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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(330) Eureka! O espanto permanente da descoberta

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Conhecer nunca foi difícil. Ainda hoje, a nível mais elevado, basta aprender-se uma ciência, frequentar-se uma universidade, escutar-se um conferencista. Eis-nos conhecedores, ou portadores/transmissores de conhecimento.

 

O difícil é saber de onde vem o desejo de conhecer e o que se passa na consciência quando conhecemos.

 

O que sucede quando estamos a conhecer? […] O que conhecemos quando isso sucede?

 

Os momentos ‘Eureka!’ são atos de descoberta resultantes do desejo de conhecer.

 

 

 

 

Aquilo a que vulgarmente chamamos de “conhecimento”, resulta da maior ou menor facilidade com que vamos fazendo as “coisas” que se nos deparam e do seu armazenamento para utilização futura. Quer as coisas da vida prática, quer as da vida dita intelectual.

Neste sentido, conhecer nunca foi difícil. Ainda hoje, a nível mais elevado, basta aprender-se uma ciência, frequentar-se uma universidade, escutar-se um conferencista. Eis-nos conhecedores, ou portadores/transmissores de conhecimento. O que é “difícil é saber de onde vem o desejo de conhecer e o que se passa na consciência quando conhecemos”.

 

Foi provavelmente este irresistível “desejo irrestrito, imparcial e desinteressado de conhecer” de que, aparentemente, o homem é possuído, que terá levado Bernard Lonergan (1904-84) a escrever o seu tratado de filosofia, Insight: a Study of Human Understanding (1), onde se propõe procurar “verdades sobre nós e o mundo que nos rodeia”.

Há atualmente mais de uma dezena de centros de estudos em vários países dedicados à obra de Joseph Francis Bernard Lonergan, sacerdote católico canadense, o que talvez contribua para justificar a razão porque é por muitos considerado como o mais importante filósofo do século XX:

 

Escreveu com preparação profunda, em disciplinas tão diferentes como Ética, Epistemologia, Pedagogia, Economia, e Teologia […] capaz de analisar com rigor assuntos tão díspares como os métodos de Kant e de Tomás de Aquino, a psicanálise freudiana, a psicologia de Piaget, a teoria económica de Keynes, ou as físicas de Galileu, Einstein e Max Planck”. (2)

 

Para Lonergan, o conhecimento faz-se segundo “atos de descoberta“ que são comuns às ciências exatas, às ciências humanas, à filosofia, à teologia filosófica e ao senso comum.

A esses “atos de descoberta” resultantes do desejo de conhecer, vai Lonergan chamar de insights (inicialmente traduzidos como inteligência, e mais tarde como intelecções). Na linguagem corrente, são os momentos “Eureka!”

 

Quais são as caraterísticas desses atos de descoberta?

 

Quase como corolário da definição, uma vez que esses momentos de descoberta surgem quando conseguimos responder a uma questão, a um problema que nos pusemos ou que nos foi posto, a sua primeira caraterística é ser a ponte entre o problema e a solução.

Sabemos também que quando estamos preocupados com um problema e tentamos afincadamente solucioná-lo, podemos chegar ao ponto de só pensar nele, descurando tudo o resto. Há como que uma concentração de todo o nosso ser, o que nos provoca uma grande tensão, que só passa quando se encontra a solução. É a libertação da tensão da investigação.

 Quanto tempo terá de se esperar por este encontro da solução? Não se sabe. Sabe-se apenas que quando acontece, aparece de repente e de maneira inesperada.

O que significa que não há método de intelecção, não há regras para descobrir. Bem ao contrário é a intelecção que origina as regras.

 Por outro lado, esta capacidade de podermos ter intelecções é comum a todos nós, ela não se restringe apenas às mentes dos cientistas e filósofos (“a intelecção é sempre a mesma e o seu contrário é a estupidez”). Contudo, normalmente ela ocorrerá com muito maior frequência na pessoa inteligente e muito poucas vezes na pessoa estúpida, ocorrerá mais vezes em quem tenha uma maior orientação que a dirija para a eterna pergunta, “Porquê?”

 A intelecção é, pois, função das condições internas e não de circunstâncias exteriores.

 

O facto de Arquimedes soltar o célebre “Eureka!” quando descobriu que poderia saber o peso da coroa do rei metendo-a na água do banho, pode levar-nos a ficar com a ideia de que a intelecção está relacionada só com a resolução de problemas práticos, ou seja, com a captação do mundo concreto através dos sentidos.

Acontece que a resolução desse problema envolve muito mais que o concreto, pois não bastava só pesar a coroa na água, era preciso entrar com o princípio da deslocação do volume da água e com o peso específico, o que implica recorrer a formulações abstratas. Pelo que se pode afirmar que os matemáticos, os arquitetos, os artistas, também todos eles exploraram a realidade através do concreto e do abstrato.

 A intelecção oscila, pois, entre o concreto e o abstrato. O que leva Lonergan a concluir que “todo o conhecimento procede segundo intelecções”.

 

Já quanto à aprendizagem, recordemos o difícil que foi o aprender a andar de bicicleta, a manter o equilíbrio, a dar curvas. Quantas quedas, até de repente começarmos a andar direitos. E, para nossa surpresa, quando no outro dia de manhã pegámos nela, foi fácil, e nunca mais nos esquecemos. Lembremos como foi difícil aprender a fazer o laço nos atacadores dos sapatos, dias e dias, e até hoje, não só não esquecemos, como o fazemos automaticamente.

Esta é uma textura habitual da mente, na qual a intelecção se insere, que nos permite concluir que:

 

 “Após a primeira ocorrência de uma intelecção, as repetições subsequentes podem ocorrer à vontade… Podemos aprender porque a uma intelecção podemos adicionar outra, porque a nova intelecção não vai excluir a anterior, antes a complementa e se combina com ela”.

 

É por isso que a intelecção nos aparece “como um ato mental de compreensão organizado, que confere unidade à investigação humana”.

 

Lonergan, vai começar por nos apresentar a descrição desses atos de descoberta (intelecções) nas Ciências, quer as de estrutura clássica quer as de estrutura estatística, da matemática às ciências naturais, passando depois para a Filosofia, Teologia e finalmente para o conhecimento pelo Senso Comum.

De seguida, vai integrando todas essas várias intelecções, até à intelecção final, que embora considere inalcançável, nos vai fazer passar do patamar de “o que sucede quando estamos a conhecer?”, subindo para o patamar de “o que conhecemos quando isso sucede?”.

 

O princípio central desta sua teoria cognitiva é que se atinge o conhecimento pelo processo de experiência, entendimento e juízo. A experiência dá-nos as peças soltas de informação. O entendimento capta uma unidade. Mas o conhecimento apenas fica completo com o ato humano de juízo que capta uma realidade como ‘virtualmente incondicionada’. “

Ou seja, para pensarmos eficazmente, temos de tornar-nos cientes dos atos que modelam o modo como pensamos para começarmos a conhecer os nossos princípios e preconceitos, as nossas limitações e os nossos recursos. É por isso que “o visto é diferente do ato de ver, o pensado é diferente do ato de pensar, o feito é diferente do ato de fazer.

 

Pela sua formação e fé, o princípio base norteador para Lonergan é que a consciência humana se orienta para a transcendência, mas partindo, contudo, sempre de uma determinada orientação afetiva:

 

 “O homem conhece antes de avaliar o que conhece. Escolhe, antes de avaliar o que escolhe. E como o mundo existe a partir das escolhas e ações do sujeito; como o que sabemos é o resultado de um misto de ação e inação; como o que se escolhe é o que se julga ser valioso; e como o que se julga ser valioso é uma função do desenvolvimento, o que está em jogo é o valor e predomínio das grandes narrativas e das histórias que disputam o sentido da existência humana, com suas escolhas e valores.” (3)

 

 

 

Adenda:

               Sobre o “espanto permanente da descoberta”, neste caso referindo-se ao espanto dos nascimentos, cito um pequeno texto de José Tolentino Mendonça, do seu livro, Rezar de Olhos Abertos:

 

 «Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez. Para quem quiser ver, a vida está cheia de nascimentos. Nascemos muitas vezes ao longo da infância, quando os olhos se abrem em espanto e alegria. Nascemos nas viagens sem mapa que a juventude arrisca. Nascemos na sementeira da vida adulta, entre invernos e primaveras maturando a misteriosa transformação que coloca na haste a flor e dentro da flor o perfume do fruto. Nascemos muitas vezes naquela idade avançada onde os trabalhos não cessam, mas se reconciliam com laços interiores e caminhos adiados. Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar. Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de certas lágrimas. Nascemos na prece e no dom. Nascemos no perdão e no confronto. Nascemos em silêncio ou iluminados por uma palavra. Nascemos na tarefa e na partilha. Nascemos nos gestos ou para lá dos gestos. Nascemos dentro de nós e no coração de Deus.»

 

 

 

 

  • 1. Insight: a Study of Human Understanding, vol. 3, de Collected Works of Bernard Lonergan, com tradução em português, Insight: um ensaio sobre o conhecimento humano, e ainda

“Insight. O estudo da compreensão humana, IIª Parte – Capítulo 11, BernardLonergan”(http://www.lusosofia.net/textos/lonergan_bernard_insight_afirmacao_do_cognoscente.pdf).

      .  2. Ver “Bernard Lonergan, uma filosofia para o séc. XXI”, de Mendo Castro Henriques, lusosofia.net.

  • 3. Mendo Castro Henriques, “A inovação de Bernard Lonergan”, Dicta & Contradicta, São Paulo.

 

 

 

 

 

(329) Águas turvas

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Saberes acumulados ao longo de séculos, têm permitido a essas empresas e seus responsáveis utilizarem-se desses conhecimentos como um manual de operações provado e aprovado com a conivência do poder por eles instituído, ao qual recorrem sempre que se veem descobertos.

 

Lucro. Lucro. Lucro, Chris Hedges.

 

Nos regimes totalitários, os cidadãos são mantidos na pobreza, enquanto os governantes vivem luxuosamente com mais do que poderiam gastar. Nas democracias livres, os cidadãos são mantidos na pobreza, enquanto os governantes vivem luxuosamente com mais do que poderiam gastar, Caitlin Johnstone.

 

Nos regimes totalitários, você não é livre e sabe disso. Nas democracias livres, você não é livre e não sabe disso, Caitlin Johnstone.

 

 

 

 

Versão mais sóbria e real do que o do aclamado Erin Brockovich, o filme Dark Waters,  realizado por Todd Haynes em 2019, com Mark Ruffalo e Anne Hathaway nos principais papéis, conta a história da luta de um advogado, Robert Bilott, contra a omnipotente corporação DuPont pela utilização de um produto (ácido perfluoroctanoico, PFOA) inicialmente usado como camada impermeabilizadora para carros de combate, e posteriormente adaptado para o fabrico do conhecido Teflon que recobre as panelas e tachos existentes nas nossas cozinhas, carpetes, tecidos resistentes às manchas e repelentes de água, cosméticos, impermeabilização de caixas de pizas e outras embalagens, lubrificantes, tintas, e outros produtos de uso diário.  

Acontece que a DuPont há décadas que sabia, através de experiências que fez, que o produto causava vários tipos de cancro, defeitos de nascença que nunca mais desaparecem (provocados por químicos que não deixam a corrente sanguínea, aí ficam para sempre) e não os tornou públicos, optando por esconder e despejar milhares de toneladas de produto em alguns terrenos.

Finalmente a DuPont aceitou um acordo, comprometendo-se a pagar os custos com a saúde de todos que oficialmente fosse provado estarem doentes por causa do produto. Quando ao fim de sete anos a entidade pública encarregue dos testes confirma a relação entre o produto e a doença, a DuPont recusa o acordo, expondo-se antes a ações em tribunal, caso a caso.

 

Saberes acumulados ao longo de séculos, têm permitido a essas empresas e seus responsáveis utilizarem-se desses conhecimentos como um manual de operações provado e aprovado com a conivência do poder por eles instituído, ao qual recorrem sempre que se veem descobertos: encontra-se algo que dá dinheiro, chuta-se para a frente com força e com fé na tecnologia; mais tarde, se der para o torto, logo se verá; em último caso, se forem descobertos, concordam em aceitar uma comissão independente de avaliação; saídos os resultados, se forem favoráveis, obrigam a outra parte a cumprir; se lhes for desfavorável, não aceitam os resultados e volta tudo à estaca zero para ser resolvido individualmente em tribunal.

Como os tribunais são democráticos (ou seja, as leis são gerais e a todos aplicáveis), quem não tiver o muito dinheiro exigido para movimentar a ação, fica a ver os comboios passarem. É como, por exemplo, o que acontece a quem não tem dinheiro para comprar ações; se tivesse, podia beneficiar da lei que é geral e para todos, e ter descontos nos impostos sobre o rendimento; como não tem dinheiro não pode ter essa regalia; resta-lhe a consolação de ficar a saber que, pelo menos, a lei é democrática. Culpa dele por não ter dinheiro. Mas não há problema: não têm descontos nos impostos, mas assim vai poder sem problemas poder passar pelo buraco da agulha sem necessitar de ser camelo.

 

A única preocupação que essas empresas têm de ter é não se deixarem ficar na cauda ou perto, porque aí sabem, devem saber, que serão comidas pelos próprios pares. Tudo bons rapazes e bons amigos. Em qualquer dos casos, serão só negócios, nunca será pessoal, dizem os que se estão já a banquetear.

 

Anteriormente, podia-se atribuir à economia, à política dita ocidental, e ao capitalismo, esta forma desumana (digo eu) de atuar. Acontece que desde que o sistema capitalista foi considerado como um método meramente económico para desenvolver as nações, o que fez com que fosse possível existir um sistema político socialista ou comunista a utilizar uma economia capitalista, as “coisas” baralharam-se.

Para quem queira viver num mundo ordenado, onde se reconheçam os valores essenciais e bem determinados do bem e do mal, com uma certa rigidez e permanência, sem grandes ambiguidades (sem grandes manchas de cinzento), aquelas diferenças antigas que nos serviam de guia entre “as coisas” começaram-se a diluir.

É o mundo em que vivemos. Estavelmente instável, sem pontos definidos de amarração, em aparente mudança constante: o tal mundo sem Deus que Montaigne entrevira intensamente. Quatro séculos depois, já era tempo para o percebermos.

 

 

 

Caitlin Johnstone, é uma jornalista australiana com percurso internacional firmado, que a 13 de junho de 2021, escreveu o artigo intitulado “The Difference Between Totalitarian Regimes And Free Democracies” (A diferença entre regimes totalitários e as democracias livres), que aqui reproduza na sua quase totalidade:

 

Nos regimes totalitários, há massacres e guerras. Nas democracias livres, há intervenções humanitárias.

Nos regimes totalitários, usa-se a tortura. Nas democracias livres, usam-se técnicas aprimoradas de interrogatório.

Nos regimes totalitários, financiam-se grupos terroristas para criarem instabilidade. Nas democracias livres, financiam-se grupos terroristas para criarem estabilidade.

Nos regimes totalitários, ditadores execráveis bombardeiam o seu próprio povo. Nas democracias livres, fazemos isso por eles.

Nos regimes totalitários, um único partido defende e aplica o status quo. Nas democracias livres, dois partidos defendem e fazem cumprir o status quo.

Nos regimes totalitários, o governo controla a imprensa e determina quais as informações a que o público pode ter acesso. Nas democracias livres, são os bilionários que fazem isso.

[…] Nos regimes totalitários, você sabe exatamente quem o governa. Nas democracias livres, os verdadeiros governantes escondem-se atrás de falsos governos fantoches.

Nos regimes totalitários, todas as eleições são fraudulentas e os adversários são escolhidos a dedo pelos governantes que mandam. Nas democracias livres, os governantes vigarizam as eleições e escolhem os candidatos a dedo, e o mesmo também fazem noutros países.

Nos regimes totalitários, prendem-se jornalistas por revelarem verdades inconvenientes sobre os poderosos. Nas democracias livres, prendem-se jornalistas por revelarem verdades inconvenientes sobre os poderosos, e todos os outros jornalistas aparecem nas redes sociais a dizer que eles mereceram.

Nos regimes totalitários, não permitem que os dissidentes políticos falem. Nas democracias livres, simplesmente recusam aos dissidentes quaisquer plataformas influentes e usam algoritmos para impedir que ideias revolucionárias sejam ouvidas por um número significativo de pessoas.

Nos regimes totalitários, cercam o planeta com bases militares, travam guerras sem fim que matam milhões e trabalham para destruir qualquer nação que desobedeça ao seu governo. Opa! Desculpem-me, estava a referir-me às democracias livres.

Nos regimes totalitários, o discurso político é fortemente regulado pelo governo. Nas democracias livres, o discurso político é fortemente regulamentado pelo governo através do Silicon Valley.

Nos regimes totalitários, os cidadãos são mantidos na pobreza, enquanto os governantes vivem luxuosamente com mais do que poderiam gastar. Nas democracias livres, os cidadãos são mantidos na pobreza, enquanto os governantes vivem luxuosamente com mais do que poderiam gastar.

Nos regimes totalitários, a agência de espionagem do governo diz aos meios de comunicação social quais as histórias a veicular, que eles publicam sem questionar. Nas democracias livres, a agência de espionagem do governo diz: "Amigo, tenho um furo para você!" e os meios de comunicação social publicam sem questionar.

Nos regimes totalitários, grupos de bandidos armados patrulham as ruas para imporem obediência à autoridade. Nas democracias livres, grupos de bandidos armados patrulham as ruas para imporem obediência à autoridade e Hollywood faz filmes sobre como heroicos eles são.

Nos regimes totalitários, os alunos são ensinados a adorar sem pensar a imagem de um ditador malvado. Nas democracias livres, os alunos são ensinados a adorar a bandeira sem pensar.

Nos regimes totalitários, os alunos são ensinados a nunca questionarem a autoridade. Nas democracias livres, os alunos são ensinados a nunca questionarem os repórteres.

Nos regimes totalitários, cometem-se atos malvados que as democracias livres jamais poderiam fazer. Nas democracias livres, os regimes totalitários cometem essas más ações por eles.

Nos regimes totalitários, o povo é mantido brutalizado e intimidado para não se possa rebelar contra os seus governantes. Nas democracias livres, o povo é mantido submetido à propaganda e a uma lavagem de cérebro para que se não possa rebelar contra os seus governantes.

Nos regimes totalitários, os poderosos determinam o que acontece independentemente do desejo do povo. Nas democracias livres, os poderosos determinam o que o povo deseja que aconteça.

Nos regimes totalitários, todos são escravos dos poderosos. Nas democracias livres, todos são escravos “do Poder”.

Nos regimes totalitários, é-se forçado a obedecer. Nas democracias livres, é-se treinado para pensar que a sua obediência foi ideia sua.

Nos regimes totalitários, você não é livre e sabe disso. Nas democracias livres, você não é livre e não sabe disso.”

 

 

George Orwell (1903-1950), quando em 1949 escreveu o 1984, já tinha percebido quase tudo sobre o Estado que nos esperava. Eis um extrato que se encontra no capítulo III da Terceira Parte:

 

[…] Não nos interessa o bem dos outros: somente o poder. Nem riqueza, nem luxo, nem longevidade, nem felicidade: só o poder, o poder puro. Já vais perceber o que significa «poder puro». Nós somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos a fazer. Todas as outras, mesmo as mais parecidas com a nossa, provaram ser cobardes e hipócritas. Os nazis alemães e os comunistas russos aproximaram-se muito de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de admitir os seus próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, terem tomado o poder a contragosto e por um período de tempo limitado, e que logo ao virar da esquina havia um paraíso onde os seres humanos poderiam ser livres e iguais. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém toma o poder com o intuito de o deixar. O poder não é um meio, é um fim. Não se instaura uma ditadura para se salvaguardar uma revolução; faz-se uma revolução para se instaurar uma ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição; o da tortura é a tortura; o do poder, o poder. Começas agora a entender-me?”

 

 

Mais recentemente, no seu livro Days of Destruction, Days of Revolt, Chris Hedges, ministro da Igreja Presbiteriana e vencedor do Pulitzer de Reportagem, numa análise às causas do movimento ‘Occupy Wall Street’ de 17 de setembro de 2011, escreve no capítulo 5, “Days of Revolt, Liberty Square, New York City”, o seguinte:

 

No século dezassete, a especulação era crime. Os especuladores eram enforcados. Hoje, eles dirigem o estado e os mercados financeiros. Eles escrevem as leis. Eles disseminam as mentiras que poluem as nossas ondas comunicacionais. Eles sabem, muito melhor do que você, quão persuasivos se tornaram a corrupção e o roubo, e quão minado está o sistema contra si. As corporações conseguiram entronizar uma muito diminuta classe oligárquica e um quadro servil de políticos, juízes, e jornalistas que vivem na sua pequena e murada Versailles enquanto 3,6 milhões de americanos são desalojados das suas casas, número que se espera aumentar para dez milhões. Um milhão de pessoas por ano vai para a falência por não poderem pagar as suas despesas de saúde, e quarenta e cinco mil morrem por falta de assistência. Neste sistema, o desemprego real é de pelo menos 15,6%, e os cidadãos, incluindo estudantes, passam a vida endividados, trabalhando em empregos sem saída, isto quando têm emprego, num mundo sem esperança.

[…] As corporações têm sugado todos os programas de serviços sociais pagos pelos nossos impostos, da educação à Segurança Social, porque querem o dinheiro para elas. Deixem os doentes morrer. Deixem os pobres passarem fome. Deixem as famílias serem despejadas para a rua. Deixem os desempregados apodrecer. Deixem as crianças de locais desfavorecidos sem aprenderem nada e a viver na miséria e medo. Deixem os estudantes acabarem a escola sem emprego ou sem qualquer perspetiva de emprego. Deixem o sistema prisional, o maior no mundo industrializado, expandir-se para assim poder absorver todos os potenciais dissidentes. Deixem a tortura continuar. Deixem os professores, polícias, bombeiros, carteiros, e trabalhadores dos serviços sociais aumentarem a lista dos desempregados. Deixem as estradas, pontes, barragens, redes de eletricidade, vias férreas, metropolitanos, autocarros, escolas, e bibliotecas desmoronarem-se ou fecharem. Deixem o aumento das temperaturas do planeta, os furacões, as secas, as inundações, os tornados, as camadas polares derreterem, os sistemas de água envenenados, e a poluição degradar-se até que as espécies morram.

Mas quem na realidade se importa com isso? Se as ações da ExxonMobil ou da indústria de carvão ou da Goldman Sachs estiverem a subir, a vida é boa. Lucro. Lucro. Lucro.”

 

(328) A moral dos contos morais

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Dilemas morais sobre a permissibilidade, ou não, de se causar a morte a um pequeno número de pessoas para se poder salvar um outro maior número de pessoas.

 

O direito à vida é, não só absoluto como até mais importante que o direito à vida humana, porquanto, mesmo que desapareça a vida humana continuará a haver vida.

 

Vivemos num mundo de dilemas que se vão resolvendo sem se encontrar a solução, daí continuarem sempre presentes.

 

Não se deve pensar que a moralidade deva passar o teste da racionalidade, mas antes que a racionalidade deva passar o teste da moralidade, Philippa Foot.

 

 

 

 

Em 1971, a filósofa americana Judith Jarvis Thomson (1929-2020), publicou na Philosophy & Public Affairs, um artigo, “A Defense of Abortion (Uma Defesa do Aborto), em que vai questionar os direitos do feto e os da mãe através do que ficou conhecido como o dilema d’ “O Violinista”, e que nos diz para imaginarmos o seguinte:

 

“[…] Ao acordar de manhã na cama, verifica que se encontra costas com costas com outra pessoa, que lhe dizem ser um famoso violinista que está inconsciente. Descobriu-se que ele tinha uma doença fatal nos rins, e após a Sociedade dos Amantes de Música ter examinado todos os registros médicos disponíveis, descobriu que só você tinha o tipo de sangue certo para ajudar. Portanto, eles sequestraram-no e, durante a noite passada, o sistema circulatório do violinista foi ligado ao seu, para que os seus rins pudessem ser usados ​​para extrair os venenos do seu sangue e do dele. O diretor do hospital diz-lhe: ‘Olhe, lamentamos que a Sociedade dos Amantes de Música lhe tenha feito isso - nunca teríamos permitido se o soubéssemos. Mesmo assim, eles conseguiram, e o violinista agora está ligado a si. Desligá-lo seria matá-lo. Mas não se preocupe, é apenas por nove meses. Até lá, ele terá recuperado da doença e pode então ser desligado de si com segurança’.”

 

 

De certa forma, este artigo aparece como uma resposta ao que em 1967, a filósofa inglesa Philippa Foot (1920-2010) publicara na Oxford Review, “The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect” (O Problema do Aborto e a Doutrina do Duplo Efeito), onde pela primeira vez é utilizado um pequeno conto-problema que veio a ficar conhecido como o “Problema do Elétrico” (trolley problem), onde se aborda o dilema moral sobre a permissibilidade, ou não, de se causar a morte a um pequeno número de pessoas para se poder salvar um outro maior número de pessoas.

Philippa Foot vai colocar um juiz que estava confrontado com um julgamento que implicaria a vida ou a morte dos acusados, como condutor de um elétrico desgovernado, que:

 

“[…] só podia optar por seguir uma de duas estreitas linhas de elétrico que se lhe apresentavam no fim do percurso; numa das linhas estão cinco homens a trabalhar e na outra apenas um homem; se o elétrico fosse na sua direção, ele seria morto, e se fosse na direção dos outros cinco, seriam eles os mortos […] “.

 

Este problema do elétrico despertou, e desperta, enorme interesse entre os filósofos, que ainda hoje se debatem para encontrar uma solução consensual.

A própria Jarvis Thompson andou à volta dele ao longo de vários anos, nomeadamente nos seus artigos de 1976, o “Killing, Letting Die, and The Trolley Problem”(Matar, Deixar Morrer, e o Problema do Elétrico), e o de 1985, no The Yale Law Journal, The Trolley Problem”(O Problema do Elétrico).

 

Contudo, estes excertos de artigos não foram aqui trazidos para se discutir o problema do aborto, ou o problema do elétrico, mas sim como exemplos de artigos cuja importância vem da sua utilização como possibilidade para a aprendizagem moral poder ser feita através de casos imaginários.

Esta foi a inovação introduzida por Philippa Foot na chamada filosofia analítica, com os seus estudos sobre a natureza moral do julgamento e da racionalidade da ação moral, na sua tentativa de tornar a moral objetiva.

Muito embora estes “contos morais” não apresentem por si a solução do problema, uma vez que em qualquer dos cenários há sempre dois caminhos que poderemos seguir, o que eles fazem é apresentarem-nos razões. Melhor, apresentam-nos ferramentas, para resoluções mais ou menos justificáveis, nem sempre perfeitamente legitimas.

 

No estudo da moralidade, aqueles que se inclinam para que as boas decisões sejam aquelas que consigam o maior benefício para o maior número de pessoas, são considerados como consequencialistas.

Aqueles que se centram nos direitos e deveres, que pensam que determinadas decisões, como matar um homem para salvar outros, nunca são boas, mesmo que tal seja feito em nome de um bem maior, são considerados como deontologistas.

 

Sabendo-se que a vida só apareceu ao fim de milhões de anos de existência da Terra, que já sofreu vários reveses que poderiam ter redundado no seu desaparecimento, que na imensidão dos espaços siderais e na infinidade de planetas nele contidos há fortes possibilidades de só na Terra existir vida, então deve-se considerar a vida como um bem único, extremamente raro e escasso, pelo que deve ser preservada a todo o custo.

Qualquer atentado à vida é um atentado que vai no sentido da não existência, pelo que se torna quase impossível determinar qual a vida que será mais ou menos importante. Poder-se-á mesmo dizer que o direito à vida é, não só absoluto como até mais importante que o direito à vida humana, porquanto, mesmo que desapareça a vida humana continuará a haver vida.

 Se partirmos, portanto, do princípio da existência de uma ética universal, esta deveria ser a única posição ética e, por isso mesmo, radical.

 

 Contudo, a aplicação desta posição ética torna-se extremamente difícil, podendo levar a situações limite estranhas como a inibição de destruirmos bactérias infeciosas, vírus patogénicos e até mesmo a flora, todas elas formas de vida. Daí que as sociedades tenham tentado regulamentar os casos em que a morte de outro ser vivo se torne possível de aceitar, mesmo a morte de um ser humano.

 

As justificações e exceções para se acabar com a vida dos outros tem sido uma constante ao longo da história e que, juntamente com a proibição do incesto, são a base em que assenta o aparecimento da civilização tal como a entendemos.

 É hoje claro que se torna extremamente difícil argumentar sobre as razões que conduzem às decisões sobre as vidas que são consideradas dispensáveis e as que são consideradas mais importantes. Certamente as nossas serão as mais importantes. Por estarmos inseridos numa sociedade democrática, por sermos mais civilizados, por Deus estar do nosso lado. Convenhamos que é curto.

 

O que acontece é que vivemos num mundo de dilemas que se vão resolvendo sem se encontrar a solução, daí continuarem sempre presentes: o lançamento das bombas atómicas sobre o Japão (vale mais matar japoneses que perder americanos) e das atuais armas atómicas (caso uma ogiva atómica se dirija para Lisboa, e havendo a possibilidade de lhe alterar a rota e a fazer dirigir para o Porto, devemos fazê-lo?), aos carros autónomos (no caso de uma colisão fatal inevitável, deve o software do carro decidir por salvar o ocupante do carro ou outras potenciais vítimas fora do carro?), passando ao caso dos efeitos secundários das vacinas a utilizar (Problema Ético da Vacina Covid-19), etc.

 

A utilização da ficção para a reflexão ética, seja com experiências de pensamento ou com novelas, por mais falível e imperfeita que possa ser, deve ser vista como mais uma ferramenta intelectual à nossa disposição, num campo (o da filosofia ética) onde para além do senso comum sempre sujeito a enviesamento quer por prejulgamento, pelos poderes ou por muitos outros fatores, poucos outros instrumentos existem. O pensamento ético é difícil, e mesmo as nossas melhores ferramentas não são muito boas.   

 

Numa das suas últimas entrevistas, Philippa Foot, dizia que “a moralidade não pode ser subjetiva como se tratasse de atitudes, como a atitude estética, ou como as do ‘gosto’ ou ‘não gosto’, são subjetivas. A separação entre descrições e atitudes, factos de valores, que caraterizam a filosofia moral dos nossos dias é má filosofia”. Fica-nos a intenção, como já previra São Tomás de Aquino.

 

 

 

(327) Pascal vacinou-se

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Pascal argumentou que, se houvesse apenas uma pequena probabilidade de que Deus realmente existisse, faria todo o sentido comportar-se como se Ele existisse, porque as recompensas poderiam ser infinitas, ao passo que a falta de fé acarretava o risco de miséria eterna, Warren Buffet.

 

O silêncio destes espaços infinitos assusta-me, Pascal.

 

Quando se pensa apenas como acionista de uma grande seguradora, as mudanças climáticas não fazem parte da lista de preocupações, Warren Buffet.

 

 

 

A 27 de fevereiro de 2016, Warren Buffet, o principal acionista, presidente do conselho e diretor executivo da Berkshire Hathaway, enviou aos acionistas da sua empresa o relatório das atividades de 2015 (“To the Shareholders of Berkshire Hathaway, Inc.”). Eis o que disse sobre a ameaça das alterações climáticas:

 

Escrevo esta seção porque temos uma proposta de procuração relativa à alteração climática para ser apreciada na reunião anual deste ano. O patrocinador deseja que forneçamos um relatório sobre os perigos que essa alteração pode representar para nossa operação de seguros e que expliquemos como estamos a responder a essas ameaças.

Parece-me altamente provável que as mudanças climáticas representem um grande problema para o planeta. Digo “altamente provável” em vez de “certo” porque não possuo qualificações científicas e porque me recordo bem das terríveis previsões da maioria dos “especialistas” sobre o Y2K (o bug do milénio). Seria, no entanto, tolice para mim ou para qualquer pessoa, exigir 100% de certeza sobre os enormes danos previstos para o mundo no futuro se esse resultado parecesse possível e se a ação imediata tivesse uma pequena hipótese de obviar o perigo.

Esta questão tem uma semelhança com a Aposta de Pascal sobre a existência de Deus. Pascal, recordemos, argumentou que, se houvesse apenas uma pequena probabilidade de que Deus realmente existisse, faria todo o sentido comportar-se como se Ele existisse, porque as recompensas poderiam ser infinitas, ao passo que a falta de fé acarretava o risco de miséria eterna. Da mesma forma, se houver apenas 1% de hipótese de o planeta estar a encaminhar-se para um desastre realmente grande e se o atrasar da intervenção significasse o ultrapassar um ponto sem retorno, o não se fazer nada agora seria tolo. Chamemos a isso, Lei de Noé: se a arca for essencial para a sobrevivência, comece-se já hoje a construí-la, mesmo que nem apareçam nuvens no céu.”

 

 

Blaise Pascal (1623-1662), que fora proibido pelo pai de aprender matemática, aos 12 anos já descobrira sozinho as 32 proposições de Euclides, tendo aos 16 anos inventado a máquina de calcular, iniciando a partir daí a publicação de obras puramente matemáticas e físicas, das quais se destacam o Ensaio das Cónicas (1640) que contém o que ainda hoje é conhecido como o Teorema de Pascal, Prefácio do Tratado do Vácuo (1647), Tratado sobre a Geração das Secções Cónicas (1648), Descrição da grande experiência do Equilíbrio dos licores (1648), Comunicação à Academia de Matemática de Paris (1653).

Essencialmente, Pascal era um matemático, físico e inventor, iniciador do desenvolvimento da teoria da probabilidade e do método de análise infinitesimal que acabaria por conduzir ao cálculo infinitesimal de Leibniz. Concomitantemente, o problema da roleta e da tomada de decisões, faziam também parte das suas preocupações e da correspondência que mantinha com os considerados grandes sábios da época.

Em 1656 entra no campo literário e religioso com uma série de Cartas Provinciais, sabendo-se que nesse mesmo ano começou a trabalhar na Apologia da Religião Cristã, obra que apesar de inacabada originou os Pensamentos.

Convém notar dois factos: o primeiro é a sua conversão a 23 de novembro de 1654, data em que Pascal tem uma Epifania, passando a valorizar uma atitude de participação em Cristo como uma união mística.

O segundo, é que os Pensamentos, a sua obra filosófica mais importante, apesar de ter começado a ser escrita lateralmente com a Apologia da Religião Cristã, à sua morte (1662) não passava de uma coleção de papéis diversos em que Pascal esboçara, muitas vezes sem nexo aparente como se de notas pessoais se tratassem, outras vezes em composição perfeitamente acabadas, fragmentos esses que foram depois cortados e colados num álbum de 253 fólios, que só foram impressos postumamente em 1670.

 

É na segunda parte dos Pensamentos, “O Homem Com Deus, secção II, 3, Infinito-nada: A aposta”, que vai aparecer o tão conhecido tema da aposta:

 

 

“[…] «Deus é ou não é». Mas para que lado cairemos? A razão não pode determinar nada: há um caos infinito que nos separa. Joga-se um jogo, na extremidade desta distância infinita, em que acontecerá cara ou coroa. Qua apostais? Pela razão não podereis fazer nem uma coisa nem outra; pela razão não podeis desfazer nenhuma das duas. Não acuseis, pois, de falsidade os que escolheram; pois vós não sabeis nada.

[…] Visto que é preciso escolher, vejamos o que vos interessa menos. Vós tendes duas coisas para perder: o verdadeiro e o bem, e duas coisas a comprometer: a vossa razão e a vossa vontade, o vosso conhecimento e a vossa e a vossa santidade; e a vossa natureza tem de fugir a duas coisas: o erro e a miséria. A vossa razão não fica mais ferida escolhendo um ou outro, visto que é preciso escolher necessariamente. Eis um ponto concluído. Mas a vossa bem-aventurança? Pesemos o ganho e a perda, escolhendo coroa que é Deus. Estimemos estes dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada. Apostai, pois, que ele existe sem hesitar.”

 

 

Esquematicamente, eis como de um modo puramente racional equaciona as possibilidades de salvação do ser humano:

Se tudo for vão e eu apostar no sentido positivo, nada perco (porque já estava perdido à partida e a aposta nem sequer é uma forma de ilusão, é antes uma forma de lucidez).

Se houver sentido positivo e apostar nesse mesmo sentido, ganho tudo. (assim, nunca perco).

Se apostar no não-sentido, e houver sentido positivo, perco a aposta (mas ganho, de uma outra forma muito mais compensadora).

Se apostar no não-sentido, e não houver sentido, tecnicamente acertei (mas perco, rebaixei-me, perdi em dignidade).

 

Simplificadamente, para os que visualizem melhor com uma matriz:

                                                Deus existe                 Deus não existe                               

Apostar por Deus                 Ganha-se tudo            Tudo na mesma

Apostar contra Deus             Miséria                          Tudo na mesma

 

Muitas dezenas de artigos e obras foram escritas focando apenas esta parte da obra, corrigindo-a, expandindo-a, matematizando-a com quantificações diferentes entre zero e infinito, transformando-a em teorias do jogo e da decisão.

 

Independentemente da validade de algumas dessas objeções, é preciso não esquecer que os propósitos de Pascal eram o de provar para além de qualquer dúvida o poder do cristianismo. Conforme começa logo por explicar na sua tese primeira sobre a Ordem e o Plano da Obra:

 

Os homens menosprezam a religião; detestam-na e temem que seja verdadeira. Para evitar isto é preciso começar por mostrar que a religião não é contrária à razão; que é venerável; dá-la ao respeito e depois torna-la amável para fazer desejar aos bons que seja verdadeira; e, por fim, mostrar que é verdadeira.

Venerável, porque conheceu bem o homem; amável, porque promete o verdadeiro bem.”

 

É também o homem que estabelece a diferença entre o espírito geométrico (esprit de géometrie’) que apenas nos dá os factos, ou seja, o saber já sabido e de algum modo já morto) e o espírito de finura (‘esprit de finesse’) que faz avançar o conhecimento, mostrando que todo o avanço cognitivo é intuitivo), e que sobre o infinito e o finito nos diz:

 

Que é o homem na natureza? Um nada em vista do infinito, um todo em vista do nada, um meio entre nada e tudo.”

[…] “Nós vogamos num vasto meio-termo, sempre incertos e flutuantes, empurrados de um lado para o outro. Qualquer termo onde pensássemos aderir e afirmar-nos vacila e abandona-nos; e se o seguimos escapa-nos, escorrega-nos das mãos e foge numa fuga eterna. Nada se detém para nós […] nós ardemos de desejo de encontrar uma posição firme e uma última base constante para nela edificar uma torre que se eleve até ao infinito, mas todo o nosso alicerce range, e a terra abre-se até aos abismos.”

 

E sobre a imaginação:

 

A justiça e verdade são duas pontas tão subtis, que os nossos instrumentos são demasiado embotados para lhes tocarem exatamente. Se o conseguem, esborracham a ponta e apoiam-se à volta, mais sobre o falso que sobre o verdadeiro”.

 

Sobre a vaidade e presunção:

 

Somos tão presunçosos que queríamos ser conhecidos em toda a terra, e até por aqueles que vierem quando á não existirmos, e somos tão vãos que a estima de cinco ou seis pessoas que nos rodeiam nos diverte e nos contenta.”

 

Sobre as contrariedades:

 

O homem é naturalmente crédulo, incrédulo, tímido, temerário […] O presente nunca é o nosso fim: o passado e o presente são os nossos meios; só o futuro é nosso fim. Assim nunca vivemos, mas esperamos viver; e dispondo-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.”

 

E a famosa consideração sobre o coração, com vista a concluir que “é o coração que sente Deus, e não a razão”:

 

O coração tem as suas razões, que a razão não conhece; sabe-se isto por mil coisas […] será pela razão que vos amais a vós próprios?”

 

E ainda aquela espantosa constatação:

 

O silêncio destes espaços infinitos assusta-me”.

 

Mas continuemos a acompanhar Warren Buffet na sua missiva aos acionistas da Berkshire:

 

“É compreensível que o patrocinador da proposta acredite que a Berkshire, porque somos uma grande seguradora, cobrindo todos tipos de riscos, se veja especialmente ameaçada pelas mudanças climáticas. O patrocinador pode temer que os prejuízos nas propriedades disparem devido às mudanças climáticas. E tais preocupações poderiam, de facto, serem justificadas se subscrevêssemos apólices de dez ou vinte anos a preços fixos. Mas as apólices de seguro são normalmente emitidas por um ano e reajustadas anualmente para refletirem as alterações nas exposições. Maiores possibilidades de percas traduzem-se imediatamente em maiores prémios.

Até agora, as alterações climáticas não produziram furacões mais frequentes nem mais caros, nem outros acontecimentos relacionados com o clima e cobertos por seguros. Como consequência, nos EUA as taxas das super-catástrofes têm caído constantemente nos últimos anos, razão pela qual desistimos desse negócio. Se as super-catástrofes se tornarem mais caras e frequentes, o provável - embora longe de ser certo - efeito sobre o negócio de seguros da Berkshire seria torná-lo maior e mais lucrativo. Como cidadão, pode-se compreender que as mudanças climáticas o deixem acordado durante as noites. Como proprietário de uma casa numa área assinalada, pode-se querer mudar. Mas quando se pensa apenas como acionista de uma grande seguradora, as mudanças climáticas não deveriam fazer parte da sua lista de preocupações.”

 

 

 

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