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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(321) As decisões que julgamos serem nossas

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

É preocupante que um número de jovens inteligentes e bem-formados consiga chamar preto ao que é branco, Solomon Asch.

 

Vocês marinam-se na sabedoria convencional. Na realidade, estão a marinarem-se no conhecimento de outras pessoas: para os outros, não para vocês, William Deresiewcz.

 

As instituições universitárias só produzam seguidores em vez de leaders.

 

Serão as nossas memórias mesmo nossas e as nossas opiniões mesmo nossas? “Provavelmente, nunca poderemos saber”.

 

 

 

Na semana passada, terminei “As raças variam à vontade dos donos” com a citação de uma estrofe da letra do Hino da Mocidade Portuguesa, “Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim”, o que me levou a recordar um estudo de 1956 de Solomon Asch, “Studies of independence and conformity: I. A minority of one against a unanimous majority” (Estudos sobre independência e conformidade: A minoria de um contra a unanimidade da maioria).

Solomon Asch, (1907-1996), foi um psicólogo social americano, originariamente polaco, seguidor da escola que defendia que o todo era não só maior que a soma das partes, como também a sua natureza alterava substancialmente as partes, que se tornou especialmente conhecido pelos seus estudos sobre o comportamento dos indivíduos perante grupos maioritários.

A experiência base com que iniciou esses seus estudos, data de 1951: nela, a um grupo de oito estudantes universitários era-lhes mostrado um quadro com duas partes, uma com apenas uma linha vertical de um determinado comprimento, outra com três linhas verticais de comprimentos variados. Dando como referência base a linha do primeiro quadro, pedia-se aos estudantes que no quadro seguinte indicassem, das três linhas qual era a idêntica (mesmo comprimento) à desenhada no primeiro quadro.

Dos oito intervenientes na experiência, apenas um era mesmo estudante, porquanto os outros, sem o verdadeiro estudante saber, eram atores pagos para darem respostas previamente programadas. O aluno verdadeiro seria colocado numa posição em que fosse sempre o último a responder.

Todos os atores respondiam da mesma maneira, indicando como certa uma determinada resposta (comprimento) que estava errada. Asch acabou por verificar eu na grande maioria dos casos, a resposta dada pelo aluno coincidia com a resposta errada de todos os atores.

As experiências foram feitas vezes sem conta, alterando a idade, género e cultura do entrevistado, em várias universidades e com vários estudantes, confirmando sempre, com pequenas variações, os mesmos resultados.

Das entrevistas pós-respostas que fez aos alunos para saber porque tinham respondido daquela maneira, Asch concluiu que o faziam por três ordens de razões: por “distorção de perceção” (acreditavam que as respostas dos atores eram as corretas, não se apercebendo que as respostas que a maioria dava eram incorretas), “distorção de julgamento” (como as suas respostas nunca eram coincidentes com as da maioria, concluíam que as suas respostas estavam erradas e respondiam conforme a maioria) e “distorção de ação” (sabiam que as suas respostas eram as certas, mas respondiam de acordo com o grupo maioritário para não se sentirem fora do grupo).

Numa das primeiras opiniões sobre os resultados, Asch não deixou de se espantar:

 

É preocupante que um número de jovens inteligentes e bem-formados consiga chamar preto ao que é branco”.

 

Esta “pressão dos pares” (peer pressure) é suficientemente forte para levar à alteração de atitudes, valores e comportamentos, não só ao nível individual como ao nível do próprio grupo. A aplicação destes conhecimentos tem particular importância nos grupos sociais, sejam eles partidos políticos, sindicatos, escolas ou claques, e nas grandes organizações (recorde-se o Holocausto e seus executantes).

O seu efeito faz-se mesmo sentir fora desses grupos, ou seja, não se torna necessário pertencer a esses grupos para que este efeito de pressão social de conformidade se faça sentir. O que particularmente se verifica com as crianças (no processo de formação para a tomada independente de decisões) e adolescentes (comportamento sexual, consumo de tabaco, álcool e drogas).

Em resumo: a maior parte das pessoas está predisposta a dar uma resposta incorreta se for essa a que a maioria der.

 

 

 

Uma das preocupações do professor de literatura inglesa da Yale University, William Deresiewcz, era a de tentar entender porque é que as pessoas se tinham deixado submeter, sem oferecer resistência e sem minimamente se interrogarem, a uma época de ciclos ultrarrápidos de notícias e de opiniões que abafam, assaltam, e anulam as suas próprias opiniões.

Em 2009, numa palestra dirigida a um grupo de estudantes universitários da Academia Militar de West Point a que deu o título “Solitude and Leadership” (Solidão e Qualidade de Chefia), Deresiewcz vai defender que sem solidão (“a capacidade para se estar sozinho com os seus pensamentos”) será difícil que uma pessoa venha a ter pensamentos próprios, e que tão pouco venha a desenvolver uma bússola moral e coragem necessárias para os assumir e defender, mesmo quando não sejam populares.

 

Socorrendo-se do Coração das Trevas (Heart of Darkness) de Conrad, vai tentar explicar-nos com chegou a essas conclusões:

 

É a solidão da concentração que salva Marlow no meio da loucura da Estação Central. Quando ele lá chega, descobre que o barco a vapor com que deveria navegar rio acima, tem um enorme buraco e que ninguém iria ajudá-lo a consertar […]

 

«[…] Tinha tido bastante trabalho com ele (o barco) pelo que só podia amá-lo. Nenhum amigo influente me teria podido servir melhor. Ele deu-me a possibilidade de sair um pouco - descobrir o que poderia fazer. Não, eu não gosto de trabalhar. Preferia não fazer nada e pensar em todas as coisas boas que podiam ser feitas. Eu não gosto do trabalho - nenhum homem gosta - mas gosto do que existe no trabalho - a possibilidade que nos dá de encontrarmo-nos a nós próprio. A nossa própria realidade - para si mesmo, não para os outros - o que nenhum outro homem pode saber».

 

“A possibilidade de encontrarmo-nos.” Hoje, essa frase, “encontrarmo-nos a nós próprios”, adquiriu má reputação. Sugere um licenciado universitário de artes liberais sem rumo definido - um licenciado em literatura inglesa, sem dúvida, alguém que foi para um lugar como Amherst ou Pomona - que é muito solicitado para arranjar um emprego e que passa o tempo a olhar para o nada. Mas em contraponto temos Marlow, um marinheiro, comandante de navios. Uma pessoa prática e teimosa como não se consegue encontrar. Devo dizer que o criador de Marlow, Conrad, passou 19 anos na marinha mercante, oito deles como comandante de navios, antes de se tornar um escritor, portanto esta não foi apenas uma ideia artística que surgiu na cabeça de um marinheiro. Marlow acredita na necessidade de uma pessoa se encontrar tanto quanto qualquer outra pessoa, e a maneira para o fazer, diz ele, é trabalhar, trabalho em solidão. Concentração. Subir para aquele barco a vapor e passar algumas horas ininterruptas dando-lhe forma. Ou a construir uma casa, ou a preparar uma refeição, ou mesmo a escrever um trabalho para a faculdade, se realmente quiser mesmo dedicar-se a isso.

 

“A sua própria realidade - para si mesmo, não para os outros.” Pensar por si mesmo significa encontrar-se a si mesmo, encontrar a sua própria realidade. Este é o outro problema do Facebook e do Twitter e até mesmo do The New York Times. Quando vocês se expõem a esses meios, especialmente da maneira constante como as pessoas agora o fazem - tanto as mais velhas como as mais jovens - vocês estão continuamente a serem bombardeados com uma torrente de pensamentos de outras pessoas. Vocês estão a marinarem-se na sabedoria convencional. Na realidade, a marinarem-se no conhecimento de outras pessoas: para os outros, não para vocês. Estão a criar uma cacofonia em que é impossível ouvir a própria voz, saber se estão a pensar em si ou em qualquer outra coisa”.

 

Continuando com a obra de Conrad, Deresiewcz passa a ler o que Marlow diz para descrever o gerente da Estação Central:

 

«Ele era de compleição vulgar, nas feições, nos modos e na voz. Era de estatura média e de constituição normal. Os olhos, do azul normal, talvez fossem notavelmente frios. . . .Fora isso, apenas havia uma expressão indefinível e ténue nos lábios, algo furtivo - um sorriso - não um sorriso – lembro-me agora, mas não consigo explicar. . . . Era um comerciante comum, que desde sua juventude fora empregado por estas bandas - nada mais. Ele era obedecido, mas não inspirava amor, nem medo, nem mesmo respeito. Inspirava inquietação. Só isso! Inquietação. Não era uma desconfiança definitiva - apenas inquietação - nada mais. Você não tem ideia de quão eficaz tal. . . tal . . . faculdade possa ser. Ele não tinha qualquer génio para organizar, nem iniciativa, nem mesmo para a dar ordens. . . . Ele não tinha conhecimentos nem qualquer inteligência. Aquela posição, o lugar que ocupava, chegaram-lhe a ele - por quê? . . . Ele não iniciava nada, mantinha apenas a rotina - isso era tudo. Mas ele era o maior. Ele era grande por essa pequena coisa que era impossível dizer sobre o que poderia controlar um homem assim. Ele nunca revelou esse segredo. Talvez não houvesse nada dentro dele. Essa suspeita faz-nos pensar.»

 

Notem os adjetivos: vulgar, comum, normal, comum. Não há nada de distinto nesta pessoa. Aí para a décima vez que li esta passagem, percebi que era uma descrição perfeita do tipo de pessoa que tende a prosperar no ambiente burocrático. E a única razão que o fiz foi porque de repente me ocorreu que era uma descrição perfeita do chefe da burocracia da qual eu fazia parte, o presidente do meu departamento académico - que tinha exatamente o mesmo sorriso, como um tubarão, e que tinha exatamente a mesma capacidade de nos deixar inquietos, como se estivéssemos fazendo algo errado, só que ela nunca nos iria dizer o quê. Como o gerente - e sinto dizer isso, mas como tantas pessoas que encontrarão quando negociarem com a burocracia do Exército ou de qualquer outra instituição para a qual acabem por entregar os vossos talentos depois do Exército, seja a Microsoft ou o Banco Mundial ou o que quer que seja - o chefe do meu departamento não tinha qualquer génio para organizar, nem iniciativa ou mesmo para dar ordens, nem nenhum conhecimento ou inteligência particular, nenhuma característica distintiva. Apenas a capacidade para manter a rotina e, além disso, como dizia Marlow, essa sua posição havia-lhe chegado - por quê?

 

Este é realmente o grande mistério das burocracias. Por que é tão frequente que as melhores pessoas fiquem retidas a meio da progressão e as pessoas que dirigem as coisas - os líderes - sejam os medíocres? Porque a excelência geralmente não é o que o leva até ao topo do mastro gordurento. O que o faz atingir é o talento para manobrar. Bajulando os superiores, calcando os que lhe estão por baixo. Agradando aos professores, agradando aos superiores, escolhendo um mentor poderoso e agarrando-se a ele até que chegue a hora de esfaqueá-lo pelas costas […]. Ser o que as outras pessoas querem que você seja, de modo a que finalmente, tai como o gerente da Estação Central, já não tenha absolutamente nada dentro de você. Não correr riscos estúpidos como tentar mudar a forma como as coisas são feitas, nem questionar por que são feitas. Mantendo apenas a rotina.”

 

Deresiewcz vê nesta conformidade burocrática da sociedade a principal razão porque as instituições universitárias só produzam seguidores em vez de leaders.

 

As memórias, tal como as opiniões, são contagiosas e virais. Mesmo que saibamos que a opinião não é correta. Vimos já que as pessoas estão quase sempre predispostas a dar uma resposta incorreta para ela coincidir com a resposta que a maioria dá. Especialmente neste ano de pandemia no qual devem ter aumentado enormemente o on line e as comunicações digitais, que efeito é que essa imersão digital quase constante acarretará para as nossas memórias e opiniões? Serão as nossas memórias mesmo nossas e as nossas opiniões mesmo nossas? “Provavelmente, nunca poderemos saber”.

 

(320) As raças variam à vontade dos donos

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Sou perseguido por chimpanzés humanos que vejo ao longo de centenas de milhas deste país horrível (Irlanda) […] ver chimpanzés brancos é assustador; se ao menos fossem pretos, não os veríamos tanto, Charles Kingsley.

 

Porquê aumentar os Filhos da África, plantando-os na América, quando temos uma oportunidade tão boa, ao excluirmos todos os negros e morenos, para aumentar os adoráveis ​​brancos e vermelhos? Benjamin Franklin.

 

Pelo simples exercício do nosso desejo, podemos exercer um poder praticamente sem limites […] Exterminemos todos os brutos! Kurtz, no Coração das Trevas, Joseph Conrad.

 

 

 

 

 

 

Charles Kingsley (1819-1875), padre progressista da Igreja de Inglaterra, professor universitário de História Moderna em Cambridge, defensor do socialismo cristão, amigo e correspondente de Charles Darwin, foi uma das poucas pessoas a quem Darwin enviou, para revisão, uma cópia antecipada de Sobre a Origem das Espécies, que inclusivamente o levou a inserir na segunda edição as opiniões de Kingsley sobre o trabalho.

Contudo, Kingsley, anglo-saxónico convicto, acreditava, por exemplo, que os antepassados dos anglo-saxões, dos nórdicos e dos germanos tinham efetivamente lutado debaixo da bandeira de Ódin, o deus, e que isso fazia com que a monarquia inglesa descendesse geneticamente desse deus.

Compartilhava também da opinião generalizada que a classe alta inglesa tinha sobre os irlandeses como seres de outra espécie que não a humana. Numa carta dirigida à mulher, durante uma visita à Irlanda em 1860, escreveu:

 

Sou perseguido por chimpanzés humanos que vejo ao longo de centenas de milhas deste país horrível (Irlanda) […] ver chimpanzés brancos é assustador; se ao menos fossem pretos, não os veríamos tanto, mas as suas peles, exceto quando queimadas pela exposição, são tão brancas como as nossas.

 

 

Benjamin Franklin (1706-1790), um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, uma das personagens mais ecléticas e empreendedoras de sempre, foi sem dúvida uma das mentes mais abertas e progressistas da época, tendo começado a partir de 1750 a opor-se à escravatura, acabando por se tornar abolicionista, e promover a educação e a integração dos negros na sociedade americana.

Duas pequenas curiosidades sobre a sua personalidade, que ainda hoje poderiam fazer dele um nosso contemporâneo: Franklin era vegetariano. Uma das primeiras vezes que a palavra “tofu” aparece num documento em inglês, é exatamente numa carta enviada por ele ao diplomata e comerciante especializado na China, James Flint, na qual pedia que lhe explicasse como era feito o “tofu”.

A outra, refere-se ao desentendimento que teve com a sua mulher, Deborah, por ela não ter querido vacinar o filho Francis contra a varíola, o que acabou por lhe ocasionar a morte.

 

Em 1751, Franklin, que na altura ainda era um leal súbdito do Império Britânico, escreveu um pequeno ensaio, Observations Concerning the Increase of Mankind, Peopling of Countries, etc. (Considerações Relativas ao Aumento da População Humana, Povoamento dos Países, etc.), no qual pretendia demonstrar que para a Inglaterra aumentar o seu poder e a sua população, deveria expandir-se para as Américas, uma vez que a Europa estava já densamente povoada.

Segundo estudiosos, este seu trabalho foi fundamental para o aparecimento da ciência da demografia, e era tão inovador que veio a influenciar Adam Smith (que inclusivamente o cita), David Hume, Thomas Malthus, e até Charles Darwin.

Nele, previa a possibilidade do crescimento exponencial da população nas colónias inglesas (que duplicaria em cada 25 anos), pelo que se tornava necessário proceder a uma colonização que deveria vir de Inglaterra para assegurar a manutenção da mesma linguagem, dos mesmos costumes e religião, em suma, da civilização inglesa.

Contrariava também as políticas protecionistas da Inglaterra relativamente à América, bem como a política seguida da escravatura, porquanto ela conduziria à diminuição da saúde e da vitalidade da nação, para além de economicamente o seu custo ser sempre maior que o do trabalho livre:

 

“[…] Os negros trazidos para as ilhas inglesas do açúcar diminuíram aí em muito o número de brancos […] Os brancos que têm escravos, ao não trabalharem, enfraquecem, e, portanto, geralmente não são tão prolíficos; os escravos, trabalhando demais e sendo mal alimentados, ficam com as suas constituições quebradas, e as mortes entre eles são superiores aos nascimentos; de modo que se torna necessário um abastecimento contínuo de escravos vindo de África. Nas colónias do Norte, como têm poucos escravos, o número de brancos aumenta. Os escravos também fragilizam as Famílias que os usam; as crianças brancas tornam-se orgulhosas, têm aversão ao trabalho e, educadas na ociosidade, tornam-se incapazes de ganhar a vida pela indústria.

 

Quanto às pessoas que deveriam vir para colonizar, Franklin tinha ideias muito claras:

 

[…] O número de pessoas puramente brancas no mundo é proporcionalmente pequeno. Toda a África é preta ou morena. A Ásia é principalmente morena. A América (excluindo os novos chegados) também. E na Europa, os espanhóis, italianos, franceses, russos e suecos são geralmente o que chamamos de compleição morena; como também os alemães, exceto os saxões, que, com os ingleses, constituem o principal Corpo de Pessoas Brancas na Face da Terra. Eu gostaria que os seus números aumentassem. E embora estejamos, como posso chamá-lo, vasculhando o planeta, limpando a América dos bosques e, fazendo assim com que este lado do nosso globo reflita uma luz mais brilhante para os olhos dos habitantes de Marte ou Vénus, por que deveríamos, à vista de Seres Superiores, estar a escurecer o nosso Povo? porquê aumentar os Filhos da África, plantando-os na América, quando temos uma oportunidade tão boa, ao excluirmos todos os negros e morenos, para aumentar os adoráveis ​​brancos e vermelhos?

 

 

Joseph Conrad (Józef Teodor Konrad Korzeniowski), súbdito do czar russo, nascido na Polónia em 1857, falecido em 1924 como cidadão inglês, é considerado um dos maiores novelistas da língua inglesa. O seu estilo narrativo e os seus figurantes caracteristicamente anti-heróis, levam-no a uma fácil aceitação pelo público em geral: recordemos Lord Jim.

Tripulante desde muito novo de navios mercantes franceses e ingleses, os seus pequenos contos e novelas refletem alguns dos aspetos do imperialismo e do colonialismo de um mundo dominado pelos europeus.

Coração das trevas, (Heart of Darkness), publicado em 1899, narra a viagem ao longo do rio Congo na procura do Estado Livre do Congo. Ainda ancorado em Londres no Tamisa, Charles Marlow conta aos amigos a história do bem-sucedido traficante de marfim, Kurtz. E embora para Conrad, Londres representasse “a maior cidade do mundo” e África o lugar das trevas, para ele havia pouca diferença entre “as pessoas civilizadas” e os “selvagens”.

Uma das bens sucedidas adaptações cinematográficas desta obra foi a de Francis Ford Coppola, em 1979, Apocalypse Now, em que o Congo é substituído pelo Vietname e pelo Camboja, numa viagem através do rio com a missão de matar o coronel Kurtz.

Eis o que Conrad pôs Marlow a dizer sobre a colonização de África:

 

Foi só roubo com violência, assassinato agravado em grande escala ... a conquista da terra, que em grande parte significava tirá-la a quem tinha uma pele diferente da nossa ou um nariz ligeiramente mais achatado que o nosso, não é uma coisa bonita quando se está lá para se ver. O que o redime é apenas a ideia. Uma ideia por detrás disso; não uma pretensão sentimental, mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia - algo que você pode criar, se pode curvar diante e oferecer um sacrifício para ...”

 

Na prática, isso é expresso por Kurtz quando declara:

 

Pelo simples exercício do nosso desejo, podemos exercer um poder praticamente sem limites […] Exterminemos todos os brutos!

 

 

Tudo isto vem a propósito de uma muito recente mini-série (4 episódios) de Raoul Peck para a HBO, sobre a colonização, escravatura, genocídio, imperialismo e nacionalismo branco, a que deu o título Exterminate All the Brutes.

Os autores acima citados são visitados por Peck, talvez devido às relações mais próximas que têm com a sociedade de língua inglesa. Relembremos que o padre Charles Kingsley, encontrava-se de visita à Irlanda na época em que os ingleses estavam a colonizá-la, o que implicava a consequente aceitação e despromoção dos seus habitantes a “não-brancos”.

Com a forte imigração de irlandeses para a América e com a independência da colónia, os irlandeses acabaram por virem a ser promovidos a “brancos”, o que para Franklin não constituiria qualquer impedimento, uma vez que o “seu” sistema de classificação deixava abertura suficiente para que fosse o interesse da nação decidir.

Foi também assim no regime do apartheid da África do Sul, quando decidiu que afinal os imigrantes japoneses por serem suficientemente leais poderiam passar a “brancos honorários”; foi também assim que os judeus, a partir da visita em 1949 de D. Roosevelt à nóvel nação, passaram de “comedores de traças“ e de “gordurosos” para terem “beleza física, vitalidade saudável, boa educação, boa natureza”, especialmente quando comparados com os Árabes conotados como “tão perigosos como muitos dos índios norte-americanos”, e portanto não-brancos com “doenças, maus cheiros, cheios de parasitas”.

O mais notável exemplo sobre diferenciação de raças é o que foi dado pelos nazis alemães, que após gastarem anos e dinheiro a estudarem e a investigarem como os judeus constituíam uma raça aparte com características próprias, acabaram por terem de os obrigar a usar uma estrela bem visível no vestuário, para assim os poderem distinguir…

 

Sem pretender recuar até ao padre António Vieira, a Frei Bartolomeu de las Casas ou a Francisco de Vitoria (Relecciones sobre los Indios y el derecho de guerra) na denúncia das selvajarias praticadas nas colónias, talvez seja interessante referir o bastante mais próximo Pierre Savorgnan de Brazza e o seu famoso relatório oficial sobre as condições que encontrou no Congo francês entre 1905 e 1907.

Face ao clamor internacional expresso nos jornais europeus sobre as violências praticadas no Estado Independente do Congo (o futuro Congo belga), propriedade privada com poderes absolutos do rei dos belgas Leopoldo II, relacionados com os abusos da “borracha vermelha” (de sangue), o ministro das Colónias francês, resolveu mandar fazer um relatório sobre o que se passava com o Congo francês, para demonstrar que a colonização francesa era exemplar e nada tinha que ver com a belga.

Nesse relatório, Brazza, para além das sevícias normalmente praticadas, pronunciou-se sobre a responsabilidade dos funcionários, a organização financeira da região, o seu regime comercial, as concessões territoriais (o Estado francês confiara a quarenta sociedades privadas a exploração da maior parte do território), os trabalhos públicos, propondo algumas reformas.

 

Das várias situações apontadas por Brazza, algumas foram relatadas na imprensa da época, como o do chamado caso «Gaud e Toqué», em que o administrador Geoges Toqué denuncia o comissário dos negócios indígenas, Fernand Gaud, conhecido entre os africanos com “a besta feroz”, por nos festejos do 14 de julho de 1903, ter feito explodir um prisioneiro condenado a ser fuzilado, introduzindo-lhe no ânus um cartucho de dinamite.

Outra situação recorrente era a de utilização de mulheres e crianças como reféns ou prisioneiras para conseguirem que os homens trabalhassem na recolha de borracha. Conhecido como O escândalo das mulheres de Bangui, 58 mulheres e 10 crianças foram conduzidas, entre maio e junho de 1904, ao posto administrativo de Bangui, onde ficaram como reféns por forma a obrigarem os homens a recolherem a borracha para a Companhia Lobaye. Sem alimentação, sobreviveram apenas 13 mulheres e 8 crianças. Todas as outras morreram de fome.

Durante as inquirições, os intervenientes negaram que tivessem ficado com as mulheres como reféns, mas porque as tinham encontrado a vaguear pela floresta e para as proteger resolveram trazê-las.

Idêntico caso foi conhecido em maio de 1905, envolvendo 119 mulheres de Krébedjé.

Também assinalado, foi conhecido como O escândalo da M’poko, segundo o qual o norueguês Gulibrand Schiotz, diretor responsável da Companhia M’poko, afirmava a sua autoridade matando a golpes de chicote mulheres e crianças, lançando em seguida os cadáveres ao rio. Impunemente, os guardas armados da empresa sequestravam, castigavam, torturavam e executavam pessoas.

 

Mediante estes e outros casos que Brazza não calou no seu relatório, o Ministro das Colónias que contava com ele para demonstrar que os métodos da colonização francesa eram exemplares face aos belgas, decidiu a 7 de maio de 1907, mandar imprimir “10 exemplares devidamente numerados, destinados a permanecerem confidenciais”. Um dos exemplares seria para o ministro, e os outro nove permaneceriam no cofre forte do ministério. Ou seja, o relatório nunca foi publicado.

Finalmente, em 1965 foi descoberto, por Catherine Coquery-Vidrovisch, um exemplar nos arquivos do ultramar, que em 2002 vai fazer parte da sua tese. É ela que em 2014 o publica, Le rapport Brazza, Mission d’enquète du Congo: rapport et documents, Editions le passager clandestin, 2014.

 

Felizmente que já nada disso acontece agora. Quando muito, há uns africanos que a caminho da Europa caem dos barcos no Mediterrâneo, e que já não são mortos com cartuxos de dinamite no ânus. Agora utilizamos drones que selecionam automaticamente (por agora sempre “não-brancos”) os que vão fazer explodir lá em baixo, por decisão de um algoritmo: morte limpa. Não há carrascos e as vítimas volatilizam-se: ecológico. Já não precisamos de olhar para o lado, nem de guardar as coisas nas gavetas. Marchamos direitos de cabeça erguida para onde nos quiserem levar. "Lá vamos cantando e rindo, levados, levados Sim", estrofe do hino da Mocidade Portuguesa.

 

 

 

 

Nota: sugiro a leitura destes três artigos, o primeiro de 3 abril de 2019, “O direito à conquista”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/210-o-direito-a-conquista-55274

 o segundo de 18 setembro de 2015, “Documentos de um tempo ausente”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/documentos-de-um-tempo-ausente-2-6540

e o terceiro de 20 janeiro de 2016, “Tudo azul, tudo muito azul”,

https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2016/01/

                                            

 

 

 

(319) O “fim da história” não é a história do fim.

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A universalização da democracia liberal ocidental como forma última de governo humano e final da evolução ideológica da humanidade, Francis Fukuyama.

 

O universo não é dialético, ele está condenado aos extremos, e não ao equilíbrio. Condenado ao antagonismo radical, não à reconciliação nem à síntese, Jean Baudrillard.

 

Atualmente, todo o acontecimento é virtualmente sem consequências, aberto a todas as interpretações possíveis, e nenhuma sem lhe encontrar o sentido, Jean Baudrillard.

 

 

 

 

Em 1989, Francis Fukuyama escreveu um ensaio que intitulou “O Fim da História?” (The End of History?), que três anos depois expandiu transformando-o no reverenciado O Fim da História e o Último Homem (The End of History and the Last Man), onde concluía que após o fim da Guerra Fria e da dissolução da União Soviética, a humanidade “não se encontrava apenas a passar por um período particular da história de pós-guerra, mas do fim da própria história em si mesma: ou seja, o final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma última de governo humano.

Grande foi a agitação provocada nos meios intelectuais por esta conclusão de que depois da democracia liberal nada se lhe seguiria. Desde os que apocaliticamente viram nela a confirmação do fim dos tempos, numa confusão entre “história” e “acontecimentos”, até aos que viam nela a confirmação do desenvolvimento correto do sistema de governo americano, passando por os que viam nela sintomas de extrema direita preconizando a “Morte de Marx” (Jacques Derrida), e ainda por aqueles que viam em vez de um conflito de ideologias um confronto de civilizações (Samuel Huntington).

 

Após o 11 de setembro de 2001, as interpretações foram mudando, o triunfalismo foi sendo substituído pelo derrotismo. Fareed Zakaria viu-o como “o fim do fim da história”. Outros optaram por observar que “a história tinha voltado das férias”. Outros ainda, mais tarde e face ao que, entretanto, fora acontecendo no mundo, acabam por entrever a possibilidade de a China apresentar um modelo de desenvolvimento capaz de inspirar outros estados, como foi o caso de Robert Kagan e do seu The Return of History and the End of Dreams.

De certa maneira, o próprio Fukuyama, após a invasão do Iraque, numa entrevista de 22 de março de 2006, adapta e revê em parte a sua tese inicial.

 

Este conceito político e filosófico do “fim da história” segundo o qual se pretende acreditar/demonstrar que pelo facto de ela correr linearmente para um fim significa que tem uma finalidade, ou que por ter uma finalidade tal significa que tem um fim, fez com que várias religiões profetizassem a destruição completa da Terra ou da vida na Terra, e com que muitos pensadores se interessassem em conhecer/recomendar o sistema económico, político e social, que a humanidade acabaria por ter no seu estado final de desenvolvimento.

 

Embora aparentemente opostos, todos estes conceitos da história do fim e do fim da história têm, contudo, em comum uma conceção racional sobre a importância da humanidade para e no universo.

Mas será que poderá existir outra forma para nos situarmos no universo?

 

 

Ouçamos alguns excertos de As Estratégias Fatais, (1983), de Jean Baudrillard:

 

 “Nada nos impede de pensar que possamos obter os mesmos efeitos numa ordem inversa, numa sem-razão também vitoriosa.

[...]O universo não é dialético, ele está condenado aos extremos, e não ao equilíbrio. Condenado ao antagonismo radical, não à reconciliação nem à síntese.

[…] Não procuraremos a mudança e não oporemos o fixo ao móvel, procuraremos antes o mais móvel que o móvel: a metamorfose … Não distinguiremos o verdadeiro do falso, procuraremos antes o mais falso que o falso: a ilusão e a aparência.

[…] Procuraremos qualquer coisa que seja mais rápida que a comunicação: o desafio, o duelo. A comunicação é demasiado lenta, ela é um efeito da lentidão, ela passa pelo contacto e pela palavra. O olhar vai mais depressa, ele é o médium dos média, o mais rápido. Tudo deve acontecer instantaneamente. Nunca mais se comunica. No ir e vir da comunicação, as instantaneidades do olhar, da luz, da sedução, estão já perdidas.

E também, contra a aceleração dos feixes e dos circuitos, procuraremos a lentidão – não a lentidão nostálgica de espírito, mas a imobilidade insolúvel, o mais lento que o lento: a inércia e o silêncio.

 

[…] O real não se apaga para benefício do imaginário, ele apaga-se para benefício do mais real que o real: o hiper-real. Mais verdadeiro que o verdadeiro: tal é a simulação.

A presença não se apaga perante o vazio, ela apaga-se perante uma sobreposição da presença que apaga a oposição da presença e da ausência. O vazio também não se apaga diante do cheio, mas diante da enchente e da saturação – mais cheio que o cheio, tal é a reação do corpo na obesidade, do sexo na obscenidade, na sua reação ao vazio.

O movimento não desaparece tanto na imobilidade como na velocidade e na aceleração – no que é mais móvel que o movimento, e que o leva ao extremo em que lhe retira todo o sentido.

A sexualidade não desaparece na sublimação, na repressão e na moral, ela desaparece muito mais no mais sexual que o sexo: o pornográfico. O hiper-sexual contemporâneo do hiper-real.

Mais geralmente as coisas visíveis não desaparecem na obscuridade e no silêncio – elas desaparecem no mais visível que o visível: a obscenidade.

 

[…] Parece que a (nossa) espécie ultrapassou um ponto específico misterioso, ponto que parece ser impossível de regressar, de desacelerar, de abrandar.

«Uma ideia penosa: a de que para além de um certo ponto preciso do tempo, a história já não é real. Sem se ter apercebido, a totalidade do género humano subitamente tinha deixado a realidade. Tudo o que se tenha vindo a passar depois não era verdadeiro, mas nós não podíamos dar-nos conta disso. A nossa tarefa e dever no presente será a de descobrirmos esse ponto e, se não o encontrarmos, restar-nos-á continuar a perseverar com a destruição atual.» Canetti (Elias).

 

[…] Supondo que pudéssemos determinar esse ponto, o que faríamos? Por que milagre a história passaria a ser verdadeira? Por que milagre poderíamos voltar a ter o tempo que tinha parado a quando do seu desaparecimento? Como esse ponto é também o do fim do tempo linear, e como todos os prodígios da ficção científica para voltar atrás no tempo são inúteis, então o passado atrás de nós já desapareceu.

Que precauções poderíamos ter tomado para evitar esse colapso histórico, esse coma, essa volatilização do real? Fizemos algum erro? Cometeu o género humano algum erro, violado algum segredo, cometido qualquer imprudência fatal? É tanto em vão fazer tal pergunta como a de nos interrogarmos sobre qual a razão misteriosa porque uma mulher nos deixou: em qualquer dos casos, nada mudaria.

O aspeto terrífico de um acontecimento como este é que, passado um certo ponto, todos os esforços que se façam para o exorcizar só o fazem precipitar mais, nenhum pressentimento servirá, cada acontecimento dá razão ao que o precede. É ingenuidade pensar que todo o acontecimento tem que ver com causas que nos levem a pensar que ele poderia não ter ocorrido – o acontecimento puro, sem causas, prosseguirá inelutavelmente o seu caminho – e, por outro lado, ele não poderá jamais ser reproduzido ao contrário de o produzido por um processo causal. E nesse caso não é um acontecimento.

[…] O ponto de que nos fala (Canetti) é, por definição, impossível de descobrir, porquanto se o pudéssemos encontrar o tempo ser-nos-ia devolvido. O ponto a partir do qual pudéssemos inverter o processo da dispersão do tempo e da história escapa-se-nos – e é por isso que já o ultrapassámos sem disso nos termos dado conta e, certamente, sem o querermos.

 

[…] Para além desse ponto, só há acontecimentos sem consequências (e teorias sem consequências), porque precisamente eles absorvem todo o seu sentido neles mesmos, nada refratam, nem pressagiam. Para além desse ponto só há catástrofes.

[…] A catástrofe é o acontecimento bruto máximo, mais acontecimento que o acontecimento – acontecimento sem consequências e que deixa o mundo em suspenso.

Uma vez acabado o sentido da história, uma vez ultrapassado esse ponto de inércia, qualquer acontecimento passa a ser uma catástrofe, passa a acontecimento puro e sem consequências (daí o seu poder).

O acontecimento sem consequências – como o homem sem qualidades de Musil, como o corpo sem órgãos, como o tempo sem memória.

 

[…] Atualmente, todo o acontecimento é virtualmente sem consequências, aberto a todas as interpretações possíveis, e nenhuma sem lhe encontrar o sentido: equiprobabilidade de todas as causas e de todas as consequências – imputação múltipla e aleatória.”

 

 

Chapeau! Take five! Estava-se em 1983.

(318) Sedução e pornografia

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Somos a cultura da ejaculação precoce, Jean Baudrillard.

 

A sedução, com a sua capacidade para o teatro, para o jogo e para o espetáculo, pressupõe uma distância cénica e lúdica: uma fantasia para imaginar o outro.

 

A sedução pode inclusivamente dispensar o sexo, que só aparece como uma certa subordinação, e isto por a sedução ser da ordem do ritual e o sexo ser uma função natural, Byung-Chul Han.

 

Debaixo da pressão para produzir, tudo se exibe, se visibiliza, se desnuda e se expõe.

 

 

 

 

A quando da estreia em 2013 do filme Nymph()maniac de Lars von Trier, um dos críticos escreveu o seguinte:

 

A mensagem do filme poderia também igualmente ser: “Esquece-te do sexo”, uma vez que em nenhuma cena se mostra a sexualidade de maneira sedutora. O filme é pornográfico, pois força o espetador a olhar diretamente com atenção e durante muito tempo o que se mostra. Mas o que aí se pode observar é algo enrugado, torcido, aveludado e de cor amarela acinzentada, ou seja, aproximadamente tão excitante como o órgão sexual de qualquer outro mamífero”.

 

Para compreender tal interpretação, temos de nos socorrer de Jean Baudrillard, e do seu livro, Da sedução, particularmente quando diz:

 

Permanecemos incompreensivos e vagamente compassivos ante essas culturas para as quais o ato sexual não é uma finalidade em si, para as quais a sexualidade não tem essa seriedade mortal de uma energia que há que libertar, de uma ejaculação forçada, de uma produção a todo o custo, de uma contabilidade higiénica do corpo. Culturas que preservam grandes processos de sedução e de sensualidade, onde a sexualidade é um serviço como outro qualquer, não passando o ato amoroso de um final eventual desta reciprocidade feita a compasso de um ritual ineludível”.

 

Que o vai levar a concluir que o jogo da sedução, por levar muito tempo, está a ser ultrapassado e eliminado pela satisfação imediata do desejo sexual:

 

Somos uma cultura da ejaculação precoce. Qualquer sedução, qualquer forma de sedução, que é um processo enormemente ritualizado, é cada vez mais abandonada em favor do imperativo sexual naturalizado, em favor da realização imediata e imperativa de um desejo”.

 

Até aqui podemos alinhar palavras, conceitos, como “sexo”, “pornografia”, “sedução”, “ritual”, “produção”. Para os conjugar, vamos socorrer-nos de Byung-Chul Han, e um dos seus últimos livros, A desaparição dos rituais, Uma topologia do presente, no qual o problema da sedução e da pornografia é abordado, como exemplo da progressiva narcisação da sociedade em que vivemos.

Segundo ele, a sedução começa por nos aparecer como um jogo, estruturado como um combate singular ritual, em que tudo se desenrola numa ordem “quase litúrgica de um desafio e de um duelo”.

A sedução, com esta sua capacidade para o jogo, para o espetáculo e para o teatro, pressupõe uma distância cénica e lúdica: uma fantasia para imaginar o outro.

Pode inclusivamente dispensar o sexo, que só aparece como uma certa subordinação, e isto por a sedução ser da ordem do ritual e o sexo ser da ordem da função natural.

 

Já na pornografia, que surge do consumo imediato do objeto que se oferece totalmente exposto, o outro desaparece por completo. Daí, o prazer pornográfico ser narcisista.

Não há aí qualquer capacidade ou intenção para criar ilusões, teatro, jogo ou espetáculo, tudo é transparente. “A pornografia é um fenómeno da transparência”, não há qualquer mistério, enigma ou ambiguidade.

Na pornografia, o sexo põe-se à frente, exibe-se e torna-se totalmente visível. O sexo “produz-se”, no sentido original da palavra “pro-duzir” que significa pôr-se à frente, exibir ou fazer-se visível. A pornografia atual não se coíbe em mostrar a ejaculação: também ela se “produz” e se exibe. O rendimento do resultado final não deve ficar oculto.

Quanto maior for o produto, maior será o rendimento do produtor. O princípio do rendimento também afeta o sexo. Daí Baudrillard atribuir a pressão para ejacular à pressão para produzir.

Como o jogo da sedução requer muito tempo, é substituído pela satisfação imediata do desejo sexual, o que leva   Baudrillard a notar que a sedução não se dá com a produção.

Seguindo este caminho, Byung-Chul explica-nos:

 

Debaixo da pressão para produzir, tudo se exibe, se visibiliza, se desnuda e se expõe. Tudo fica à mercê da inapelável luz da transparência […] O corpo torna-se pornográfico quando perde todo o caráter cénico e quando o único que tem de fazer é funcionar. O corpo pornográfico carece de todo o simbolismo. Pelo contrário, o corpo ritualizado é um faustoso cenário no qual se mantêm consignados segredos e divindades. Também os sons se tornam pornográficos quando perdem toda a subtileza e recato tendo apenas como única função produzir paixões e emoções. Na aparelhagem digital para fazer misturas e composições das pistas sonoras há um ajuste chamado “In your face”, (Na tua cara), cuja função é gerar uma impressão sonora imediata. Os sons derramam-se diretamente sobre a tua cara, como se fossem um tratamento facial. As imagens tornam-se pornográficas quando, para cá de toda a hermenêutica, excitam imediatamente o olhar como se fora o sexo. É pornográfico o contacto imediato, a copulação de imagem e olho.

 

E é este excesso de visibilidade, a sobreprodução pornográfica de sexo, que acaba com o sexo. Após se ver o filme de von Trier, é uma evidência concluir-se que a pornografia destrói mais eficazmente a sexualidade e o erotismo que a moral e a repressão. O excesso, a demasia, uma das caraterísticas da sociedade atual.

 

Se quisermos aprofundar um pouco mais o problema da sedução, ouçamos o que Sartre tem para nos dizer:

 

Na sedução, eu não tento sequer descobrir no outro a minha subjetividade […] Seduzir, é assumir totalmente e como um risco a correr, a minha objetividade para com o outro, é colocar-me sob o seu olhar e fazer-me ver por ele, é correr o perigo de ser visto para me apropriar do outro na e pela minha objetividade. Recuso-me a deixar o terreno da minha objetividade: é sobre esse terreno que eu quero conduzir a luta tornando-me objeto fascinante […]

 

Curiosamente, Baudrillard, em As estratégias fatais, vai fazer notar a Sartre que esse jogo de sedução é recíproco, contando a história cruel de uma mulher a quem um homem escreveu uma carta inflamada em que lhe pedia uma resposta: «Que parte de mim vos seduziu mais?», perguntou ela. Ao que ele responde. «Os vossos olhos». Na volta, recebeu uma pequena caixa contendo o olho que tanto o seduzira.

Sobre esta pequena história, Baudrillard vai escrever páginas e páginas. Recordemos o que ele dizia de si próprio:

 

Eu não sou nem filósofo, nem sociólogo, não segui a trajetória académica, nem a via institucional. Estou na Universidade em sociologia, mas não me reconheço na sociologia, nem na filosofia filosofante. Teórico, assim o penso, metafísico, no limite, moralista, não sei. O meu trabalho nunca foi universitário, nem mesmo literário. Ele evolui, torna-se menos teórico, sem se escusar a fornecer provas nem de as apoiar sobre referências.”

 

 

Nota: Sugiro a leitura do artigo “A pornografia como cultura civilizacional”, publicado neste blog a 28 de novembro de 2018 (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2018/11/).

 

 

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