Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(317) A fé como crédito, o crédito como fé.

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate” (“Vós que entrais, abandonem toda a esperança”), inscrição que Dante coloca na fachada da porta que dava entrada para o Inferno.

 

O cristianismo, na época da Reforma, não favoreceu o aparecimento do capitalismo, ele transformou-se em capitalismo, Walter Benjamin.

 

O Banco, que não é mais que uma máquina de fabricar e de gerar o crédito, tomou o lugar da Igreja e, governando o crédito, manipula e gera a fé - a confiança rara e incerta – que o nosso tempo ainda tem nele próprio, G. Agamben.

 

 

 

 

 

No dia 15 de agosto de 1971, o presidente americano Richard Nixon declarou o fim da convertibilidade do dólar em ouro. A partir desse momento, aquela inscrição nas notas que dizia: «Prometo pagar ao portador o valor de …», com a assinatura do governador do Banco Central, deixava de ter qualquer significado.

Ou seja, a partir dessa altura, a quem quisesse trocar essa nota, o banco central deixava de lhe dar uma certa quantidade de ouro, substituindo-a apenas por outra nota em papel exatamente igual. O dinheiro ficava esvaziado de qualquer valor que não fosse o seu próprio valor como auto-referencial. De um golpe, todo o património em ouro dos detentores de moeda ficava anulado.

E, contudo, esta revolução quase não provocou ondas, tendo sido pacificamente aceite. Talvez porque esse processo de desmaterialização da moeda já se tivesse vindo a iniciar séculos antes, com o açambarcamento e a escassez das moedas metálicas, as letras de câmbio, as notas de banco, os juros, etc.

Na realidade, todas essas moedas em papel não passavam de títulos de crédito, sendo por isso chamadas de moeda fiduciária, por oposição à moeda metálica que valia o seu peso em metal precioso (a não ser nos casos de manipulação, como nas moedas em prata de Frederico II, que assim que começavam a ser usadas lhes caía a patina passando a vermelhas de cobre).

 

 

Os saberes, ou a sua revelação, parece também terem moda, surgindo e agrupando-se em épocas, ou pelo menos assim nos aparecem quando observados com a distância do tempo. Por exemplo, naquela que foi a segunda dezena dos anos do século passado concentraram-se algumas preocupações relativas à equiparação do sistema económico com a religião:

 

Max Weber (1864-1920) começa por nos chamar a atenção para a relação que via existir entre o protestantismo e a origem do capitalismo, com o seu, agora clássico, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, (1904-5, revisto e aumentado em 1920).

 

Ernst Bloch (1885-1977), no seu livro sobre Thomas Münzer, théologien de la Révolution, (1921), ao denunciar a doutrina de Calvino como uma manipulação que iria “destruir completamente” o cristianismo e introduzir “elementos de uma nova ‘religião’, a do capitalismo elevado ao estatuto de religião”, vai ser o   primeiro autor a chamar a atenção para o capitalismo como uma nova religião.

 

Coube, no entanto, a Walter Benjamim (1892-1940), ser o primeiro a caraterizar o capitalismo como fenómeno religioso que se desenvolve de uma forma parasitária a partir do cristianismo.

Infelizmente, O capitalismo como religião, constando de menos de meia dúzia de páginas densas, provavelmente escritas em finais de 1921, com notas e referências bibliográficas para futura expansão, pretendendo demonstrar que o capitalismo não era apenas uma formação condicionada pela religião (o que já fora feito por Weber), mas que era um fenómeno essencialmente religioso, foi apenas publicado postumamente em 1985.

Começando com a frase “É preciso ver-se no capitalismo uma religião”, e com a constatação que “O cristianismo, na época da Reforma, não favoreceu o aparecimento do capitalismo, ele transformou-se em capitalismo”, passa de imediato a definir as suas três caraterísticas:

 

A primeira, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez a mais cultual das que até agora tenha existido. Nada nele tem significado a não ser que seja de imediato relacionado com o culto, não há dogma específico nem teologia. O utilitarismo ganha, deste ponto de vista, a sua coloração religiosa.”

 

Ou seja, as práticas utilitárias do capitalismo, investimentos, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias, são o equivalente a um culto religioso. O capitalismo não pede a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma teologia, o que conta são as ações que mostram pela sua dinâmica social, práticas cultuais.

 

A segunda característica, é a desse culto ser permanente, uma “celebração de um culto sem trevas e sem agradecimentos”.

Nele, não é possível distinguir entre os feriados e os dias de trabalho, pois a jornada é única e sem interrupções, em que o trabalho coincide com a celebração do culto. As práticas capitalistas não conhecem pausa, dominam a vida do indivíduo de manhã até à noite, da primavera ao inverno, do berço à tumba.

 

A terceira característica, é que “O capitalismo é provavelmente o primeiro exemplo de um culto que não é expiatório, mas culpabilizante […] Uma consciência monstruosamente culpada que não sabe expiar-se ampara-se no culto, não para expiar a sua culpabilidade, mas para a tornar universal […] e, por fim e sobretudo, para implicar Deus nessa culpabilidade […]. Deus não está morto, mas ele foi incorporado no destino do homem”.

 

Ou seja, revisitando Weber para quem a obtenção de fortuna económica era para os calvinistas um sinal de eleição, e em que os pobres eram culpados por terem falhado ao não conseguirem fazer dinheiro e por se terem endividado. Mas, se os pobres são culpados e excluídos da graça, e se no capitalismo eles estão condenados à exclusão social, é porque isso é “a vontade de Deus”, ou, na religião capitalista, a vontade dos mercados.

E se nos colocarmos do ponto de vista dos pobres e endividados, é Deus que é culpado, e com ele, o capitalismo. Em qualquer dos casos, Deus aparece intrinsecamente associado ao processo de culpabilização universal.

 

A culpabilidade dos humanos, o seu endividamento para com o Capital sendo perpétuo e crescente, não permite qualquer esperança de expiação. O capitalista deve constantemente crescer e alargar o seu capital, sob pena de desaparecer face aos seus concorrentes, e o pobre deve pedir emprestado o dinheiro para pagar as suas dívidas.

Daí o desespero sem qualquer esperança, que Marx vai exemplificar ao recordar a inscrição que Dante coloca sobre a porta da fachada que dá entrada para o inferno: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate” (“Vós que entrais, abandonem toda a esperança”), dizendo que essas são as palavras que o capitalismo coloca à entrada de cada fábrica.

 

 

Mas se quisermos saber mais sobre que religião é o capitalismo, será avisado seguir o estudioso e especialista em línguas antigas, Giorgio Agamben, no seu livro, Criação e anarquia. Eis o que ele nos diz:

 

O termo pistis, é o termo grego empregue por Jesus e os apóstolos para exprimir a “”. Mas, pistis significa em grego “crédito”. Assim que pistis, a fé, era o crédito que todos nós encontramos em Deus e da confiança da palavra que Deus goza entre nós, desde o momento em que acreditemos nele. Como diz São Paulo «a fé é a substância das coisas esperadas».

O que Paulo quer dizer é que aquele que tem fé, que pôs a sua pistis em Cristo, segue a palavra de Cristo como se ela fosse a coisa, o ser, a substância.

 

O creditum, é o particípio passado do verbo latim crer: é aquilo em que nós acreditamos, aquilo em que depositamos a nossa fé como quando estabelecemos uma relação fiduciária com qualquer um colocando-o sobre a nossa proteção ou emprestando-lhe dinheiro ou quando nos pomos sob a sua proteção ou quando nos empresta dinheiro.

A ser assim, então o capitalismo é uma religião totalmente fundada sobre a fé, mas na qual o culto se emancipou de qualquer objeto e a culpabilidade se emancipou de todo o pecado, portanto de toda a possibilidade de redenção. Não persegue qualquer objetivo superior, acredita apenas pelo facto de acreditar no crédito ou no dinheiro.

Daí que o capitalismo seja uma religião na qual a – o crédito – se substitui a Deus. Dito de outra forma, uma vez que a forma pura do crédito é o dinheiro, o capitalismo é uma religião cujo Deus é o dinheiro.

 

Isso significa que o Banco, que mais não é que uma máquina de fabricar e de gerar o crédito, tomou o lugar da Igreja e, governando o crédito, manipula e gera a fé - a confiança rara e incerta – que o nosso tempo ainda tem nele próprio.

Estamos, portanto, perante uma sociedade em que a religião é o crédito, que apenas acredita no crédito, e que, portanto, está condenada a viver a crédito.

 

 

Há, contudo, diferenças fundamentais entre a religião capitalista e a religião cristã. A filosofia cristã da história tem por base a noção que o tempo histórico da humanidade e do mundo é finito: iniciando-se com a criação, vai até ao fim dos tempos, até esse dia do Julgamento final, da salvação ou condenação.

Mas, dentro deste tempo histórico cronológico, o acontecimento messiânico inscreve-se num outro tempo no qual cada instante se mantém sempre em relação direta com o fim, numa experiência diária dum tempo com finalidade e fim, em que a redenção e o julgamento abrem sempre a possibilidade de um novo começo.

Já a religião capitalista é essencialmente infinita, sem possibilidade de redenção ou julgamento. Não há, portanto, recomeço. E é exatamente por isso que está sempre à beira de uma crise, num estado de crise permanente, num estado de exceção tido como seu estado normal.

Ao propor essencialmente a falha, e não a redenção, o desespero e não a esperança, o capitalismo, contrariamente à religião que visa a transformação do mundo, visa antes a sua destruição.

 

(316) Os que sabem, os que julgam saber e os outros.

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Se às pessoas lhes for dita uma mesma coisa muitas vezes, elas acabarão por acreditar nela.

 

A Igreja e Galileu: para a Igreja não era assim tão importante que a Terra andasse ou não à volta do Sol, o importante era que tal só fosse comunicado pela Igreja.

 

O crescimento económico dos chineses atesta o sucesso das prioridades da política americana.

 

A verdadeira ameaça da China não é militar nem geopolítica, mas antes ideológica.

 

O objetivo final é garantir a supremacia do capitalismo global americano, M. Parenti.

 

 

 

 

 

A propósito de saberes, convém sempre ter em consideração o que Zizek disse sobre a polinização feita pelas abelhas e a extinção das colmeias:

 

Há coisas que sabemos que sabemos (a vulnerabilidade das abelhas aos pesticidas), coisas que sabemos que não sabemos (o modo como as abelhas reagem às radiações causadas pelos homens), mas também, e acima de tudo, há não-saberes não-sabidos (o modo como as abelhas interagem com o seu meio, que não só ignoramos como não sabemos sequer que existem) e saberes não-sabidos (os preconceitos antropocêntricos que distorcem o estudo que delas fazemos).

 

Foi num estudo da Universidade de Villanova e da Universidade de Temple, efetuado em 1977 por Lynn Hasher, David Goldstein e Thomas Toppino, que se conseguiu demonstrar que temos uma tendência para acreditar que uma falsa informação passa a ser correta se for repetida muitas vezes.

Vale a pena inteirarem-se do estudo, quanto mais não seja pelo método utilizado para que pudesse ser validado: a um grupo aleatório, mas sempre o mesmo, de estudantes universitários, foi pedido para de uma série de 60 afirmações, indicarem quais seriam as falsas e as verdadeiras. As afirmações não versavam sobre matérias curriculares, mas de cultura geral, desde política, governo, geografia, demografia, religião, costumes, desporto, artes, e eram-lhes apresentadas em três sessões espaçadas de duas semanas.

A lista apresentada continha um conjunto de afirmações de referência, verdadeiras e falsas, que era repetido, ou não, ao longo das sessões. Da combinação e interseção entre elas, concluíram que a repetição de uma afirmação plausível faz aumentar na pessoa o referencial de validade ou verdade dessa afirmação, ou seja, “se às pessoas lhes for dita uma mesma coisa muitas vezes, elas acabarão por acreditar nela”.

 

Isto significa que quanto mais formos expostos a uma mensagem, mais ela se vai tornando familiar. E o que nos aparece como familiar é tido como verdadeiro. Isto porque as coisas que são familiares requerem um menor esforço para processar, porque essa sensação de descontração, de à vontade, inclina-nos inconscientemente a considerar que é verdade.

Curiosamente, o oposto também é verdadeiro. Se alguma coisa for difícil de aceder, de pensar, as pessoas tendem a acreditar menos que possa ser verdadeira. Persuadir alguém sobre uma ideia complicada é quase sempre tempo perdido.

A conclusão que os sempre atentos propagandistas retiram é: se as ilusões são mais fáceis de produzir, para quê preocuparem-se em nos contar a verdade?

 

Por isto ouvimos e vemos os anúncios dos mesmos produtos vezes sem conta. Por isso ouvimos os políticos a repetirem vezes sem conta as mesmas mensagens, mesmo que nada tenham que ver com o que se lhes pergunta. Por isso ouvimos a comunicação social a repetir as mesmas opiniões hora após hora, dia após dia.

 

Diz a sabedoria popular que sendo o burro um animal teimoso (talvez por não ser tão burro quanto isso), há apenas duas formas para o fazer andar: ou com pau ou com cenoura. Com as pessoas passa-se quase o mesmo: se quisermos tirar um bocado de pão a alguém, ou lhe batemos ou lhe aparecemos fortemente armados. Não parece haver muitas outras formas para individualmente as “convencer”.

Já para um grande número de pessoas o melhor processo será convencê-las, e para as convencer o melhor será através de uma narrativa construída e não através de uma explicação do mundo real. E isto porque uma narrativa sobre o mundo é sempre mais fácil de entender que uma explicação do mundo real. Daí que se despenda imensa energia e dinheiro para se controlarem as narrativas dominantes, as histórias dominantes que as pessoas contam sobre o que está a acontecer no mundo.

 

Convençam-se as pessoas de que um chefe de governo de um país é um ditador feroz que oprime o povo e que se torna necessária uma mudança de regime, e ficamos com uma narrativa mais aceitável do que a realidade do mundo que é a ambição pelo controle de uma região geoestratégica, ou petrolífera, ou outra.

Convençam-se as pessoas com a narrativa que o mundo em que vivemos é o melhor dos mundos e que qualquer tentativa para o mudar degeneraria em catástrofe, e conseguiremos que as pessoas nunca se revoltem deixando o mundo nas mãos dos que controlam a narrativa.

Convençam-se as pessoas com a narrativa que todos aqueles que questionem essa narrativa são perigosos conspiradores ou propagandistas russos ou chineses (isto nestes tempos em que agora vivemos, porque outros se seguirão), e continuarão a manter o controle hegemónico sobre as narrativas do mundo.

 

É o que atualmente se tem estado a passar com o aumento desenfreado da desinformação, das teorias de conspiração, da propaganda sobre o exterior. E isso acontece apesar dos cuidados que os nossos governantes dizem ter para connosco tentando proteger-nos das mentiras, mas exatamente porque eles pretendem serem os únicos autorizados a administrar as narrativas. Tal como aconteceu com a Igreja e Galileu: para a Igreja não era assim tão importante que a Terra andasse ou não à volta do Sol, o importante era que tal só fosse comunicado pela Igreja.

 

Vivemos nos tempos em que o botão de pânico sobre russos e chineses foi premido, originando posições caricatas, absurdas e desonestas, como quando os campeões da liberdade de imprensa e da idoneidade, o The New York Times, publicou em 20 de novembro de 2020 um anúncio a pedirem colaboradores, desde que satisfizessem as seguintes condições para serem contratados:

 

A Rússia de Vladimir Putin continua a ser uma das maiores histórias do mundo.

Envia agentes armados com gases de nervos letais para serem usados contra os seus inimigos, mais recentemente contra o líder da oposição Aleksei Navalny. Os seus agentes cibernéticos semeiam o caos e a desarmonia no Ocidente para desarticular os sistemas democráticos, enquanto promove a sua falsa versão de democracia. Envia agentes militares privados para todo o mundo para espalhar secretamente a sua influência. No seu país, os hospitais estão rapidamente a encherem-se com pacientes Covid, enquanto ele se esconde no seu palácio.

 Se isto lhe soa como um lugar que deseja cobrir, então temos uma boa notícia: teremos uma vaga para um novo correspondente, pois Andy Higgins passará a ser o nosso próximo chefe do Escritório para a Europa Oriental no início do próximo ano.

Concorra.”

 

Ou como quando os governantes dos EUA, acusam a China de nada estarem a fazer para cumprirem com as metas da poluição e simultaneamente dão luz verde para que o Japão lance para o mar as águas radioativas de Fukushima.

 

 

A questão é: porque foi agora premido o botão de pânico? Porque se acusa agora a China de tudo (“The Elements of the China Challenge”)?

 

Comecemos por lembrar que foram as políticas decididas pelos governos dos EUA que permitiram o desenvolvimento económico da China, com grandes vantagens para as empresas americanas e para o povo americano porque tal lhes permitiu baixar internamente os preços das mercadorias. Aliás, foram exatamente as mesmas políticas que os EUA seguiram relativamente à Coreia do Sul e Taiwan. Ironicamente, pode-se, pois, dizer que o crescimento económico dos chineses atesta o sucesso das prioridades da política americana.

Acusar os chineses de seguirem uma política de empréstimos ao estrangeiro que leva os países pobres à ruína, endividando-os sem saída (o que não corresponde à verdade), é o mesmo que premiá-los por serem os bons alunos do Fundo Monetário Internacional.

 

Quando a China procedeu à anexação do Tibete, bloqueou diplomaticamente Taiwan, e colonizou internamente Xinjiang, é bom lembrar que o fizeram a coberto da consideração de serem parte do que consideram ser a sua pertença interna.

Apesar de tais revindicações serem internacionalmente controversas, elas são infinitamente modestas quando comparadas com as aventuras coloniais americanas: não esqueçamos que os EUA declararam todos os territórios do continente americano como sua extensão, tornando-os interditos para as nações da Europa (Doutrina Monroe). E tudo isto sem considerarmos a execução dos imensos e variados golpes de estado levados a efeito noutras nações, o assassinato de governantes, e a imposição total de sanções a outras nações. Esperemos que a China se contente com a sua pertença interna e não aprenda com os EUA.

 

Perante aquela a ideia de a democratização ser uma consequência natural do crescimento do bem-estar económico, que acabaria por levar as pessoas a fazerem-se mais ouvir junto dos governos (ou seja, que o capitalismo democrático era natural e inevitável, e que só era atrasado pelos comunistas, terroristas ou regimes que não fossem liderados pelos EUA), é bom lembrar que ela só foi possível de realizar quando apoiada numa grande exibição (e intervenção) de forças militares.

Não se pode concluir, só pelo simples facto de os EUA e aliados serem agora a força dominante com o sistema democrático instituído, que o futuro vai nessa direção. Seria como se nos finais dos anos 1000, porque na altura todos os reis Europa eram cristãos, se profetizasse que no fim do segundo milénio todos os países do mundo seriam cristãos.

Será bom lembrar que a China rejeita a democracia liberal, ou seja, rejeita que os mandantes sejam escolhidos com base no sistema de uma pessoa um voto, mas antes que sejam selecionados e promovidos com base em exames, trabalhos executados e critérios como ser membro do partido e lealdade, o que é uma forma bastante diferente do gerrymandaring e das outras maquinações das democráticas eleições americanas. Recordemos que provavelmente o sistema chinês estará mais próximo das conceções do admirado filósofo antidemocrático Platão e de muitos grupos de interesse económico ocidentais que veem no sistema de votação liberal uma “racional irracionalidade”.

 

Na realidade, o que tem acontecido é que os governantes da China têm desempenhado melhor as suas funções que os governantes americanos: é assim que a China não está em guerra desde 1979, tem um número muito menor de mortes por assassinato, muito menor violência política, muito menos tumultos, têm maior número de publicações no campo das ciências naturais, os seus estudantes obtêm melhores classificações quanto ao CI bem como nos exames internacionais (PISA), e começa a aproximar-se rapidamente no campo das patentes. Como já fizera notar D. Kristof:

 

“Um bebé nascido em Shangai tem menos probabilidades de morrer no primeiro ano de vida, e provavelmente aprenderá a ler, e poderá contar com viver mais dois anos que uma criança que nasça em Nova Iorque”.

 

Mas não é o problema da democracia que verdadeiramente preocupa os governantes americanos (se assim fosse, não estabeleceriam amizade com muitos dos que acolhe na sua órbita, como o declaradamente antidemocrático Lee Kuan Yew de Singapura). É o problema de justificarem o seu sistema e o seu papel no mundo quando deixarem de ser a nação mais rica e poderosa do mundo. O que certamente levará muitos americanos a perguntarem-se sobre a validade dos sacrifícios de sangue regularmente feitos, e sobre se o sistema os serviu bem.

Na realidade, a verdadeira ameaça não é militar nem geopolítica, mas antes ideológica. A continuação do sucesso da China, apesar de não beliscar a prosperidade e segurança da maior parte dos americanos, vai impor uma grande ameaça à governança política americana, nomeadamente para saber como é que ela justificará o seu próprio poder, e como é que ela tem percebido e orientado o papel dos EUA no mundo.

A governança americana sabe perfeitamente tudo isto, e muito mais. Daí terem apertado o botão de pânico.

 

 

E já agora, eis o que o economista e historiador americano, Michael Parenti, escreveu no seu livro Superpatriotism (de que aqui se reproduzem algumas citações):

 

O plano do PNAC (Project for the New American Century) prevê um confronto estratégico com a China e uma presença militar permanente ainda maior em todos os cantos do mundo. O objetivo não é apenas o do poder por si mesmo, mas o poder para controlar os recursos naturais e os mercados mundiais, o poder para privatizar e desregulamentar as economias de todas as nações do mundo e o poder para colocar às costas dos povos em todos os lugares, incluindo na América do Norte- as bênçãos de um "mercado livre" global sem entraves. O objetivo final é garantir não apenas a supremacia do capitalismo global como tal, mas a supremacia do capitalismo global americano, evitando o aparecimento de qualquer outra superpotência potencialmente competitiva.”

 

 

 

 

Nota:

A reler, blog de 13 de setembro de 2016, “Mecanismos de dissimulação e de autoilusão”.

A reler, artigo de 23 de janeiro de 2019, “Cuidado com aquilo em que acreditam” https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/199-cuidado-com-aquilo-em-que-52619.

 

(315) Amazon: um indicador do futuro

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

O Big Mac Index  é o que nos permite decidir sobre o preço com que o hambúrguer da McDonald é posto à venda nos vários países do mundo.

 

O racional da Amazon não é o de procurar levar os seus rivais a perderem os seus negócios, mas sim a de levá-los a utilizarem-na para os seus negócios, ao ponto de ela lhes ser indispensável.

 

Torna-se complicado explicar como é que uma empresa que proporciona enormes benefícios aos consumidores, que revolucionou o comércio eletrónico em geral, possa ser acusada de ameaça aos mercados.

 

Na China, Jack Ma, o dono da Alibaba, já foi posto no seu devido lugar. Veremos o que acontecerá com Bezos. Muito provavelmente, reformar-se-á livre e democraticamente.

 

 

 

 

Estava-se na altura em que o “mundo” se “preocupava” em saber o custo de vida nos vários países, gastando fortunas com variados estudos de mercado que lhe permitisse conhecer essa variável essencial que iria determinar o preço a que os seus produtos deveriam, poderiam, ou não, serem vendidos nessas regiões.

Estudos complexos, científicos, falíveis, mas imprescindíveis para as superiores tomadas de decisão. Um dos economistas envolvidos, apresentou, contudo, uma solução simples e eficaz: verificar nos vários países o preço com que estava a ser vendido o hambúrguer da McDonald. Foi assim que apareceu o famoso Big Mac Index, indicador do então presente para o futuro presente.

 

Ultimamente, têm aparecido na comunicação social variados artigos sobre a Amazon. Sempre que isto acontece, significa que algo se está a passar, ou se vai passar. Das queixas sindicais de sindicatos (que ainda não existem) que passaram a chegar à grande comunicação “sucial” (de sucia), aos apelos governamentais e interpartidários para o redimensionamento da empresa, ao antagonismo narcisístico de Trump motivado pela compra do Washington Post por Bezos, a Amazon não deixa de colecionar poderosos inimigos em vários quadrantes da nação americana.

Como todos sabem, a Amazon é destacadamente a número um do comércio do século XXI. Além de retalhista, é também plataforma de marketing, rede de entrega e de logística, serviço de pagamento, credor, casa de leilões, grande editora de livros, produtora de televisão e filmes, designer de moda, fabricante de hardware e líder hospedeiro de espaço na “nuvem”. Tudo isto, e provavelmente mais.

 

Forma de operar

 

A Amazon começou como simples distribuidora online: procurava nos fornecedores produtos a preços reduzidos e vendia-os aos consumidores a preços de retalho. Em 1999 introduziu a Auctions, um serviço online de licitações, e a zShops, um negócio de mercado a preço fixo, plataforma eletrónica em que outros comerciantes podiam colocar produtos para venderem diretamente aos consumidores.

 Em vez de venderem à Amazon, os comerciantes colocavam os seus produtos na plataforma de mercado da Amazon, o que lhes permitia controlarem os seus preços de venda e de transporte. Para a Amazon, isto permitia-lhe aumentar significativamente os produtos a vender no catálogo da sua plataforma, libertando-a do risco de ter de ficar em armazém com grandes quantidades de produtos comprados.

Esse enorme aumento de produtos constantes da listagem, ajudou a Amazon a tornar-se no mercado online dominante nos Estados Unidos. A quota de mercado da Amazon no comércio eletrônico é hoje mais do dobro da dos seus mais próximos nove concorrentes juntos, e mesmo os comerciantes que põem os seus produtos noutros sites, contam com a Amazon para lhes garantir até 90% das vendas. Para muitos comerciantes, “não estar na Amazon não é uma opção”.

 

As vendas na plataforma de mercado eletrónico (Marketplace) são uma parte lucrativa e em grande expansão dos negócios gerais da Amazon. Dependendo do plano contratualizado, a Amazon cobra aos comerciantes uma taxa de assinatura mensal de 39,99 dólares ou uma taxa fixa de 99 cêntimos de dólar por item, bem como uma percentagem por transação.

Os analistas estimam que 52% dos bens unitários e 68% das vendas totais da Amazon em 2018, tiveram a sua origem em comerciantes do Marketplace. As taxas de serviço que a Amazon cobra a terceiros vendedores, corresponderam a 42,75 biliões de dólares em 2018, cerca de 18% das vendas líquidas da empresa, tornando-se no seu segundo maior segmento de receita. A receita destas comissões do vendedor ultrapassa as vendas gerais online da Amazon.

 

Além de servir como um importante mercado para vendedores terceiros, a Amazon passou também a vender na sua plataforma, produtos com a marca Amazon. Em 2009, baterias e cabos HDMI, foram as primeiras mercadorias de marca própria a serem postas à venda.

Na década seguinte, a marca própria expandiu-se, passando a incluir brinquedos, sapatos, roupas, joias, café, lenços humedecidos, móveis, colchões, vitaminas, toalhas e alimentos para animais de estimação.

Hoje, a Amazon tem cerca de 137 marcas próprias. A Amazon não define claramente se são marcas próprias suas ou marcas exclusivas da Amazon, deixando que sejam os interessados a identificarem as marcas da Amazon através da busca nos registros de marcas registradas. No seu site, a Amazon descreve marcas próprias e marcas exclusivas como “As nossas marcas”.

 Para se ter uma ideia de quantos produtos podem ser vendidos sob a marca própria da Amazon, em 2017, apenas uma dessas marcas - AmazonBasics – incluía 1.506 produtos diferentes para venda. Os analistas estimam que as vendas de marcas próprias da Amazon, totalizaram 7,5 biliões de dólares em 2018 e chegarão a 25 biliões de dólares em 2022.

 

A Amazon explora esta dupla função - operador de mercado e comerciante de mercado – por duas maneiras: primeiro, utilizando políticas de mercado que privilegiam a Amazon como vendedora, o que lhe permite maior controle sobre marcas e preços e, segundo, apropriando-se das informações de negócios de terceiros comerciantes.

Uma forma pela qual a Amazon tem favorecido os bens e serviços da Amazon é apresentando-se como a vendedora padrão, mesmo quando os fornecedores do Marketplace oferecem preços mais baixos. Uma investigação da ProPublica descobriu que a Amazon cria o seu algoritmo de classificação por forma a favorecer os seus próprios produtos, bem como aqueles vendidos por comerciantes que compram os serviços de atendimento da Amazon.

Uma vez que cerca de 82% das vendas da Amazon vão para o topo da lista - ou seja, quem aparece primeiro na "Caixa de Compra" da Amazon - este tratamento preferencial é uma vantagem frequentemente decisiva.

A Amazon também parece ter produtos privilegiados próprios em listagens promocionais. De acordo com o The Capitol Forum, a Amazon dá prioridade ás suas próprias marcas de roupas no espaço designado para vendas patrocinadas e restringindo o acesso dos concorrentes a essa colocação, direcionando assim os consumidores para os seus próprios produtos em vez dos postos à venda pelos concorrentes. Mesmo quando um cliente entra na página do produto de um comerciante do Marketplace, a Amazon exibe anúncios e pop-ups de destaque encaminhando os clientes para os próprios produtos da Amazon.

 

Uma segunda maneira pela qual a Amazon se beneficia como vendedora, é através da implementação das políticas da Marketplace que lhe permitem tornar-se o comerciante exclusivo de certos produtos. De acordo com as notícias, a Amazon incentiva as marcas a venderem-lhe diretamente em troca do compromisso da Amazon fazer cumprir os preços mínimos anunciados da marca (PMA) na Amazon. Cumprindo esta política, a Amazon expulsa quaisquer terceiros que vendam abaixo do PMA, às vezes deixando a Amazon como o único vendedor sobrante.

Por exemplo, a Amazon usou esta estratégia para se tornar no único comerciante na Amazon a vender um tipo específico de filtro de água. Antes do início do PMA pela Amazon, competiam no mercado por esse filtro de água, trinta vendedores. Desde que se tornou o único comerciante desses filtros na Amazon, a empresa tem aumentado os preços de forma constante.

Em novembro passado, a Amazon assinou um acordo para se tornar um revendedor autorizado de dispositivos da Apple - um acordo que levou a Amazon a remover qualquer produto Apple vendido por comerciantes do Marketplace que não fossem revendedores autorizados da Apple.

Como um dos requisitos para se tornar um revendedor autorizado da Apple inclui a compra de uma determinada quantidade mínima de produtos diretamente da Apple, a maioria dos comerciantes independentes não poderá vender produtos da Apple na Amazon.

Outra mudança de política instituída pela Amazon é a de exigir que certas marcas no Marketplace vendam por atacado para a Amazon - concedendo à Amazon a capacidade para definir o preço de varejo e manter acesso exclusivo a certas vendas e aos dados de clientes.

 

Em teoria, os esforços da Amazon para firmar acordos exclusivos ou semi-exclusivos com marcas, poderiam ser entendidos como um esforço da Amazon para combater as falsificações, que proliferam na Amazon.

Mas, na prática, a Amazon também parece usar a sua capacidade de decisão sobre se policiará mais ou menos essas falsificações, utilizando essa capacidade como meio para obter vantagens sobre marcas que, de outra forma, poderiam abster-se de vender na Amazon.

A Nike, por exemplo, durante anos recusou-se a listar os seus produtos na Amazon. Diante de uma situação em que os comerciantes vendiam no Marketplace produtos Nike autênticos e falsos, a Nike acabou por assinar um acordo para vender por atacado para a Amazon em troca de um policiamento mais rígido das falsificações.

Um executivo da Birkenstock - que deixou de fornecer produtos para a Amazon em 2017 - afirmou que a única maneira de uma marca ou fornecedor conseguir que a Amazon se comprometa totalmente com o policiamento das falsificações é vender o seu catálogo inteiro para a Amazon.

Mesmo que a Amazon garanta professar uma política de "tolerância zero" para com produtos falsificados, há relatos que sugerem que não apenas a empresa “resistiu a apelos para fazer mais para policiar o seu site”, mas que até “prosperou” com essa prática, dada a vantagem adicional que os falsificadores dão à Amazon sobre marcas e comerciantes.

Na verdade, os vendedores que se enfrentam com qualquer série de dificuldades no site da Amazon - desde suspensões abruptas de contas, a campanhas de sabotagem por rivais - aprendem rapidamente que "a solução é muitas vezes fundir-se mais plenamente com a Amazon" por forma a propiciarem à Amazon mais receita, mais controle, ou maior acesso às informações comerciais confidenciais de um comerciante.

No início deste ano, a Amazon anunciou que os vendedores com interesse em combater os falsificadores e controlar outros problemas na sua plataforma, poderiam adquirir um novo serviço da Amazon por 30.000 a 60.000 dólares ao ano.

Separados por políticas que explicitamente ou implicitamente exigem que os comerciantes e vendedores comprem serviços adicionais da Amazon, os vendedores deparam-se com formas ainda mais subtis de discriminação. Existem vários outros meios pelos quais a Amazon pode desfavorecer qualquer comerciante em particular: ela pode suspender ou encerrar contas a qualquer momento, reter fundos do comerciante, alterar a exibição de páginas e restringir ou bloquear avaliações favoráveis.

 

Além de implementar as políticas do Marketplace que favorecem as vendas diretas da Amazon, a Amazon apropria-se dos dados dos comerciantes do Marketplace para moldar a sua própria estratégia de varejo. A capacidade da Amazon para colecionar e analisar dados de comércio eletrónico, é incomparável. Embora as grandes lojas físicas possam também rastrear o histórico de compras dos consumidores e as vendas da marca, as informações que a Amazon coleciona são muito mais sofisticadas e precisas.

Além de rastrear tendências gerais, ela fica a saber quais foram as mercadorias em que um cliente clicou, mas não comprou, a mudança exata de preço que induziu um cliente a examinar um item ou a comprá-lo, quanto tempo um usuário passa o rato sobre um determinado produto, como os clientes estão a reagir a imagens e vídeos de produtos e a uma série de outros micro detalhes que se somam a um formidável - e em constante evolução - arsenal de pesquisa de mercado.

É como se um Centro Comercial rastreasse não apenas todo o tráfego de passantes numa loja, mas também quais os itens que chamaram a atenção do cliente, quais os produtos que foram para o carrinho de compras mas nunca foram comprados, bem como dados completos de transações e receitas e das opiniões de todos os consumidores. Todas essas informações são colecionadas não apenas sobre os produtos que a Amazon vende, mas também sobre os de terceiros comerciantes, dando à Amazon uma vantagem sem precedentes sobre 50% do comércio eletrónico nos Estados Unidos.

 

Os relatórios sugerem que a Amazon usa esse tesouro de dados do Marketplace para conhecimento dos seus negócios de varejo e das suas marcas próprias. Em alguns casos, a Amazon respondeu a itens populares introduzidos por terceiros comerciantes, obtendo os mesmos produtos diretamente do fabricante e relegando para mais baixo os terceiros comerciantes nos resultados de pesquisa. Um estudo descobriu que, no caso de roupas femininas, a Amazon “começou a vender pela primeira vez 25% dos principais itens que eram inicialmente vendidos pelos vendedores da sua plataforma de mercado”.

Enquanto isso, a sua marca própria também acompanha de perto os itens de sucesso do Marketplace. Embora a AmazonBasics - a marca privada da Amazon - se concentrasse inicialmente em produtos genéricos como baterias e DVDs virgens, ela expandiu-se para uma gama muito mais ampla de produtos. Por alguns anos, "a marca da casa ‘dormia em silêncio enquanto retinha dados sobre o sucesso de outros vendedores'."

À medida que a Amazon começa a lançar mais produtos AmazonBasics, torna-se claro que a empresa usou “informações privilegiadas obtidas na sua vasta loja na Web para construir um rolo compressor de marca própria, que agora inclui mais de 3.000 produtos”.

Parece ainda interessante referir o modo como a Amazon oculta os aumentos de preços: através de flutuações rápidas e constantes de preços, e pela personalização de preços. As flutuações constantes de preços diminuem a capacidade do cliente para discernir as tendências dos preços. Segundo um relato, a Amazon muda os preços mais de 2,5 milhões de vezes por dia. A Amazon também consegue ajustar os preços a cada um dos consumidores, o que é conhecido como discriminação de preço de primeiro grau. Nada que os retalhistas online não estejam também a fazer, e para o qual têm dedicado recursos significativos.

 

Estratégia adotada

 

A forma de operar da Amazon reflete a filosofia de negócios que Bezos delineou desde o início. Na sua primeira comunicação aos acionistas, Bezos escreveu:

 

Acreditamos que uma medida fundamental do nosso sucesso será o valor que criarmos a longo prazo para o acionista. Esse valor será o resultado direto de nossa capacidade em conseguirmos ampliar e solidificar a nossa atual posição de liderança no mercado […] Em primeiro lugar, para liderarmos o mercado, estabelecemos para nós próprios os indicadores mais exigentes: crescimento do cliente e da receita, o grau com que os clientes nos continuem a comprar com frequência, e a força da nossa marca. Investimos e continuaremos a investir agressivamente para expandir e alavancar a nossa base de clientes, a nossa marca e a nossa infraestrutura à medida que nos movemos para estabelecer uma franquia duradoura.

“[…] Nesta fase, optamos por dar prioridade ao crescimento porque acreditamos que a escala é fundamental para atingir o potencial do nosso modelo de negócios.”

 

Ou seja, a premissa do modelo de negócios da Amazon era ganhar escala. Para ganhar escala, a empresa deu primazia o crescimento. Para isso, o investimento agressivo seria fundamental, mesmo que tal significasse cortar preços ou gastar biliões na expansão da capacidade: a finalidade era de vir a ser o balcão único dos consumidores.

Muito mais sofisticadamente do que até aí se pensava, o racional da empresa não era a de procurar levar os seus rivais a perderem os seus negócios, mas sim levá-los a utilizarem para os seus negócios a Amazon, ao ponto de ela ser-lhes indispensável.

 

A Amazon controla 46% de todo o comércio eletrónico nos Estados Unidos. Em 2010, empregava 33.700 trabalhadores; em junho de 2016, tinha 268.900; em finais de 2020 tinha, a nível mundial, 1 milhão e 300 mil. Mesmo em setores em que entrou recentemente, o seu sucesso foi rápido. Por exemplo, “nos próximos cinco anos deve triplicar a sua participação no mercado de vestuário dos EUA”. As vendas no setor de vestuário aumentaram recentemente em 1,1 bilião de dólares – isto mesmo quando as vendas online nas seis maiores lojas de dos EUA tenham caído mais de 500 milhões de dólares.

 

Em conclusão, embora a Amazon tenha vindo a registrar um crescimento impressionante, ela gera lucros escassos devido a uma política de preços abaixo do custo, optando em vez disso, por uma ampla expansão. Foi por meio desta estratégia que a empresa se posicionou no centro do comércio eletrónico, atuando agora como infraestrutura essencial para uma série de outros negócios que dela dependem.

 

Ataques governamentais

 

A Amazon tem sistematicamente utilizado esta estratégia e forma de operar em todas as suas áreas de negócio. O seu sucesso, independência e enorme crescimento têm vindo a incomodar alguns setores políticos, económicos, financeiros e sociais, que pretendem exercer um maior controle, não só sobre a Amazon, mas também sobre outras gigantescas empresas como a Google, Facebook, Microsoft, Apple e similares.

Aparentemente devido aos avanços que a China tem vindo a revelar, os governantes americanos dos dois partidos têm vindo a concluir que se torna necessário uma maior coordenação entre os gigantes económicos num propósito que se quer comum para ultrapassar e derrotar um inimigo que poderá vir a limitar a hegemonia de que até aqui têm gozado (conforme consta do “Relatório Final” dos Serviços de Segurança, blog de 10 março de 2021,https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/310-o-relatorio-final-sobre-o-presente-89932).

Uma das formas de convencer estas empresas a fazerem parte desse programa em que certamente irão perder independência, quota de mercado e lucros, será através da ameaça sobre o seu desmembramento ou limitação de certas atividades, invocando as leis anti monopólio aprovadas pelo Congresso (Sherman Act, 1890) para controlar o poder das grandes organizações empresariais (monopólios industriais) que surgiram no final do século XIX, elaboradas como forma para garantirem a diversidade e acesso aos mercados, para evitarem a alta concentração e abusos de poder, como uma  “receita de bem-estar do consumidor”.

 

O problema que têm os governantes americanos com a Amazon é o da dificuldade da aplicação de qualquer lei antimonopolista, uma vez que a entrada da Amazon em concorrência com os outros comerciantes não afetou o preço dos produtos, nem a satisfação dos clientes. Mais, até universalmente os clientes parecem amar a empresa. Quase metade de todos os compradores online vão primeiro à Amazon para procurar produtos, tendo o Reputation Institute nomeado-a em 2016, pelo terceiro ano consecutivo, como a “empresa mais respeitável da América”.

Ou seja, torna-se complicado de explicar como é que uma empresa que proporciona enormes benefícios aos consumidores, que revolucionou o comércio eletrónico em geral, possa ser acusada de ameaça aos mercados.

 

Daí que, ultimamente, tenham começado a aparecer estudos e artigos que fazem assentar o foco não no preço do produto ou na satisfação do cliente, mas em elementos da sua estrutura e da sua conduta, para demonstrar que ela dissuade outros vendedores de continuarem a oferecer os seus produtos e que os comerciantes, especialmente os pequenos, “são desencorajados a expandir os seus negócios na plataforma”.

Como Lina M. Khan escreve, no seu excelente estudo publicado no The Yale Law Journal, “Amazon’s Antitrust Paradox” (https://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=http://scholar.google.pt/&httpsredir=1&article=5785&context=ylj):

 

 “A doutrina atual subestima o risco de preços predatórios e como a integração entre linhas de negócios distintas pode ser anticompetitiva. Essas preocupações são intensificadas no contexto das plataformas online por dois motivos. Em primeiro lugar, a economia dos mercados de plataforma cria incentivos para que uma empresa procure o crescimento em detrimento dos lucros, uma estratégia que os investidores recompensaram. Nessas condições, o preço predatório torna-se altamente racional - mesmo quando a doutrina existente o trata como irracional e, portanto, implausível. Em segundo lugar, como as plataformas online atuam como intermediários essenciais, a integração entre as linhas de negócios posiciona essas plataformas para controlar a infraestrutura essencial da qual os seus rivais dependem. Essa dupla função também permite que uma plataforma explore as informações colecionadas sobre as empresas que usam os seus serviços para prejudicá-las como concorrentes.”

 

Ou seja, os malefícios que o domínio da Amazon impõe à competição não podem ser reconhecidos se só olharmos para ela através dos mecanismos do preço e da produção. A focalização apenas nesses indicadores cega-nos (“só é cego quem não quer ver”), impedindo-nos de ver os reais conflitos.

A conclusão óbvia que pretendem retirar é de que a Amazon impede o crescimento harmonioso e acelerado do país, começa a ser má para a economia do país, tendo de se colocar à disposição dos governantes na sua política económica centralizada para o combate contra o inimigo.

Na China, Jack Ma, o dono da Alibaba, já foi posto no seu lugar. Veremos o que acontecerá com Bezos nos EUA. Muito provavelmente, reformar-se-á livre e democraticamente, evidentemente.

 

 

 

(314) Pancadinhas de amigo

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A cooperação é algo de comum na natureza, tendo lugar a todos os níveis da complexidade biológica, desde que se verifiquem benefícios diretos imediatos e/ou benefícios futuros indiretos para os parceiros envolvidos.

 

A natureza segue diferentes percursos partindo de pontos diferentes para chegar a resultados semelhantes. A isto chama-seevolução convergente”, Peter Godfrey-Smith.

 

Nunca saberemos como é ser como um polvo, e isto porque a natureza, a evolução, os deuses, separaram, espalharam, democraticamente ou não, a inteligência por várias direções distintas.

 

Se conseguirmos entrar em contacto com um polvo, isso será o mais perto que estaremos de um encontro com um alienígena inteligente.

 

 

 

 

 

Nos últimos tempos, foi notícia na comunicação social, as fotografias e vídeos de polvos a darem pancada a peixes que os acompanhavam em incursões de caça. De um paciente estudo de Eduardo Sampaio, Martim Costa Seco, Rui Rosa, e Simon Gingins, efetuado nas águas de Eilat, Israel, e El Quseir, Egito, publicado a 18 de dezembro de 2020, “Octopuses punch fishes during collaborative interspecific hunting events”, (https://esajournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ecy.3266), o que passou para o grande público foi o facto de os polvos usarem corretivos físicos para com os peixes que não se portavam bem. Tão humanos que são os polvos!

 

O estudo começa por nos dizer que, para aumentar o sucesso das suas excursões de caça, existe uma colaboração entre diferentes espécies de polvos e peixes que se manifesta através de uma série de gestos.

Nos casos observados, os polvos normalmente perseguem as presas em locais rochosos e coralíferos, ao passo que os peixes buscam nas areias do fundo. Nem sempre a interação é pacífica, tendo este estudo revelado que por vezes os polvos sacodem bruscamente alguns parceiros de caçada, dando-lhes um vigoroso piparote com um dos braços.

Numa perspetiva ecológica, o dar propositadamente uma pancada num parceiro, implica sempre um pequeno dispêndio de energia para o agressor, impondo simultaneamente um custo para o agredido. Como estas pancadas foram observadas com diferentes polvos em diferentes locais, isso sugere que elas têm uma determinada finalidade.

Do ponto de vista do peixe, isso pode significar a perca de uma oportunidade para apanhar uma presa, uma recolocação para um local mais afastado e exterior, ou mesmo um afastamento definitivo do grupo.

 Do ponto de vista do polvo, a pancada pode servir como um mecanismo de controle do parceiro, uma forma para conseguir acesso direto à presa, ou para que o peixe se venha a posicionar num local que melhor servirá em expedição futura (uma educação de caça, uma arte de bem cavalgar piscícola). Muitas e variadas interações sociais podem ainda virem a ser observadas e estudadas, que até agora se têm mantido desconhecidas.

A conclusão geral dos biólogos é que “a cooperação é algo de comum na natureza, tendo lugar a todos os níveis da complexidade biológica, desde que se verifiquem benefícios diretos imediatos e/ou benefícios futuros indiretos para os parceiros envolvidos”.

 

Peter Godfrey-Smith, filósofo interessado na importância da biologia para o desenvolvimento da consciência, publicou em 2017, um livro/estudo com o muito apropriado título: Other Minds: The Octopus, the Sea, and the Deep Origins of Consciousness (Outros espíritos: o polvo, o mar e as origens profundas da consciência).

Segundo Smith, a consciência não apareceu no mundo apenas com o formato que assume nos humanos; ela tem mesmo vindo a ser expressa ao longo dos tempos, em variados lugares. Dito de outra forma: a natureza segue diferentes percursos partindo de pontos diferentes para chegar a resultados semelhantes. A isto chama-se evolução convergente.

Partindo dum ancestral comum, um pequeno verme oceânico há 600 milhões de anos, os polvos desenvolveram a sua própria versão de olhos, são hábeis na manipulação dos objetos, são muito curiosos, têm mais de 500 milhões de neurónios dos quais mais de metade estão distribuídos pelos tentáculos que sentem e “pensam” individualmente.

Olhando para eles, nós que temos um cérebro centralizado e eles que têm um cérebro descentralizado, que desempenham funções equivalentes a uma criança de 3 anos, que nos acompanham e reconhecem, que colocados num aquário ao lado de outro com peixes, levantam a tampa dos seus aquários, vão para o aquário do lado, apanham os peixes, regressam de novo ao seu aquário tendo o cuidado de fecharem a tampa para passarem despercebidos, que não gostando de luz muito forte à noite fundem as lâmpadas do aquário atirando-lhes com água, que atiram pedrinhas uns aos outros (para brincarem? Para chamarem a atenção?), levaram Godfrey-Smith a concluir:

 

Se conseguirmos entrar em contacto com polvos como seres sencientes, tal não se fica a dever ao facto de termos uma história comum, não por lhe ganharmos afeto, mas porque a evolução construiu espíritos por duas vezes […] Isto será o mais perto que estaremos de um encontro com um alienígena inteligente”.

 

Estudá-los, é expandir o nosso conhecimento sobre o que é e o que pode ser a consciência. Pelo que, aqueles problemas tão familiares dos dualismos corpo-cérebro, corpo-alma, deixam de ter qualquer sentido:

 

Num polvo, o sistema nervoso como totalidade é mais importante como objeto que o cérebro: não se sabe onde é que o cérebro começa e onde acaba, e o sistema nervoso corre por todo o corpo […] o corpo não é uma coisa separada que é controlada pelo cérebro ou pelo sistema nervoso.”

 

Os tentáculos do polvo são semiautónomos, cada um capaz de empreender sozinho uma exploração dos seus mundos. Antropomorfizando (único modo para o conseguir entender), poderemos dizer que o cérebro central do polvo é como um maestro de orquestra em que cada braço é um intérprete improvisado de jazz, com atenção à estrutura da música, mas vagueando sempre que necessário.

 

Nunca saberemos como é ser como um polvo, e isto porque a natureza, a evolução, os deuses, separaram, espalharam, democraticamente ou não, a inteligência por várias distintas direções.

 

Para Godfrey-Smith, a teoria da evolução de Darwin, assenta em dois sobrepostos. O primeiro é o da noção que todos os organismos estão intrinsecamente relacionados uns com os outros através de um processo separação, representado pela “árvore da vida”. O segundo é que a ideia da seleção natural, de que as variações numa população e as vantagens que tais variações conferem a certos organismos, acabarão por conduzir, à medida que o tempo passar, a uma diversidade biológica.

Ou seja, a enorme complexidade da vida está para ele muito mais ligada a este mecanismo (variações, herança, reprodução) que à teoria genética.

 

 

Se estiverem interessados neste tema, sugiro a leitura do ensaio de Thomas Nagel, publicado na The Philosophical Review, de outubro de 1974, “What Is It Like to Be a Bat?” (Como é ser um morcego?), que iniciou  o debate sobre necessidade de se estudarem outras espécies para se conseguir entender a natureza da consciência.

Já agora, é bom não esquecer que foi o aparecimento do humanismo, ao colocar o homem como sendo o centro do mundo ocupando o lugar do cosmos e da divindade, que fez com que os pensadores dos séculos XVII e XVIII se começassem a debruçar pela primeira vez sobre o problema das diferenças e semelhanças existentes entre os homens e os animais. Só que nesta altura, a finalidade era apenas para conseguirem entender o que tornava o homem tão especial.

Relembrando: Para Descartes, para além do raciocínio, o homem possuía ainda uma outra caraterística diferenciadora, a afetividade. Segundo ele, os animais não passavam de “máquinas engenhosas” que, por isso mesmo, não tinham sentimentos (essa era a razão porque, apesar de terem todos os órgãos que lhes possibilitassem falar, não o faziam, pois não tinham quaisquer estados de alma para exprimir).

Rousseau, discordava destes critérios diferenciadores do raciocínio e da afetividade, porquanto todos aqueles que têm um cão sabem perfeitamente que um cão é mais sociável e mesmo mais inteligente … do que alguns seres humanos.

Segundo ele, o critério diferenciador era antes a “perfetibilidade”, entendida como a faculdade que o homem tem de poder aperfeiçoar-se durante toda a vida, contrariamente ao animal que, orientado pelo instinto, aparece “perfeito de uma só vez” desde o nascimento, como se tivesse um programa a que obedeceria sem nunca se afastar dele.

O homem aparecia, assim, com a capacidade para se libertar desse programa do instinto natural e de fazer a sua própria história, à partida indefinida.

O exemplo de que Rousseau se serviu para demonstrar a sua tese foi o da maldade do homem, não o simples ato de fazer mal (os animais ‘fazem mal’ aos outros animais quando os caçam), mas o fato de o homem ser capaz de organizar-se conscientemente com o objetivo de fazer mal ao seu semelhante.

 O ser humano faz mal a outro, sabe que o faz e, muitas vezes até tira prazer disso. Trata-se de uma escolha voluntária que não faz parte da ordem da natureza, até porque não serve para nada.

O homem tem, pois, a possibilidade de ultrapassar as leis naturais. É a essa possibilidade, que pode ir desde o mal absoluto até à generosidade suprema, que vulgarmente se chama livre-arbítrio (liberdade, para os mais entusiasmados).

 

Nota: Sobre este último assunto, ver blog 168, de 20 de junho de 2018, “O que é ser mexilhão”.

Nota: carregando em cima dos sublinhados, têm acesso direto aos sites respetivos.

Nota final: As minhas desculpas por, pelo menos hoje, não conseguirem almoçar “Polvo à lagareiro”. Exerçam o vosso livre arbítrio ou a vossa liberdade, e decidam não o comer hoje. Amanhã já o podem fazer.

 

 

 

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub