Em outubro de 2019, dois meses antes de terem sido descobertos os primeiros casos de Covid na China, o World Economic Forum coorganiza uma série de conferências, Event 201, onde é apresentada uma discussão sobre um modelo de uma pandemia de coronavírus.
Muitos de nós começamos a pensar sobre quando é que as coisas vão voltar ao normal. A resposta curta é: nunca, Klaus Schwab.
Mais cedo do que muitos antecipam, o trabalho de profissões tão diferentes como a de advogados, analistas financeiros, médicos, jornalistas, contabilistas, agentes de seguros ou bibliotecários, estará parcial ou totalmente automatizado, Klaus Schwab.
Aqueles que permanecerem como humanos provavelmente tornar-se-ão numa subespécie. Eles serão, efetivamente, os chimpanzés do futuro, Kevin Warwick.
Peço-vos que zelem para que a humanidade seja servida pela riqueza e não governada por ela, Papa Francisco.
Em outubro de 2019, dois meses antes de terem sido descobertos os primeiros casos de Covid na China, o World Economic Forum coorganiza uma série de conferências, Event 201, onde é apresentada uma ficção modelada sobre uma pandemia de coronavírus. Em julho de 2020, Klaus Schwab publica o livro, Covid-19: The Great Reset, “uma sucinta análise preditiva para investidores privados, CEO’s globais e decisores e fazedores de opinião”, com “conjeturas e ideias acerca do que poderá vir a ser o mundo pós-pandemia, e do que deveria ser”.
Quem é Klaus Schwab? Klaus Schwab, engenheiro e economista de profissão, nascido em Ravensburg na Alemanha em 1938, é uma das personalidades marcantes destes tempos em que vivemos.
Com a sua visão sobre o que deverá ser a gestão moderna das empresas, ao ligá-la não só à proteção dos acionistas, mas a todos os que dela dependam (clientes, empregados, comunidades em que operem, incluindo o governo) como única forma para “assegurar o seu crescimento e prosperidade sustentáveis a longo termo”, Schwab é ainda o fundador, em 1971, do European Management Forum, que transforma em 1987 no World Economic Forum (WEF), organização internacional para a cooperação público-privada, com as suas propagandeadas reuniões anuais em Davos-Klosters.
A sua visão do mundo está bem expressa na intervenções e obras que tem publicado, e que esquematicamente assentam nas seguintes convicções:
# As empresas constituem a coluna vertebral da sociedade, dependendo delas o bem-estar da sociedade.
# O progresso da sociedade está intimamente relacionado com as inovações tecnológicas.
# No atual estado de desenvolvimento tecnológico, a solução dos problemas das sociedades passa, obrigatoriamente, pela criação de uma governança global que não ponha entraves ao funcionamento das empresas privadas.
# As alterações climáticas e a pandemia são fatores de aceleração para a mudança necessária da sociedade.
Vejamos como Schwab vai defender estas suas ideias, através de excertos retirados de algumas das suas obras mais recentes. Comecemos com A Quarta Revolução Industrial, 2016, termo que ele próprio cunhou:
“A Quarta Revolução Industrial (QRI), constitui, a par da primeira, segunda e terceira Revolução Industrial, um novo capítulo no desenvolvimento humano, e mais uma vez fomentada pelo aumento das possibilidades e interações de um conjunto extraordinário de tecnologias”.
“A QRI representa uma fonte significativa de esperança no continuo desenvolvimento da humanidade que resultou do aumento dramático da qualidade da vida para biliões de pessoas que se tem vindo a verificar desde 1800”, e é “uma revolução que fundamentalmente vai mudar a forma como vivemos, trabalhamos, e nos relacionamos com os outros”.
“As tecnologias da QRI são verdadeiramente disruptivas – elas vão pôr fim a maneiras existentes de sentir, calcular, organizar, agir e fazer. Elas representam totalmente novas maneiras de criar valor para as organizações e para os cidadãos”.
“Mais cedo do que muitos antecipam, o trabalho de profissões tão diferentes como a de advogados, analistas financeiros, médicos, jornalistas, contabilistas, agentes de seguros ou bibliotecários, estará parcial ou totalmente automatizado”.
“A tecnologia está a progredir tão depressa que Kristian Hammond, cofundador da Narrative Science, uma empresa especializada na geração automática de narrativas, prevê que em meados dos anos 20, 90% das notícias serão geradas por um algoritmo, a maior parte delas sem qualquer tipo de intervenção humana, a não ser o desenho do algoritmo”.
“Considerem-se as possibilidades infinitas de se terem biliões de pessoas ligadas por telemóveis, com as enormes potencialidades de processamento, de armazenamento e de acesso ao conhecimento daí resultante. Ou pense-se na confluência espantosa das inovações tecnológicas sempre prontas a aparecer, desde os mais variados campos da inteligência artificial (IA), robótica, a internet das coisas (IdC), veículos autónomos, impressão a 3D, nanotecnologia, biotecnologia, ciência dos materiais, armazenamento de energia, e computação quântica. A maior parte destas inovações encontram-se ainda na infância, mas estão já a alcançar um ponto de inflexão nos seus desenvolvimentos em que à medida que crescem vão ampliando outras numa fusão de tecnologias que atravessam os mundos físico, digital e biológico”.
“Todas as coisas serão smart e ligadas à internet”, estendendo-se até aos animais à medida que “sensores implantados no gado poderão comunicar entre si através de uma rede de telemóvel”.
“Será vital o estabelecimento de confiança na data e nos algoritmos usados. As preocupações dos cidadãos relativas à privacidade e ao estabelecimento de responsabilização nos negócios e estruturas legais, vão necessitar de um ajustamento no modo de pensar”.
“As ferramentas da quarta revolução industrial permitem novas formas de vigilância e de outros meios de controle que vão contra os valores estabelecidos nas sociedades saudáveis e abertas”. Essas tecnologias “podem introduzir-se no espaço privado dos nossos pensamentos, lendo-os e influenciando o nosso comportamento”.
“À medida que as capacidades nesta área forem melhorando, a tentação para as polícias e para os tribunais para usarem técnicas que possam determinar atividades criminosas, para acederem a culpas e mesmo a memórias existentes nos cérebros das pessoas, irá aumentando. Pode mesmo evoluir-se para o vasculhar detalhado do cérebro (brain scan) para se garantir que o indivíduo não apresenta riscos para a segurança”.
Mas por outro lado, “o crime público deverá diminuir por causa da convergência de sensores, camaras, IA e aplicações de reconhecimento facial”.
“As enormes inovações introduzidas pela quarta revolução industrial, da biotecnologia à IA, vão redefinir o que é ser humano” […] “O futuro irá pôr à prova o nosso conhecimento sobre o que significa ser humano, quer seja sob um ponto de vista biológico ou social” […] “Já hoje os avanços em neurotecnologias e em biotecnologias nos levam a questionar o que significa ser humano”.
É no Shaping the Future of the Fourth Industrial Revolution: A Guide to Building a Better World, (Moldando o futuro da Quarta Revolução Industrial: um guia para construir um mundo melhor), 2018, que Schwab vai ser mais explícito sobre o que é ser humano, nomeadamente numa das secções do livro, intitulada “Alterando o Ser Humano”:
“As tecnologias da Quarta Revolução Industrial não se irão contentar só em serem parte do mundo físico que nos rodeia - elas tornar-se-ão parte de nós. Na verdade, alguns de nós já sentem que os nossos smartphones são uma extensão de nós próprios. Os dispositivos externos de hoje - de computadores que usamos connosco a auscultadores de ouvido de realidade virtual - acabarão quase certamente por serem implantáveis nos nossos corpos e cérebros. Exoesqueletos e próteses irão aumentar nossa força física, enquanto os avanços na neurotecnologia aumentam as nossas potencialidades cognitivas. Seremos mais capazes de manipular os nossos próprios genes e os dos nossos filhos. Esses desenvolvimentos levantam questões profundas: onde traçamos a linha entre o homem e a máquina? O que significa ser humano?"
“Essas tecnologias vão operar dentro de nossa própria biologia e vão mudar a forma como nos relacionamos com o mundo. Elas são capazes de ultrapassar as fronteiras do corpo e da mente, melhorando as nossas capacidades físicas e tendo até mesmo um impacto duradouro na própria vida”.
Fala de “microchips implantáveis ativos que quebram a barreira da pele dos nossos corpos”, “tatuagens inteligentes”, “computação biológica” e “organismos personalizados” […] “sensores, interruptores de memória e circuitos que podem ser codificados em bactérias intestinais humanas comuns” […] e de “poeiras inteligentes (Smart Dust), matrizes de computadores completos com antenas, cada um muito menor do que um grão de areia, que se podem organizar dentro do corpo ”e de “dispositivos implantados que provavelmente também ajudarão a comunicar pensamentos normalmente expressos verbalmente por meio de um smartphone ‘embutido’, e pensamentos ou humores potencialmente não expressos por meio da leitura de ondas cerebrais e outros sinais ”.
Tudo isto, “prenuncia o aparecimento de novas indústrias e sistemas para a criação de valor” e “representa a oportunidade para a criação de novos sistemas de valor na Quarta Revolução Industrial”.
“O facto de ser agora muito mais fácil manipular com precisão o genoma humano dentro de embriões viáveis significa que provavelmente veremos no futuro o aparecimento de bebês ‘desenhados’, que possuem características particulares ou que sejam resistentes a uma doença específica”.
“Estamos no limiar de uma mudança sistémica radical que exige que os seres humanos se adaptem continuamente. Como resultado, podemos testemunhar um grau crescente de polarização no mundo, marcado por aqueles que abraçam a mudança versus aqueles que a ela resistem”.
“Tal dará origem a uma desigualdade que vai para além da descrita anteriormente. Essa desigualdade ontológica separará aqueles que se adaptam daqueles que resistem - os vencedores e perdedores materiais em todos os sentidos das palavras. Os vencedores podem beneficiar, de certa forma, do aprimoramento humano gerado por certos segmentos da quarta revolução industrial (como a engenharia genética), da qual os perdedores serão privados. Isto corre o risco de criar conflitos de classe e outros confrontos diferentes de tudo o que até aqui vimos”.
A relutância da maior parte da humanidade relativamente à 4RI, reflete a tragédia de que “o mundo carece de uma narrativa consistente, positiva e comum que descreva as oportunidades e os desafios da quarta revolução industrial, narrativa essencial se quisermos dar poder a um conjunto diversificado de indivíduos e comunidades e evitar uma reação popular contra as mudanças fundamentais em curso”.
“É, portanto, crítico que se invista atenção e energia na cooperação entre múltiplas partes interessadas através das fronteiras acadêmicas, sociais, políticas, nacionais e industriais. Essas interações e colaborações são necessárias para criar narrativas positivas, comuns e cheias de esperança, permitindo que indivíduos e grupos de todas as partes do mundo participem e beneficiem das transformações em curso”.
Um dos obstáculos a que a tecnologia da 4RI se instale rapidamente, é que “mais da metade da população mundial - cerca de 3,9 bilhões de pessoas - ainda não consegue ter acesso à internet”, com “85% da população dos países em desenvolvimento permanecendo offline e, portanto, fora de alcance, em comparação com 22% no mundo desenvolvido”.
“Pensar de forma inclusiva, vai para além de pensar na pobreza ou nas comunidades marginalizadas simplesmente como uma aberração - algo que podemos resolver. Isso força-nos a perceber que 'os nossos privilégios estão localizados no mesmo mapa que os seus sofrimentos'. Vai para além da renda e dos direitos, embora estes continuem importantes. Em vez disso, a inclusão dos acionistas e a distribuição de benefícios, ampliam as liberdades para todos”.
“Neste novo sistema industrial revolucionário, o dióxido de carbono passa de um poluente proveniente do efeito estufa para um ‘ativo’, e a economia de captação e armazenamento de carbono deixa de ser inscrita como ‘custos’, bem como sumidouros de poluição, para se tornarem instalações lucrativas de captação e uso de carbono. Mais importante ainda, ajudará empresas, governos e cidadãos a tornarem-se mais conscientes e interessados em estratégias para regenerar ativamente o capital natural, permitindo usos inteligentes e regenerativos do capital natural para orientar a produção e o consumo sustentáveis e dar espaço para a biodiversidade se recuperar em áreas ameaçadas”.
“As propostas incluem a instalação de espelhos gigantes na estratosfera para desviar os raios do sol, o polvilhar quimicamente a atmosfera para aumentar as chuvas e a implantação de grandes máquinas para remover o dióxido de carbono do ar”.
Tudo isto “só será possível através de um sistema efetivo de governança global” imposto em todas as partes do planeta. “A governança global é o nexus para a resolução de todos os outros problemas”.
“A ideia de reformar os modelos de governança para lidar com as novas tecnologias não é nova, mas a urgência de o fazer é muito maior à luz do poder das tecnologias emergentes de hoje ... o conceito de governança ágil busca combinar agilidade, fluidez, flexibilidade e adaptabilidade das próprias tecnologias e dos atores do setor privado que as adotam”.
Sugere “acordos de comparticipação público-privados de dados para que ‘em caso de emergência quebrem os vidros’. Eles entrarão em ação apenas em circunstâncias de emergência pré-acordadas (como no caso de uma pandemia) e podem ajudar a reduzir atrasos e melhorar a coordenação das ajudas, permitindo temporariamente a comparticipação de dados que seria ilegal em circunstâncias normais”.
Sobre o “ativismo jovem” diz:
“O ativismo juvenil está a aumentar em todo o mundo, revolucionado pelas redes sociais que aumentam a mobilização numa extensão que teria sido impossível antes. Ele assume muitas formas diferentes, que vão desde a participação política não institucionalizada a manifestações e protestos, e aborda questões tão diversas como a alteração climática, reformas econômicas, igualdade de gênero e direitos LGBTQ. A geração jovem está firmemente na vanguarda da mudança social. Não há dúvida de que será o catalisador para a mudança e uma fonte de impulso crítico para o Great Reset (Grande Reinício)”.
“Neste novo sistema industrial revolucionário, o dióxido de carbono transforma-se de poluente do efeito estufa num ‘ativo’, e a economia de captura e armazenamento de carbono passa de um sumidouro de custos e de poluição, para instalações lucrativas de captura e uso do carbono. Mais importante ainda, ajudará empresas, governos e cidadãos a tornarem-se mais conscientes e interessados nas estratégias para regenerar ativamente o capital natural, permitindo usos inteligentes e regenerativos do capital natural para orientar a produção e o consumo sustentáveis e dar espaço para que a biodiversidade recupere em áreas ameaçadas”, ou seja, poluição significa lucro e a crise ambiental é apenas mais uma oportunidade de negócios.
Schwab também lamenta toda a burocracia que atrasa o avanço dos alimentos GM, alertando que "a segurança alimentar global só será alcançada se os regulamentos sobre alimentos geneticamente modificados forem adaptados para refletir a realidade de que a edição de genes oferece um método eficiente e seguro de melhorar as colheitas”.
No capítulo final, intitulado “What You Can Do to Shape the Fourth Industrial Revolution” (O que pode você fazer para moldar a Quarta Revolução Industrial), volta a insistir na necessidade de se imporuma governança global para que essa nova ordem imaginada por Schwab venha a abranger o mundo inteiro.
“Devemos restabelecer um diálogo entre todas as partes interessadas para garantir o entendimento mútuo que constrói ainda mais uma cultura de confiança entre reguladores, organizações não governamentais, profissionais e cientistas. O público também deve ser considerado, pois deve participar da formação democrática dos desenvolvimentos biotecnológicos que afetam a sociedade, os indivíduos e as culturas”.
Liderar sistemas é cultivar uma visão compartilhada para a mudança - trabalhar junto com todas as partes interessadas da sociedade global - e então agir para mudar como o sistema entrega seus benefícios e a quem. A liderança de sistemas requer ação de todas as partes interessadas, incluindo indivíduos, executivos, influenciadores sociais e formuladores de políticas”
“A ideia de reformar os modelos de governança para lidar com as novas tecnologias não é nova, mas a urgência de fazer isso é muito maior à luz do poder das tecnologias emergentes de hoje ... o conceito de governança ágil busca combinar a agilidade, a fluidez, flexibilidade e adaptabilidade das próprias tecnologias e dos atores do setor privado que as adotam”.
No seu novo livro de julho de 2020, Covid-19: The Great Reset, começa por admitir que o Covid-19 “é uma das pandemias menos mortíferas dos últimos 2000 anos”, e que “as consequências do COVID-19 em termos de saúde e de mortalidade é pouco agressiva quando comparada com anteriores pandemias”.
“Não constitui uma ameaça existencial, ou um choque que deixe marca na população mundial por décadas”
“A Segunda Guerra Mundial foi a guerra transformacional por excelência, desencadeando não apenas mudanças fundamentais na ordem global e na economia global, mas também envolvendo mudanças radicais nas atitudes e crenças sociais que acabaram por abrir caminho a políticas radicalmente novas e cláusulas de contratos sociais (como as mulheres poderem entrar no mercado de trabalho antes de se tornarem eleitores). Obviamente, existem diferenças fundamentais entre uma pandemia e uma guerra (que consideraremos com alguns detalhes nas páginas seguintes), mas a magnitude de seu poder transformador é comparável. Ambos têm potencial para ser uma crise transformadora de proporções até então inimagináveis”.
Comparando o Covid-19 com o 11 de setembro: "Isto é o que aconteceu depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Em todo o mundo, novas medidas de segurança, como o uso generalizado de câmaras, exigência de cartões de identificação eletrônicos e o registrar funcionários ou visitantes, dentro e fora, tornou-se a norma. Naquela época, essas medidas eram consideradas extremas, mas hoje são usadas em todos os lugares e consideradas 'normais'”.
“Alguns líderes e decisores, que já estavam na vanguarda da luta contra as alterações climáticas, podem querer aproveitar o choque infligido pela pandemia para implementar mudanças ambientais mais duradouras e mais amplas. Eles irão, certamente, fazer 'bom uso' da pandemia, não deixando que a crise vá para o lixo”.
“É o momento definitório”. “Muitas coisas vão mudar para sempre”. “Um novo mundo vai surgir”. “A convulsão social desencadeada pela COVID-19 durará anos e possivelmente gerações”. “Muitos de nós começamos a pensar sobre quando é que as coisas vão voltar ao normal. A resposta curta é: nunca”.
“À primeira vista, a pandemia e o meio ambiente podem parecer apenas parentes distantes; mas estão muito mais próximos e interligados do que pensamos”.
“Uma das relações é que tanto a “crise” climática quanto a do vírus são usadas pelo WEF para impulsionar a sua agenda de ‘governança global’. "Ambas são globais por natureza e, portanto, só podem ser tratadas adequadamente de uma forma globalmente coordenada "
“Esta diferença crucial entre os respetivos horizontes temporais de uma pandemia e da mudança climática, e perda da natureza, significa que um risco de pandemia requer uma ação imediata que será seguida por um resultado rápido, enquanto as mudanças climáticas e a perda da natureza também requerem ação imediata, mas o resultado (ou 'recompensa futura', no jargão dos economistas) só virá com um certo lapso de tempo”.
“A pandemia está claramente a exacerbar e a acelerar as tendências geopolíticas que já eram aparentes antes do início da crise”.
“Com a pandemia, a "transformação digital" a que tantos analistas se referem há anos, sem saber exatamente o que significava, encontrou o seu catalisador. Um dos principais efeitos do confinamento será a expansão e progressão do mundo digital de maneira decisiva e muitas vezes permanente”.
“Em abril de 2020, vários líderes de tecnologia observaram a rapidez e a radicalidade com que as necessidades criadas pela crise da saúde precipitaram a adoção de uma ampla gama de tecnologias. No espaço de apenas um mês, verificou-se que muitas empresas em termos de aceitação da tecnologia avançaram vários anos”.
“A pandemia acelerará a adoção da automação no local de trabalho e a introdução de mais robôs nas nossas vidas pessoais e profissionais”.
“Os consumidores precisam de produtos e, se não puderem fazer compras, inevitavelmente recorrerão à compra online. À medida que o hábito se instala, as pessoas que nunca haviam feito compras online antes ficarão agradadas com isso, enquanto que as pessoas que antes eram compradores online presumivelmente ficarão mais confiantes. Isso ficou evidente durante os confinamentos. Nos Estados Unidos, a Amazon e o Walmart contrataram 250.000 empregados para acompanhar o aumento da procura e construíram uma infraestrutura gigante para entregas online. Este crescimento acelerado do e-commerce significa que os gigantes do setor de retalho online provavelmente sairão da crise ainda mais fortes do que na era pré-pandemia”.
“À medida que mais coisas e serviços diversos nos forem sendo trazidos por meio dos nossos telemóveis e computadores, empresas em setores tão díspares como e-commerce, operações sem contato, conteúdo digital, robôs e entregas por drones (para citar apenas alguns) prosperarão. Não é por acaso que empresas como Alibaba, Amazon, Netflix ou Zoom emergiram dos confinamentos como ‘vencedores’”.
“A pandemia certamente aumentará o foco na higiene. Uma nova obsessão com a limpeza implicará na criação de novas formas de embalagem. Seremos encorajados a não tocar nos produtos que compramos. Prazeres simples como cheirar um melão ou apertar uma fruta serão reprovados e podem até tornar-se uma coisa do passado”.
“De uma forma ou de outra, as medidas de distanciamento social e físico provavelmente persistirão depois de a pandemia diminuir, justificando a decisão de muitas empresas de diferentes setores em acelerar a automação. Depois de um tempo, as preocupações duradouras com o desemprego tecnológico diminuirão à medida que as sociedades enfatizarem a necessidade de reestruturar o local de trabalho de uma forma que minimize o contato humano próximo. Na verdade, as tecnologias de automação são particularmente adequadas para um mundo no qual os seres humanos não podem ficar muito próximos uns dos outros ou estão dispostos a reduzir as suas interações. O medo persistente, e possivelmente duradouro, de ser infetado por um vírus (COVID-19 ou outro) irá, portanto, acelerar a marcha implacável da automação, particularmente nos campos mais suscetíveis à automação”.
“A necessidade de enfrentar a pandemia com todos os meios disponíveis (mais, durante o surto, a necessidade de proteger os trabalhadores de saúde permitindo que trabalhem remotamente) removeu alguns dos impedimentos regulatórios e legislativos relacionados à adoção da telemedicina”.
“Até o momento, os governos frequentemente atrasaram o ritmo de adoção de novas tecnologias por meio de longas ponderações sobre como deveria ser a melhor estrutura regulatória, mas, como o exemplo da telemedicina e da entrega por drones está a mostrar, é possível uma aceleração dramática forçada pela necessidade. Durante os confinamentos, um relaxamento quase global das regulamentações que antes prejudicavam o progresso em domínios onde a tecnologia estava há anos disponível, repentinamente aconteceu porque não havia melhor solução ou outra escolha disponível. O que até recentemente era impensável de repente tornou-se possível ... Novos regulamentos que se manterão em vigor”.
“O COVID-19 reescreveu muitas das regras do jogo entre os setores público e o privado. … A maior intromissão benevolente (ou não) dos governos na vida das empresas e na condução dos seus negócios dependerá do país e da indústria, assumindo, portanto, muitas formas diferentes”.
“Medidas que teriam parecido inconcebíveis antes da pandemia podem se tornar como padrão em todo o mundo, à medida que os governos tentam impedir que a recessão económica se transforme numa depressão catastrófica”.
“Cada vez mais, haverá apelos para que o governo atue como um ‘pagador de último recurso’ para prevenir ou conter a onda de layoffs em massa e da destruição de negócios desencadeada pela pandemia. Todas essas mudanças estão a alterar as regras do ‘jogo’ da política económica e monetária.”
“Uma das grandes lições dos últimos cinco séculos na Europa e na América é esta: as crises agudas contribuem para aumentar o poder do Estado. Sempre foi assim e não há razão para que seja diferente com a pandemia de COVID-19”.
“Olhando para o futuro, muito provavelmente os governos, mas com diferentes graus de intensidade, decidirão que é do interesse da sociedade reescrever algumas das regras do jogo e aumentar permanentemente o seu papel”.
“Durante os confinamentos, muitos consumidores anteriormente relutantes em depender de aplicativos e serviços digitais foram forçados a mudar os seus hábitos quase da noite para o dia: assistir a filmes online em vez de ir ao cinema, receber refeições em vez de ir a restaurantes, conversar com amigos remotamente em vez de encontrá-los pessoalmente, conversar com colegas numa tela em vez de num café, fazer exercícios online em vez de ir ao ginásio, e assim por diante ...
“Nenhum aplicativo de rastreamento voluntário funcionará se as pessoas não estiverem dispostas a fornecer os seus próprios dados pessoais à agência governamental que monitora o sistema; se algum indivíduo se recusar a baixar o aplicativo (e, portanto, a reter informações sobre uma possível infeção, movimentos e contatos), todos serão afetados adversamente”.
“Enquanto para uma pandemia, a maioria dos cidadãos tenderá a concordar com a necessidade de impor medidas coercivas, resistirão a políticas restritivas no caso de riscos ambientais onde as evidências podem ser contestadas”.
“O movimento das empresas será em direção a uma maior vigilância; para o bem ou para o mal, as empresas estarão a observar e às vezes a registrar o que sua força de trabalho faz. A tendência pode assumir várias formas, desde medir a temperatura corporal com câmaras térmicas até monitorar, por meio de um aplicativo, como os funcionários cumprem o distanciamento social”.
Toda esta construção de Schwab assenta numa visão corporativista (para pior) da sociedade, que deixa de ser uma comunidade viva, passando antes a ser vista como um negócio, em que os seres humanos não são encarados como cidadãos, mas como participantes secundários numa enorme empresa comercial.
Para ela se impor, começa por nos propor um embuste verdadeiro: querer fazer-nos acreditar que as empresas servem para privadamente acarretarem dinheiro para os seus acionistas e executivos, ao mesmo tempo que mantêm uma fachada pública de sensibilidade social e de altruísmo exemplar. A tal “mentira da verdade”, ou o “com a verdade me enganas”.
Relembremos que o projeto original fascista pretendia a fusão do estado com os negócios, como forma de usar o estado para proteger e impulsionar os interesses da elite enriquecida.
Benito Mussolini respondeu à crise económica em 1931 com o lançamento de um órgão especial de emergência, L'Istituto mobiliare italiano, para ajudar as empresas como “uma forma de impulsionar energicamente a economia italiana para sua fase corporativa, ou seja, um sistema que respeita fundamentalmente a propriedade e a iniciativa privadas, mas as vincula fortemente ao Estado, que é o único que pode protegê-las, controlá-las e alimentá-las”.
A justificação para que as empresas devam liderar o processo vai encontra-la na importância que dá à tecnologia como fonte de progresso. Nem poderia ser de outra forma, uma vez que quem domina a tecnologia são as empresas.
Apercebendo-se das imensas possibilidades das novas tecnologias, não para a transformação positiva da sociedade, mas para aumentar a criação de valor, único elemento que interessa, vê com ansiedade o atraso na sua implementação.
Como potenciador e acelerador para a mudança pretendida, a da 4RI, percebe a importância da alteração climática e dos movimentos ativistas que aparecem à sua volta. E dizendo-se favorável a eles, vai propondo exatamente o contrário, aproveitando apenas o que trouxer mais valor, independentemente das consequências que mais tarde serão “resolvidas”.
E tão impaciente está, que atinge o cúmulo quando começando por não atribuir importância à pandemia, acaba por a eleger como principal elemento para a alteração comportamental da sociedade no único sentido correto.
Às maravilhas do seu ardente transumanismo, cito apenas uma previsão do tratado de Kevin Warwick de 2002, I Cyborg:
“Os humanos serão capazes de evoluir aproveitando a superinteligência e outras habilidades extras, oferecidas pelas máquinas do futuro, unindo-se a elas. Tudo isso aponta para o desenvolvimento de uma nova espécie humana, conhecida no mundo da ficção científica por ‘ciborgues’. Isto não significa que todo o mundo precise de se tornar num ciborgue. Se você está feliz com seu estado de ser humano, então que seja, você pode permanecer como é. Mas esteja avisado - assim como nós, humanos, nos separámos anos atrás dos nossos primos chimpanzés, os ciborgues separar-se-ão dos humanos. Aqueles que permanecerem como humanos provavelmente tornar-se-ão numa subespécie. Eles serão, efetivamente, os chimpanzés do futuro”.
Acima de tudo, porque devemos acreditar nas soluções propostas exatamente pelas mesmas forças que se beneficiaram e criaram a situação em que nos encontramos?
Em 2014, o PapaFrancisco foi convidado por Klaus Schwab para participar em Davos no encontro que se realizava entre 22 e 25 de janeiro. Eis parte da sua mensagem:
“[…] Contudo, os sucessos que têm sido alcançados, mesmo que tenham conseguido reduzira pobreza para um grande número de pessoas, conduziu muitas vezes a um aumento de exclusão social. Na realidade, a maioria dos homens e mulheres continuam ainda a experienciar diariamente uma insegurança social, muitas vezes com consequências dramáticas.
[…] É intolerável que milhares de pessoas continuem a morrer de fome todos os dias, embora haja quantidades substanciais de alimentos disponíveis e, muitas vezes, simplesmente desperdiçados. Da mesma forma, não podemos deixar de nos comover com os muitos refugiados que procuram condições de vida minimamente dignas, que não só não encontram hospitalidade, mas muitas vezes, tragicamente, morrem ao mudarem-se de um lugar para outro. Sei que estas palavras são fortes, até dramáticas, mas procuram afirmar e desafiar a capacidade desta assembleia para fazer a diferença. Na verdade, quem demonstrou aptidão para ser inovador e para melhorar a vida de muitas pessoas com engenhosidade e competência profissional pode contribuir ainda mais, colocando as suas competências ao serviço de quem ainda vive em extrema pobreza. O que é, então, necessário, é um renovado, profundo e ampliado sentido de responsabilidade por parte de todos. “O negócio é - de facto - uma vocação, e uma nobre vocação, desde que os que nela se empenham se sintam desafiados por um maior sentido da vida” (Evangelii Gaudium, 203). Esses homens e mulheres são capazes de servir mais eficazmente o bem comum e de tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos. No entanto, o crescimento da igualdade exige algo mais do que crescimento económico, embora o pressuponha. Exige antes de tudo “uma visão transcendente da pessoa” (Bento XVI, Caritas in Veritate, 11), porque “sem a perspetiva da vida eterna, o progresso humano neste mundo não tem espaço para respirar” (ibid.). Exige também decisões, mecanismos e processos orientados para uma melhor distribuição da riqueza, a criação de fontes de emprego e uma promoção integral dos pobres que vai além de uma simples mentalidade assistencialista. Estou convencido de que dessa abertura ao transcendente pode-se formar uma nova mentalidade política e empresarial, capaz de orientar toda a atividade económica e financeira no horizonte de uma abordagem ética verdadeiramente humana.
[…] Sem ignorar, naturalmente, as exigências científicas e profissionais específicas de cada contexto, peço-vos que zelem para que a humanidade seja servida pela riqueza e não governada por ela […]”
Este é o tempo em que nem o próprio Presidente da América com grande apoio popular consegue fazer um golpe de estado no seu próprio país.
O bloqueamento do futuro como caraterística dos tempos em que vivemos é muito mais importante que o problema da desigualdade.
O capitalismo tornou-se num sistema globalmente hegemónico, em que os seus inimigos estão todos dentro do sistema.
Ao longo dos anos foi-se desenvolvendo umcorpo de conhecimentos relacionados com a teoria do golpe de estado.
Será que o verdadeiro golpe não foi o feito pelo Presidente e seus apoiantes, mas pelos seus opositores?
Entre 15 e 19 de agosto de 1953, deu-se em Teerão (Irão), um golpe de estado organizado pela americana CIA (“Operação Ajax”), pelo serviços secretos ingleses SIS (“Operação Boot”), pela Guarda Imperial iraniana e por clérigos islamitas, que retirou do poder o Primeiro Ministro eleito, Mohammad Mosaddegh.
Tudo isso por causa do petróleo. Durante décadas as companhias ocidentais controlaram a riqueza do petróleo na região, através da Arabian-American Oil Company na Arábia Saudita, e da Anglo-Iranian Oil Company (companhia inglesa, agora parte da BP) no Irão. Enquanto a companhia americana na Arábia Saudita concordou, nos finais de 1950, com os pedidos sauditas para que o lucro obtido fosse igualmente repartido, a Anglo-Iranian Oil Company recusou liminarmente qualquer acordo proposto pelo governo iraniano.
Perante essa recusa, o parlamento iraniano entendeu aprovar a nacionalização da indústria de petróleo e expulsar do país os representantes estrangeiros da companhia. Seguiram-se de imediato, por parte do governo inglês, as pressões, os subornos (só para deputados mais de £700.000), os boicotes, os bloqueios dos portos, o costume, até que finalmente o novo governo inglês de Winston Churchill e o governo americano (Administração Eisenhower) acordaram em depor o governo iraniano.
O que houve de importante nesta operação foi a preparação e a coordenação feita pela CIA, que veio a constituir como que um “manual do golpe de estado”, pronto a partir daí para ser usado em todas as operações do género.
De acordo com documentos oficiais (The National Security Archive) desclassificados a 19 de agosto de 2013 (64 anos depois), o governo americano confirmou finalmente e oficialmente a sua “participação” no golpe, revelando o suborno a políticos, oficias de alta patente das forças armadas e da polícia, a jornalistas e homens de negócios, a elaboração de todo o material de propaganda, a contratação de alguns dos mais temidos gangsters de Teerão (Icy Ramadan e Shaban Jafari) com a finalidade de provocarem distúrbios em apoio do Sha, ao mesmo tempo que eram trazidos das aldeias vizinhas em autocarros e camiões, milhares de pessoas para se manifestarem nas ruas.
Revelou ainda a organização de uma pretensa “revolução comunista” com infiltrados no Partido, com o assalto a negócios privados, a vandalização de mercados, bem como a organização de outros grupos de contramanifestantes favoráveis ao Sha que se opunham e combatiam essa violência nas ruas. Após o que as forças armadas interviriam e tomariam conta da situação. Seguiam-se planos detalhados com os mapas da insurreição, locais e movimentos a seguir.
Segundo a CIA, o golpe foi feito “debaixo da direção da CIA”, “como ação da política externa dos EUA, concebido e aprovado pelos níveis mais altos do governo”. Era Diretor da CIA Allen Dulles, irmão do então Secretário de Estado John Foster Dulles, tendo a execução da operação ficado a cargo de Kermit Roosevelt Jr., neto do ex-Presidente Theodore Roosevelt, sendo o planeamento feito por Donald Wilber.
A partir daí seguiram-se pelo menos 47 golpes de estado promovidos pela CIA (Apêndice 2, p.186/7), a que devemos juntar os promovidos por ingleses, franceses, israelitas, soviéticos/russos, chineses e outros.
Nem todos resultaram, pelo menos à primeira tentativa. Mas o importante a reter é que ao longo dos anos foi-se desenvolvendo um corpo de conhecimentos relacionados com a teoria do golpe de estado, não só dentro das forças de segurança armadas, como na sociedade dita civil.
Em novembro de 2014, a BBC emitiu o programa “Oslo Freedom Forum: The ‘school for revolutionaires’”, onde relatava as atividades desenvolvidas pela Oslo Freedom Forum (OFF). É aí que se reúnem anualmente as pessoas notáveis que são, ou que já foram ou as que poderão vir a ser, para “trocarem ideias sobre direitos humanos e expor ditaduras”. Acontecimentos satélites são ainda levados a cabo em San Francisco, New York, e em campos universitários dos EUA.
A OFF foi fundada em 2009 pelo ativista dos direitos humanos Thor Halvorssen, e é fundamentalmente suportada pela organização não governamental Human Rights Foudation com sede em NY.
Segundo a BBC, o OFF é um lugar onde se reúne a “aristocracia dos ativistas”, uma “escola para a revolução”, com a finalidade de aprenderem e ensinarem como fazer que a mensagem que querem transmitir seja convincente e seguida, seja no Egito, Ucrânia, Hong Kong ou Coreia do Norte.
“Isto pode não evocar o espírito das barricadas, mas o que se ensina aqui é que, para se ser bem-sucedido, para deitar abaixo para sempre o governo, tem de se ser organizado e planear meticulosamente”.
Segundo Laura Kuenssberg, editora política da BBC, os ativistas presentes na sala encontravam-se envolvidos “na organização dos protestos em Hong Kong,” uma vez que o “plano para trazer para a rua milhares de pessoas começara a ser preparado aproximadamente dois anos antes”, ou seja, em 2012.
É aí que ela entrevista Yang Jianli, o ativista chinês que esteve envolvido nos protestos de Praça Tianenmen em 1989 e que conseguiu fugir para os EUA. Posteriormente (abril de 2002) voltou à China onde acabou por ser preso e condenado a quatro anos de prisão (para Assange, os EUA pedem mais de cem anos de prisão).
Na altura, Jianli conversava via internet com Joshua Wong, o leader do movimento estudantil de Hong Kong e com o qual falava quase que diariamente. Jianli explicou ainda que os participantes nas demonstrações tinham sido “treinados, muito antes de descerem às ruas, no uso de ações não-violentas como arma de destruição de massa”.
Isto mesmo lhe fora também confirmado por Jamila Raqib, diretora executiva do Albert Einstein Institution:
“Os manifestantes foram ensinados a como se comportarem durante a marcha, como manter as filas, como falar à polícia, como controlar os seus movimentos, como se comportarem quando forem presos.”
O Albert Einstein Intitution, é outra ONG, fundada por Gene Sharp, que em 1965 fora inicialmente recrutado para o Centro de Negócios Internacionais de Harvard (“a CIA de Harvard”) que tinha como codiretor Henry Kissinger. É Sharp que vai criar muitos dos métodos de resistência que influenciaram os movimentos de protesto por todo o mundo, todos eles incluídos no seu manual, From Dictatorship to Democracy. A finalidade do Instituto consta como sendo a “promoção do estudo e utilização da ação não-violenta em conflitos em qualquer parte do mundo”, recebendo fundos de várias entidades, nomeadamente do National Endowment for Democraçy, NED.
O NED, é uma organização subsidiada pelo governo dos EUA, criada em 1983 para “fazer o que anteriormente era feito pela CIA”, nomeadamente o financiamento de organizações em certos países alvos para promover as políticas e interesses dos EUA.
Em 2012, o NED começou a subsidiar outra ONG, o National Democratic Institute (NDI) em Hong Kong. A finalidade é também a de “ajudar e fortalecer as instituições democráticas em todo o mundo, através da participação dos cidadãos, abertura e responsabilização do governo”, tendo como objetivos “o desenvolvimento das capacidades dos cidadãos, particularmente dos estudantes universitários, para participarem no debate público […] permitindo que os estudantes e cidadãos explorem as reformas possíveis conducentes ao sufrágio universal.”
Se carregarmos nos ‘sítios’ de cada uma destas ONGg e procurarmos pelos contribuintes oficiais, encontraremos um sem número de indivíduos, grupos de grandes empresas, organismos governamentais ou delegações, e organizações como a Confederação dos Sindicatos, a Associação de Jornalistas, o Partido Democrático, Compton Foundation, Ford Foundation, Friedrich Naumann Stiftung, Greenville Foundation, International Republican Institute, Joseph Rowntree Charitable Trust, National Endowment for Democracy (NED), New York Friends Group, Olof Palme International Centre, United States Institute for Peace, etc., etc..
Muitos destes contribuintes fazem-no também para muitas outras ONGg. E se formos ver a listagem das organizações e indivíduos que recebem os subsídios, depararemos também com números enormes (dezenas de milhar), espalhadas por todo o mundo.
Este esquema (tal como o das fugas para paraísos fiscais) torna praticamente impossível a atribuição de responsabilidades por ações desencadeadas noutros países (até agora).
Por outro lado, este esquema demonstra também a enorme capacidade de intervenção de organizações e até de indivíduos, capazes de por si sós interferirem, em teoria até independentemente dos próprios governos, noutros países (até agora).
Ou seja, até aqui temos ao dispor: 1. meios de financiamento mais que suficientes; 2. Doutrina operacional, através dos milhares de estudos (quer civis quer militares) sobre organização de golpes de estado; e 3. a cobertura propiciada pelos media de comunicação.
Se a isto juntarmos: 1. as centenas de forças militares privadas, algumas delas capazes por si só de iniciarem e sustentarem guerras (aliás, muitas delas utilizadas pelos governos em substituição das suas forças armadas, porque se os seus “empregados” morrerem ou ficarem feridos, não são contabilizados como sendo “soldados oficiais”); 2. a forte militarização (armamento e táticas) das milhares de forças policiais (criando verdadeiros exércitos nas forças que deveriam ser “civis”); 3. meios de vigilância e de escuta atribuídos; temos reunidas todas as condições para a possibilidade e a impossibilidade de golpes de estado.
Não é, pois, de admirar que golpes de estado tenham vindo a serem tentados. Por vezes correm mal. Mas, correrem mal na maior parte dos países é algo que pode acontecer, mas, quando correm mal nos EUA e na China, então o problema é muito mais grave pois podem ter outro significado.
Sobre a China, Hong Kong, dissemos já o suficiente para sabermos que todas as várias tentativas de golpe de estado têm sido infrutíferas.
Nos EUA, a tentativa de assalto ao poder verificada a 6 de janeiro, não foi coisa de pouca importância, mal preparada por meia dúzia de indivíduos. Para não recuar muito e ir até ao Brexit ou à presidência de Obama (o efeito do racismo original, uma “casa branca com pretos”), verifiquemos por exemplo que as principais frases motivadoras (slogans) ditas por Trump em discursos previamente preparados serem as mesmas frases utilizadas pelos assaltantes ao Capitólio; as tentativas anteriores de assalto a vários edifícios governamentais e retirada de governadores, foi igualmente pedida por Trump, incitando os seus seguidores a fazê-lo; as opiniões expressas por vários ex-chefes militares importantes sobre o estado da nação, bem como de senadores e congressistas do Partido Republicano; as notícias e os comentadores políticos do principal canal de televisão, a Fox, sobre a pandemia, o “roubo” das eleições, a preparação para a guerra civil; a visibilidade e formação do Tea Party (Partido do Chá), e seus incitamentos à revolta; as várias medidas para dificultar e invalidar os votos por correspondência; a teoria do roubo dos votos que começara logo após as eleições de 2016; etc. etc.
Ou seja, a tentativa, a intenção para manter o poder existia, era bem explícita, e conseguiu convencer várias dezenas de milhões de americanos.
Haveria também cumplicidades por parte das forças armadas? Provavelmente. Não é por acaso que se está a fazer uma revisão/interrogação sobre a posição de algumas unidades das forças armadas relativamente ao assalto. Contudo, embora a participação das forças armadas fosse importante, não era considerada como necessária: bastava que se garantisse a sua não interferência para que a parte mais aguerrida e preparada triunfasse.
Mas, tal como num jogo de futebol, uma equipa só joga aquilo que a outra deixa jogar. E houve claramente pouca consideração pela força dos verdadeiros oponentes: as grandes empresas de alta tecnologia, imprescindíveis e fortemente coligadas com as forças armadas e de segurança, e com a governança, que não exitaram em cortar o acesso dos opositores aos meios de comunicação social, neste caso o próprio Presidente dos EUA e seus apoiantes.
Conforme ensina o manual, foi o que foi feito na Sérvia quando, após a deposição de Slobodan Milosevic, os manifestantes ocuparam a estação de televisão. Foi o que o Presidente turco Recep Erdogan fez em 2016 a quando do golpe que julgava ter-lhe cortado as comunicações, em que ele precavidamente conseguiu comunicar com a população através do FaceTime. Foi o que Hosni Mubarak do Egito fez em 2011 aos manifestantes, cortando-lhes a internet.
A grande diferença é que esta estratégia utilizada para alterar regimes estrangeiros foi agora utilizada por americanos contra americanos, na América.
O que deixa no ar uma dúvida: será que o verdadeiro golpe não foi o feito pelo Presidente e os seus apoiantes, mas pelos seus opositores?
Após os ataques de 11 de setembro de 2001, o presidente Bush é o primeiro a decretar guerra ao terrorismo, guerra ao terror, que ficou conhecida como Global War on Terror, e que era basicamente uma guerra contra o terrorismo islâmico que ameaçava o capitalismo. Os seus inimigos foram chamados “terroristas” e “extremistas”, especificamente conhecidos por “heréticos”, “apostatas” e “blasfemos”.
Acontece que o capitalismo tornou-se num sistema globalmente hegemónico, ou seja, deixou de ter inimigos externos, não tem inimigos que se situem em territórios fora do sistema porque não há territórios fora do sistema. Assim, os seus inimigos estão todos dentro do sistema, e continuam a serem também chamados de “terroristas” e “extremistas”. Só que, para além dos anteriormente citados heréticos, apostatas e blasfemos, agora passaram a englobar outros inimigos: os terroristas domésticos.
De acordo com o National Terrorism Advisory System Bulletin de 27 de janeiro de 2021, o termo “terrorista” conforma definido na Global War on Terror, passou agora a incluir os “Domestic Violent Extremists (DVEs),” “Homegrown Violent Extremists (HVEs),” “Violent Conspiracy-Theorist Extremists (VCTEs),” “Violent Reality Denialist Extremists (VRDEs),” “Insurrectionary Micro-Aggressionist Extremists (IMAEs),” “People Who Make Liberals Feel Uncomfortable (PWMLFUs),” e ainda todos os “extremistas violentos ideologicamente motivados que ponham objeções ao exercício da autoridade governamental.”
Acredita-se que possam ser motivados “por uma série de razões, incluindo a oposição ás restrições decretadas e impostas pelo Covid-19, os resultados das eleições de 2020, a utilização indiscriminada da força pela polícia” e outras “perigosas narrativas falsas” como as da existência de um estado invisível e escondido (deep state) que tudo controla sem prestar contas, a imunidade de grupo, o sexo biológico e outros.
Na base desta nova classificação de terrorismo doméstico encontra-se o conceito de “negacionismo”: negacionistas da ciência, negacionistas do Covid, negacionistas do governo, etc., breve, negacionistas da realidade, sendo a realidade a verdade estabelecida. Como negacionistas da realidade, são pessoas com problemas psicológicos que devem ser tratadas, reeducadas ou reprogramadas até aceitarem a realidade. Só assim se compreende que o New York Times avance como proposta para apaziguar a sociedade americana atual a nomeação de um “czar da realidade”.
É consenso geral entre os donos, que esta Guerra ao Terror Doméstico se venha a prolongar pelos próximos 10 a 20 anos, o que será o tempo considerado suficiente para que consigam o “Great Reset” (“Grande Reinício”) de toda a sociedade, para a ensinar a “viver” em condições precárias mas necessárias para a sobrevivência, viver com implantes corporais (chips e outros), capacidade de raciocínio reduzida e substituída por algoritmos, em que se veja forçada a pedir autorização (que lhe poderá ser negada) para tudo e em que até as torradeiras façam parte do sistema de vigilância individual, e tudo isto feito com a intenção de garantir a sobrevivência de toda a humanidade.
Quando o próprio Presidente da América com grande apoio popular já não consegue fazer um golpe de estado no seu próprio país, não parece descabido concluir-se que a possibilidade de uma revolução (como manifestação do poder do povo que resulte numa alteração da vida normal e do regime vigente) se encontra totalmente afastada nos tempos mais próximos.
Esta bloqueamento do futuro como caraterística dos tempos em que vivemos é, portanto, muito mais importante que o problema da desigualdade.
No passado, a liquidação de dirigentes ou a revolta de um pequeno número de pessoas, poderia levar a uma queda de regime. Hoje, é esta abertura que nos foi fechada (ou que fechámos).
Quando em 2015 David Rockefeller morreu, a sua fortuna estava avaliada em 3 biliões de dólares. O Shá da Pérsia saiu com 1 bilião de dólares do “seu” país. Ferdinando e Imelda Marcos abotoaram-se com 5 a 10 biliões de dólares. O presidente da Zâmbia, Robert Mugabe, valia 1 bilião de dólares. Jeff Bezos e Elon Musk valem, cada um, 180 biliões de dólares. E a subir.
A enorme desigualdade, que no passado poderia levar à indignação e ser rastilho para outras ações, é hoje encarada com normalidade, e até como exemplo a seguir. Hossanas e Salamaleques.
É possível imaginar tudo, até o fim do mundo, mas não o fim do capitalismo, Fredric Jameson.
A civilização humana está realmente a arruinar-se.
Cada vez mais existe um setor privado que serve basicamente apenas para ajudar os ricos.
Vamos ter países onde as pessoas desfrutam de bom ar, areia e praias, e países que estão literalmente, literalmente a afogarem-se em lixo.
Em 2050, teremos um mundo que realmente se parecerá com a pior versão da ficção científica chinesa.
Segunda parte da entrevista de Srecko Horvat, “Caídos do céu?”
Sobre as praias particulares e a privatização do litoral
JS: Um dos princípios básicos da ex-Jugoslávia era a noção de que o litoral não pertencia a ninguém. Pertencia a todos. E sim, havia corrupção no governo, inclusive sob Tito, e havia ilhas privadas e tudo isso, mas no geral, as áreas costeiras da Jugoslávia eram consideradas propriedade comum que qualquer um poderia usar. Agora, o que você encontra são enormes conglomerados de hotéis, e investidores estrangeiros constantemente a chegarem. Que dizem que querem poder ter uma praia particular.
Assim, tudo pode mudar e é exatamente pelos motivos que você está a dizer. É a privatização. É a dependência do turismo e, em seguida, são investidores estrangeiros muito agressivos a trabalharem com empresários croatas corruptos, para privatizarem pela porta dos fundos a costa que pertence ao povo.
SH: Existe já uma privatização do litoral. Quer dizer, já tínhamos essa tendência. Você sabe, as primeiras coisas que foram privatizadas logo após a divisão da Jugoslávia foram as fontes de água. A Coca-Cola comprou várias fontes de água na Bósnia e na Croácia e assim por diante, nos anos 90 ainda durante a guerra, o que era realmente já esse tipo de “doutrina de choque “- sobre o que Naomi Klein fala, no sentido de que numa situação real de choque de guerra, basicamente você vende-se, os políticos croatas corruptos juntamente com os políticos ocidentais corruptos, fazem acordos para venderem os recursos naturais. E o que está a acontecer agora com o litoral é uma consequência lógica disso.
Mas é ainda pior porque precisamente na Croácia você pode ver todos os problemas do capitalismo global. Por um lado, estamos felizes porque agora estamos ligados ao mundo e assim por diante. Mas todos esses voos da EasyJet, essa cultura EasyJet e assim por diante não estão a contribuir apenas para agravar a crise climática. Eu até acho que as pessoas deveriam viajar mais de comboio, mas não há nenhum sistema ferroviário a funcionar na Croácia porque a Europa ou a Croácia não investem nele e assim por diante. Portanto, estamos novamente com os mesmos problemas que tínhamos.
Mas não é apenas a EasyJet. Eu não sei, você provavelmente percebeu que recentemente a Croácia também se tornou num palco para grandes filmes de Hollywood. É o caso de Dubrovnik, que é uma cidade fascinante. A sua história é ainda mais fascinante. Quando recentemente estive em Dubrovnik, vi imensos turistas chineses e americanos. É o efeito da “Guerra dos Tronos”.
A Ilha de Vis, é uma ilha que recentemente se tornou palco do famoso filme “Mamma Mia”. E, você sabe, OK, você poderia dizer que isso está a tornar a Croácia ainda mais popular, o que será bom porque a população local alugará os seus apartamentos e assim por diante. Mas na realidade é mais como uma espécie daquele filme chamado “Idiocracia”, você sabe, em que as pessoas assistem a um filme, e quando elas lá vão e exclamam, “oh, King’s Landing” [a capital dos sete reinos]. Não, não é apenas “King’s Landing”, na verdade a sua história é muito mais importante e muito mais fascinante do que a da “Guerra dos Tronos”.
Estes países são meio-assim como uma representação visual, acabando por se tornarem novamente numa espécie de colónia ou apenas num cenário de um filme. E isso é mau, claro, quero dizer, é mau para a cultura local. Não estou a dizer que devemos recuar e voltar para a cultura local. Não sou assim tão ingênuo. Não acredito nisso. Mas sim, há costumes que estão a perder-se. As línguas locais estão a perder-se, sem mencionar o aumento vertiginoso dos preços das propriedades em cidades como Dubrovnik ou outras no litoral, precisamente por causa de um filme de Hollywood e assim por diante.
Se você for a Dubrovnik ou a qualquer outra cidade turística da Croácia no inverno, não encontrará pessoas no centro da cidade. As cidades estão basicamente desertas, até mesmo divididas e assim por diante. Porque a maioria das pessoas está apenas a fazer turismo. Já ninguém mora no centro. É como Veneza, por exemplo, veja Veneza, veja o recente acidente que aconteceu com aquele grande cruzeiro em Veneza. Quer dizer, é nojento.
Você sabe, a civilização humana está realmente a arruinar-se. Não sou contra o turismo. Não estou a dizer que as pessoas não deveriam viajar. Eu até acho que elas deveriam viajar muito mais, precisamente para conhecer outras culturas. E algumas pessoas também precisam de férias de vez em quando. Mas acho que temos que repensar radicalmente o turismo global e o que ele significa e de que forma poderia ser mais sustentável, como pode ser ligado a um New Deal Verde, a investimentos maciços de infraestruturas públicas - comboios, outros tipos de transporte. Há muito que fazer quando se trata de turismo.
Como a crise climática, o desaparecimento dos serviços públicos e sua substituição por privados, tem afetado a Croácia.
SH: O exemplo dos incêndios florestais da Califórnia (onde as pessoas têm que contratar ou ter seguro de empresas privadas, porque se a minha casa estiver a arder, terei um corpo de bombeiros privado que vai garantir que o meu incêndio será o primeiro a ser apagado, em vez de esperar que os despachantes do 911 enviem um carro de bombeiros) que você deu é excelente porque prova que a mantra de Margaret Thatcher está hoje completamente certa, infelizmente. Você sabe, Margaret Thatcher ficou famosa quando disse que “não existe sociedade, apenas indivíduos”. E você pode ver isso na Califórnia e noutros países e assim por diante, onde cada vez mais existe um setor privado basicamente apenas para ajudar os ricos. Quero dizer, é assim de simples.
Quando se trata da Europa, o que você pode ver relacionado com a crise climática não são apenas incêndios florestais. A Croácia, por exemplo, a costa e as ilhas da Croácia, têm um grande problema com os plásticos e resíduos. Sabe, eu vou todos os anos para uma ilha da Croácia e se for na primavera, as praias estão cheias de plástico. Então, eu e amigos locais vamos à praia, limpamo-la, e assim por diante. Mas no dia seguinte o plástico volta.
Se você verificar de onde vêm os produtos, metade deles é albanesa e outros são franceses ou alemães – resíduos médicos franceses ou alemães, por exemplo. Então você pergunta-se: "OK, por que é que há lixo albanês, francês e alemão nas ilhas croatas?"
E chega à origem do problema. Por um lado, a Albânia, após o colapso do regime comunista local, não tem realmente um sistema sustentável de gestão de resíduos. Por outro lado - e aqui chegamos a um problema mais global - os países ricos da União Europeia, incluindo a Alemanha, a França e assim por diante, estão basicamente a enviar uma grande quantidade de lixo, incluindo resíduos médicos, para a Albânia. E depois, seguindo as correntes marítimas, os resíduos da Albânia, juntamente com os resíduos da Europa Ocidental, chegam às ilhas croatas.
E qual é a lição a tirar da Jugoslávia? A lição é que mesmo que eu limpe a praia todos os dias, no dia seguinte os plásticos voltarão. Mesmo que não haja plástico nas praias, todos estamos já a comer microplástico, sabe. Cientistas encontraram microplásticos desde os Alpes suíços até à Antártica.
Então, essa não é a saída. A única saída é, e essa é uma das lições da Jugoslávia que tem que ser repensada seriamente, é um Movimento dos Não-Alinhados, movimento do século 20 que foi fundado por Nehru, Tito e Nasser, com a ideia básica de que os países do Sul teriam de cooperar juntos. Claro, vivia-se numa situação de Guerra Fria, onde a principal razão para a fundação do Movimento dos Não-Alinhados fora tentar criar uma terceira opção genuína para não se terem de juntar à Rússia Soviética ou aos Estados Unidos. Acho que hoje precisamos disso cada vez mais.
Você provavelmente viu recentemente nas notícias que a Malásia estava a devolver o lixo que os países ocidentais lhe enviava. Acho isso muito bem feito e também mostra porque acompanho o debate nos Estados Unidos. Respeito muito Alexandria Ocasio-Cortez. Embora pense que ela deveria falar muito mais sobre Chelsea Manning e Julian Assange, mas esse é outro assunto. Mas o que ela está a fazer é realmente bom ao impulsionar o New Deal Verde.
Mas é também importante perceber o que é o New Deal Verde, e que normalmente é esquecido com muita frequência, como agora após as eleições europeias em que todos falam sobre a chamada “onda verde”. Como sabe, o Partido Verde saiu-se muito bem. Esta é a prova de que a Europa está a caminhar numa melhor direção. Bem, eu tenho idade suficiente, porém, não sou assim tão velho. Mas tenho idade suficiente para recordar que o Partido Verde apoiou a guerra no Afeganistão, e assim por diante, e recordar que eles realmente não fizeram muito pela chamada transição verde na Alemanha.
Portanto, a lição disto é que mesmo com a Malásia ou o lixo que chega à Albânia e depois à Croácia, a lição é que não há New Deal Verde apenas num só país e que o New Deal Verde não deve ser apenas social, mas anticapitalista ou mais precisamente pós-capitalista. Portanto, você não pode ter um New Deal Verde apenas na Alemanha, que agora está a exportar carros a diesel para a periferia da União Europeia, para a Hungria, que é o segundo país no mundo em número de mortes prematuras por causa da poluição do ar.
Então, você sabe, hoje já se pode imaginar o tipo de mundo que vamos ter, assemelhando-se à China como ficção científica, que eu até acho que é uma das melhores, a mais interessante ficção científica, onde você encontra um mundo que está basicamente dividido. Vamos ter países onde as pessoas desfrutam de bom ar, areia e praias, e países que estão literalmente, literalmente a afogarem-se em lixo.
É assim que para o New Deal Verde vejo dois perigos. Um dos perigos é que em breve ele se torne numa espécie de novo capitalismo verde, e isso o capitalismo vai rapidamente perceber, dizendo que talvez seja melhor recorrer aos painéis solares e assim por diante. É o que já está a acontecer.
Veja o que se está a passar com os Verdes na Alemanha. O que é que querem? O mesmo, e isso é um grande perigo. O capitalismo está já a trabalhar na cooptação e a lucrar com isso.
E o outro medo que tenho é o que se está a passar com Le Pen durante as eleições europeias, algo que deveríamos chamar de eco-fascismo. E não é algo completamente novo, se voltarmos a Hitler - para a Alemanha de Hitler - se você olhar para as fotos, você verá, por exemplo, Eva Brown, que era a sua amante, a fazer ioga num lindo lago e então toda a ideologia é como uma espécie de retorno ao blut und boden [sangue e solo].
E também pode ver hoje que são precisamente os fascistas que estão a usar os seus - OK, eles não estão a falar sobre o New Deal Verde, mas estão também a falar sobre o regresso à natureza e assim por diante, que é uma tendência muito, muito perigosa, eu diria. Portanto, esses são os dois perigos para o New Deal Verde.
Sobre a importância do Movimento dos Não-Alinhados hoje.
SH: Eu acho que a lição do Movimento dos Não-Alinhados do século 20, que foi fundado por Tito, Nehru, Nasser, a que muitos países aderiram ao invés de seguirem os países ocidentais que são os países com maiores responsabilidades pela crise climática, é o exemplo que deveria levar todo o sul a construir novas formas de cooperação. E que deve mandar o lixo de volta para os países ocidentais.
Definitivamente, eu diria que precisamos hoje de algo semelhante, embora o problema seja que toda a situação mudou. Já não estamos numa guerra fria. Já não temos, você sabe, esse tipo de mundo bipolar onde por um lado estavam os Estados Unidos, e do outro lado, a Rússia Soviética -
O mundo já não é bipolar, mas a propaganda e a ideologia são muito parecidas com a Guerra Fria.
SH: Hoje não são apenas os bolcheviques, são também os chineses. Já não são apenas os russos com a guerra comercial contra os chineses. Mesmo quem veja apenas televisão, verá que agora existem diferentes jogadores. Eu diria que tal reflete o facto de hoje vivermos num mundo multicêntrico, que é um pouco diferente, mas em que, contudo, a propaganda e a ideologia são muito parecidas com a Guerra Fria.
Embora seja muito mais perigoso, porque hoje não se trata apenas de se apropriar dos meios de produção. Eu diria que hoje, trata-se de apreender as ‘imitações’ da produção. Você pode ver que essa propaganda tem muito mais sucesso, por causa da tecnologia e das ‘imitações’, que é essa criação de imagens que servem para prenderem a atenção por um período muito curto, bastante popular, como se viu com o Bolsonaro, por exemplo, e a função do What's App. E por outro lado, você tem uma espécie de pré-programação da política, como se viu no caso da Cambridge Analytica, com o Facebook.
Então, isso é muito perigoso, mas é precisamente neste tipo de situação que você precisa de uma espécie de um novo movimento de libertação global, que absorveria as lições do Movimento dos Não-Alinhados. O que foi bem-sucedido e quais foram as falhas? Existindo ainda hoje nominalmente o Movimento dos Não-Alinhados, com que frequência você ouve falar dele? Isso diz muito.
Eu diria que um dos problemas, e uma coisa que devemos realmente repensar, é que o Movimento dos Não-Alinhados era formado por estados-nação do século XX. Eu acho que mesmo que hoje se assista em toda parte a uma tentativa de regresso ao estado-nação, com a “América primeiro”, “Hungria primeiro”, “Somália primeiro”, qualquer que seja primeiro, acho que o conceito de estado-nação, com a tendência atual para uma crise climática ainda maior, possa ser um conceito do passado.
O que quero dizer com isso? Se você tem o nível do mar a subir, de acordo com as estatísticas do Banco Mundial. Se em 2050, você tiver centenas de milhões de refugiados, principalmente do Sul, tentando vir para a Europa, o próprio conceito de estado-nação terá de mudar. O próprio conceito de soberania tem de mudar e precisaremos de mais cooperação global.
Infelizmente, não vejo regularmente a televisão dos EUA. Adoraria assistir. Amo observar a ideologia e desconstruí-la. Mas ultimamente estive a ver ficção científica chinesa e na Netflix. Eles também têm feito coisas boas, não só o “Roma” de Alfonso Cuarón, que por lá apareceu. Na Netflix vi recentemente um filme chinês de ficção científica de grande sucesso. E é incrível, na verdade, independentemente sobre o que quer que você pense sobre a qualidade e a narrativa, e assim por diante.
Mas a história é realmente muito interessante, muito incomum, com uma situação em que o sol está a transformar-se numa gigante vermelha, pelo que o mundo inteiro se tem que unir. Eles formam uma espécie de governo mundial, sabe, a ideia do velho Emmanuel Kant de que os candidatos, os estados se uniriam e criariam um governo mundial. Após criarem um governo mundial - parece completamente louco o que direi agora - eles montam 10.000 motores na parte de trás do planeta Terra e, em seguida, tentam tirar o planeta Terra de sua órbita em direção a um novo sol. E, você sabe, “OK, é ficção científica”, mas não poderia ter imaginado isso - Você sabe, acho que não podemos nem imaginar o que pode estar a acontecer por causa da crise climática.
Por exemplo, veja o Ártico e o aproveitamento do gelo derretido, que está a tornar verdade o que Fredric Jameson disse, que é possível imaginar tudo, até o fim do mundo, mas não o fim do capitalismo. Ou seja, você pode imaginar o fim do mundo. O gelo está a derreter e assim por diante, mas o capitalismo continuará.
No ano passado, Donald Trump autorizou a perfuração no Ártico. Você também viu que a OTAN efetuou um dos seus maiores exercícios militares – na altura eu estava na Noruega, pelo que me recordo disso. Fez os maiores exercícios militares precisamente no Ártico. Então, há um grande interesse por essa área e vocês vão verificar que a crise climática vai criar novas rotas não só para o transporte de mercadorias, mas também para a exploração dos combustíveis fósseis.
Outro exemplo, o permafrost. Poucas pessoas falam sobre o permafrost, mas o desaparecimento do permafrost, pode ser ainda mais perigoso do que a mudança climática. E não podemos nem prever o que pode acontecer por causa disso.
Então, se a essas tendências juntarmos centenas de milhões de refugiados nas próximas duas ou três décadas a chegar aos Estados Unidos ou à Europa e assim por diante, acho que precisaremos de um tipo de cooperação global que ainda nunca existiu na história da humanidade, digo eu, porque você também vai precisar de usar, por exemplo, o exército, não para liderar guerras, mas para ajudar as pessoas, para abrir rotas de salvamento, para salvá-las e assim por diante. E, infelizmente, vejo que já estamos a caminhar nessa direção.
A menos que sejamos capazes de criar uma comunidade global que seria o resultado de um movimento de libertação global e uma espécie de novo movimento realinhado, eu diria, que seria realinhado contra o capitalismo, contra a exploração dos recursos naturais, contra a mercantilização dos humanos, as suas emoções e livre arbítrio - o que está a acontecer com a tecnologia - a menos que tenhamos sucesso em criar este movimento global e sociedade global, que seria a primeira sociedade verdadeiramente global, temo que em 2050, teremos um mundo que realmente se parecerá da pior maneira com a versão da ficção científica chinesa.
Esperança sem otimismo, como único caminho da resistência à libertação-
JS: Quero terminar perguntando onde devemos ir buscar esperança. Você escreveu: “O que precisamos mais do que nunca hoje é esperança sem otimismo. Este é o único caminho da resistência à libertação.” Explique o que quis dizer.
SH: Conservar o otimismo, porque o pessimismo é um conceito muito perigoso. Porque se você for um pessimista, então você nem tem vontade de acordar, de estar ativo na sociedade. O otimismo também é perigoso porque promete falsas esperanças. E é por isso que acho que precisamos de esperança, mas sem otimismo.
Penso que para o século 21 este é o conceito mais crucial. Esperança, no sentido em que acho que os progressistas ao redor do mundo devem parar de criticar apenas o capitalismo, a ascensão do populismo de direita, autoritarismo e assim por diante. Eles devem oferecer não apenas esperança, mas a visão de uma sociedade na qual nós queiramos viver, sabe, devem ir na direção de imaginar coisas que são inimagináveis.
Por exemplo, se você for aos Estados Unidos, e sempre que lá vou fico imediatamente deprimido assim que saio do aeroporto, quando vou na autoestrada, e vejo a enorme quantidade de carros. E quando você vê que em cada carro vai apenas uma única pessoa, em vez de quatro pessoas, pergunta-se porque não vão de comboio.
Isso é - como dizer? É uma ofensa à racionalidade humana ainda conduzirmos todos esses carros, eu diria. E no futuro que está a chegar, com a automação e o avanço tecnológico, o que vai acontecer com os camionistas nos Estados Unidos é que 3,5 milhões deles na próxima década perderão os seus empregos. Eu não acho que a solução seja voltar a este tipo de capitalismo verde ou algo assim, mas sim a de realmente criar novos meios de transporte, que seriam ao mesmo tempo públicos e não privados.
Até certo ponto, poderia dizer que o que Elon Musk está a fazer com a Tesla, ao forçar os outros concorrentes no mercado a implantarem também essa tecnologia de carros elétricos, possa ser bom. Embora possa criticar Elon Musk por muitas, muitas coisas, como muitas pessoas fazem. Mas pode ser bom porque você pode imaginar, e isso é uma ideia que Yanis Varoufakis me deu enquanto conversávamos, infelizmente num carro na Alemanha, durante a campanha eleitoral que tivemos algumas semanas atrás. E então ele disse-me para imaginar um futuro onde basicamente um governo nacionalizasse todos esses carros elétricos que existirão em cinco anos.
Eu sei que nacionalização e desapropriação não são realmente algo popular, mas por que não imaginar um transporte público elétrico, 100% limpo, que não fosse propriedade de ninguém, você sabe, esse tipo de situação estúpida onde os humanos realmente se parecem com os atores do filme, “Idiocracia”. Uma pessoa, um carro, combustíveis fósseis e apenas dirigindo por aí, ou nem mesmo conduzindo. Quer dizer, se você olhar para as autoestradas dos EUA, as pessoas nem estão a conduzir. Elas estão apenas paradas e sentadas, você sabe, nesses carros estúpidos, e em que têm que ser os donos do carro. Por que têm eles que possuir o carro?
Bem, é a ideologia capitalista, porque durante todas estas décadas, foram-nos convencendo de que somos um homem ou mulher de sucesso se possuirmos um carro, se possuirmos uma casa, se possuirmos, se comprarmos, comprar, comprar e usar os mesmos produtos de merda.
Sobre os problemas Julian Assange, Chelsea Manning, Edward Snowden, as leis de espionagem e a liberdade de imprensa.
JS: Como sabemos, Julian Assange, um dos fundadores do WikiLeaks, está agora numa prisão britânica. Sabemos que a sua saúde está a piorar. Ele foi transferido para a enfermaria de Belmar. Ele enfrenta 17 acusações de espionagem nos Estados Unidos. Os EUA exigem a sua extradição. Esta é claramente uma guerra contra todos os editores, não apenas contra Assange. Ao mesmo tempo, Chelsea Manning está mais uma vez na prisão por se recusar a prestar depoimento no processo do grande júri que conduziu às novas acusações sob a Lei de Espionagem a Julian Assange. Você, Ai Weiwei e outras figuras internacionais têm protestado contra a prisão de Assange, e agora contra as novas acusações de espionagem. Por que dedica tempo de sua vida para protestar contra o tratamento de Julian Assange?
SH: Preocupo-me com Julian Assange porque ele tirou tempo da sua vida para lutar por nós. E quando digo por lutar por nós, para que lutemos pela própria possibilidade de termos informações. Ter informações sobre o que os governos mais poderosos ou organizações ou empresas secretas estão a fazer no mundo, da guerra no Afeganistão à guerra no Iraque. Não seria ótimo, por exemplo, agora com todas essas tensões com o Irão, alguém nos conseguisse mostrar o que realmente o Pentágono e o que Bolton e Pompeo e todos esses guerreiros brancos estão realmente a conspirar contra o Irão?
E o que o WikiLeaks fez foi, pela primeira vez na história moderna, criar um sistema em que você possa proteger corajosos delatores como Edward Snowden, Chelsea Manning e outros, para que pudessem publicar essas informações e tornarem-nas disponíveis para todos nós. Precisamente neste mundo de notícias falsas e imitações e nesta situação em que a verdade não importa mais. A detenção arbitrária na Embaixada do Equador é um grande escândalo para as democracias ocidentais.
Visitei frequentemente Julian na Embaixada do Equador e o espetáculo da sua entrada na Embaixada do Equador em Knightsbridge, Londres, diz tudo sobre o que há de errado com o mundo de hoje. Você sabe, ele esteve arbitrariamente detido durante sete anos num espaço muito pequeno da embaixada do Equador. Antes de entrar na embaixada do Equador, você passa pelo mais luxuoso shopping center, o Harrods. Você vai ver Ferraris, Lamborghinis, bem à frente da embaixada do Equador com chapas de matrícula da Arábia Saudita.
Você sabe que um editor está, para todos os efeitos, preso há sete anos. Ele conseguiu asilo político do então corajoso governo equatoriano, ao contrário do atual, que está a vender Julian por empréstimos do FMI e assim por diante. E isso já era um escândalo. O que está a acontecer agora, eu acho, é um escândalo ainda maior porque a democracia no Ocidente começa a morrer se alguém como Julian Assange continuar na prisão.
Descobri que Jeremy Hunt disse recentemente que Julian Assange poderia ter saído a qualquer momento. Acho, quero dizer, acho Jeremy Hunt o pior secretário de Relações Exteriores da história do Reino Unido. Não só porque disse que a Eslovênia era um estado vassalo, prova que obviamente não sabe nem mesmo geografia ou história quando comparado com líderes como Churchill que pelo menos tinha uma compreensão de geografia e geopolítica, mas também pela sua posição sobre Julian Assange.
O que está a acontecer hoje é que todos esses governos do Equador, agora até do Reino Unido, se reúnem com John Bolton, com Pompeo, e com as autoridades americanas que querem que Julian Assange seja extraditado para os Estados Unidos o mais rápido possível.
E por que é que isso é perigoso? Se isso acontecer, então, até mesmo falar sobre democracia será impossível porque não há democracia sem liberdade de expressão. Não há democracia sem a Primeira Emenda nos EUA. Não há democracia sem liberdade de imprensa. E não há democracia se você não tiver a capacidade de verificar as informações, de ter informações, que é o que está a acontecer no dia a dia, não só em países estrangeiros, como Iraque, Irão, Afeganistão, mas no seu próprio país [os EUA].
Quão profundamente, por exemplo, o Partido Democrata foi corrompido? Em vez de terem Bernie Sanders como candidato, escolheram Hillary Clinton, e Hillary Clinton divertia-se com a escolha de Trump como opositor pensando que ele era para ela o melhor candidato porque ele não tinha hipótese de vencer. Quer dizer, isso foi revelado pelo WikiLeaks, sem mencionar também todas as outras revelações sobre o papel de uma das corporações globais mais poderosas, a Google, nas eleições dos Estados Unidos, ou o que, por exemplo, a Palantir estava a fazer nos campos de detenção para crianças. Não seria então ótimo termos uma organização que publicasse todas essas informações que ainda são secretas?
Se a extradição de Julian Assange acontecer, acho que será impossível falar mais em democracia. Muitas outras pessoas, incluindo jornalistas, podem acabar na prisão também. E isso não está a acontecer na China. Isso não está a acontecer na Rússia. Isso está a acontecer no centro da civilização europeia, em Londres. Está a acontecer na Europa. E eu acho que este é o maior escândalo do início do século 21. Para além do próprio facto de alguém que não matou ninguém ser mantido numa prisão com assassinos em massa, com terroristas e outras pessoas basicamente 23 horas na sua cela.
A Europa está realmente a voltar-se para essa direita, não apenas em ideologia, mas na realidade.
Em cada ano a China constrói mais vias férreas para comboios de alta velocidade do que o total das vias férreas existentes na Alemanha.
A China está a usar o fracasso e a total incompetência da política externa europeia, porque não existe tal coisa como política externa europeia.
Vamos ter países onde as pessoas desfrutam de bom ar, areia e praias, e outros países que estão literalmente, literalmente a afogarem-se em lixo.
Durante todas estas décadas, foram-nos convencendo de que somos um homem ou mulher de sucesso se possuirmos um carro, se possuirmos uma casa, se possuirmos, se comprarmos, comprarmos, comprarmos e usarmos os mesmos produtos de merda.
Aqui deixo um excerto de uma interessante entrevista radiofónica concedida a 3 de julho de 2019, por Srecko Horvat, pensador e poeta da Croácia, sobre como ele entende o mundo em que vivemos. Ele é o autor de “O que quer a Europa?”, “Welcome to the Desert of Post-Socialism”, “The Radicality of Love” e “Poesia do futuro: por que um movimento de libertação global é a última hipótese da nossa civilização”. Juntamente com Yanis Varoufakis, é também um dos fundadores do “Movimento pela Democracia na Europa”.
Por conveniência de espaço, raramente inseri as longas perguntas do entrevistador (Jeremy Scahill), substituindo-as pelos tópicos abordados (1. Relação entre Donald Trump e o crescimento da extrema direita e dos movimentos neofascistas na Europa. 2. Sobre a experiência jugoslava e o revisionismo histórico que está a acontecer na Croácia. 3. Sobre os países da ex-Jugoslávia, a União Europeia, a Rússia e a China. 4. Sobre as consequências para a Europa da nova Rota da Seda após a implosão da economia grega. 5. Sobre a Jugoslávia de Josip Broz, conhecido como Marechal Tito, os Partisans e a luta contra o nazismo. 6. Sobre a dependência do turismo. 7. Sobre as praias particulares e a privatização do litoral. 8. Como a crise climática, o desaparecimento dos serviços públicos e sua substituição por privados, tem afetado a Croácia. 9. Sobre a importância do Movimento dos Não-Alinhados hoje. 10. O mundo já não é bipolar, mas a propaganda e a ideologia são muito parecidas com a Guerra Fria. 11. Esperança sem otimismo, como único caminho da resistência à libertação. 12. Sobre os problemas Julian Assange, Chelsea Manning, Edward Snowden, as leis de espionagem e a liberdade de imprensa.).
Optei por manter, até certo ponto, o tom coloquial da conversa tida no estúdio de gravação. Seguir-se-á a parte 2.
Relação entre Donald Trump e o crescimento da extrema direita e dos movimentos neofascistas na Europa.
SH: Bem, eu começaria por dizer que o que podemos testemunhar hoje na Europa não é apenas uma ascensão da extrema direita, ou como lhe chamou, movimentos fascistas e líderes populistas que já estão no poder, como por exemplo Matteo Salvini na Itália, que não permite que os refugiados entrem nos portos italianos, ou Viktor Orbán, na Hungria. Você sabe, aquele que é famoso por dizer que acabou com a democracia e que estamos a viver na chamada era da "democracia i-liberal". E, claro, existem também outros líderes de extrema-direita, como Strache na Áustria, o que significa que a Europa está realmente a voltar-se para essa direita, não apenas em ideologia, mas na realidade.
Mas como mencionou Donald Trump e as semelhanças deles a Trump, eu diria que sim, eles são semelhantes a Trump. Se você tomar por exemplo a obra de Umberto Eco, o famoso escritor italiano, também um semiótico e muito interessante pensador político que escreveu um texto muito curto denominado “Ur-Fascismo”, ele enumera várias características do fascismo, das quais uma delas é o medo de estrangeiros. A outra é a misoginia, bem como outras características que ele coloca como fazendo parte do fascismo original. E se você juntar essas características, e as aplicar por exemplo, a Trump, Salvini, Bolsonaro, e a outros líderes em todo o mundo, verá que a situação atual hoje se assemelha realmente a esse tipo de Ur-Fascismo.
Mas eis o que é importante dizer, porque neste momento Trump está no Reino Unido, em visita o Reino Unido. Como provavelmente sabe, Angela Merkel, fez muito recentemente um discurso em Harvard. E qual é a relação entre estas duas coisas?
A interpretação ingénua que os liberais costumam fazer sobre a ascensão populista da extrema-direita, é apresentarem-na quase como se a ideologia de extrema-direita tivesse na realidade caído do céu.
Mas voltando a Merkel, em Harvard, você provavelmente já se apercebeu da forma como a comunicação social liberal tem escrito sobre isso: “Oh, ora aí está finalmente um líder europeu que irá dá lições a Trump, você sabe, que temos que derrubar as paredes e assim por diante”. Mas sabe onde é que Angela Merkel esteve poucas semanas antes?
Ela visitou a Croácia pouco antes das eleições europeias. E fez um discurso de rejeição, em que falava sobre rejeitar o nacionalismo. Contudo, esse discurso foi feito no comício político do partido conservador croata, que está muito envolvido no revisionismo histórico, tem problemas na fronteira com os refugiados e assim por diante. Ou seja, enquanto ela falava sobre rejeitar o nacionalismo, o que estava de facto a fazer era a apoiar o nacionalismo.
E penso que esse é o problema. Mesmo quando Angela Merkel fala em Harvard, o que temos que rejeitar é o nacionalismo. O que ela e o que o centro político fizeram realmente na Europa nos últimos anos, foi criarem os monstros, você sabe. Eles estavam a criar terreno fértil para o aparecimento dos Salvini, Orbán, Sebastian Kurz. De que forma? Por exemplo, ao impor a austeridade, criando novos buracos na periferia da União Europeia.
Os seus ouvintes provavelmente ainda se lembram do exemplo da Grécia e do referendo do Oxi (não) de 2015. Também aqui existe um paralelo com os Estados Unidos. Donald Trump também não caiu do céu. Acho que a classe liberal nos Estados Unidos tem realmente que se por uma questão muito séria: de onde veio realmente Donald Trump?
Sobre a experiência jugoslava e o revisionismo histórico que está a acontecer na Croácia.
SH: É uma pergunta muito boa, e fico feliz que a tenha feito. Eu sei que você viajou muito pela ex-Jugoslávia, mesmo durante a guerra, e as pessoas geralmente não entendem a importância da sequência histórica jugoslava e a sua experiência do socialismo real.
Até Jeremy Hunt, o secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, quando visitou a Eslovénia - que era uma das repúblicas da Jugoslávia - na conferência de imprensa com outros líderes eslovenos, chegou a dizer que a Eslovénia era um estado “vassalo soviético”. Você provavelmente também sabe que nos EUA, Donald Trump chegou a afirmar que a Jugoslávia tinha desaparecido do Báltico, e não dos Balcãs. Ou seja, você pode ver que há muita confusão, até sobre geografia, mesmo que a Melania venha da Eslovénia— Na verdade, não sei quantas pessoas nos EUA sabem que a Eslovénia fazia parte da Jugoslávia.
JS: Uma das apresentadoras de um programa da MSNBC nos EUA, Joy-Ann Reid, disse que ela era da Jugoslávia Soviética.
SH: Isso é exatamente o que está sempre a acontecer. Mesmo quando me apresentam, dizem: "Oh, ele é um filósofo da Jugoslávia Soviética." O que nos leva diretamente de volta à sua pergunta, porque eu acho que a experiência jugoslava foi realmente especial precisamente porque não era soviética. Você sabe, a criação de um verdadeiro socialismo real aconteceu depois que Tito rompeu com Stalin e não quis seguir as regras do Comintern.
Voltando à sua pergunta sobre os anos 90, o que aconteceu após o colapso da Jugoslávia foi realmente esse apagar da história, que aconteceu de maneiras diferentes em diferentes repúblicas da Jugoslávia.
Na Croácia, infelizmente, por um lado, tomou a forma de expurgarem das escolas não só livros ligados a Marx, a Engels e assim por diante, mas também de Dostoiévski ou Tolstoi. A maioria dos livros que tenho hoje em casa foram apanhados pelos ciganos, vendidos em feiras da ladra, e assim por diante, onde os comprei.
Outra consequência, eu diria traumática, foi a destruição de monumentos antifascistas. O que aconteceu aqui na Iugoslávia foi a destruição de milhares de monumentos, o que foi realmente um movimento deliberado para apagar a história da luta de resistência dos Partisan a coberto de um grande projeto de modernização.
Esta situação, diria eu, não é apenas específica da Croácia. É muito interessante ver que esse tipo de revisionismo histórico, que na verdade está a transformar os derrotados na Segunda Guerra Mundial naqueles que conseguiram vencer, o que é claro, é falso, mas você pode ver que essa tendência está realmente a acontecer em muitos países pós-comunistas.
Se você for à Polónia, se for à Hungria, o arquivo György Lukács foi fechado, o que considero um grande escândalo. Na Polônia você tem essa ascensão das forças conservadoras cristãs ligadas ao aborto e assim por diante. Da mesma forma que nos Estados Unidos, você encontra o tipo de ficção científica do “Handmaid’s Tale” (A História de uma Serva), tornado realidade, na Polônia e nesses países também. Basicamente a minha interrogação é: porque é que esse revisionismo histórico floresce tanto, mais precisamente nos países pós-comunistas?
Eu diria precisamente porque o chamado “período de transição”, como eles o chamam no meio acadêmico, transição que significa a transição do comunismo para o capitalismo, não teve sucesso. Não teve sucesso porque se você olhar para esses países - Croácia, Sérvia, para não mencionar a Bósnia ou Kosovo - você verá que esses países são agora periferias meio-dependentes da União Europeia, que se encontram numa espécie de situação colonial de empresas alemãs, francesas, italianas, que basicamente se apoderaram de todas as empresas que antes eram estatais, da infraestrutura, dos bancos aos correios, e assim por diante.
E então a questão é a de realmente saber se se tem algum tipo de soberania. E se você realmente não tem nenhum tipo de soberania, que é o que acontece não só nesses países, já se viu isso com uma série de experiências na Grécia, se você não tem soberania real, então a solução é recorrer muitas vezes ao revisionismo histórico, que significa construir uma espécie de identidade no sentido de a “América primeiro”, a “Croácia primeiro”, o que for primeiro. Mas esse é um tipo de identidade falsa de identidade nacional, que acho ser uma ideia muito problemática para o século 21, visto que o próprio conceito de soberania mudará completamente nas próximas décadas.
Sobre os países da ex-Jugoslávia, a União Europeia, a Rússia e a China.
SH: Eu diria que os Balcãs e a ex-Jugoslávia são a parte da Europa que geopoliticamente se está a tornar num dos lugares mais interessantes. Mas para quem aqui viva, a situação está a tornar-se muito preocupante, podem-se ver várias tendências em diferentes países. E, claro, agora temos novas fronteiras. Alguns países fazem parte da União Europeia, como a Eslovénia, a Croácia, e então, sabe, a União Europeia envia a FRONTEX, que é o exército que trata dos refugiados e protege as fronteiras externas. Portanto, coloca a FRONTEX entre a Croácia e a Bósnia, o que vai criar uma divisão ainda maior.
Mas o que acho mais interessante é a Sérvia. Passei muito tempo na Sérvia, tenho muitos amigos lá, visito-a com frequência. Na Sérvia, você pode ver a forma que assume o fracasso da União Europeia. Fracasso no sentido de que a União Europeia já não é tão atraente para os países que foram candidatos há 10 anos. Penso que todos na Sérvia gostariam de entrar na União Europeia. Se você for lá hoje, já não vê esse entusiasmo. Em vez disso, como você disse, vê capital e influência russa.
Vladimir Putin visitou recentemente, no ano passado, Belgrado. Havia 100 mil pessoas à espera dele, o que era, claro, um espetáculo de teatro de Vucic, que basicamente pagava às pessoas, pagava as passagens de autocarros de vilarejos da Sérvia e sanduíches, literalmente assim, para virem a Belgrado. Isto dá-lhe para poder imaginar o tipo de situação terrível que a população da Sérvia vive nesses vilarejos, porque eles geralmente não têm a oportunidade de virem a Belgrado.
Mas Putin fez isso por um motivo muito particular, pelo Nord Stream. Nord Stream, que nos mostra que a Europa está no meio de uma nova batalha energética entre os Estados Unidos e a Rússia. Você sabe quem vai fornecer o gás natural à Europa? Serão os russos ou os EUA? O mesmo está a acontecer na Alemanha, onde vivi nestes últimos dois meses. Acompanhei lá o debate. Há um grande debate também sobre precisamente a mesma questão.
Voltando para a Sérvia. Por um lado, você pode ver a influência da Rússia, ligada ao gás natural. Por outro lado, Belgrado como cidade está a mudar completamente. Está a transformar-se numa nova Dubai. Você tem arranha-céus. Você tem os Emirados Árabes Unidos a construir esses projetos feios. E você tem também a China.
E falando sobre a China, torna-se realmente interessante verificar como a China está a usar o fracasso e a total incompetência da política externa europeia, porque não existe tal coisa como política externa europeia, como vocês podem ver. Por um lado, você tem Angela Merkel a fazer um discurso em Harvard, criticando Trump, embora não o tenha nomeado pelo nome, mas nós sabemos. E por outro lado, você tem a família real em Londres, cumprimentando Trump como se fosse um filme mau de Terry Gilliam, do Brasil ou algo parecido.
Portanto, a incompetência da Europa no que diz respeito à política externa criou um campo aberto nos Balcãs para diferentes interesses geopolíticos. Sobre a China, é importante referir um dos maiores projetos de infraestrutura do início do século 21, o projeto One Belt One Road, construindo uma via férrea rápida da China à Europa. Devíamos dar um passo atrás. De forma a evitar que a política externa da Europa, mas também a política econômica, tivessem criado a possibilidade de a China se abalançar desta forma para a Europa, construindo a infraestrutura.
E se você voltar à Grécia, em 2015, àquele momento bastante importante, quando 61 por cento da população grega votou “oxi” [não] no referendo. Eles votaram contra as medidas de austeridade, que foram impostas por instituições europeias, pelo Banco Central Europeu e outros, que constituem a linha oficial da Europa: você sabe que se necessitar mais austeridade, você vai precisar de vender bens públicos - aeroportos, portos. E então o que aconteceu, é claro, é que o governo grego do Syriza foi forçado a vender o porto do Pireu, que é um dos portos mais estratégicos do Mar Mediterrâneo, à empresa chinesa COSCO.
E o que os chineses querem fazer é transportar mercadorias, e já estão a fazer isso diretamente para o porto de Pireu, seguindo depois daí por via férrea que estão a construir até à Macedônia, e da Bulgária para a Sérvia. O primeiro-ministro chinês esteve na Sérvia no ano passado e fizeram um acordo com Vucic e Viktor Orban, o que significa que têm já um projeto, eu acho, para construir uma nova ferrovia, de Belgrado a Budapeste
Sobre as consequências para a Europa da nova Rota da Seda após a implosão da economia grega.
SH: Bem, acho que as consequências são realmente grandes. Quer dizer, já hoje, é impossível evitar produtos chineses em qualquer parte. Mas o que eles farão, o que eles perceberam, o que a China percebeu é que o transporte de produtos por navios é muito lento. E às vezes você também tem problemas com os piratas somalis e assim por diante. Não sei se eles ainda estão ativos, mas é muito lento. E tempo é dinheiro, como diz a mantra do capitalismo, e eles perceberam que, se forem capazes de transportar os produtos de Pequim, digamos, para Hamburgo, em duas semanas, isso aumentará ainda mais o seu poder geopolítico.
O que significará isso para os Balcãs e para o futuro da União Europeia, direi da seguinte forma: Por que não é a própria Europa a investir em grandes projetos de infraestrutura? Por que não está a Europa a construir comboios? Você sabia que em cada ano a China constrói mais vias férreas para comboios de alta velocidade do que a Alemanha tem no total?
SH: Há um ano, ou por essa altura, a viagem de comboio entre Zagreb e Belgrado levava cerca de sete ou oito horas. São cerca de 350-400 quilômetros. E de acordo com os dados que encontrei, esta mesma viagem durante o monarquia austro-húngaro que foi, como sabe, muito tempo atrás, demorava menos do que hoje. Então você pode ver que a infraestrutura está completamente ultrapassada. Está devastada, é claro, por causa da corrupção, por causa da austeridade e assim por diante.
E para um comboio chinês, essa viagem levará provavelmente, uma hora, mas há um problema, é claro. Você sabe, há um problema porque nas construções que os chineses fazem, basicamente, esses carris, tanto quanto sei, talvez esteja errado, não serão usados para transporte de passageiros, mas principalmente para o transporte de mercadorias.
Mas voltando à Europa, você sabe, o que você pode detetar aqui com tudo o que falámos, a situação na Sérvia, a situação na Croácia, sem falar, no que está a acontecer na Áustria. Haverá eleições antecipadas em setembro. Agora há eleições antecipadas na Grécia, com a Nova Democracia a crescer. Você pode ver que a Europa está numa crise profunda. E não é apenas esse tipo de crise de identidade, acho que é uma grave crise interna e uma grave crise geopolítica.
E enquanto a Europa está nesta crise, não sendo capaz de encontrar um caminho político comum, que deveria seguir, está a perder terreno para os outros jogadores, para a China, Rússia, árabes e assim por diante, e até mesmo para os EUA. Você pode ver isso na visita de Trump ao Reino Unido.
Então, você tem uma Europa que não está unida. Você tem uma Europa que, na verdade, está a entregar a sua própria infraestrutura em vez de investir na infraestrutura. Você tem uma Europa que talvez do ponto de vista americano, seja ainda a Europa do cinema de Paris, de Roma e todo esse tipo de merda utópica sobre a Europa. Mas a situação aqui é realmente muito preocupante. E o que acontecer na Europa terá consequências profundas nos EUA, como sempre teve no resto do mundo. Não se esqueça que as duas guerras mundiais começaram na Europa, que nos anos 90 tivemos a dissolução da Jugoslávia, o que também, como podemos ver agora, também tem consequências no resto da Europa.
Sobre a Jugoslávia de Josip Broz, conhecido como Marechal Tito, os Partisans e a luta contra o nazismo.
SH: É uma ótima pergunta e acho que toda a experiência jugoslava tem muitas lições aproveitáveis para a situação hoje. Deixe-me primeiro dizer que definitivamente não sou alguém nostálgico. Sou uma pessoa muito crítica da experiência jugoslava por diversos motivos dos quais podemos falar. Ao mesmo tempo, penso que esta consequência histórica da segunda guerra mundial é tão importante hoje, porque mostra várias coisas.
Em primeiro lugar, para entender melhor, é preciso imaginar um mapa da Europa com a cor vermelha, e a cor vermelha representa os nazistas que ocuparam países. E se você olhar para a Europa nos anos 40, início dos 40 do século passado, verá que a maior parte da Europa é vermelha. Não é vermelho no sentido de comunismo, mas por representar a ocupação nazista.
E a ex-Jugoslávia, naquela época, era a Jugoslávia, mas ainda não era socialista, também estava ocupada. Na Croácia e na Sérvia, com regimes colaboracionistas fantoches. Na Sérvia nessa altura, havia um movimento comunista de guerrilhas. Basicamente, foi realmente um movimento de guerrilha, antes mesmo dos movimentos de guerrilha aparecerem na América Latina e assim por diante. Porque o terreno na Jugoslávia é cheio de montanhas, rios, ilhas e assim por diante.
E os guerrilheiros jugoslavos liderados por Tito e muitos outros, e também por mulheres, foi na verdade o único movimento de resistência que eu diria existir na Europa. Como sabemos, tínhamos movimentos de resistência na França. Tínhamos o movimento de resistência grego e assim por diante, mas eu diria que os guerrilheiros jugoslavos foram os únicos que conseguiram usar a situação de guerra e de ocupação total para criar uma revolução social. Não foi só, “ah, saímos da guerra” e depois “tudo tem que mudar para que tudo continue igual”, como diria Lampedusa.
Aqui não foi assim. Não foi apenas uma continuação de um tipo liberal de sistema. Foi uma tentativa de transformar radicalmente a sociedade. E você mencionou Gavrilo Princip, que foi quem atirou em Franz Ferdinand. As pessoas dizem que ele é o responsável pela primeira guerra mundial. Bem, na época em que Gavrilo Princip participou, estávamos no início do século XX. Naquela época, 95% da população da Bósnia donde Gavrilo Princip vinha - quero dizer, ele estava lá - 95% da população da Bósnia era analfabeta.
Agora, a situação é completamente oposta. Você sabe, por causa do projeto de modernização da Jugoslávia, que era construir estradas, construir edifícios, sabe, no MoMA, o museu de Nova York teve recentemente uma muito boa exposição, chamada “Utopia Concreta”, sobre arquitetura jugoslava. E é muito triste que aqui na Croácia, na Sérvia e assim por diante, esses edifícios fantásticos que parecem obras de ficção científica estejam devastados, em ruínas, ninguém realmente se importa. E é o Museu de Arte Moderna de Nova York, que nos mostra que tipo de arquitetura tínhamos. Então era arquitetura, era um projeto de modernização, que incluía todas as esferas da vida.
E bem, eu poderia falar mais sobre isso, mas deixe-me apenas dizer que se há três lições da experiência jugoslava, eu diria que a primeira - três lições para os nossos tempos sombrios e distópicos de hoje - a primeira lição é o antifascismo e de que forma você pode realmente liderar uma luta bem-sucedida contra o fascismo.
Aqui também é importante citar todas as negociações que ocorreram entre Tito e Fitzroy Maclean - por um lado, que foi a verdadeira inspiração para o personagem de James Bond, e que lutou junto com os Partisans, da Bósnia à Ilha de Vis - e Winston Churchill, que não considero a personagem mais positiva da história. Mas, e essa é uma grande lição, Winston Churchill percebeu que a única maneira de vencer a Segunda Guerra Mundial era fazer uma aliança mesmo com aqueles que ele mais desprezava, ou seja, os comunistas, mas ele fê-lo por razões estratégicas.
E eu acho que isso é, você sabe, o fracasso de hoje, onde o establishment liberal, o chamado centro político, tem muito medo de alianças com a esquerda. Em vez de ter alianças com a esquerda, eles fazem de tudo para diminuir a esquerda. A Jugoslávia é uma boa lição, eu diria, para mostrar que, se realmente quisermos sair dessa situação geopolítica muito perigosa de hoje, precisaremos de algumas novas alianças, mesmo que sejam apenas táticas.
A segunda lição - então, a primeira lição é o antifascismo e como derrotar o fascismo. A segunda lição é autogestão. É por isso que fico tão irritado quando todas essas pessoas falam sobre a Jugoslávia Soviética. A principal diferença foi realmente o que Tito fez em 1948, quando rompeu com Stalin e o Comintern, e introduziu o projeto de autogestão que, na prática, bem, realmente não funcionou, mas a ideia era boa.
A ideia era que a mais-valia do trabalho feito pelos trabalhadores não iria para os gestores e banqueiros e assim por diante, mas que voltaria para eles para poderem decidir sobre o seu futuro. Então, não é apenas democracia. Era para ser democracia econômica. Por diferentes razões não deu certo.
Podemos falar sobre isso também, mas acho que hoje continua a ser uma ideia muito importante, em que um gerente numa empresa como CEO tem um salário 400 ou 1.000 vezes maior do que um trabalhador da mesma empresa e essa tendência dos anos 70 e assim por diante que começou com Margaret Thatcher e Ronald Regan,.
SH: Sabe, acabei de voltar de Berlim e em Berlim há, como em todas as cidades europeias, uma enorme crise habitacional, que é, por um lado, consequência do capitalismo monopolista. Você sabe, as grandes empresas compram muitos apartamentos numa cidade e os preços sobem e, por outro lado, é uma consequência do chamado capitalismo de plataforma que significa a AirBNB-ificanização (Uber-ização) de tudo.
O que de uma forma muito simples significa que se um estudante de uma pequena aldeia croata ou espanhola quiser vir para Barcelona ou Zagreb, é muito difícil encontrar um apartamento para morar no centro da cidade porque é muito mais lucrativo alugar um apartamento ao Airbnb, e isso constitui um grande problema.
Em Berlim, eles tiveram um problema enorme quando uma empresa conseguiu comprar mais de 3.000 apartamentos e com isso mudou completamente todo o mercado de habitação em Berlim. Porque se você tem 3.000 apartamentos, basicamente, é você quem pode decidir os preços. É o chamado capitalismo monopolista.
Na Jugoslávia, tínhamos habitação social. Isso não só o pode surpreender, porque soará como notícia falsa que eu a tivesse inventado agora, mas venha à costa croata, você saberá, você já esteve na costa croata. Você verá até hotéis onde os trabalhadores iam de férias, o que fazia parte do contrato.
Sobre a dependência do turismo.
SH: Sim, mas é exatamente isso que é fascinante. Acho que a maioria das pessoas que nos estão a ouvir agora vão pensar que viemos de um passado comunista, sabe, esse tipo de departamento de propaganda, mas não é. Você sabe, eu não sei se está aberto, mas a exposição “Utopia Concreta” no Museu de Arte Moderna de Nova York, também mostra esses hotéis como bangalôs, e assim por diante. E além de dar a todas essas pessoas, aos trabalhadores, a oportunidade de irem passar férias no litoral, sabe, também acho que foi muito importante para a diversidade e o intercâmbio entre os diversos países da Jugoslávia.
A Europa teve ou ainda tem o programa Erasmus, que se destina principalmente a alunos que depois obtêm uma bolsa para viajar pela Europa. Mas acho que o que precisamos hoje é uma espécie de Erasmus universal, você sabe. E se, por exemplo, um funcionário dos correios britânico pudesse ir para a Croácia e o funcionário dos correios croata pudesse ir para Londres e houvesse um sistema organizado de trocas e assim por diante?
Eu diria que você veria imediatamente a queda do populismo de direita e assim por diante, porque a maioria das pessoas simplesmente não viaja, isso é um grande problema. É claro que, com a mudança climática e a crise climática, também poderíamos colocar questões como a de saber se as pessoas deveriam viajar tanto.
Você mencionou o turismo. Um grande problema para esses países da periferia da União Europeia - Espanha, Portugal, Grécia, Croácia inclusive - é o turismo. Porque é um problema? É um problema porque - vou dar-lhe apenas os números da Croácia - Croácia e Malta são os dois principais países do mundo quando se trata de participação no PIB do turismo - para a Croácia, acho que está acima de 18% agora, o que significa que basicamente você tem uma economia que é totalmente dependente do turismo.
E você sabe, quando você está totalmente dependente do turismo, você também está dependente do clima, ou por exemplo, se alguma situação geopolítica muda ou se acontece um ataque terrorista como na Tunísia, tudo pode mudar e então não há mais 18 por cento do PIB e não há mais indústria porque não temos mais indústria depois do chamado período de transição do comunismo para o capitalismo. Isto é um grande problema.