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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(326) Sobre farinhas e sacos

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Quem o diz é quem o é, V. Putin.

 

Há crimes que são cometidos no mundo, que o Senhor não previra e cujo castigo não fora ainda equacionado, pelo que ficam adiados para o Juízo Final.

 

Avozinha diz-me lá, os ‘Dez Mandamentos’ voltam a entrar em vigor depois da guerra? Olaf Gulbransson, 1918.

 

As experiências em seres humanos são proibidas … a não ser que sejam “só para fins terapêuticos”, Código de Nuremberga.

 

 

 

 

 

Num dos recentes arrufos entre os presidentes dos EUA e da Rússia, em que o americano chamou o russo de assassino, este, ao ser questionado sobre o assunto, respondeu: “Quem o diz é quem o é”.

Voltei de repente aos tempos de miúdo, em que essa era uma das frases mais usadas para nos defendermos da agressão de outros, e que surtia efeito por estar dentro da lógica e corresponder normalmente à verdade. Brincadeiras de putos com armas atómicas. Por menos foi invadido o Iraque.

Sobre os acontecimentos internacionais que nos são dados a conhecer, convém sempre manter uma certa distanciação e memória. Pesos, medidas, gatos e lebres. Talvez seja interessante reler o blog publicado a 8 de setembro de 2015, intitulado “Porque Caim não foi punido?” que aqui atualizo:

 

 

É no Génesis que aparece contada a história de Caim e Abel. Para os que já não se lembrem e para os que andam distraídos, Adão e Eva tiveram, entre outros, dois filhos a quem chamaram Caim, o primogénito, e Abel ao que se lhe seguiu.

Caim cultivava a terra e Abel pastoreava o gado. Um dia, resolveram ambos fazerem um sacrifício ao Senhor. Caim ofereceu produtos da terra e Abel ofereceu recém-nascidos do seu rebanho. Para espanto e indignação de Caim, o Senhor aceitou apenas as ofertas de Abel, desdenhando as de Caim.

E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante […] E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou. E disse o Senhor a Caim: ‘Onde está o teu irmão Abel?’” Caim responde com um: “Não sei. Acaso sou guardião do meu irmão Abel?”


Neste episódio há várias coisas interessantes: a dissimulação de Caim (‘descaiu-lhe o semblante’) significando que não pretendia confessar o crime; a hipocrisia do Senhor que, sabendo perfeitamente o que tinha acontecido, não só não interviera como até tinha dado motivo a que o ato fosse praticado. Mais inquietante é a resposta do Senhor, que não só não pune o homicida, como o põe sobre sua proteção pessoal, ao dizer:

A vingança pertence-me”.

É assim lícito concluirmos que há crimes que são cometidos no mundo, que o Senhor não previra e cujo castigo não fora ainda equacionado. Por isso, a resolução do crime de Caim foi adiada para o Juízo Final.

 

Pelas cinco da tarde do dia 22 de abril de 1915 em Ypres (Bélgica) o exército alemão libertou 160 toneladas de cloro pressurizado ao longo de seis quilómetros da frente de batalha que foram levados pelo vento em direção às trincheiras francesas e canadianas. Nesse dia começara a moderna guerra química. O seu inventor foi o químico Fritz Haber, que três anos depois recebeu o Nobel de Química.

O comandante em chefe da força expedicionária aliada, Sir John French, instou Londres para que lhe fossem fornecidos idêntico armamento, o que só foi possível de ser feito em setembro. A sua utilização foi desastrosa, porque, devido a uma alteração do vento, foram envenenados centenas de soldados aliados.


A partir dessa altura, foram criados, em quase todos os países, vários centros de pesquisas com vista à obtenção de substâncias cada vez mais letais, fossem elas químicas, bacteriológicas ou farmacológicas, por forma a contribuírem para a vitória desejada.

O historiador Ulf Schmidt, diretor do Centro de História da medicina da Universidade de Kent, conta-nos a parte relativa às experiências feitas nas instalações ultra-secretas de Porton Down, no seu livro Secret Science: A Century of Poison Warfare and Human Experiments, da Oxford University Press, onde sobressaem alguns aspetos dignos de nota, como o da colaboração estreita que se verificava entre cientistas e militares, a sua ética e os seus métodos experimentais.

Porton Down, com uma área de 2.500 hectares, continha vários laboratórios onde trabalhavam a elite dos fisiologistas, patologistas, meteorologistas, e muitos outros vindos das melhores universidades britânicas como Oxford, Cambridge e o University College of London. Autodenominavam-se como sendo “cognoscente”, a casta privilegiada que conhecia os segredos da guerra química.

Inicialmente ensaiavam as substâncias em ratos, gatos, cães, cavalos e macacos. Faziam de tudo, desde gaseá-los a deitarem pós mortais ou concentrados de pimenta de caiena diretamente nos focinhos, na busca de novos agentes químicos.

Em 1917, perante um ataque alemão em que foi utilizado gás mostarda, foi criado um novo laboratório destinado às experiências com seres humanos, por forma a mais rapidamente se obterem resultados fiáveis. Foi seu diretor o fisiólogo Joseph Barcroft.

As cobaias humanas escolhidas foram inicialmente soldados (nenhum oficial), que eram voluntários e a quem se pagavam mais uns xelins, nenhum sabendo realmente ao que se ia expor.

Até 1989, em Porton Down foram feitas experiências em mais de 20.000 pessoas com gás mostarda, fosgénio, sarin e outros agentes nervosos, antraz, Yersinia pestis (bactéria da peste), mescalina, ácido lisérgico e outras drogas.

Ao entrar na II Guerra Mundial, quaisquer das principais potências envolvidas, faziam experiências com seres humanos. Os alemães recorriam normalmente a prisioneiros judeus, russos e polacos. Também em Porton Down, devido à escassez de soldados disponíveis, se utilizaram os cidadãos das potências do Eixo que tinham sido feitos prisioneiros. Contudo, já antes, vinham fazendo experiências com seres humanos desde os anos 30, quando expuseram durante 10 anos, 500 soldados indianos em calções e camisa de algodão, em câmaras de gás mostarda, o que só foi descoberto em 2007 (as “experiências de Rawalpindi”).

Os avanços alemães foram notáveis neste campo, tendo criado o primeiro pesticida sintético, o tabún, que para além de ser letal era inodoro e incolor, e ainda o célebre zyklon b que usaram para assassinar milhões de pessoas. As armas químicas que tinham em armazém chegavam às 44.000 toneladas.

 Quantidades idênticas ou superiores deviam também ter os EUA: é significativo indicar que o Edgewood Arsenal do Chemical Corps do exército que dispunha em 1942 de um orçamento da ordem dos dois milhões de dólares empregando 1.000 trabalhadores, viu este orçamento durante o período entre as guerras ser aumentado para 1.000 milhões de dólares e 46.000 trabalhadores. Só o projeto para a construção da bomba atómica é que recebera mais recursos e pessoal.


Porque não foram utilizados na II Guerra?

Por receio de retaliação, por serem difíceis de utilizar, por serem imprevisíveis e por poderem atrasar o avanço das tropas caso o terreno ficasse contaminado.

Contudo, em 1942, Porton Down tinha já preparada a Operation Vegetarian, que consistia na disseminação de antrax e bolos envenenados a serem distribuídos pelo gado da Alemanha, o que provocaria milhões de mortes e fome para os que não morressem. Os testes foram feitos na ilha Gruinard, da Escócia, sobre 60 carneiros, acabando por infetar outros animais.

 

Também continuaram com as experiências em seres humanos, apesar do Código de Nuremberga proibir expressamente tais ensaios, “a não ser se tivessem fins terapêuticos”. Convincente. As tais boas intenções de que o inferno está cheio.

Durante as décadas seguintes de 50 e 60, a grande maioria dos voluntários estava convencida que iam participar em ensaios para se encontrar uma vacina contra a gripe. As mortes que se verificaram no local das experiências (o vírus da gripe era por vezes gás sarin) eram prontamente camufladas pelo Ministério da Guerra invocando diferentes e plausíveis causas das mortes.


Entre 1946 e 1976, foram conduzidas 750 experiências em campo aberto, a maior parte delas realizadas nas colónias, Nigéria, Bahamas ou Malásia. Cinco desses ensaios fizeram-se no mar, com antraz ou com a bactéria da peste bubónica.

Numa delas, os militares que libertaram a Yersinia pestis no Mar do Norte, perto da ilha Lewis, não deram pela presença no local de um barco pesqueiro, o Carella, com 18 pescadores. Em vez de os recolherem e trata-los com estreptomicina, deixaram-nos seguir. Resolveram aproveitar o acidente para verificar em os resultados.

Não é de espantar que a 26 de julho de 1963, os cientistas de Porton Down tenham decidido libertar no metro de Londres, 30 gramas de esporas do Bacillus globigii. Esta bactéria que podia provocar septicémia, espalhou-se por várias estações do metro num raio até 15 quilómetros.


Aos poucos a verdade foi sendo conhecida, e já neste milénio um tribunal do Reino Unido, face a uma ação interposta por o familiar de um dos ‘voluntários’, acabou por reconhecer que a sua morte tinha sido um homicídio provocado pela “aplicação de um agente nervoso numa experiência não terapêutica”.

Em 2008, as autoridades britânicas desculparam-se publicamente, reconhecendo os danos causados, acabando por compensar economicamente 359 dos quase 22.000 soldados que foram usados nessas experiências em Porton Down. Assunto resolvido.


É por estes e muitos outros casos que aguardo tranquilamente pelo dia do Juízo Final. Mas curioso. Veremos o que vai acontecer nesse dia. Aguardemos enquanto os processos vão sendo estudados e classificados. Assunto resolvido.

 

 

 

 

(325) Do bom comportamento

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

A nossa vontade só deseja as coisas que o entendimento lhe apresenta de algum modo como possíveis, Descartes.

 

Cada macaco no seu galho, almirante Pinheiro de Azevedo.

 

O homem é o ser que possui a ideia de Deus, para Descartes.

 

A estrutura de pensamento do homem necessita de certeza religiosa e de certeza científica.

 

 

 

 

 

Tem surgido ultimamente nos principais meios de comunicação social escrita um anúncio em português internacional a prometer a felicidade à distância de um clique:

     

An essential daily guide to achieving the good life”.

 

É na terceira parte do Discurso do Método (1637) que Descartes nos vai expor as três ou quatro máximas que ele próprio utilizava para “não deixar de viver o mais felizmente possível” e que constituem como que uma “moral provisória”. Para o caso, interessa particularmente a terceira máxima, onde nos confessa ser “necessário um longo exercício e uma meditação muitas vezes repetida para nos habituarmos a encarar assim todas as coisas”.

Cliquemos para ler o que ele escreveu:

 

A minha terceira máxima era procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a Fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível, em relação ás coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem-sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível. E isto, por si só, parecia-me ser suficiente para me impedir, futuramente, de desejar algo que não pudesse adquirir e, assim, tornar-me contente.

Pois como a nossa vontade naturalmente só deseja as coisas que o entendimento lhe apresenta de algum modo como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que estão fora de nós como igualmente afastados do nosso poder, não lastimaremos mais a falta dos que parecem dever-se ao nascimento, quando deles privados sem nossa culpa, do que lastimamos por não possuirmos os reinos da China ou do México; e que, como se costuma dizer, da necessidade virtude, não desejaremos mais ter saúde, quando doentes, ou ser livres, quando prisioneiros do que desejamos agora ter corpos de matéria tão pouco corruptível como os diamantes , ou asas para voar como as aves. Mas confesso que é necessário um longo exercício e uma meditação muitas vezes repetida para nos habituarmos a encarar assim todas as coisas; e creio que é sobretudo nisto que consistia o segredo desses filósofos, que outrora puderam-se subtrair-se ao domínio da fortuna e, apesar dos sofrimentos e da pobreza, disputar a felicidade aos deuses. Porque, ocupando-se constantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos próprios pensamentos, que só isso bastava para os impedir de terem alguma afeição por outras coisas; e dispunham deles tão absolutamente que, de certo modo, tinham razão em considerar-se mais ricos e poderosos, mais livres e felizes do que quaisquer outros homens que, não tendo essa filosofia, por muito favorecidos  que fossem pela natureza e pela fortuna, nunca dispõem assim  de tudo o que querem.”

 

 

Se só interpretássemos Descartes por este texto, claramente poderíamos dizer que nada acrescentava ao que os antigos filósofos estoicos já tinham dito sobre o assunto, nomeadamente Epicteto (“quando só se quer o que se pode adquirir, pode adquirir-se tudo o que se quer; e quando se quer que as coisas exteriores aconteçam como acontecem, acontecem sempre como queremos”), lembrando que o sábio é tão feliz como o próprio Deus, ou que só o sábio é rico, poderoso, livre e feliz, ou mesmo quando comparado às Consolações de Boécio.

Se só o interpretássemos segundo a moda contemporânea de ignorar totalmente tudo o que se passou para trás, uma vez que o que interessa é “resolver” o problema para a frente, e que para tal possa acontecer torna-se necessário que cada um de nós se restrinja à posição que desempenha na sociedade (única forma de previsibilidade, para as famosas contas darem certas),  como aliás há já quase cinquenta anos sugerira à população o então  primeiro-ministro de Portugal, almirante Pinheiro de Azevedo (“Cada macaco no seu galho”), em conformidade com a ideia de que a política não passava de diferenças de opinião sobre como governar e sobre os interesses particulares envolvidos, e que devia ser um exclusivo da classe dominante.

Pelo que para os governados, entre os governados, não havia política, nem era conveniente que houvesse. Deviam limitar-se a gostar ou não gostar dos superiores, sem questionar a sua posição, ou muito menos aspirar a ela. Era o “Quem pode manda, quem deve obedece” e o seu complementar “A minha política é o trabalho”.

 

 

Contudo, Descartes é também conhecido por pertencer aquele grupo de pensadores que coloca a razão como a verdadeira fonte do conhecimento, “inventor” do famoso “Penso; logo, existo”.

É na quarta parte do Discurso do Método que Descartes refere, pela primeira vez, como chegou a essa sua conclusão:

 

“[…] Desde há muito notara eu que, no tocante aos costumes, é necessário às vezes seguir como se fossem indubitáveis opiniões que sabemos serem muito incertas […] Mas, porque agora desejava dedicar-me apenas à procura da verdade, pensei que era forçoso que eu fizesse exatamente o contrário e rejeitasse, como absolutamente falso, tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, depois disso, não ficaria alguma coisa na minha crença, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor que não existe coisa alguma que seja tal como eles a fazem imaginar. E porque há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo a propósito dos mais simples temas de geometria, e neles cometem paralogismos, ao considerar que eu estava sujeito a enganar-me, como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões de que anteriormente me servira nas demonstrações. Finalmente, considerando que todos os pensamentos que temos no estado de vigília nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que, neste caso, algum seja verdadeiro, resolvi supor que todas as coisas que até então tinham entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: penso; logo, existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.”

 

 

A utilização da “dúvida metódica” para conseguir chegar ao cogito e superar o ceticismo (os céticos fazem da dúvida um fim, enquanto que a dúvida cartesiana aparece como um caminho para se encontrar uma verdade indubitável, que ao ser encontrada provaria que o ceticismo integral era impossível), a hipótese do Génio Maligno (o génio astuto e mentiroso que lhe dava uma natureza tal que o levava a enganar-se nas coisas que lhe pareciam as mais evidentes, e que o fazia pensar que tudo era falso, pelo que fez com que ele, ele que o pensava, fosse qualquer coisa), a própria passagem do pensamento à existência (parte da constatação de uma função – eu penso – para uma afirmação ontológica – existo -, ou seja do fenómeno “pensamento” para o eu “como substância pensante”), a dupla natureza humana (uma “coisa que pensa”, a alma, e uma “coisa extensa”, o corpo, fazendo do homem a única substância extensa que está unida a uma substância pensante, permitindo uma interação entre as substâncias), a complexa união da alma e do corpo, parecem tornar, por vezes, simplista e artificioso,  o pensamento de Descartes.

 

É, no entanto, importante lembrar que Descartes, embora tivesse como finalidade a alteração completa do método de ensino e da Ciência da época (depois das grandes navegações, depois de Copérnico, Kepler e Galileu, etc.), era um crente em Deus, o que leva Alexandre Koyré a afirmar que “o pensamento de Descartes segue a ordem clássica: depois da lógica, a física. Depois da física, a metafísica, que responde então a uma dupla exigência do seu pensamento: necessidade de certeza religiosa, necessidade de certeza científica”.

Para ele, conhecer a natureza é aprender as leis que regem o universo mecânico; conhecer as leis é conhecer as relações causa-efeito; pelo conhecimento dos efeitos acedemos ao conhecimento das causas, e controladas estas controlamos os fenómenos.

Isto faz com que o universo exprima ordem, regularidade e harmonia, como manifestações de um princípio perfeito, infinito, criado pela divindade. Se as leis são criadas pela divindade, e que por isso são universais, então podemos conhecê-las com segurança. Pelo que é a metafísica que fundamenta as bases da ciência, o domínio do conhecimento. O grau supremo da validade encontra-se em Deus.

 

É claro para Descartes que necessita da metafísica para fundamentar as bases da ciência. Mas para determinar os fundamentos da metafísica, vai necessitar de um método: a dúvida metódica.

A dúvida metódica vai levar à descoberta do princípio do cogito, alicerce para o edifício do saber, mas que só por si, não é suficiente para fundar o conhecimento objetivo. Para provar a verdade do cogito, e para passar do conhecimento subjetivo para o conhecimento objetivo, precisa de garantias ontológicas: Deus.

Só após a razão ter descoberto Deus e provar a sua existência (daí as suas teses sobre a existência de Deus), é que se poderá ter a certeza da existência do corpo e do mundo físico.

 

 

É este esquema da relação interior do pensamento e da alma humana com o transcendente, em que o conhecimento como fonte de poder e a exaltação da superioridade do homem remete para Deus, que faz com que ainda hoje o cartesianismo conserve uma auréola de mistério.

Note-se ainda que pela afirmação do homem enquanto sujeito do conhecimento, o cartesianismo pode também ser visto como uma versão moderna do antropocentrismo. É para nós claro que a noção do conhecimento está estreitamente ligada à noção de domínio. Conhece-se para dominar.

“Este binómio conhecimento-dominação define um determinado tipo de relação do homem com a natureza. O homem assume a natureza como uma dimensão que deve estar ao seu serviço”.

Aliás, quando o homem procura conhecer as leis do universo, esse contacto estabelece-se segundo regras que ele próprio quer impor à natureza. É já uma relação de dominação. É pelo discurso elaborado da representação humana que o homem se liga à natureza, e esta comunicação é sempre feita através das funções do conhecimento. O mundo é o mundo modelado do conhecimento.

 

O homem fixa o saber que tem acerca desse mundo num quadro geral de representações de tudo o que existe, de modo que o discurso adquire a capacidade de representar a própria representação” (Michel Foucault, As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas).

 

Breve: por qualquer razão, a estrutura expressa do nosso pensamento tem sempre exigido o reconhecimento de verdades exteriores que irão servir como âncoras para validar as ações, comportamentos, pensamentos e realizações a efetuar, ou efetuadas. Dinheiro, ideologias, regimes políticos, capitalismo, fascismo, socialismo, comunismo, ciência, religião, etc., são apresentados como verdades absolutas para que as nossas vidas possam vir a serem reguladas, entendidas.

Descartes explicava esta estrutura do nosso pensamento pela ideia inata de Deus. Dizia ele que esta ideia pertence à própria natureza do homem e foi aí colocada por Deus: “o homem é o ser que possui a ideia de Deus”.

A nossa é, portanto, uma sociedade de substitutos.

 

 

 

 

(324) Grau zero da arte

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

“Eu sou”, a escultura invisível que Salvatore Garau justifica dizendo que o vazio não é mais que um espaço cheio de energia.

 

“Estes são os meus princípios. E se não gostarem deles … tenho outros”, Groucho Marx.

 

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido, afastou-se numa representação, Guy Debord.

 

Separada das coisas, a linguagem nada comunica. Nada há para comunicar salvo a comunicação.

 

O “like” é tido como o símbolo e também como o analgésico do presente: nada deve doer, a vida tem de poder mostrar-se no Instagram, ou seja, carecer de arestas, conflitos e contradições que possam ser dolorosas, Byung-Hul Chan.

 

 

 

 

O vazio não é mais que um espaço cheio de energia, mesmo se inclusivamente o esvaziarmos e nada restar, segundo o princípio de incerteza de Heinsberg de que o nada tem um peso. Tem, portanto, uma energia que se condensa e se transforma em partículas, quer dizer, em nós”, foi assim que o artista Salvatore Garau justificou a sua escultura invisível, “Io sono” (‘Eu sou’), que vendeu neste final de maio de 2020 por 15.000 euros.

Ainda segundo ele, “quando decido exibir uma escultura imaterial num espaço determinado, esse lugar concentrará uma certa quantidade e densidade de pensamentos num ponto preciso, criando uma escultura que a partir do meu título tomará formas variadas. Depois de tudo, não damos nós forma a um Deus que nunca vimos?

 

Não foi a primeira vez que Garau expôs obras imateriais. Em fevereiro colocou na Piazza della Scala, em Milão, uma peça intitulada “Buda em contemplação” ("escultura que não se vê, mas existe. Não é uma provocação, é uma obra que quer estimular reflexões íntimas, uma obra minimalista, ′'franciscana', dedicada a todos aqueles que se sentem cada vez mais ausentes do consórcio humano nos últimos meses"), que obrigou à marcação no chão de um quadrado pintado para que as pessoas não esbarrassem com a estátua que não se via.

E não será a última vez, porque, diz ele, tem já projetadas mais sete: “A escultura imaterial “Afrodite chora” será exibida no coração de Nova Iorque, frente ao Federal Hall (onde G. Washington foi eleito primeiro presidente dos Estados Unidos) e a uns passos da Bolsa. Será a terceira das sete que colocarei noutras tantas cidades do mundo. Sete porque é um número espiritual por excelência e tem um valor especial em todas as grandes religiões, judia, cristã, muçulmana e budista. A espiritualidade sempre me fascinou, ainda que na arte contemporânea seja um tema que não parece despertar grande atração, mas para mim, agora, parece-me revolucionário”.

 

 

Em 1967, Guy Debord, iniciava a sua obra A sociedade do espetáculo, da seguinte forma:

 

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido, afastou-se numa representação.

 Passava depois a explicar o que constituía a tese central segundo a qual, na fase extrema do capitalismo, a mercantilização alcançaria o seu ponto mais alto, o que faria desaparecer não só todo o valor de uso do dinheiro, como transformaria a sua própria natureza.

 O dinheiro deixaria, portanto, de ser simplesmente “o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias”, ainda dotadas de algum valor de uso, transformando-se na categoria de espetáculo: “o espetáculo é o dinheiro que se olha somente, pois nele é já a totalidade do uso que se trocou com a totalidade da representação abstrata”.

Com esta análise, Debord pretendia dizer que o dinheiro deixava já de ter qualquer relação com uma quantidade concreta de metal, porquanto se tinha transformado numa mercadoria absoluta em que ele próprio passava a ser mercadoria, profecia do que viria na realidade a acontecer 4 anos depois quando Nixon acabou com o padrão-ouro.

 

Mais importante vai ser a equiparação que sugere que se estabelece entre o dinheiro como pura mercadoria e a linguagem na qual também se tivesse quebrado o nexo com o mundo.

 Tal como ao longo de séculos, o que permitia ao dinheiro desempenhar a sua função de equivalente universal do valor de todas as mercadorias era a sua relação com o ouro, também o que assegura a capacidade comunicativa da linguagem é a intenção de significar, ou seja, a sua referência efetiva à coisa. Se este nexo desaparecer, a linguagem nada diz.

O meio que torna possível o intercambio, não pode ser ele mesmo o que se intercambia: o dinheiro que mede as mercadorias, não pode ele próprio converter-se numa mercadoria. A linguagem que permite que as coisas se tornem comunicáveis, não pode ela própria converter-se numa coisa, objeto de apropriação e de intercambio. Separada das coisas, a linguagem nada comunica. Nada há para comunicar salvo a comunicação.

É o que acontece à linguagem humana quando já nada tenha para comunicar, apresentando-se como “comunicação do incomunicável” (tese 192):

 

O consumo espetacular que conserva a antiga cultura congelada, compreendendo nela a repetição recuperada das suas manifestações negativas, torna-se abertamente no seu setor cultural o que ele implicitamente é na sua totalidade: a comunicação do incomunicável. A destruição extrema da linguagem pode encontrar-se aí insipidamente reconhecida como um valor positivo oficial, pois trata-se de apregoar uma reconciliação com o estado dominante das coisas, no qual toda a comunicação é alegremente proclamada ausente. A verdade crítica desta destruição enquanto vida real da poesia e da arte modernas está evidentemente escondida, porque o espetáculo, que tem a função de fazer esquecer a história na cultura, aplica na pseudo-novidade dos seus meios modernistas a própria estratégia que o constitui em profundidade. Assim pode dar-se por nova uma escola de neo-literatura, que simplesmente admite contemplar o escrito para si próprio. Aliás, ao lado da simples proclamação da beleza suficiente da dissolução do comunicável, a tendência mais moderna da cultura espetacular – e a mais ligada à prática repressiva da organização geral da sociedade – procura recompor, através de «trabalho de conjunto», um meio neo-artístico complexo a partir dos elementos decompostos; nomeadamente nas procuras de integração dos detritos artísticos ou de híbridos estético-técnicos no urbanismo. Isto é a tradução, no plano da pseudocultura espetacular, deste projeto geral do capitalismo desenvolvido que visa ocupar-se do trabalhador parcelar como «personalidade bem integrada no grupo», tendência descrita pelos recentes sociólogos americanos (Riesman, Whyte, etc.). É em toda a parte o mesmo projeto de uma reestruturação sem comunidade.

 

 

 

Relembre-se ainda a citação inicial de Debord:

 

E sem dúvida o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser … O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado”, Fuerbach, prefácio à 2ª edição de A Essência do Cristianismo.

 

 

Passados cinquenta anos, parte do que Debord nos intentou comunicar torna-se agora mais percetível pela forma como a sociedade se desenvolveu, como bem capta Byung-Chul Han quando começa por caraterizar o que ele chama de cultura da complacência da sociedade do “like” (“eu gosto”).

Vítima de um delírio de complacência, em que tudo se aplaina e lustra por forma a ficar agradável, o “like” é tido como o símbolo e também como o analgésico do presente: nada deve doer, a vida tem de poder mostrar-se no Instagram, ou seja, carecer de arestas, conflitos e contradições que possam ser dolorosas.

Toda esta positividade acumulada, todo este bem-estar formado por escórias de cultura, vai formando uma cultura da complacência que acaba transformada em cultura.

 

A cultura da complacência explica-se principalmente pela comercialização e mercantilização da cultura. Os produtos culturais estão cada vez mais submetidos à pressão do consumo, tendo que assumir uma forma que os torne consumíveis, ou seja, agradáveis.

Esta conversão da cultura em economia vem acompanhada da conversão da economia em cultura. Assim, os bens de consumo trazem também uma mais-valia cultural, prometendo vivências culturais e estéticas, em que o desenho passa a ser mais importante que o valor de uso.

A esfera do consumo invade a esfera cultural. Os bens de consumo apresentam-se como obras de arte. Desta forma misturam-se as esferas da arte e as do consumo, o que faz com que a arte se sirva também da estética do consumo. Torna-se agradável. Torna-se indistinta a separação entre cultura e comércio, entre arte e consumo, entre arte e propaganda. Os próprios artistas veem-se forçados a registarem-se como marcas. Ajustam-se ao mercado e tornam-se complacentes para serem agradáveis. Para fazerem dinheiro.

 

O “Nu Deitado”, de Modigliani, foi arrematado por 170 milhões de dólares, o “Rabbit”, de Jeff Koons, por 91 milhões de dólares, o “Orange, Red, Yellow”, de Mark Rothko, por 86,9 milhões de dólares, e até mesmo a gigantesca escultura de uma aranha a que carinhosamente Louise Bourgeois chamou Maman”, bateu um novo recorde ao alcançar 32 milhões de dólares. Até as mais do que ameaçadoras aranhas gigantes resultam tremendamente decorativas.

 

Salvatore Garau deveria ter pedido muito mais pela sua escultura. Mas percebe-se: a aranha era feita de aço, cobre e mármore, ao passo que a “Io sono” era de partículas quânticas de energia e mesmo assim dependentes da oportunidade e forma de ver de cada um. Bastante mais leve.

 

O alcance e validade da obra de Debord percebe-se mais claramente com dois exemplos práticos atuais:

Caso Assange – deixou de ser sobre os crimes de guerra praticados por militares, passando a incidir sobre o próprio Assange.

Caso Donziger - deixou de ser sobre os equatorianos vítimas das grandes companhias petrolíferas, passando a incidir sobre o próprio Donziger, o advogado de defesa.

 

 

 

 

 

 

(323) A sociedade da pandemia

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

A peste marcou para a cidade o começo da corrupção […] Já ninguém estava disposto a perseverar no que antes considerava ser o bem, porque pensava que talvez pudesse morrer antes de o alcançar, Tucídides, História da guerra do Peloponeso.

 

A limitação da liberdade imposta pelos governos é aceite em nome de um desejo de segurança que foi sendo induzido pelos mesmos governos que agora intervêm para o satisfazer, Giorgio Agamben.

 

A política acomoda-se numa zona paliativa e perde toda a sua vitalidade. A ‘falta de alternativa’ é um analgésico político. O ‘centro’ difuso é um paliativo, Byung-Chul Han.

 

A pandemia está claramente a exacerbar e a acelerar as tendências geopolíticas que já eram aparentes antes do início da crise, Klaus Schwab.

 

 

1

 

Eis o que nos diz Giorgio Agamben sobre o início da pandemia, num recente artigo, “Vocábulos infames”:

 

“No que diz respeito à pandemia, investigações confiáveis mostram que ela não chegou de forma inesperada. Como documenta de forma eficaz o livro de Patrick Zylberman Tempétes microbienes (Paris, Gallimard, 2013), a Organização Mundial de Saúde já em 2005, a quando da gripe das aves, tinha sugerido um cenário como o presente, propondo-o aos governos como um modo para se assegurarem do apoio incondicional dos cidadãos. Bill Gates, que é o principal sustentáculo financeiro dessa organização, em muitas ocasiões tornou públicas as suas ideias sobre os riscos de uma pandemia, que, segundo as suas previsões, provocaria milhões de mortos e contra a qual era necessário prepararmo-nos. Deste modo, em 2019 o Resource Center da Johns Hopkins University dos Estados Unidos, numa investigação financiada pela Bill and Melinda Gates Foundation, organizou uma simulação de uma pandemia de coronavírus, chamada “Event 201. A Global Pandemic Exercice”, que reunia especialistas e epidemiologistas com o objetivo de preparem uma resposta coordenada para o caso de aparecer um novo vírus.”

 

E num artigo publicado no IL Manifesto, a 26 de fevereiro de 2020, com o título, “A invenção de uma epidemia”:

 

“[…] o estado de insegurança e medo que evidentemente se expandiu nos últimos anos nas consciências dos indivíduos e que se traduz numa verdadeira necessidade de situações de pânico coletivo, a que a epidemia volta a oferecer o pretexto ideal. É assim que, num perverso círculo vicioso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceite em nome de um desejo de segurança que foi sendo induzido pelos mesmos governos que agora intervêm para o satisfazer.”

 

Numa entrevista ao Le Monde, 28 de março de 2020, acrescenta:

 

“[…] A falsa lógica é sempre a mesma: assim como frente ao terrorismo se afirmava que a liberdade devia ser suprimida para a defender, também agora nos dizem que é necessário suspender a vida com o fim de a proteger.

[…] O medo faz com que apareçam muitas coisas que se fingiam não ver. A primeira é que a nossa sociedade já não acredita em mais nada que não seja a vida desnuda […] os italianos demonstraram que estão dispostos a sacrificar praticamente tudo, as suas condições normais de vida, as suas relações sociais, o trabalho e inclusivamente as amizades, os afetos e as convicções políticas e religiosas ante o perigo de contagiarem-se.

 

Noutro artigo de 6 de abril de 2020, “Distanciamento social”, escreve:

 

“Dado que a história nos ensina que todo o fenómeno social tem ou pode ter implicações políticas, é oportuno prestar atenção a um novo conceito que entrou hoje no léxico político do Ocidente: ‘distanciamento social’. Se bem que provavelmente o termo apareça como um eufemismo devido à crueza do termo ‘confinamento’ até agora empregado, torna-se necessário perguntar-se qual seria o ordenamento político em que tal termo se poderia basear. E isto é tanto mais urgente uma vez que que não se trata de uma hipótese puramente teórica, pois como se começa a ser expresso por muitos setores, que a atual emergência sanitária pode ser tomada como o laboratório a partir do qual se preparam as novas estruturas políticas e sociais que esperam à humanidade.”

 

E numa entrevista para a Radio Pública Sueca a 19 de abril de 2020, explica:

 

“A história do século XX mostra ás claras, em particular no que diz respeito à subida ao poder do nazismo na Alemanha, que o estado de exceção constitui o mecanismo que permite a transformação das democracias em estados totalitários.”

 

Ainda do seu inédito, “O direito e a vida”:

 

Cada vez que se determina um valor, necessariamente também aparece um não-valor, e a outra face da proteção da saúde é a exclusão e a eliminação de tudo o que pode conduzir à enfermidade. Na realidade, o facto de o primeiro exemplo de uma legislação em que um Estado assume programaticamente o cuidado da saúde dos cidadãos tenha sido a eugenia nazi, deveria fazermos pensar. Após ter chegado ao poder, em julho e 1933, Hitler fez publicar imediatamente uma lei para proteger o povo alemão das doenças hereditárias, o que conduziu à criação de tribunais especiais para a saúde hereditária, que decidiam sobre a esterilização forçada de quatrocentas mil pessoas. É menos conhecido, mas muito antes do nazismo, os Estados Unidos programaram uma política eugénica, com forte financiamento do Carnegie Institute e da Rockfeller Foundation, para ser aplicada em especial na Califórnia, e que esse modelo foi o explicitamente seguido por Hitler.

[…] A medicina tem como tarefa curar as doenças segundo os princípios que desde há séculos segue e que o juramento hipocrático estabelece irrevogavelmente. Se, mediante um pacto necessariamente ambíguo e indeterminado com os governos, se coloca como legisladora, então isto não só conduzirá, com se viu em Itália com a pandemia, a resultados positivos no plano da saúde, mas que poderá conduzir a limitações inaceitáveis das liberdades individuais, respeito ás quais as razões médicas podem oferecer, como deveria ser hoje evidente para todos, o pretexto ideal para um controle sem precedentes da vida social.

 

 

2

 

Mais abrangente, numa tentativa de compreensão mais geral do que se passa na sociedade, Byung-Chul Han, publica em 2020, um pequeno ensaio, A sociedade paliativa, A dor hoje, em que estabelece uma diferenciação entre as sociedades pré-modernas que tinham uma relação próxima com a dor e a morte que enfrentavam com dignidade e resignação, e a sociedade atual onde não há lugar para o sofrimento e um medo à dor, que ao tentar evitar qualquer estado doloroso nos conduz para um estado de anestesia permanente.

Vive-se hoje numa sociedade que tem um medo generalizado à dor (algofobia) e ao sofrimento. A melhor forma para se evitar qualquer estado doloroso é viver em anestesia permanente. Esta algofobia rapidamente se estende ao campo social (cada vez mais se reduz a margem de conflitos e controvérsias que possam provocar confrontações dolorosas) e político (aumenta a pressão para acatar acordos e para estabelecer consensos).

“A política acomoda-se numa zona paliativa e perde toda a sua vitalidade. A ‘falta de alternativa’ é um analgésico político. O ‘centro’ difuso é um paliativo”.

Em vez de se discutir e lutar para se alcançar melhores argumentos, cede-se à pressão do sistema. Está-se a propagar e a assentar numa pós democracia, uma democracia paliativa.

A política paliativa é incapaz de ter visões ou de levar a cabo reformas profundas que possam ser dolorosas. Prefere socorrer-se de analgésicos, que surtem efeitos provisórios e que servem apenas para tapar as disfunções do sistema. A política paliativa não tem coragem para se enfrentar à dor. É assim que tudo acaba por ser uma mera continuação do mesmo.

 

Para Byung-Chul, esta algofobia atual deve-se a uma alteração de paradigma, e dá como exemplo a enorme crise de opioides nos Estados Unidos. Querer atribuía-la á ambição material da indústria farmacêutica, é ignorar toda aquela psicologia positiva que se instalou na sociedade com a promessa de um oásis de bem-estar permanente possível de criar à base de medicamentos.

Só uma ideologia de bem-estar permanente pode conduzir a que uns medicamentos que originalmente se empregavam na medicina paliativa passassem a serem administrados em grande escala a pessoas saudáveis e a crianças. O especialista americano sobre a dor, David B. Morris, escreveu:

 

“Os norte-americanos atuais formam provavelmente parte da primeira geração na Terra que considera a existência sem dor uma espécie de direito constitucional. As dores são um escândalo”.

 

A dor é interpretada como um sintoma de debilidade, é algo que se deve ocultar. Ela é incompatível com o rendimento: a passividade do sofrimento não tem lugar na sociedade ativa dominada pelas capacidades.  Isto faz com que a sociedade paliativa coincida com a sociedade do rendimento.

 

3

 

É no livro, Shaping the Future of the Fourth Industrial Revolution: A Guide to Building a Better World, (Moldando o futuro da Quarta Revolução Industrial: um guia para construir um mundo melhor), publicado em2018, que Klaus Schwab, fundador do World Economic Forum (WEF), vai abordar a necessidade de uma governança global para a restruturação do mundo.

A sua visão do mundo assenta nas convicções que # As empresas constituem a coluna vertebral da sociedade, dependendo delas o bem-estar da sociedade; # O progresso da sociedade está intimamente relacionado com as inovações tecnológicas; # A solução dos problemas das sociedades passa, obrigatoriamente, pela criação de uma governança global que não ponha entraves ao funcionamento das empresas privadas; e que # As alterações climáticas e a pandemia são fatores de aceleração para a mudança necessária da sociedade.

Para Schwab, todas as grandes e estupendas alterações tecnológicas que se preveem, só serão possíveis “através de um sistema efetivo de governança global” imposto em todas as partes do planeta. “A governança global é o nexus para a resolução de todos os outros problemas”.

“A ideia de reformar os modelos de governança para lidar com as novas tecnologias não é nova, mas a urgência de o fazer é muito maior à luz do poder das tecnologias emergentes de hoje ... o conceito de governança ágil busca combinar agilidade, fluidez, flexibilidade e adaptabilidade das próprias tecnologias e dos atores do setor privado que as adotam”.

 

E no seu novo livro de julho de 2020, Covid-19: The Great Reset, Schwab vai admitir a grande importância que a pandemia possa vir a ter para se alcançar essa governança. E, no entanto, começa por considerar que o Covid-19 “é uma das pandemias menos mortíferas dos últimos 2000 anos”, e que “as consequências do COVID-19 em termos de saúde e de mortalidade é pouco agressiva quando comparada com anteriores pandemias”.

Não constitui uma ameaça existencial, ou um choque que deixe marca na população mundial por décadas

A Segunda Guerra Mundial foi a guerra transformacional por excelência, desencadeando não apenas mudanças fundamentais na ordem global e na economia global, mas também envolvendo mudanças radicais nas atitudes e crenças sociais que acabaram por abrir caminho a políticas radicalmente novas e cláusulas de contratos sociais (como as mulheres poderem entrar no mercado de trabalho antes de se tornarem eleitores). Obviamente, existem diferenças fundamentais entre uma pandemia e uma guerra (que consideraremos com alguns detalhes nas páginas seguintes), mas a magnitude de seu poder transformador é comparável. Ambos têm potencial para ser uma crise transformadora de proporções até então inimagináveis”.

“[…] Alguns líderes e decisores, que já estavam na vanguarda da luta contra as alterações climáticas, podem querer aproveitar o choque infligido pela pandemia para implementar mudanças ambientais mais duradouras e mais amplas. Eles irão, certamente, fazer 'bom uso' da pandemia, não deixando que a crise vá para o lixo”.

“[…] A pandemia está claramente a exacerbar e a acelerar as tendências geopolíticas que já eram aparentes antes do início da crise”.

“[…] Durante os confinamentos, um relaxamento quase global das regulamentações que antes prejudicavam o progresso em domínios onde a tecnologia estava há anos disponível, repentinamente aconteceu porque não havia melhor solução ou outra escolha disponível. O que até recentemente era impensável de repente tornou-se possível ... Novos regulamentos que se manterão em vigor”.

“[…] (n)uma pandemia, a maioria dos cidadãos tenderá a concordar com a necessidade de impor medidas coercivas, resistirão a políticas restritivas no caso de riscos ambientais onde as evidências podem ser contestadas”.

 

 

 

Notas:

Sobre política eugénica nos EUA, ver blog de 13 de março de 2019, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/206-hitler-deu-muito-nas-vistas-54443.

Sobre as tentativas acima expostas de explicação e compreensão da sociedade, coincidentemente divergentes ou divergentemente coincidentes, deve-se ter sempre em atenção o blog de 20 de julho de 2015, “Os intelectuais são sempre de direita”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/os-intelectuais-sao-sempre-de-direita-3138.

 

 

 

(322) Sinais no presente

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

O racional que nos têm dado para o investimento no espaço é o da urgente e imprescindível procura de locais com capacidade para suportar vida, escamoteada como procura de vida, como única forma para garantir a sobrevivência da humanidade.

 

Mas que afinações têm os aparelhos que procuram vida nesses espaços, ou seja, como a procuram? Que “vida” procuram?

 

O DNA é uma enciclopédia com 4 biliões de anos com informação sobre o mundo em que vivemos e do mundo como era antes. O DNA pouca utilidade terá para mundos que sejam marcadamente diferentes do nosso, Betul Kaçar.

 

A vida pode-se espalhar de planeta para planeta ou de sistema estrelar para sistema estrelar, transportada por meteoros, Stephen Hawking.

 

 

 

 

 

Raro é o dia em que a comunicação social não nos informe sobre mais uma conquista no espaço, mais satélites lançados, mais sondas a caminho de, mais objetos voadores não identificados (ovnis) mesmo sendo retirados de artigos antigos, mas que agora foram novamente identificados como constantes de antigos artigos o que lhes confere grau de veracidade.

Rara é a semana em que não é exibido, ou anunciado, um filme ou documentário de ficção científica passado no espaço, com enormes naves ou complexos espaciais onde os humanos vivem e convivem normalmente, sem quaisquer restrições ou problemas para além dos que resultam do enredo do filme ou do documentário. O espaço definitivamente conquistado.

 

O racional que nos têm dado para essa fixação e investimento no espaço é o da urgente e imprescindível procura de locais com capacidade para suportar vida, escamoteada como procura de vida, como única forma para garantir a sobrevivência da humanidade (a preocupação que têm connosco é comovente).

 

 

Em novembro de 2010, o telescópio espacial Kepler detetava a existência de 3.500 planetas fora do nosso sistema solar. Como isso era apenas uma ínfima parte dos possíveis existentes no universo (a 4 de novembro de 2013, os astrónomos relataram que de acordo com novos dados  o número de planetas nessas circunstâncias poderia chegar aos 40 biliões, encontrando-se o mais próximo a 12 anos-luz) começaram-se a gastar ( a distribuir criteriosamente, evidentemente)  biliões de dólares em missões com a finalidade de encontrar planetas com características psicoquímicas adequadas onde a vida (a nossa) pudesse acontecer e evoluir, determinar sobre a sua habitabilidade, e também detetar sinais de vida.

 

Acontece que se assumirmos, por exemplo, que possam existir na galáxia cerca de um bilião de estrelas com os seus sistemas planetários adequados ao desenvolvimento de vida, e que normalmente se leva cerca de um ano para coligir e aferir a quantidade de dados necessária para nos certificarmos da possível habitabilidade de cada um deles, mesmo só escolhendo apenas 10 por cento, levaríamos biliões de anos para concluir sobre a sua habitabilidade.

 

Claro que poderemos reduzir o número de casos a observar se, por exemplo, nos reduzirmos aos planetas mais próximos, mas aí já sabemos que a probabilidade de encontrar vida é muito pequena.

 

 

Mas, que afinações têm os aparelhos que procuram vida nesses espaços, ou seja, como a procuram? Que “vida” procuram?

 

Procuram os lípidos, aminoácidos, nucleótidos, que levaram à criação de moléculas com reações que as afastam do equilíbrio, os chamados building blocks que deram origem à vida na Terra. Ora nós sabemos que por mais que os cientistas tenham tentado produzir vida através de imensas e variadas reações químicas combinadas, nunca conseguiram produzir tipos de blocos dessas moléculas que interagissem umas com as outras como se estivessem vivas.

 

 

De qualquer modo, apesar dos insucessos até agora verificados, procurar conseguir dar vida a sistemas químicos abióticos, parece ser o caminho certo para ajudar a compreender as origens de qualquer tipo de vida em qualquer tempo.

Teríamos assim a possibilidade de em qualquer planeta, perante os elementos químicos nele presentes, apercebermo-nos das possibilidades, ou não, da formação de formas de vida e dar-lhe o empurrão necessário para transformar aquele caldo químico em vida. O que se viesse a passar depois, dependeria da coevolução entre aquele caldo químico ativado e sistema planetário em que estivesse implantado.

 

E isto porque a vida como a conhecemos é tanto uma expressão das condições do nosso planeta como da organização biológica. “O DNA é uma enciclopédia com 4 biliões de anos com informação sobre o mundo em que vivemos e do mundo como antes era. O DNA pouca utilidade terá para mundos que sejam marcadamente diferentes do nosso”.

 

 

Vai ser com base nestas possibilidades de conhecimento que Betul Kaçar, cientista da Universidade do Arizona e da NASA, propõe a exportação para outros planetas deste empurrão (uma das noções aventadas por antigos filósofos gregos para explicar o início do movimento no mundo seria através de um piparote dado por Deus) poderia permitir que a vida aí pudesse aparecer. A esta teoria chamou-lhe de protospermia.

 

De certa forma abriga-se debaixo do guarda-chuva da panspermia, que é a hipótese segundo a qual a vida existe espalhada por todo o Universo pouco depois da explosão inicial, do Big Bang, transportada por poeiras espaciais, meteoritos, asteroides, cometas, planetoides, e até por artefactos espaciais (naves, sondas, satélites) que não intencionalmente a trazem. Segundo Stephen Hawking:

 

A vida pode-se espalhar de planeta para planeta ou de sistema estrelar para sistema estrelar, transportada por meteoros”.

 

Ou seja, em qualquer destes casos trata-se de colocar formas de vida existentes num outro planeta. Na panspermia, a forma de vida “entregue” pode vir, ou não, a implantar-se no planeta, dependendo das condições existentes. Com a protospermia, a implantação é quase garantida.

 

O problema com a protospermia é o da falta de controle sobre o “produto”: a forma de vida adubada desenvolver-se-á conforme a coevolução que encontrar no planeta. Estaremos a implantar uma forma de vida que poderá até vir a ser antagónica à nossa.

Por outro lado, o envio desse “piparote” químico para destinos para além do nosso sistema solar, e para a implantação e desenvolvimento da forma de vida, levaria milhares ou milhões de anos a verificar-se, o que o colocaria muito para além de qualquer previsão sobre a sobrevivência da nossa espécie.

 

Mas o processo decidido pelos nossos conquistadores do espaço é antes o da terraformização, que consiste na alteração de qualquer ambiente encontrado de modo a adaptá-lo para uma forma particular de vida, a nossa. “Criar uma biosfera planetária que reproduza todas as funções da biosfera da Terra”.

 

Apesar dos intensos e arrastados debates éticos, a maioria dos quais defende a preservação da paisagem (a que for) dos “novos” planetas, as dúvidas sobre a permissibilidade das invasões, a posição ecológica de “ver, mas não tocar” ou até a ultra ecológica de nem sequer ver (estudar), é obvio que nenhuma delas irá prevalecer.

 

Se as forças que estão por detrás da conquista e exploração do espaço são exatamente as mesmas que têm vindo a fazer a exploração da Terra exercendo o seu direito a reconfigurá-la (e desfigurá-la) permanentemente, como pretender ou impedi-las de fazer o mesmo no espaço?

 

Exemplo esclarecedor destas inevitabilidades democráticas, é o que se está a passar com o contrato para os veículos de transporte espacial que foi ganho pelo SpaceX de Elon Musk. Logo de seguida o Senado americano autorizou outra igualmente choruda verba para exatamente o mesmo, mas para a outra empresa concorrente que tinha perdido o primeiro contrato: a Blue Origin de Jeff Bezos.

 

Esclarecedor, por ser sempre assim: o Estado paga para se pesquisar e realizar, as empresas pesquisam e realizam, e depois o Estado volta a pagar às mesmas empresas para que elas continuem a realizar o que já anteriormente fora financiado pelo Estado. Vacinas que pagámos e vamos continuar a pagar.

 

 

 

Nota:

Sobre as “possibilidades” para onde esta corrida para o espaço nos conduz e a terraformização, importante ler o blog de 11 de novembro de 2020, “Escapatórias sem escape”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/293-escapatorias-sem-escape-80608).

 

 

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