa com a vacina: se os estados obrigam os cidadãos a vacinarem-se, são autoritários, antidemocráticos. Para serem democráticos têm de não obrigar os cidadãos a vacinarem-se. Contudo, nestes estados, as empresas depois não dão emprego a quem não for vacinado, e isto já é democrático. Areia para os nossos olhos.

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