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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(304) Quando se deve calar

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

O que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar, Wittgenstein.

 

O que os filósofos necessitam não é de profundidade, mas de clareza.

 

A linguagem é um traje que disfarça o pensamento.

 

A metafísica é uma rainha como a Maria Antonieta: imperial, fora do nosso alcance, e pronta para ser guilhotinada.

 

 Ser judeu não era definido com base na religião ou etnia. Era um estado de alma, caraterizado pelo modernismo e liberalismo em que assentavam as fontes da sua corrupção espiritual.

 

 

 

 

Há quem diga que a “evolução” da humanidade em todas as suas variáveis se faz por ciclos sinusoidais que de tempos a tempos se entrecruzam, se encontram num ponto, originando aquilo a que vulgarmente se chama de “renascimento”. Essas estações, para além de possibilitarem o aparecimento de personagens que em si conseguem reunir todos os conhecimentos (os chamados “homens do renascimento”, passe o machismo não meu, mas da sociedade patriarcal pré e pós “eu também”) estariam também na origem de novos conhecimentos surgidos após a síntese elaborada. Nada que a apresentação em gráfico não lhe confira automaticamente aquele elemento de verdade matematicamente inquestionável.

É assim que também observamos que após as crises, grandes momentos de humilhação e confusão, as pessoas sentem a necessidade de reconstruirem o seu entendimento sobre o mundo em que vivem, mostrando-se mais abertas a aceitarem novas explicações passíveis de as tranquilizar (ou não).

Nomeadamente as guerras que têm sido sempre entendidas como momentos de crise, pelo que são consideradas por esses alguns como momentos propiciatórios para saltos de criatividade. E quando não há guerra, ela fica sempre como referencial a que se possa recorrer, como agora quando se compara o seu número de mortos com os da pandemia (entre os mortos da Segunda Guerra e os mortos pelo vírus, entre a guerra colonial do ultramar e os mortos do vírus), comparação típica entre alhos e bugalhos.

 

Ludwig Wittgenstein (1889-1951) servia como oficial de artilharia no exército Austro-Húngaro quando, poucos dias antes do Armistício (novembro de 1918), foi capturado pelos Aliados (são sempre os nossos) tendo passado nove meses como prisioneiro em Itália antes de regressar a Viena. Foi durante essa época que escreveu o Tratado Lógico Filosófico, publicado em 1921. No seu prefácio, Wittgenstein diz:

 

O livro trata dos problemas filosóficos e mostra – creio eu – que a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem. Poder-se-ia talvez apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar. O livro pretende, pois, traçar um limite para o pensar, ou melhor – não para o pensar, mas para a expressão dos pensamentos: a fim de traçar um limite para o pensar, deveríamos poder pensar os dois lados desse limite (deveríamos, portanto, poder pensar o que não pode ser pensado). O limite só poderá, pois, ser traçado na linguagem, e o que estiver além do limite será simplesmente um contrassenso.

 

Segundo ele, muitos dos problemas da disciplina tradicional de filosofia são derivados da dificuldade em entender termos como por exemplo, “ser”, “essência”, “substância”, “real”, “ideal”, abstrações que têm originado argumentos complicados que dão voltas sobre voltas sem nunca chegarem a qualquer conclusão definitiva. Essa falta de entendimento tem por base uma utilização incorreta da linguagem. São problemas linguísticos.

O que os filósofos necessitam não é de profundidade, mas de clareza. E passa a explicar:

 

“Na linguagem corrente, acontece com muita frequência que uma mesma palavra designe de maneiras diferentes – pertença, pois, a símbolos diferentes – ou que duas palavras que designam de maneiras diferentes sejam empregadas, na proposição, superficialmente do mesmo modo. Assim a palavra “é” aparece como cópula, como sinal de igualdade e como expressão da existência; “existir” como verbo intransitivo, tanto quanto “ir”; “idêntico” como adjetivo; falamos de algo, mas também de acontecer algo. (Na proposição “Rosa é rosa” – onde a primeira palavra é um nome de pessoa, a última é um adjetivo – essas palavras não têm simplesmente significados diferentes, mas são símbolos diferentes). Assim nascem facilmente as confusões mais fundamentais (de que toda a filosofia está repleta).”

 

Breve, dizer que o indivíduo Rosa é idêntico à cor-de-rosa é um contrassenso, e dizer que o indivíduo Rosa é idêntico ao indivíduo Rosa é não dizer absolutamente nada.

Outro exemplo, e este já parece ter mais que ver com um problema de filosofia, é o da proposição, “o belo é bom”, em que “é” indica uma propriedade do belo, mas que também pode ser entendida como asserção de identidade, tornando o “belo” idêntico ao “bem” e vice-versa.

E este é um problema que só pode ser resolvido no contexto da linguagem:

 

Só a proposição tem sentido; é só no contexto da proposição que um nome tem significado”.

“A totalidade das proposições é a linguagem. O homem possui a capacidade de construir linguagens com as quais se pode exprimir todo sentido, sem fazer ideia de como e do que cada palavra significa – como também falamos sem saber como se produzem os sons particulares.

 A linguagem corrente é parte do organismo humano, e não menos complicada do que ele.

 É humanamente impossível extrair dela, de modo imediato, a lógica da linguagem.

 A linguagem é um traje que disfarça o pensamento. E, na verdade, de um modo tal que não se pode inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento trajado; isso porque a forma exterior do traje foi construída segundo fins inteiramente diferentes de tornar reconhecível a forma do corpo.

 Os acordos tácitos que permitem o entendimento da linguagem corrente são enormemente complicados.”

 

Quanto ao problema da verdade, para Wittgenstein uma proposição é verdadeira, quando corresponde à realidade, e falsa quando não corresponde à realidade; ou seja, é preciso sempre que a comparemos com a realidade: “Para reconhecer se a figuração é verdadeira ou falsa, devemos compará-la com a realidade”.

Passando às proposições da filosofia, demonstra que não são descrições de estados de coisas, o que significa que não podem ser verdadeiras. O que significa que também não podem ser falsas, logo, as proposições da filosofia nada dizem:

 

“A maioria das proposições e questões que se formularam sobre temas filosóficos não são falsas, mas contrassensos. Por isso, não podemos de modo algum responder a questões dessa espécie, mas apenas estabelecer o seu caráter de contrassenso. A maioria das questões e proposições dos filósofos provém de não entendermos a lógica da nossa linguagem.

 (São da mesma espécie que a questão de saber se o bem é mais ou menos idêntico ao belo).

 E não é de admirar que os problemas mais profundos não sejam propriamente problemas”.

 

E, continua, sobre o objetivo da filosofia:

 

“A totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou a totalidade das ciências naturais).

 A filosofia não é uma das ciências naturais.

 (A palavra “filosofia” deve significar algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciências naturais).

 O fim da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos.

 A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações.

 O resultado da filosofia não são “proposições filosóficas”, mas é tornar proposições claras.

Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar precisamente os pensamentos, antes como que turvos e indistintos”.

 

Donde, o resultado da atividade filosófica consistir no esclarecimento da linguagem para assim poder determinar o sentido de uma proposição. E, sendo capaz de determinar se uma proposição possui ou não sentido, ela é capaz de determinar os limites do sentido:

 

A filosofia limita o território disputável da ciência natural.

 Cumpre-lhe delimitar o pensável e, com isso, o impensável. Cumpre-lhe delimitar o impensável de dentro, através do pensável.

Ela significará o indizível ao representar claramente o dizível.

Tudo que pode ser em geral pensado pode ser pensado claramente. Tudo que se pode enunciar, pode-se enunciar claramente”.

 

Expondo exaustivamente o seu método, que acredita levará o leitor à posse de uma escrita concetual, dá-lhe um conselho final:

 

“As minhas proposições elucidam desta maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contrassensos, após ter escalado através delas – por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela).

 Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o mundo corretamente.

Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.”

 

Não é de admirar que tais pensamentos sobre a linguagem que pretendiam torná-la tão precisa e rigorosa como se tratasse de uma equação matemática, se tornassem numa quase adoração por um pequeno grupo de cientistas, matemáticos e filósofos, que se reuniam regularmente entre os meados de anos vinte e meados dos anos trinta no Instituto de Matemática da Universidade de Viena. O célebre “Círculo de Viena”, que contava entre eles com o lógico Rudolf Carnap, o sociólogo Otto Neurath, o matemático Kurt Godel, e Moritz Schlick, que se dedicou à filosofia após ter obtido o doutoramento em física com Max Planck.

Em 1929, o Círculo publica um manifesto, “A conceção científica do mundo” em que explica os princípios em que assenta, “o conhecimento tem por base apenas a experiência, que se apoia naquilo que nos é imediatamente dado”, “tendo como método base a análise lógica.”

Esta escola de pensamento ficou conhecida como “empirismo lógico”, segundo a qual a filosofia deixava de lidar com ideias ou coisas, passando antes a lidar com proposições, sentenças e declarações, única forma de representar o mundo.

O papel da filosofia na busca da verdade ficaria reduzido ao exame da forma das proposições, limitando-se a garantir que elas estivessem sintática e logicamente corretas. Utilizavam para isso a lógica simbólica desenvolvida por Bertrand Russell, procurando reduzir cada sentença a uma série de símbolos e fórmulas. Se folhearmos A Sintaxe Lógica da Linguagem (1934), de Carnap, iremos deparar com um livro em tudo parecido a um livro de matemática.

 

Uma das consequências desta escola de pensamento foi a secundarização da metafísica, porquanto as suas afirmações não eram possíveis de verificar, sendo, portanto, sem significado, como demonstra Carnap num seu estudo de 1932, “A Eliminação da Metafísica pela Análise Lógica da Linguagem”.

Por exemplo, palavras como “Ideia” (Platão) e “coisa-em-si” (Kant), por mais que pudessem provocar imagens associadas a sentimentos, não têm qualquer significado, pelo que qualquer explicação que as tivesse por base, nada quereria dizer.

Para os membros do Círculo de Viena, a metafísica era uma rainha como a Maria Antonieta: imperial, fora do nosso alcance, e pronta para ser guilhotinada.

 

A metafísica estava, contudo, bem viva. O estudo de Carnap estava dirigido contra Martin Heidegger, que em 1929 proferira uma lição com o título. “O que é a Metafísica?”, num ataque aos empiristas lógicos.

Começou por reconhecer que a ciência moderna não tinha qualquer préstamo para a metafísica, e isto porque de acordo com a conceção científica do mundo, só eram reais as coisas que pudéssemos experienciar diretamente, o que limitava o domínio do conhecimento aos “seus próprios seres – e nada para além deles”.

É que para além dos seres, há o nada. Nós conseguimos apreender o nada, não através do raciocínio, mas pela experiência da ansiedade, em momentos de angústia existencial, em que o ser se desvanece ficando só rodeado pelo nada. E só através deste encontro extremo é que poderemos entender conceitos lógicos como negação e nãoexistência.

 

Para os admiradores de Heidegger, era esta deslocação da linguagem que permitiria à metafísica recuperar o poder e a envolvência perdida há milénios. O modo como ele enraizava a filosofia no sentir, em vez do raciocínio, tornava as suas proposições mais apelativas que as dos empiristas lógicos.

De certa forma é como se Heidegger pretendesse fazer da filosofia, poesia, ao passo que o Círculo de Viena pretendia fazer dela, matemática. E era exatamente isso, a dimensão poética, que Carnap criticava: o uso abusivo da linguagem para criar uma ilusão de profundidade.

Eis com ele explicava: se, por exemplo, alguém perguntar, “O que está lá fora?”, pode-se responder. “Nada”, ou da mesma forma, “Chuva”. E isto cria a ilusão de que “nada” é uma entidade como chuva, cujas propriedades e ações podem ser descritas. Isto cria confusão mental, e a ser intencional é uma tentativa de mistificação. Já antes, Wittgenstein explicara que “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”.

Basicamente, para Heidegger a linguagem podia descobrir verdades mais profundas que a lógica; já para o Círculo, a linguagem sem lógica conduzia apenas à falta de senso.

 

Quando em 1929 o Círculo de Viena lançou o seu manifesto, seguiu-se-lhe a publicação de um jornal e uma série de conferências semanais com o intuito de juntar várias personalidades de diversos campos científicos, originando uma enciclopédia do conhecimento científico que se estendia da economia e ciências sociais, reforma do sistema educativo, linguística, etc., a Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada em 200 volumes.

Um dos seus principais impulsionadores era Otto Neurath, notório socialista que tinha participado na revolução falhada de 1919 em Munique, que para além da filosofia trabalhava em programas de educação de adultos e de alojamento público.

Nem todos no Círculo concordavam com a abertura a debates políticos e com a identificação do Círculo coma esquerda, até porque vivendo em Viena, cidade de dois milhões de habitantes numa Áustria de seis milhões, uma cidade com uma cultura cosmopolita e com grande população judia, que era odiada pelo resto da população eminentemente rural, conservadora e católica, reconheciam a situação periclitante em que se encontravam.  Em 1933, tomou posse o governo fascista da Frente da Pátria.

 

Em 1934, o grupo passou a ser escrutinado pela polícia, o que levou Schlick a escrever a vários órgãos governamentais, dando conta que o Círculo era “absolutamente apolítico”. O que não evitou que fosse dissolvido, e que vários dos seus membros fossem presos ou ficassem sem emprego, isto apesar da ocupação da Áustria pela Alemanha Nazi só viesse a acontecer quatro anos depois.

 

Em junho de 1936, Schlick é assassinado nas escadarias da universidade por Johann Nelbock, um seu aluno psicótico que já por várias vezes o tentara. A imprensa nacionalista e antissemita noticiou-o, congratulando-se, como um golpe contra o pensamento degenerado judeu, acusando Schlick de estragar “a fina porcelana do caráter nacional” e por personificar as qualidades da “lógica, matemática e formalismo” judaicas como sendo inimigas do “estado Cristão Alemão”.

No julgamento, Nelbock afinou por esse mesmo diapasão, dizendo que matara Schlick por razões ideológicas. Embora condenado a prisão, assim que a Áustria foi anexada em 1938 pela Alemanha Nazi, Nelbock foi libertado, dado que o seu crime tinha sido inspirado em “motivos fortemente nacionalistas e explicitamente antissemitas.”

 

Acontece que Schlick não era judeu, e sim protestante alemão. Provavelmente alguns dos seus difamadores não sabiam isto, mas para a maior parte isso não interessava porquanto o ser judeu não era definido com base na religião ou etnia. Era um estado de alma, caraterizado pelo modernismo e liberalismo em que assentavam as fontes da sua corrupção espiritual.

 

Os membros do Círculo começam a pensar em emigrar. Muitos partem para a América: Herbert Feigl vai para a Universidade de Iowa em 1931; Carnap, para a Universidade de Chicago em 1936; Kurt Godel, famoso pelo seu teorema da incompletude, só acorda em 1940, tendo fugido pela rota mais longa, via oeste, pela União Soviética, Oceano Pacífico, Estados Unidos e finalmente New Jersey, para Princeton.

Livre dos empiristas lógicos, Heidegger continua a sua ascensão. Depois de Hitler tomar o poder na Alemanha, em 1933, é nomeado reitor da Universidade de Friburgo, com a responsabilidade de a nazificar. No seu discurso de tomada de posse, diz que a essência da ciência é “o questionamento que se levanta perante o chão de cada um no meio da totalidade do que seja o constante auto-resguardo.”

Certamente os membros do Círculo sorririam desta linguagem. Como muito bem sabiam, e como a Alemanha e o mundo acabarão por saber, as pseudo-proposições têm consequências muito reais.

 

 

 

 

 

Nota

“Pseudo-proposições”: são proposições sintaticamente corretas, mas desprovidas de sentido, quer dizer, inverificáveis, não projetam nenhuma imagem do mundo.

 

 

 

 

(303) Não ter nada e ser feliz

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

As previsões do World Economic Forum confortam-nos quanto ao futuro, não o que aí venha, mas o que já esteja programado para nós.

 

No Reino Unido, 1,5 milhões de britânicos “não têm acesso a bens essenciais”, relatório de 2018 das Nações Unidas sobre a pobreza.

 

Enquanto os pobres têm sido inundados com religiões que glorificam a pobreza, a humildade e a obediência, os ricos têm feito circular entre eles as sua doutrinas privadas sobre o como está certo eles terem tanto enquanto todos os outros têm tão pouco. A cada um as suas religiões.

 

É apenas a habilidade dos mais poderosos na utilização do governo, os segredos corporativos e financeiros, a censura da internet e a propaganda dos média de comunicação no encobrimento e distorção da verdade que impede que isso aconteça, Caitlin Johnstone.

 

 

 

 

 

Foi Sir James Goldsmith (1933-1997), financeiro e bilionário de sucesso, um dos primeiros a chamar a atenção para os que aplaudiam a globalização desenfreada dos anos noventa, da forte possibilidade desse processo conduzir à criação de maior desemprego e pobreza no mundo industrial ao mesmo tempo que devastava o terceiro mundo.

Na tese que defendeu nos seus livros The Trap (1994) e The Response (1995), predizia que a capacidade das maiores empresas do mundo conseguirem operar em qualquer parte na procura de lucros aumentados, juntamente com a possibilidade para empregarem quem quisessem num enormemente expandido mercado de trabalho mundial, acabaria por ter um efeito negativo nos níveis de vida.

Foi desconsiderado e malvisto pelas elites financeiras que apresentaram contraditórios, como por exemplo, relatórios do Banco Mundial onde mostravam que o número de pessoas a viver em extrema pobreza diminuíra cerca de 25% entre 1981 e 2005.

Em 2004, o professor de economia neozelandês, Robert Hunter Wade, no seu estudo “Is Globalization Reducing Poverty and Inequality?” que começa por duvidar dos pressupostos teóricos da globalização em curso, vai em 2017 no “Global growth, inequality, and poverty: the globalization argument and the political science of economics”, demonstrar que na realidade, se não se contabilizasse o caso especial da China, o número dos que viviam em extrema pobreza aumentara.

 

É nesse mesmo estudo que vai apresentar a distinção entre o que considera terem sido as duas primeiras vagas da globalização, dos fins do século XIX e das décadas posteriores à Segunda Guerra do século XX até aos anos oitenta, e a terceira vaga que se lhes seguiu.

Para ele, as duas primeiras vagas que são caracterizadas pela “globalização do comércio” e pela “produção imóvel”, ajudaram a reduzir as desigualdades e a pobreza (em meados dos anos 70 a desigualdade alcançou valores historicamente baixos).

A terceira vaga, “globalização da produção”, caracterizada pela deslocalização da produção das grandes multinacionais para os países de baixos salários, fez com que as desigualdades, entre países e dentro deles, aumentassem rapidamente. Com a queda do contrapoder que constituía o bloco soviético, e com o desastre financeiro de 2008, assistiu-se à estagnação económica, à subida do custo de vida, aos cortes na segurança social e nos serviços públicos, à diminuição dos salários e rendimentos, ao aumento do desemprego, e à introdução das políticas de austeridade.

 

Como exemplo, podemos referir o relatório de 2018 das Nações Unidas sobre a pobreza onde consta que no Reino Unido, 1,5 milões de britânicos “não têm acesso a bens essenciais […] (e que) uma em cada duas crianças serem pobres no século XXI não é apenas uma desgraça, mas uma calamidade social e um desastre económico, de uma só vez.”

 

Foi a primeira vez em 70 anos que as crianças inglesas, a pedido do próprio governo, tiveram de ser ajudadas pela UNICEF na sua alimentação, segundo relata o Guardian na sua edição de 16 de dezembro de 2020. Estamos a falar do Reino Unido, o UK, um dos mais ricos faróis do sistema económico vigente.

A secretária-geral adjunta do Partido Trabalhista, comentou a propósito:

 

                                          “[O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e o seu ministro da Economia, Rishi Sunal] deveriam estar envergonhados por uma organização que opera em zonas de guerra e de desastres naturais ter de alimentar as nossas crianças”.

 

 

Mas não nos preocupemos. A solução está já engatilhada. Com o falso pretexto de combater o coronavírus, o Forum Económico Mundial, o World Economic Forum como melhor soa em português, uma organização suportada pelas corporações mais ricas do mundo e pelos indivíduos mais ricos do mundo, tem já um programa, The Great Reset/4IR (The Great Reset/Fourth Industrial Revolution), evidentemente não votado nem debatido, onde é afirmado que “a quarta revolução industrial conduzir-nos-á a uma fusão da nossa identidade física, digital e biológica”.

Para melhor nos convencerem, editou um vídeo que nos mostra como será o mundo em 2030, abrindo com a seguinte previsão:

 

Você não vai possuir nada e vai ser feliz”.

 

A celebrada “sociedade sem dinheiro” em que quem não aderir ou não cumprir poderá ser desligado do sistema…

Seguem-se depois outras previsões para nos confortarem quanto ao futuro, não o que aí venha, mas o que já esteja programado para nós.

 

Para eles, as elites transnacionais que detêm o poder e que se encontram todos os anos em Davos, o programa também já está feito:

As pessoas mais ricas do planeta veem a sua riqueza aumentar 27,5% (segundo o Institute for Policy Studies, “a riqueza combinada de 647 bilionários norte-americanos aumentou em cerca de 960 biliões de dólares desde o início da pandemia …”)

 

Enquanto os pobres têm sido inundados com religiões que glorificam a pobreza, a humildade e a obediência, os ricos têm feito circular entre eles as sua doutrinas privadas sobre como está certo eles terem tanto enquanto todos os outros têm tão pouco. Cada um com as suas religiões ou, melhor, duas igrejas de uma religião.

 

Quem mais perdeu? Os que não vão possuir nada porque não precisam. Nós.

A mensagem é muito clara: nós não possuímos nada porque eles, as elites transnacionais que detêm o poder que se encontram todos os anos em Davos, possuem tudo. Mas isso não nos deve preocupar porque nós somos muito felizes. Herdamos o reino do Céu.

 

 

Verdades inconvenientes

 

A 11 de novembro de 2020, a jornalista americana Caitlin Johnstone, dizia num seu artigo o seguinte:  

 

Acredito que se o público tivesse uma imagem clara do que está a acontecer no nosso mundo e das forças oligárquicas assassinas que nos conduzem para a destruição, usaria naturalmente o poder do seu número para forçar alterações drásticas a esse estatuto suicida que pesa sobre a humanidade e a ecologia em busca de algo muitíssimo mais saudável. É apenas a habilidade dos mais poderosos na utilização do governo, os segredos corporativos e financeiros, a censura da internet e a propaganda dos média de comunicação no encobrimento e distorção da verdade que impede que isso aconteça. É por isso que nunca ninguém é tão demonizado e vilipendiado pelos propagandistas do sistema instituído que aqueles que revelem as verdades inconvenientes e que promovem narrativas não autorizadas”.

 

(302) A humanização dos vírus

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Desde o princípio, para se situar no mundo, para o poder entender, o ser humano imaginou tudo à sua medida.

 

Falamos hoje dos vírus como se eles se desenvolvessem num quadro humano, atribuindo-lhes propriedades humanas que não têm, projeções de nós próprios e da civilização em que vivemos.

 

Os vírus não sofrem mutações para se tornarem mais infeciosos.

 

As mutações de DNA e de RNA são pré-adaptativas, o que significa que acontecem por acaso, e depois se verá o que acontece.

 

 

 

 

 

No passeio frente à minha janela vejo todos os dias dezenas de cães e cãezinhos a passearem os seus donos, umas vezes puxando pela trela, outras sendo puxados. Para além do ritual diário de transformarem o passeio público em urinol e excretório, o que, segundo já me tentaram explicar, parece ser bastante higiénico e ecológico, na medida em que comunicam às pedras do passeio a quantidade de azoto suficiente para elas acabarem por criar aquela patine amarelada que lhes confere falsa antiguidade acrescentando ainda nutrientes essenciais ao solo, tenho notado também algo muito querido: além de os pequenos animais se parecerem cada vez mais com os donos (vestem-se com os mesmos tons ou com tecidos do forro dos abrigos, alguns com sapatinhos qual pequenas sabrinas, param nos mesmos sítios onde é costume os donos pararem para conversar, aguardam pelos telefonemas dos donos quando os veem tirar o telemóvel do bolso, etc.), também os donos se parecem mais com os pequenos animais (conversam com eles como estão habituados a fazer com os bebés e crianças, dão-lhes beijinhos, zangam-se com eles, dão-lhes ordens, explicam-lhes o passeio, param para os deixarem ‘cãoversar’, etc.).

Interpretam todos os seus gestos corporais como sinais de inteligência e entendimento sobre o pequeno conteúdo do pequeno conceito envolvido, dando mesmo como evidentes o conhecimento que eles têm sobre relações familiares como pais, filhos, irmãos, primos, etc.

É uma ternura assistir a esta troca de impressões, se a entendermos como definitória do comportamento básico do ser humano na sua abordagem do meio envolvente: desde o princípio que, para se situar no mundo, para o poder entender, imaginou tudo à sua medida (o que não é o mesmo que ser a medida de todas as coisas, isso foi bastante mais tarde).

 

Zangar-se com o Sol que desapareceu, temer o escuro, a noite e a Lua, recear o crocodilo (se viver perto de rios) ou o puma (se viver nas florestas), fazia parte da vivência diária. Atribuir-lhes comportamentos, vontades e sentires humanos (não poderiam ser outros), fazer deles deuses bons e maus, foi o caminho seguido. Percebemos hoje, tratava-se de humanizar o meio em que se vivia.

Não espanta que ainda agora na “conquista“ espacial se fale em “terraformar” os planetas para onde nos intentam dirigir, ou seja, alterar deliberadamente o clima, atmosfera e outras propriedades naturais desses planetas à medida do humano, para permitir a colonização.

A nível mais pequeno (que não menos complexo) continuamos ainda hoje a falar dos vírus como se eles se desenvolvessem num quadro humano, atribuindo-lhes propriedades humanas que não têm, projeções de nós próprios e da civilização em que vivemos.

É assim que se admite que eles nascem, crescem, desenvolvem-se e morrem. Que eles escolhem quem infetar, tendo preferências de raça, de idade ou de lugar (ou de religião – como já acontecera com os judeus na Lisboa da peste - e talvez até de partido). Que têm famílias, sendo umas piores que outras. E o que demais se diz.

 

E, no entanto, o mundo existe independentemente de nós. Pensar o mundo é já humanizá-lo, atribuir-lhe caraterísticas humanas, como princípio e fim e leis físicas e outras que funcionam (vão funcionando) à medida que vamos alterando as nossas necessidades e os nossos conhecimentos.

E, contudo, o vírus não nos pensa, porque o pensar (este tipo de pensar) é caraterístico dos humanos e até porque provavelmente não precisa de o fazer. O seu referencial (se o tem, ou se o necessita de ter) é outro. No entanto, muito antes de nós aparecermos, já cá estava. E certamente, cá ficará muito depois de nós desaparecermos. Talvez tenhamos mesmo de mudar de paradigma. (1)

 

Esta humanização está de tal maneira enraizada que até os cientistas têm dificuldade em escapar-lhe. Como se pode notar neste excelente artigo, “Porque sofrem os vírus mutações?”, de Miguel Pita, geneticista, professor e pesquisador da Universidade Autónoma de Madrid, autor de Um dia na vida de um vírus (Periférico), que aqui deixo:

 

 “Tudo o que depende do material genético está sujeito a sofrer mutações e mais mutações. Tanto o SARS-CoV-2, que é um vírus de RNA (2) quanto nós, seres humanos de DNA e RNA, mudamos progressivamente. O DNA (como o RNA) é uma macromolécula formada pela união de muitas outras moléculas menores que, quando colocadas em linha, geram uma enorme sequência. A ordem de colocação das peças na sequência produz um texto, semelhante a uma palavra composta por milhões de letras. Este texto contém as instruções para o funcionamento de seu portador, seja uma partícula viral (cada membro do exército do vírus) ou uma célula de um ser humano.

Chamamos de mutação a uma mudança numa ou mais letras dentro dessa megapalavra. Essa mudança às vezes altera o significado de uma mensagem e outras vezes não, da mesma forma que num texto escrito, alguns erros dificultam a compreensão e outros não.

 

O RNA do SARS-CoV-2 tem cerca de 30.000 letras (3), e uma das etapas fundamentais na disseminação do vírus é fazer cópias dessa megapalavra para cada uma de suas futuras partículas virais. Para fazer isso, uma vez dentro de uma célula infetada, ele usa uma copiadora molecular bastante precisa, só que tudo tem um limite. Cada partícula viral pode-se replicar milhares de vezes numa célula, podendo infetar milhões de células no mesmo indivíduo e, se ocasionar uma pandemia, infetar milhões de pessoas simultaneamente.

 É lógico que, com tanta atividade, ocorram erros na cópia do RNA, é uma questão de probabilidade. Quanto mais cópias se fizerem de algo, maior será a probabilidade de se cometerem erros. Podemos recitar de memória os nossos primeiros oito sobrenomes, mas se o fizermos cem vezes, ficaremos confusos.

 

A mutação, portanto, não é um acontecimento inesperado, o DNA e o RNA são moléculas dinâmicas que são frequentemente copiadas para desempenhar as suas funções. Eles passam por mudanças, eles sofrem mutações, como parte da sua existência orgânica. O nosso DNA também sofre mutações: as manchas na nossa pele ou as células cancerosas vêm desses erros inevitáveis. Na verdade, embora não as chamemos de mutações, as alterações progressivas no DNA são responsáveis ​​pelas transformações que fomos sofrendo relativamente às fotos que temos de nós há dez anos atrás.

 

O DNA e o RNA sofrem modificações sem nenhum propósito. Podemos ouvir afirmações como: “Não é de estranhar que os vírus sofram mutações para se tornarem mais infeciosos”, mas devemos entender que essas modificações não ocorrem com qualquer finalidade. As mutações são pré-adaptativas, o que significa que acontecem por acaso, e depois se verá o que acontece.

Se as novidades tornam o portador um melhor sobrevivente e facilitam a sua reprodução, terão a tendência a espalharem-se, mas se representarem um peso, um travão, a tendência será desaparecerem. Portanto, o fato de as mudanças serem aleatórias não contradiz a ideia de que mais variantes virais infeciosas possam aparecer com frequência. O RNA dos vírus sofre mutações e alguns produzem partículas de vírus mais contagiosas e outras menos.

 

Por pura competição, os mais transmissíveis tendem a impor-se aos menos transmissíveis. Para dizer de forma gráfica, se uma partícula de vírus colocou a sua toalha para ocupar um lugar na praia, não há lugar para outra, ou pelo menos torna-se mais difícil. Ou seja, os vírus não sofrem uma mutação para serem mais infeciosos. Os vírus sofrem mutação e, se produzirem variantes mais infeciosas, notaremos a sua presença porque são mais bem-sucedidos.

 Assim, para analisar a importância de uma mutação, antes de mais nada, é necessário ter claro se ela tem ou não efeito. Por exemplo, mudar numa frase a palavra “carro” por “automóvel” pode considerar-se que é uma mudança sem efeito. Uma mutação equivalente num vírus, não seria nem um benefício nem um peso ou travão para o vírus.

 

Recentemente, foi descrita a variante VUI - 202012/01 do SARS-CoV-2 (4), que tem aumentado a sua presença relativa, sugerindo poder ser mais contagiosa. Tudo parece indicar que as mutações que sofreu têm um efeito claro. Uma das mudanças no seu texto provoca uma modificação subtil na peça que permite que as partículas virais se unam às nossas células, a proteína S. Nas partículas virais que carregam esse novo texto, a sua nova proteína S é mais eficiente para se ligar às nossas células, facilitando a sua entrada. Podemos imaginá-lo mais pegajoso, e por isso mais contagioso: na sua circulação pelas vias respiratórias adere imediatamente a uma de nossas células para iniciar a infeção.

 

Até ao momento não podemos garantir que as mutações desta variante tenham outros efeitos, mas podemos propor um desfecho lógico possível: se for demonstrado que é realmente uma cepa mais contagiosa, ela continuará a comer o chão das outras e aumentará a sua presença e, potencialmente, o número de indivíduos infetados. Felizmente, a capacidade de contágio não está associada a uma maior agressividade.

 De facto, quando surge uma variante muito agressiva, ela tende a diminuir a sua capacidade de contágio, pois como o infetado poderá acabar acamado, isso impedi-lo-á de levar um estilo de vida que lhe permita estar rodeado de pessoas para contaminar. Por isto, a agressividade e a capacidade de contágio costumam equilibrar-se, mas ainda não sabemos se é esse o caso com essa variante. Na verdade, os resultados preliminares não mostram diferenças significativas na sua agressividade.

 É claro que o acumular progressivo de mutações também pode tornar um vírus irreconhecível quando comparado com os seus antecessores, da mesma forma quando nos compararmos como com quando tínhamos cinco anos de idade.

 

O SARS-CoV-2 não é um vírus particularmente mutável; outros, como o vírus da gripe, sofrem mutações muito rapidamente e em cada ano tornam-se num novo inimigo. Mais uma vez, felizmente, nenhuma das variantes do SARS-CoV-2 que apareceu, parece ter sofrido uma grande reforma no seu RNA. Mas num momento de grande expansão do vírus, como o atual, aumentam as probabilidades de continuarem a aparecer novas mutações. Em resumo, podemos dizer que o SARS-CoV-2 é um vírus muito contagioso e, até o momento, aparentemente pouco mutante.

 No entanto, o grande número de casos é o melhor aliado das mudanças futuras, e a melhor maneira de combatê-las é diminuindo a taxa de cópias. No momento não é fácil de evitar que, se infetar nossas células, venha a ser copiado milhares de vezes e possa sofrer mutações. Mas podemos evitar com o nosso comportamento que o número de indivíduos infetados cresça, garantindo assim que mude menos.”

 

 

 

(1)https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2018/01/.

(2)https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/301-o-achatamento-cultural-85134

(3)https://elpais.com/elpais/2020/05/09/ciencia/1589059080_203445.html

(4)https://elpais.com/ciencia/2020-12-21/bendita-mutacion.html

 

(301) O achatamento cultural

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Os tratados feitos com os povos indígenas, enquanto para estes eram acordos de amizade, eram para os europeus, tratados de submissão e de exploração, Peter Sloterdijk.

 

Os tecno-multibilionários e as gigantescas corporações que são apontadas como nossas salvadoras, passam os dias a gizarem planos e a pensarem como é que vão conseguir não acabar com a fome.

 

O “achatamento” do mundo […] é decidido pelo soberano.

 

Só pode descobrir, quem dispõe de uma superioridade intelectual e histórica suficiente para compreender o que descobriu com o seu saber e a sua consciência, Carl Schmitt.

 

 

 

 

Quando se deram os grandes cataclismos que levaram à extinção de grande parte dos seres, os ‘novos’ ocupantes não surgiram do nada: eles estavam já presentes, muito embora pouco desenvolvidos. Razões várias contribuíam para esse estado de coisas.

O que interessa reter é que em caso de maior ou menor crise, a sociedade que viermos a encontrar depois dela, existia já com maior ou menor desenvolvimento, na anterior sociedade.

Daí que o controle da crise seja extremamente importante para os que detêm o poder na ‘anterior’ sociedade: conseguirem controlar a crise (que normalmente se desenvolve por (i)responsabilidade própria, vulgo gulodice), garante-lhes a permanência e o controle na ‘nova’ sociedade saída da crise.

 

Essencialmente, o plano consiste em tentar evitar que a crise seja demasiado profunda e extensa (o que poderá provocar uma revolução –por definição incontrolável – ou uma guerra sempre possível de ganhar), e no estudo e criação permanente de alternativas, linhas de ação a serem aos poucos e tentativamente implementadas (ou não), que possam vir a serem desenvolvidas com maior ou menor sucesso no pós-crise.

Por isso, os tecno-multibilionários e as gigantescas corporações que são apontadas como nossas salvadoras, passam os dias a gizarem planos e a pensarem como é que vão conseguir não acabar com a fome. Ou, mais prosaicamente, como é que vão acabar com os sem-abrigo nas cidades, gastando milhões com o estudo e redesenho cruel dos bancos dos parques e outra arquitetura urbana para repelir aqueles que não têm onde permanecer.

Como costumam frisar, as crises abrem um sem fim de possibilidades, mas só para quem se prepara. Já dizia centena de anos antes de Cristo, o grego Cleobulo de Lindos: “A ocasião é o mais importante da vida”. Se se estiver preparado.

Com uma certa ingenuidade, romantismo e religiosidade, Arundhati Roy, diz que:

 

Historicamente, as pandemias forçaram os humanos a quebrarem com o passado e a imaginarem o seu novo mundo. Esta não é diferente. É um portal, uma passagem entre um mundo e o seguinte.” (1)

 

Numa versão popular bastante anterior, já os Jáfumega cantavam na “Ribeira” que “A ponte é a passagem pr’á outra margem” (https://www.youtube.com/watch?v=wTWC5UANBkA).

 

 

O achatamento do mundo

 

Eis como Peter Sloterdijk nos explica como entendia que se deu o que chama de “achatamento do mundo” (2):

Segundo ele, os novos países e terras só poderiam ficar debaixo da tutela dos novos senhores (europeus, evidentemente) depois de se tornarem entidades localizadas, inventariadas, delimitadas e com nome.

Convenhamos que os globos não eram os instrumentos mais adequados para o desempenho destas ações, pelo que vão progressivamente sendo substituídos pelos ‘mapas’, que permitiam efetuar o levantamento das regiões pretendidas e, entre outros, representar o cadastro político.

As recolhas de vários mapas permitem o aparecimento de novos ‘atlas’, e finalmente dos ‘planisférios’ em que o globo era representado sob a forma de superfície.  Com esta eliminação da terceira dimensão (a profundidade), o bidimensional impõe-se ao tridimensional. Como já acontecera com a utilização da perspetiva no Renascimento, a imagem sobrepõe-se ao corpo. Estão abertas as vias para a conquista do mundo como imagem.


É importante notar que este “achatamentodo mundo, que deriva do facto de só poder ser dado por conquistado aquilo que se conseguir reduzir de uma dimensão, ou seja, reduzido a mapa, é decidido pelo soberano.

O levantamento cartográfico é o verdadeiro título de propriedade sobre a terra desconhecida. Os tratados feitos com os povos indígenas, enquanto para estes eram acordos de amizade, eram para os europeus tratados de submissão e de exploração.

 

O achatamento cultural

 

Os conteúdos culturais dos vários meios de comunicação, sejam eles cinema, teatro, televisão, livros, têm-se vindo a homogeneizar: os canais de televisão proporcionam quase os mesmos ‘programas’, às mesmas horas, as séries são repetidamente as mesmas, os filmes passados nos cinemas pouco diferem, rodando de cadeia em cadeia, os ‘originais da Netflix’, além de qualidade invariavelmente baixa utilizam quase sempre os mesmos atores que vão rodando, etc.

E dizem-nos que tudo isto se passa devido à pandemia, devido à crise: que as exibições não são permitidas, que não há dinheiro, os produtos baixam de qualidade, etc.

Ninguém fala da consolidação das grandes empresas e corporações culturais que já estava em curso muito antes da pandemia se declarar. O objetivo era torná-las mais fortes, mais poderosas, e não a melhoria da qualidade dos seus produtos. Aquela ideia que o capitalismo convida à competição, e com isso aumenta a qualidade dos produtos, não era tida em conta.

Tudo teve início nos anos 90, quando grandes empresas como a Barnes & Noble começaram a comprar as pequenas livrarias, eliminando-as quase por completo. Nos anos 2000, a bolha tecnológica chegou à imprensa, ocasionando a morte dos jornais locais e o despedimento de milhares de jornalistas. Com a chegada do Spotify, que em 2011 anunciou ter já um milhão de utilizadores pagantes, começou a desvanecer-se a possibilidade de se viver vendendo álbuns.

Recentemente, assiste-se à fusão entre a Penguin Random House (já de si um aglomerado de duas das maiores corporações editoriais) e a Simon&Schuster, forma que arranjaram para lutar contra a Amazon. Passaram a controlar cerca de 30% do mercado livreiro, o que resultou numa diminuição dos livros publicados, numa consolidação dos ‘melhores vendidos’ dos autores em detrimento de projetos mais aventurosos, mas menos garantidos e, portanto, numa menor diversidade de pensamento.

No cinema e televisão, o ‘streaming’ é o grande vencedor. As grandes produtoras aderem sem reservas, alterando mesmo a sua posição. A Warner Bros anuncia que todos os seus filmes em 2021 serão simultaneamente vistos no HBO Max, acabando com as suas primeiras exibições nos cinemas, o que põe a interessante questão de saber se a Warner Bros continua a ser uma empresa de cinema ou uma empresa tecnológica cujo produto sejam filmes.

A Disney+ anuncia o aparecimento de 10 novos filmes de Marvel e 10 novos Star Wars, numa demonstração de que a homogeneização cultural segue o caminho da verificada no setor tecnológico.

 

O objetivo bem definido continua a ser o lucro e a sobrevivência. Aquisições e fusões, apenas negócios. Parece que ninguém mais se preocupa com a qualidade dos produtos até que isso venha a ter reflexos exatamente no lucro e na sobrevivência. E parece que é isso que começa a acontecer.

A América não é já a campeã mundial nas exportações de cinema e televisão. Ao perder qualidade deixou que outros a igualassem. E esta perca de qualidade tem sobretudo que ver com a perca de diversidade. O tal problema das pequenas livrarias que desaparecem, dos pequenos escritores que deixam de ter acesso a publicar, dos jornalistas que são substituídos por grandes agências de notícias, etc.

 

 Sociedades que desdenham do multiculturalismo, não entendendo que a multidão das pequenas culturas, não só enriquecem o humano, como podem vir a serem fundamentais para a sobrevivência da humanidade. Não entendem que ao substituírem florestas por uma mesma extensão de árvores plantadas, ocasionam a extinção de enormes quantidades de espécies vivas, plantas, animais e humanos insubstituíveis, que contêm em si variadas formas de sobrevivência face a diferentes condições ambientais e sociais que poderão um dia virem a ser necessárias. Quanto maior for o número de espécies, maior será a probabilidade de, em caso de necessidade (alterações climáticas, pandemias, etc.), encontrar alguma cujo caminho nos indique a forma de resolver o problema. Simples matemática. (3) (4)

 

Confiar em que aqueles que nos têm empurrado para a situação atual sejam os mesmos que nos vão resolver a situação futura, é, no mínimo, ingenuidade. Não que eles não tentem. Tentam sempre. Planeiam sempre.

 

Escutemos a conclusão do sempre lógico e racional Carl Schmitt, o jurista preferido de Hitler, sobre a legitimidade conferida pela superioridade intelectual:


“Os descobrimentos fazem-se sem o acordo prévio do descoberto, pelo que o seu título de propriedade decorre de uma legitimidade superior. Só pode descobrir quem dispõe de uma superioridade intelectual e histórica suficiente para compreender o que descobriu com o seu saber e a sua consciência.

 

Já vimos a que conduziu tal superioridade. Vejamos ao que nos conduz a “nova” superioridade.

 

 

 

(1)Arundhati Roy, 3 de abril de 2020, Financial Times, https://www.ft.com/content/10d8f5e8-74eb-11ea-95fe-fcd274e920ca.

 

(2) Blog de 25 de novembro 2015, “O achatamento como dominação”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/o-achatamento-como-dominacao-8979.

(3)Blog de 11 de dezembro de 2019, “Que tipos de humanos serão escolhidos?”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/245-que-tipos-de-humanos-serao-64506.

(4)Blog de 18 de dezembro de 2019, “Como enganar o clima”, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/246-como-enganar-o-clima-64728.

 

 

 

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