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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(295) Natureza humana e verdade

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Se os modernos e contemporâneos se esforçam por parecer que estão a inovar, mesmo quando estão apenas a repetir, acontece o inverso com os medievais, que se esforçam por parecer que estão a repetir, mesmo quando estão a inovar.

 

Ouvistes que foi dito: ‘não cometerás adultério.’ Mas eu digo-vos que todo aquele que olha para uma mulher com a intenção de a desejar já cometeu adultério com ela no seu coração, (Evangelho segundo Mateus, O sermão na montanha, 5:27)

 

Deus passa a ter acesso aos pensamentos pecaminosos que cada um de nós tem na privacidade do nosso ser.

 

No século XX, as pessoas tornam-se autores das suas próprias histórias, verdadeiras ou imaginárias, em que aparecem como muito bem desejam.

 

 

 

 

A Idade Média continua a ser aquela época que ainda hoje é considerada por quase todos os modernos e contemporâneos como a Idade das Trevas, um milénio perdido de retrocesso civilizacional ou de estagnação, invasões bárbaras, guerras, pestes, fomes, obscurantismo, dogmatismo.

E, no entanto “esquecemo-nos” que muito provavelmente as Invasões Bárbaras não passaram de movimentos de povos (migrações) que eram ditos bárbaros, não por não terem cultura própria mas por ela ser diferente da romana, migrações essas que nem sempre foram pacíficas.

“Esquecemo-nos” do aparecimento de instituições como a universidade, que vindas desse tempo ainda hoje perduram (Oxford, Paris, Salamanca, Coimbra …), da expansão do cristianismo (“religião dos escravos” como lhe chamou Nietzsche) que baniu a escravatura por considerar que cada homem era criado à imagem de Deus (passaram a servos da gleba…), da proteção e conservação de tesouros culturais da antiguidade, dos avanços na agricultura (variados sistemas de pousio, lavradio -relha de ferro- e irrigação), da atrelagem semifixa de animais, do moinho de vento, etc..

 

Curiosamente, é no campo da filosofia que os ataques são mais contundentes, ao ponto de se duvidar que na Idade Média pudesse ter existido verdadeira filosofia, isto porque os seus filósofos mais não teriam feito que “mastigar” referências anteriores já contidas na Filosofia Antiga, e porque, sendo religiosos, faziam assentar os seus pensamentos em pressupostos e preconceitos (o religioso e o transcendente) que impediam o filosofar no sentido radical do termo, o verdadeiro filosofar.

Na realidade, o que se passava é que a postura dos filósofos medievais perante o saber, na sua maior parte teólogos e sacerdotes, era bem diferente daquela que era própria dos filósofos antigos e dos que lhes sucederam. Imbuídos numa sociedade imersa nos Evangelhos onde a verdade que salvará o homem já fora dita, eles não tinham a pretensão de descobrir uma outra verdade, mas sim de explicar esta:

 

Mesmo quando inovavam, preocupavam-se em mostrar que estavam de acordo com a tradição. Se os modernos e contemporâneos se esforçam por parecer que estão a inovar, mesmo quando estão apenas a repetir, acontece o inverso com os medievais, que se esforçam por parecer que estão a repetir, mesmo quando estão a inovar.” (M. Inês Bolin.)

 

Deve-se ainda notar que não foram os medievais que se classificaram a si mesmos como sendo medievais (na altura, eles eram a atualidade, contemporâneos). Foram os renascentistas, com a finalidade deles se distanciarem, que cunharam a expressão médium tempus (Petrarca).

 

A tentativa de comparação de culturas, civilizações, povos, para além de ser complicada, é normalmente enviesada por critérios subjetivos, deixando intocável aquele que é afinal o problema principal, o da interpretação da existência da natureza humana.

Para alguns ela é fixa, dada para sempre pela natureza ou por Deus. Foi isto que pensaram e nos transmitiram as escolas da filosofia antiga, o platonismo, aristotelismo, estoicismo, e ainda a tradição cristã.

A ser assim, a natureza humana é algo que nos foi dado ou criado, para todo o sempre, uma essência.

Mas para outros, para as novas interpretações existencialistas, desconstrutivistas, e outras filosofias da mente, a natureza humana não passa de um conjunto complexo de comportamentos e atitudes que nos permite discutir de forma conveniente a experiência humana e que, portanto, não corresponde a nenhuma realidade externa.

A ser assim, a natureza humana é como que uma ficção ultrapassada que herdamos da tradição.

 

Há ainda uma outra via já anteriormente proposta por G W F Hegel (1770-1831), e segundo a qual a realidade da natureza humana só poderá ser compreendida se considerarmos a análise do desenvolvimento humano ao longo da história.

Segundo ele, no início da história da humanidade, as pessoas não se viam a elas próprias como indivíduos como se vêm hoje. Não havia o conceito da existência de uma esfera interior especial que nos autodefinisse. Nessa época as pessoas viam-se como pertencendo a um grupo: a família, a tribo, o estado, etc.

Aquilo que nos aparece hoje como intuitivo, como escolhas que os indivíduos têm o direito de fazer (que curso tirar, que profissão escolher, com quem viver, que religião professar, etc.), não acontecia assim noutros tempos. Ou seja, tudo isso não é considerado como absoluto, mas sim como condicionado social e historicamente.

 

Os mesopotâmios, egípcios, gregos, não tinham esses direitos. Aquilo que determinaria aquilo que seriam na vida, era o facto de terem nascido em famílias específicas ou classes. Os mais novos seguiam os desejos dos pais, os seus desejos próprios e visões não eram tidos em conta.

 

Alguns exemplos: o historiador grego Plutarco explicava que Licurgo, o legislador de Esparta, “acostumara os cidadãos a não terem o desejo de uma vida privada, nem a manifestarem qualquer conhecimento dela, devendo antes serem como abelhas, sempre ligadas à comunidade, com uma extasiada e fervente ambição de se devotarem inteiramente ao seu país”.

A Esparta de Licurgo, era uma sociedade que não reconhecia a validade de os indivíduos tomarem decisões para eles próprios. A subjetividade ou a individualidade não eram cultivadas, imperava a conformidade. Nada havia na individualidade que pudesse ser visto como possuindo valor sustentável, uma vez que tudo devia submeter-se às necessidades da sociedade ou do estado. O indivíduo não contava para nada.

 

Édipo nunca tencionara matar o pai ou casar com a mãe e, no entanto, era visto como culpado pelas ações cometidas. Isto porque as intenções próprias de cada indivíduo não eram consideradas relevantes para o processo: apenas contava a ação exterior cometida. O mesmo não acontece na sociedade atual em que os tribunais, antes de proferirem a sentença, entram em consideração com a intenção do acusado.

 

A subjetividade do indivíduo foi uma das grandes revoluções ensinadas por Sócrates. Segundo ele, nada deveria ser aceite única e exclusivamente por ser tradição. As pessoas devem ser críticas acerca de tudo, aceitando apenas aquilo que puder ser demonstrado estar de acordo com o seu raciocínio. Ou seja, devia ser o indivíduo a ter o direito de dar o seu consentimento sobre aquilo que se julgava ser verdadeiro, em vez de isso vir ditado de cima. Ideia tão radical e provocadora que o levou a ser condenado à morte na progressista Atenas.

 

Jesus Cristo vai levar mais longe esta importância da interioridade nos seres humanos. Mais importante que a ação no mundo era a disposição do indivíduo para olhar para o seu interior, e isto por  as ações praticadas no mundo serem sempre limitadas no espaço e no tempo (só se pode fazer um número finito de coisas), ao passo que na esfera interior dos nossos desejos e pensamentos o campo ser infinito.

Ou seja, temos de prestar atenção não apenas ao que fazemos, mas também ao que pensamos.

Quando Jesus diz aos seus seguidores

 

Ouvistes que foi dito: ‘não cometerás adultério.’ Mas eu digo-vos que todo aquele que olha para uma mulher com a intenção de a desejar já cometeu adultério com ela no seu coração.” (Evangelho segundo Mateus, O sermão na montanha, 5:27)

 

o conceito de moralidade vai alargar-se enormemente, ao considerar que só pelo simples facto de se desejar, poder-se já estar a cometer um crime antes de a sua ação ter sido feita.

Isto vai acabar por conduzir a uma regulamentação obsessiva sobre a pureza dos pensamentos dignos de Deus. Deus passa a ter acesso aos pensamentos pecaminosos que cada um de nós tem na privacidade do nosso ser.

 

No mundo moderno, as pessoas têm o direito de decidir sobre as suas vidas, o direito de rejeitarem e de criticarem tudo o que contradiga as suas consciências individuais. Foi o aparecimento desta ideia da verdade subjetiva, que permitiu a libertação do domínio dos costumes e da tradição, e o desenvolvimento de princípios como os da liberdade religiosa, liberdade de expressão e consciência, e dos direitos humanos individuais.

No mundo antigo predominava o sentido de família e de comunidade, onde todos conheciam o lugar e papel que lhes estava destinado, essencial para a sua sobrevivência. As pessoas identificavam-se com a sua cultura, a sua religião e a sua sociedade.

Desde que se mantivessem no lugar que lhes era atribuído, tudo correria suavemente. Se saíssem do seu lugar, a ordem quebrava-se, ameaçando com a vinda da desarmonia. Os pensadores do antigo chamavam-lhe de harmonia. Os pensadores medievais chamavam-lhe de ordem.

 

É este sentido de comunidade ou de vida em sociedade que se perdeu. Este é o preço que se tem de pagar pelo aparecimento da individualidade: sentimento de isolamento e de separação da comunidade ou de outras instâncias maiores com as quais é difícil uma identificação imediata, ou ainda com estruturas que muitas vezes parecem contraditar as nossas próprias sensibilidades.

O reconhecimento da importância deste valor da subjetividade do indivíduo, vai aumentar no Renascimento e na Reforma, bem explícito por Lutero quando explica que a decisão da fé religiosa era um assunto que só dizia respeito ao indivíduo, ou do Iluminismo quando considerava que eram os indivíduos que possuíam os direitos humanos dados por Deus. No século XIX, dá-se uma aceleração na celebração da individualidade com o Romantismo, o seu culto do génio, da vida como arte, do amor livre, e da rejeição dos valores burgueses.

 

No século XX, assiste-se ao crescimento da autoindulgência e do narcisismo, segundo os quais todos nos consideramos como átomos individuais na persecução de finalidades privadas e com ideias que não tenham de respeitar nada do que à volta se possa passar. As pessoas tornam-se autores das suas próprias histórias, verdadeiras ou imaginárias, em que aparecem como muito bem desejam.

As preocupações das pessoas vão para todos os aspetos das suas vidas individuais: os seus corpos, as suas roupas, os seus gostos, a coisas que possuem. A intenção é sempre o desejo de conseguirem expressar o quão únicas são as qualidades que acreditam ter, o que as torna presa fácil dos propagandistas das modas que lhes conseguem vender produtos que os levem a acreditar nisso.

 Assim, quando esses produtos aparecem servem para demonstrar a individualidade daquela pessoa mas que quando passam a ser do agrado de outras pessoas, rapidamente passam a demonstrar o seu contrário, ou seja, que aquela pessoa está a seguir uma moda já aceite por todos.

Isso obriga-a a ter de mudar, procurar outro foco de autoidentificação. O que implica uma procura constante pela novidade, pela substituição do já visto. Esta dificuldade sentida pela perca dessa demonstração da individualidade, conduz ao desespero e é em si a demonstração mais evidente da grande importância do princípio da individualidade e da subjetividade na sociedade atual.

Não se trata de um problema que afeta só os adolescentes. É mais geral. O acreditar que apenas as coisas que nos agradem e sirvam, poderão ser rotuladas como novidade, ou seja, que só os indivíduos, enquanto indivíduos, podem ditar que a sua verdade é a verdade, revela o fenómeno de rejeição de qualquer forma de verdade objetiva. Deixa de haver verdade objetiva.

O jornalismo atual, a política atual, a educação atual, a ciência atual, reflete bem este estado de coisas, em que a verificação das fontes, da veracidade dos fatos, o método científico, deixam de ser relevantes.

Na New Yorker publicada logo após o início da interminável eleição presidencial americana, vinha um desenho humorístico inanimado em que os apoiantes de Trump apontavam várias causas para que os votos fossem considerados inadmissíveis. Uma das que levaria de imediato à rejeição do voto por fraudulento, era aquela em que o quadradinho indicativo da preferência estivesse preenchido no nome de Joe Biden.

 

Quando as pessoas passam a ter a liberdade para construírem a sua própria ficção como sendo a realidade, mesmo que essa sua ficção vá de encontro aos factos verificados objetivamente, leis estabelecidas, costumes aceites, ou princípios éticos evidentes, considerando-os como “força de bloqueio” contra a sua individualidade, a validade ou a verdade objetiva, desaparecem.

Com ela desaparecem também o sentido de qualquer responsabilidade pessoal ou de culpabilidade. Qualquer comportamento ou ação mais abjeta pode sempre ser justificado com recurso à verdade devida do indivíduo.

 

Esta relação entre natureza humana e verdade, nem sempre tem sido evidente. O que nos parece é que quando os humanos começaram a reconhecer a importância e a irredutibilidade da esfera interior do indivíduo, começou a operar-se uma mudança gradual na noção de verdade.

Recordemos Hegel quando na sua teoria da história nos dizia que cada período tinha a sua própria justificação. Neste caso, a liberdade é algo que foi emergindo lentamente ao longo do último milénio, sendo esse próprio conceito do que é, que vai desenvolvendo o ser humano.

E se Hegel estiver certo quando nos dizia que um princípio acabará necessariamente por dar lugar ao seu oposto, então este desbragado e necessário relativismo individualista acabará de algum modo por conduzir a uma nova ideia de objetividade e de verdade exterior. Aguardemos.

 

 

Entretanto:

              Desde que recentemente o Twitter e o Facebook intensificaram os seus sistemas de verificação de veracidade dos conteúdos (fact checking), milhões de utilizadores mudaram-se para outras plataformas alternativas – como a Newsmax, Parler e Rumble, onde as mentiras podem circular à vontade até desaparecerem ou passarem a ser aceites.

 

              E, já agora, este recente artigo do Yahoo (https://www.yahoo.com/lifestyle/er-nurse-some-covid-19-patients-still-think-virus-hoax-160448458.html), onde se relata que pacientes que chegam aos hospitais com covid 19, recusam-se a serem tratados por não acreditarem que o covid 19 exista, não passa de uma mentira.

 

 

 

 

 

(294) A tradição quebrada, segundo Hannah Arendt

Tempo estimado de leitura: 20 minutos.

 

Já antes lhes tinham dito: Tu não deves matar; e eles não mataram. Agora dizemos-lhes: tu matarás; e embora eles pensem que é difícil matar, eles fazem-no porque agora faz parte do código de conduta.

 

O totalitarismo apela para as necessidades emocionais mais perigosas de pessoas que vivem em completo isolamento e com medo dos outros.

 

Temos medo de ter medo. Esta é uma das principais motivações. Mas nós temos medo da liberdade.

 

O que também é peculiar da nossa época, é a intrusão maciça do crime na vida política.

 

Sabemos hoje que o maior perigo de tirania vem do executivo […] A segurança nacional cobre agora todos os tipos de crimes. Por exemplo, o presidente tem todos os direitos. Ele está acima da lei e o seu raciocínio é sempre que tudo o que ele faz, fá-lo em prol da segurança nacional.

 

A América não é um Estado-nação […] Este país não está unido nem pela herança, nem pelas memórias, nem pelo solo, nem pela língua, nem por uma origem idêntica. Não há americanos genuínos aqui, além dos índios.

 

A principal característica de qualquer acontecimento é que não foi previsto.

 

Sempre fomos alfabetizados, porque não se pode ser judeu sem ser alfabetizado.

 

 

Vai ser Hannah Arendt o primeiro filósofo a utilizar o conceito de “quebra de tradição” (e há quebra de tradição sempre que o passado deixar de ser transmitido de geração em geração) sob um ponto de vista histórico, político e moral, como uma das principais caraterísticas da passagem para a contemporaneidade.

Até agora a importância que a ideia de autoridade tem assumido nos vários tipos de governo, desde a fundação de Roma até meados do século XX, a importância da cultura e da educação baseada no conhecimento do passado, a importância da inspiração platónica de princípios de moral cristãos, tem sempre enformado as várias épocas que se têm sucedido.

Na atualidade o que se verifica é que, politicamente, desde o aparecimento do totalitarismo que a autoridade tem vindo a ser desprezada; que eticamente, os princípios da moralidade ocidental têm já falta de vigor; que culturalmente, o que é fomentado é o entretenimento instantâneo em detrimento do conhecimento do passado.

 

A tradição histórica ou política a que Arendt se refere tem que ver com a que nasceu em Roma durante a sua fundação, e sua posterior transmissão de geração em geração, onde se enaltecia a importância da figura da autoridade, no sentido de aumentar o caracter sagrado desse começo fundamental mas onde se supunha o estabelecimento de leis positivas que limitando a liberdade do cidadão também a possibilitam, e, em que por outro lado, se reconhecia a natureza instrumental da violência, ou seja, em que a violência só era reconhecida se se utilizasse como meio para alcançar fins a curto prazo, e não como um fim em si mesmo.

 

Esta tradição perdurou até meados do século XX, quando apareceu a dominação totalitária. O que distingue a dominação totalitária de outros regimes ditatoriais conhecidos?

O aparecimento do conceito de inimigos objetivos (e não inimigos suspeitos), a eliminação da possibilidade de agir (e não limitação da possibilidade de agir), os desejos de um líder (e não ordens de um ditador) e o terror ou violência como fim em si mesmo (e não violência instrumental).

Para Arendt, o total menosprezo pela ideia de autoridade e a generalização da violência entendida como puro terror que caracterizam os movimentos totalitários, constituem os verdadeiros fatores que conduziram à quebra da tradição histórica ou política.

 

Vejamos: a estabilidade das leis da Constituição que garantem a autoridade é perfeitamente dispensada pelo líder totalitário, que vê nela uma limitação à sua intervenção, à variabilidade dos seus desejos. Hitler nunca alterou a constituição de Weimar, nem nunca se incomodou em respeitá-la, o que indica claramente que o que lhe interessava não era a autoridade, mas um poder absoluto.

Se a oposição num regime ditatorial já é difícil, num regime em que o desprezo pela Constituição é total, a oposição não tem qualquer sentido, uma vez que qualquer possibilidade de agir é eliminada.

O fim da autoridade está intimamente relacionado com o aparecimento do conceito de “inimigo objetivo” segundo o qual não é preciso ser suspeito para ser considerado como inimigo. Inimigo é todo aquele que o líder defina como tal. Nenhum membro da população está assim a salvo, pois não se trata só dos adversários políticos, mas até de qualquer cidadão inocente que nem sequer tenha pensado em cometer o “crime” de se opor ao regime.

 

Mas a verdadeira essência onde o regime totalitário mais se diferencia dos regimes anteriores é na utilização de uma violência que se assume como um fim em si mesmo, ou seja, na utilização do terror quotidiano e permanente.

O seu máximo expoente é visível nos campos de concentração e de extermínio, onde os seres humanos não passam de coisas supérfluas e em que a aniquilação vinha indistintamente e sobre as mais variadas formas. Mas tal terror encontrava-se espalhado de forma efetiva a toda a sociedade, para que ninguém se pudesse sentir seguro sobre o que poderia fazer ou poderia ser.

Foi esta conjugação do fim da autoridade e de uma violência programada para o terror que, abrindo portas ao totalitarismo, provocou a rutura, a quebra de tradição na nossa história.

 

Mas como tudo isto aconteceu no século passado, e como já não vivemos num contexto de dominação totalitária, somos facilmente levados a intuir que estamos bem longe dessa realidade e da possibilidade da sua repetição.

 E, contudo, ainda hoje há uma crise de autoridade (nomeadamente à vista em domínios em que deveria ser natural, como na família e na escola) e, com o aparecimento do terrorismo (como banalização da morte), a fronteira entre a violência e o terror é muito ténue.

E como nos esquecemos da importância da política e da nossa responsabilidade sobre o seu rumo (a necessidade de pensar a política, de reencontrar a sua finalidade que é a da liberdade política apenas garantida pela autoridade de leis positivas), enaltecendo em seu lugar uma preocupação exclusiva com a vida esgotada em necessidades e satisfações “vitais”, tal pode levar-nos a uma distração sobre os verdadeiros problemas, pelo que é muito bem possível que os movimentos totalitários não façam só parte de uma realidade do passado.

 

 

A tradição moral é o conceito segundo o qual se dá a perpetuação social de princípios morais fundamentais desde o passado. Para esta perpetuação contribuem os dispositivos sociais de condutas, ou seja, a moral social. É a moral social que é o garante desta perpetuação. Há, contudo, no domínio moral, algo que ultrapassa a moral social, e que é a moral individual, aquele domínio das questões morais que os indivíduos se colocam a si próprios.

Hannah Arendt distingue entre consciência (consciousness) e consciência moral (conscience), onde a consciência moral é determinada pela moral social, prescrevendo princípios positivos relativamente à conduta humana. Por outro lado, a consciência é a que pertence ao indivíduo quando este se encontra consigo próprio.

Neste diálogo interior, a consciência não prescreve princípios positivos, normas de como se deve agir, impedindo-nos antes de agir de determinado modo. Ou seja, o diálogo silencioso do pensar permite-me não só o olhar retrospetivo sobre os meus atos, como é ainda fundamental no momento anterior à ação moral, porque, não nos dizendo especificamente o que fazer, impede-nos, contudo, de fazer certas coisas.

Ora é a esta consciência moral que os acontecimentos totalitários vão renunciar. Os dois princípios que mais perduraram ao longo da civilização ocidental e que dizem que o matar e o mentir correspondem ao mal, foram exatamente aqueles que mais contrariados foram por Hitler e Estaline.

O que permite concluir que em determinados contextos ideológicos, não é possível garantir que a tradição da força social tenha força suficiente para impedir todos os perigos políticos possíveis. Ou seja, no contexto da dominação totalitária, a ideologia substitui a força da tradição ao ponto de contrariar profundamente os seus princípios morais fundamentais.

 

Quando o The New Yorker envia Hannah Arendt a Jerusalém para relatar o julgamento de Eichmann, ela estava à espera de encontrar um “monstro”, mas para seu espanto, deparou-se com um “palhaço”.

Esperava que Eichmann e outros como ele não fossem demónios capazes de um diálogo interno, simultaneamente indiferentes às consequências que se espera de tal exercício – evitar o mal ou sentir culpa e arrependimento em face dele.

Se estes homens não evitaram o mal ou não sentiram essa culpa e arrependimento foi justamente porque eram palhaços, homens que se recusavam a ser pessoas, a pensar.

Por isso, nem sequer se questionaram sobre as ordens recebidas. Por isso, eram incapazes de assumir qualquer culpa ou arrependimento. Daí a afirmação repetida por Eichmann e muitos outros de que se tinha limitado a cumprir ordens.

Superficialidade e frases feitas, que demonstravam a sua banalidade, a sua incapacidade para pensar independentemente da ideologia que o rodeava, que aliás conferia sustentabilidade aos seus crimes.

Para Arendt, o mal totalitário era radical, não por ser cometido por uma radicalidade demoníaca, mas, pelo contrário, por ser cometido por homens que simplesmente se recusaram a ser pessoas, a pensar e a recordar, preferindo em vez disso, a banalidade própria de quem não pensa.

 

 

 

Em outubro de 1973 (dois anos antes da sua morte), Hannah Arendt vai dar uma entrevista ao escritor francês Roger Errera, onde a vemos abordar temas como totalitarismo e ditadura, a política americana, a razão de Estado e a segurança nacional, o determinismo histórico e a relação dos judeus com Israel.

Reproduzimo-la aqui na íntegra, uma vez que parte dela foi na altura censurada (tudo o que foi cortado aparece agora a itálico). A entrevista pode-se ainda ver gravada no YouTube (1) (2), titulada em francês ou espanhol.

 

A entrevista

 

Roger Errera: O seu primeiro livro, publicado em 1951, é intitulado As Origens do Totalitarismo. Neste livro, quis não apenas descrever o fenómeno, mas também explicá-lo. Daí a pergunta: o que é para si o totalitarismo?

 

Hannah Arendt: Gostaria de começar por fazer algumas distinções com as quais nem todos concordam. Em primeiro lugar, uma ditadura totalitária não é uma simples ditadura, nem uma simples tirania. Sempre que vejo um sistema totalitário, procuro analisá-lo como uma nova forma de sistema político até aí desconhecida. Para isso, procuro enumerar as suas principais características.

Entre elas, gostaria de lembrar uma que atualmente está totalmente ausente de todas as tiranias, e que é o papel dos inocentes, das vítimas inocentes. Sob Stalin, não era necessário fazer nada para se ser deportado ou executado. A dinâmica da história atribuiu um papel a essa vítima e ela devia desempenhar esse papel, independentemente do que fizesse. Anteriormente, nenhum governo matava pessoas por elas dizerem sim. Geralmente, um governo ou um tirano mataria as pessoas por elas dizerem não.

 

Um amigo meu lembrou-me que uma ideia muito semelhante foi expressa na China séculos atrás: os homens que tivessem a impertinência de aprovar não eram mais valorizados do que aqueles que desobedecessem e se opusessem. Essa é a essência do totalitarismo, o facto de haver total dominação do homem pelo homem. Nesse sentido, não há totalitarismo hoje, mesmo na Rússia, onde reina a pior tirania que jamais conhecêramos. É preciso fazer alguma coisa para se ser mandado para o exílio, ou para um campo de trabalho forçado, ou para um asilo psiquiátrico.

 

Vejamos por um momento o que é tirania. Os regimes totalitários apareceram sempre após a maioria dos países europeus estar já sob uma ditadura. Ditadura, no sentido original do conceito e da palavra não é tirania, é uma suspensão temporária das leis em caso de emergência, geralmente durante uma guerra ou uma guerra civil. A ditadura é limitada no tempo, a tirania não é

 

O totalitarismo começa pelo desprezo do que você tem. O segundo passo é a noção: "As coisas têm que mudar - não importa como”, “Tudo é melhor do que o que temos." Os governantes totalitários organizam esse tipo de sentimento de massa e, ao organizá-lo, articulá-lo e articulando-o, fazem com que as pessoas concordem de uma certa maneira.

 

Já antes lhes tinham dito: Tu não deves matar; e eles não mataram. Agora dizemos-lhes: tu matarás; e embora eles pensem que é difícil matar, eles fazem-no porque agora faz parte do código de conduta. Eles aprendem a quem matar e como matar e como faze-lo juntos.

 

Este é o ‘Gleichschaltung’, o processo de coordenação do qual se fala muito. Você não está coordenado com os poderes constituídos, mas com o seu vizinho, coordenado com a maioria. Mas, em vez de se comunicar com o outro, você agora está colado a eles. E é claro que você se sente maravilhosamente bem. O totalitarismo apela para as necessidades emocionais mais perigosas de pessoas que vivem em completo isolamento e com medo dos outros.

 

Estas são coisas muito importantes a que se deve prestar atenção. Quando escrevi o meu livro sobre Eichmann em Jerusalém, um dos meus principais objetivos era destruir a lenda da grandeza do mal, da força demoníaca, para retirar às pessoas a admiração que têm pelos grandes malfeitores como Ricardo III. Encontrei em Brecht a seguinte reflexão: “Os grandes criminosos políticos, devem ser denunciados a todo custo e, sobretudo, ridicularizados. Eles não são grandes criminosos políticos, mas homens que cometeram grandes crimes políticos, o que é algo totalmente diferente. O fracasso de Hitler não significa que ele era um tolo.” [1]

Antes de assumir o poder, toda a oposição se equivocava considerando que Hitler era um tolo. De seguida, muitos foram os livros que tentaram justificá-lo e torná-lo um grande homem. Portanto, diz Becht: “O fato de ele ter falhado não indica que Hitler fosse um tolo, e a escala dos seus empreendimentos não o torna um grande homem.” Não é nem uma coisa nem outra, ou seja, toda essa noção de grandeza não se lhe aplica.

 

“Se as classes dirigentes”, continua Brecht, “permitirem que um pequeno vigarista se torne um grande vigarista, tal não lhe dá direito a uma posição privilegiada na história. Ou seja, o facto de ele se tornar um grande vigarista e que o que ele fizer tiver consequências graves, isso não o engrandece.” E acrescenta: "De uma maneira geral e de forma abruta, pode-se dizer que a tragédia lida com os sofrimentos da humanidade de uma forma menos séria que a comédia. "

 

Esta é obviamente uma afirmação chocante, mas, ao mesmo tempo, penso que é perfeitamente correta. Se alguém quiser manter a sua integridade em tais circunstâncias, só poderá fazê-lo se se lembrar: o que quer que ele faça e mesmo que tenha matado dez milhões de pessoas, continua a ser apenas um palhaço.

 

Roger Errera: Quando publicou o seu livro sobre o julgamento de Eichmann, essa obra provocou reações muito violentas. Porquê essa reação?

 

Hannah Arendt: Parte dessa polémica aconteceu porque ataquei a burocracia. Se se ataca uma burocracia, deve-se esperar que ela se defenda, que ela o ataque, tente tornar a sua vida impossível. Este é mais ou menos um assunto político ruim. Até aí eu consigo entender.

 

Mas suponha que eles não tivessem organizado essa campanha. Apesar disso, a oposição a este livro continuaria a ser muito forte porque os judeus sentiram-se ofendidos, e com isto quero dizer pessoas que realmente respeito e posso compreender. Eles ficaram principalmente ofendidos com o que disse Brecht sobre o rir. A minha risada, nesse momento, era mais ou menos inocente. Não pensei sobre isso.

 

O que vi foi que Eichmann era um palhaço. Eichmann, por exemplo, nunca se culpou pelo que fez aos judeus. Ele culpou-se por um incidente: por ter esbofeteado o presidente da comunidade judaica em Viena durante o seu interrogatório. Deus sabe que muitas pessoas foram tratadas de forma muito pior e, no entanto, Eichmann nunca se perdoou por aquilo. Ele cedera a um impulso e pensou que era muito errado ter perdido o seu sangue-frio.

 

Roger Errera: O que é que pensa por estarmos realmente a ver aparecer toda uma literatura que, particularmente no que diz respeito ao nazismo, descreve muitas vezes de forma romantizada os seus líderes, os seus crimes, e tenta humanizá-los, tentando indiretamente justificá-los? Pensa que essas publicações têm apenas uma razão puramente comercial ou pensa que elas têm um significado mais profundo?

 

Hannah Arendt: Eu penso que elas têm um significado. Elas pelo menos mostram que o que aconteceu uma vez pode acontecer novamente. A tirania é conhecida há muito tempo, há muito tempo que ela é um inimigo. No entanto, isso nunca impediu um tirano de se tornar um tirano. Isso não impediu nem Nero nem Calígula. E Nero e Calígula não impediram exemplos recentes, como a intrusão maciça do crime na política.

 

Roger Errera: Você veio para este país [os Estados Unidos] em 1941, vinda da Europa. Está cá a viver à 32 anos. Quando veio da Europa, qual era a sua impressão dominante?

 

Hannah Arendt: A minha impressão predominante é que a América não é um Estado-nação. Os europeus têm dificuldade em compreender este simples facto, que teoricamente deveriam saber. Este país não está unido nem pela herança, nem pelas memórias, nem pelo solo, nem pela língua, nem por uma origem idêntica. Não há americanos genuínos aqui, além dos índios. Todo o resto são cidadãos, e esses cidadãos estão unidos por apenas uma coisa, e isso é muito: é-se um cidadão dos Estados Unidos pela simples aceitação da Constituição.

 

A Constituição, do ponto de vista francês ou alemão, é apenas um pedaço de papel. Podemos modificá-lo. Mas aqui, é um documento sagrado. É a lembrança constante de um ato único e sagrado, o ato fundador dos Estados Unidos. A sua fundação consistiu em reunir num todo minorias étnicas e regiões totalmente díspares, sem, contudo, nivelar e fazer desaparecer essas diferenças.

 

Tudo isso é muito difícil de para um estrangeiro. Podemos dizer, portanto, que neste sistema político, é a lei que reina e não os homens. Até que ponto isso é verdade e precisa de ser verdade para o bem do país, quase disse da nação, para o bem de todos os Estados Unidos da América, para a república, para falar a verdade…

 

Roger Errera: Na última década, os Estados Unidos passaram por uma onda de violência política marcada pelo assassinato do presidente, do irmão, a Guerra do Vietnam, o caso Watergate. Por que é que os Estados Unidos podem superar crises que na Europa teriam resultado em mudanças de regime e até mesmo em distúrbios internos muito graves?

 

Hannah Arendt: O caso Watergate expôs uma das crises constitucionais mais profundas que a América já conheceu. Essa crise constitucional representa pela primeira vez nos Estados Unidos um conflito aberto entre o legislativo e o executivo. Neste caso, é a própria Constituição que é parcialmente responsável.

 

Os fundadores não acreditavam que a tirania pudesse surgir do executivo, porque não viam nela outra coisa que não fosse a simples execução do que o legislador havia decidido, de várias formas. Sabemos hoje que o maior perigo de tirania vem do executivo.

 

Mas se interpretarmos à letra o espírito da Constituição, o que é que os Pais Fundadores pensaram? Eles pensaram que se tinham conseguido livrar do governo da maioria, e é por isso que seria um grande erro pensar que o que temos é uma democracia. Um erro que muitos americanos compartilham. O que temos aqui é um sistema republicano. Os fundadores estavam preocupados acima de tudo em preservar os direitos das minorias porque acreditavam que num corpo político saudável deveria haver uma pluralidade de opiniões.

 

O que os franceses chamam de União Sagrada era exatamente o que não era necessário para eles. Já seria uma espécie de tirania, e o tirano poderia muito bem ser a maioria. Portanto, todo o sistema político está organizado de forma que mesmo após a vitória da maioria, ainda haja uma oposição. Essa oposição é necessária porque representa as opiniões legítimas de uma ou várias minorias.

 

A segurança nacional é um novo conceito no vocabulário americano. Isso é realmente, se posso interpretar um pouco, a tradução de razão de Estado. Esta noção de razão de Estado nunca desempenhou qualquer papel na América. É uma nova importação.

 

A segurança nacional cobre agora todos os tipos de crimes. Por exemplo, o presidente tem todos os direitos. Ele está acima da lei. O rei não pode estar errado, ou seja, ele é como um monarca numa república. Ele está acima da lei e seu raciocínio é sempre que tudo o que ele faz, fá-lo em prol da segurança nacional.

 

Roger Errera: Porque pensa que essas implicações modernas de razão de Estado, "intrusão do crime na esfera política" como lhe chama, são específicas de nosso tempo? Isso é específico do nosso tempo?

 

Hannah Arendt: É peculiar ao nosso tempo, é o que realmente penso. Assim como o comércio apátrida é caraterístico do nosso tempo e se perpetua de diferentes maneiras, em diferentes gêneros e em diferentes cores. Mas se chegarmos a estas questões gerais, o que também é peculiar da nossa época, é a intrusão maciça do crime na vida política. Estou a falar de algo que vai muito além daqueles crimes que sempre tentamos justificar como razão de Estado a pretexto de serem exceções à regra. Aqui, ao contrário, somos repentinamente confrontados com um estilo de ação política que em si é criminoso.

 

Isso não é uma exceção à regra. Eles não dizem: "Estamos numa tal emergência que temos que nos sentar todos a uma mesa, incluindo o próprio presidente." Aqui, as escutas fazem parte do processo político normal. Eles também não dizem: "Nós invadimos o consultório de um psiquiatra excecionalmente e nunca o voltaremos a fazer”, absolutamente não. Pelo contrário, afirmam que tal arrombamento é absolutamente legítimo.

 

Esta questão de segurança nacional origina-se diretamente da noção de razão de estado. Essa noção de segurança nacional invocada é importada diretamente da Europa Central. Claro, os alemães, os franceses e os italianos reconhecem isso como sendo totalmente justificado, porque sempre viveram sob essa regra. Mas foi precisamente a herança europeia que a Revolução Americana pretendeu quebrar.

 

Roger Errera: No seu ensaio sobre os Documentos do Pentágono [2], descreve a psicologia do que chama de "especialistas em solução de problemas", que eram à época conselheiros do governo dos Estados Unidos. E diz: "Os especialistas da solução de problemas têm sido definidos como homens muito seguros de si próprios e que raramente parecem duvidar da sua capacidade de se imporem. Não se contentavam em fazer gala da sua inteligência, mas ao mesmo tempo orgulhavam-se do seu racionalismo, do seu amor pela teoria, pelo universo puramente intelectual, fazendo com que rejeitassem todo o sentimentalismo até um ponto bastante assustador. "

 

Hannah Arendt: Posso interrompê-lo aí? Eu acho que é o suficiente. Eu tenho um exemplo muito bom. Nos documentos do Pentágono, há um exemplo muito bom dessa mentalidade científica difusa. Você conhece a teoria do dominó, que foi a teoria oficial durante a Guerra Fria, de 1950 a 1969, logo após os documentos do Pentágono.

 

A “teoria do dominó” é um bom exemplo do tipo de mentalidade científica que esmaga todas as outras ideias.

 

A verdade é que entre os intelectuais muito sofisticados que escreveram os documentos do Pentágono, poucos acreditavam nessa teoria do dominó. Nos altos cargos do governo havia apenas duas ou três pessoas que realmente acreditavam nisso, W. Rostow e, não sei, o general Taylor, e eles não estavam exatamente entre os mais inteligentes. Na verdade, eles nem mesmo acreditaram, mas todas as suas ações seguiram essa teoria.

 

Eles não estavam a agir com base em mentiras ou porque se queriam mostrar perante os seus superiores, mas porque isso lhes dava uma estrutura na qual poderiam trabalhar. Eles adotaram essa estrutura sabendo que ela estava em desacordo com os acontecimentos e análises que lhes provavam todas as manhãs que esse ponto de vista era muito simplesmente falso. Adotaram-no porque não tinham outra estrutura.

 

    As pessoas adotam essas teorias para se desembaraçarem da contingência e do imprevisível. O bom e velho Hegel disse certa vez que toda contemplação filosófica apenas servia para eliminar o acidental. Um facto deve ser atestado por testemunhas oculares que não são as melhores testemunhas; nenhum facto é incontestável. Mas não há dúvida que dois mais dois são quatro. E as teorias produzidas no Pentágono eram todas muito mais plausíveis do que o que realmente estava a acontecer.

 

Roger Errera: O nosso século parece-me dominado por uma persistência de formas de pensar baseadas no determinismo histórico.

 

Hannah Arendt: Existem boas razões para essa crença na necessidade histórica.

 

    A principal característica de qualquer acontecimento é que não foi previsto.

 

Nós não conhecemos o futuro. Todos agem tendo em vista o futuro e ninguém sabe o que está a fazer porque o futuro faz-se. A ação é realizada por nós e não por mim. Só quando ajo sozinho, se eu fosse o único, posso prever o que acontecerá como resultado de minhas ações. Portanto, parece que o que realmente aconteceu estava inteiramente no reino da contingência e, de facto, a contingência é um dos maiores fatores da história. Ninguém sabe o que vai acontecer só porque há tantas coisas que dependem de uma enorme quantidade de fatores variáveis ​​- ou seja, ao acaso.

 

Por outro lado, se olharmos para a história em retrospetiva, podemos dizer que a história faz sentido.

A história judaica, por exemplo, teve de facto seus altos e baixos, inimizades e amizades, como qualquer história de todos os povos. A ideia de que existe uma história unilinear está obviamente errada. Mas se você olhar depois da experiência de Auschwitz, parece que toda a história - ou pelo menos a história desde a Idade Média - não teve outro propósito além de Auschwitz ...

 

Como foi isso possível? Este é o verdadeiro problema de qualquer filosofia da história. Como é possível que depois do acontecimento pareça sempre que as coisas não poderiam ter-se passado de outra forma? Todas as variáveis d​​desaparecem, e a realidade tem um impacto tão poderoso que não vale a pena preocuparmo-nos em considerar uma variedade infinita de possibilidades.

 

Roger Errera: Mas se os nossos contemporâneos conservam esse apego a formas de pensar deterministas, apesar dos desmentidos da história, isso acontece porque eles têm medo da liberdade, porque têm medo do imprevisto?

 

Hannah Arendt: Sim, claro, mas eles não o dizem. Se o dissessem, poderíamos abrir imediatamente o debate. Se ao menos dissessem: "temos medo", por exemplo. “Temos medo de ter medo.” Esta é uma das principais motivações. Mas nós temos medo da liberdade.

 

Roger Errera: Consegue imaginar um ministro na Europa, vendo a sua política à beira do fracasso, encomendar a uma equipa de especialistas externos à administração a realização de um estudo com o objetivo de saber as decisões ...

 

Hannah Arendt: Exteriores à administração, não. Eles vêm de todos os lados, e também de ...

 

Roger Errera: É isso, mas também com pessoas de fora da administração. Então, consegue imaginar um ministro europeu na mesma situação, encomendando um estudo para descobrir como isso aconteceu?

 

Hannah Arendt: Claro que não.

 

Roger Errera: Porquê?

 

Hannah Arendt: Por causa da razão de Estado. Ele começaria imediatamente a encobrir os seus erros. A atitude de McNamara foi diferente. Citei no início do meu ensaio sobre os documentos do Pentágono uma de suas palavras: "Não é uma visão muito bonita ver a primeira das superpotências matar ou ferir milhares de não combatentes todas as semanas. Como chegámos a isso?” [3] Esta é uma atitude americana e mostra que a situação ainda era sã porque ainda havia um McNamara que queria aprender com ela.

 

Roger Errera: Você acha que atualmente os dirigentes americanos que enfrentam outras situações hoje ainda querem saber?

 

Hannah Arendt: Não. Eu acho que não sobrou nenhum. Não sei. Não, não, não, retiro o que disse. Acredito, se não me engano, que McNamara estava na lista dos inimigos de Nixon, li hoje no New York Times. Julgo que isso é correto. Só isto serve para mostrar que toda essa atitude já não existe na vida política americana ao mais alto nível. Essas pessoas, ao dizerem delas próprias “por que não conseguimos criar uma imagem de nós mesmos?”, e passam a acreditar na imagem que criaram. Poder-se-á dizer que não passava de imagem. Só que agora eles querem que todos acreditem na sua imagem e que ninguém olhe para além dela. Pelo que entramos assim num universo político completamente diferente.

 

Roger Errera: E assim depois do que o senador Fullbright chamou de "arrogância do poder", depois do que se poderia chamar de arrogância do conhecimento, entrou-se num terceiro estágio que seria simplesmente o da arrogância.

 

Hannah Arendt: Sim. Não sei se isso é simplesmente arrogância. Talvez seja a vontade de dominar. Até agora, isso não teve sucesso. Hoje ainda me posso sentar a esta mesa e falar livremente consigo, pelo que eles ainda não me dominaram e não estou com medo. Posso estar errada. Sinto-me perfeitamente livre neste país. Alguém, Morgenthau, acredito, chamou a toda o ciclo de Nixon de "revolução fracassada". Não sabemos ainda se ela abortou, ele pode ter dito isso prematuramente, mas podemos certamente dizer uma coisa: ela não foi coroada de sucesso.

 

Roger Errera: Mas o que ameaça nosso tempo é a ideia de que os objetivos da política são ilimitados. O liberalismo, no entanto, repousa, creio eu, na ideia de que a política tem objetivos limitados. Não é a chegada ao poder de homens, de movimentos, que se propõem objetivos ilimitados, a maior ameaça em nosso tempo?

 

Hannah Arendt: Espero não o chocar se disser que não tenho a certeza de ser liberal. Verdadeiramente eu não tenho nenhum credo neste assunto. Não professo uma filosofia política que pudesse resumir com um termo em "ismo".

 

Roger Errera: Certamente, mas de qualquer forma é dentro dos fundamentos do pensamento liberal, com recurso à antiguidade, que se situa a sua reflexão filosófica.

 

Hannah Arendt: Você diria que Montesquieu é um liberal? Diria que todos por quem tenho consideração e que têm um pouco de valor ... Eu, eu sirvo-me onde posso. Eu agarro o que posso e o que me é conveniente. Uma das grandes vantagens do nosso tempo é o que disse René Char: “A nossa herança não está garantida por nenhum testamento."

 

Roger Errera: “precedido de qualquer testamento. "

Hannah Arendt: “Não é precedida por qualquer testamento."[4] Isso quer dizer que somos completamente livres para usar as experiências e pensamentos do passado como quisermos.

 

Roger Errera: Mas essa liberdade extrema não corre o risco de assustar muitos de nossos contemporâneos que prefeririam encontrar uma teoria pronta, uma ideologia, pronta a ser aplicada?

 

Hannah Arendt: Claro. Sem dúvida.

 

Roger Errera: Essa liberdade que define, não corre o risco de ser a liberdade de poucos, daqueles que terão a força para inventar novas formas de pensar?

 

Hannah Arendt: Não. Não. Baseia-se apenas na crença de que todo ser humano, como ser pensante, pode pensar tão bem quanto eu e pode formar o seu próprio julgamento, se quiser. O que não sei é como fazer nascer esse desejo nele. Não sou uma propa ...

 

A única coisa que verdadeiramente nos pode ajudar é refletir verdadeiramente. Refletir significa sempre pensar criticamente. E pensar criticamente significa que todo pensamento saiba que existem regras rígidas e convicções gerais. Tudo o que se passa no pensamento está sujeito a um exame crítico. Isto é, não existe pensamento perigoso, pela simples razão de que pensar é em si um trabalho muito perigoso. Mas não pensar é ainda mais perigoso. Não estou a negar o facto que refletir é perigoso, mas não refletir é ainda mais perigoso.

 

Roger Errera: Voltemos a esta observação de René Char: “A nossa herança não é precedida por nenhum testamento.” O que pensa que seja o legado do século 20?

 

Hannah Arendt: Ainda estamos aqui. Você é jovem, eu sou mais velha, mas ainda aqui estamos os dois para lhes deixar alguma coisa.

 

Roger Errera: Exatamente, o que vamos deixar para o século XXI? Já se passaram três quartos de século.

 

Hannah Arendt: Não sei. Tenho certeza de que haverá arte moderna, que está um tanto estagnada agora. Mas depois da grande criatividade dos primeiros quarenta anos deste século, especialmente na França, é natural que haja um certo esgotamento. Este século XX provavelmente será um dos grandes séculos da História, mas não da política.

 

Roger Errera: Tratou várias vezes nos seus trabalhos a história moderna dos judeus e o antissemitismo. No final de um de seus livros diz que o nascimento do movimento sionista nos fins do século XIX foi a única resposta política que os judeus encontraram ao antissemitismo. [5] Em que é que a existência do estado de Israel mudou o contexto político e psicológico em que os judeus vivem no mundo?

 

Hannah Arendt: Acho que isso mudou tudo. Hoje o povo judeu está verdadeiramente unido no apoio a Israel. [6] Eles sentem que têm um Estado, uma representação política, assim como os irlandeses, os ingleses ou os franceses. Eles não apenas têm uma pátria, mas também um Estado-nação, e toda a sua atitude relativamente aos árabes depende em grande parte de uma identificação que os judeus da Europa central sempre fizeram de forma instintiva e irrefletida. O Estado deve ser necessariamente um estado-nação.

 

As relações entre a diáspora e Israel, ou o que antes era a Palestina, mudaram porque Israel não é mais simplesmente um refúgio para judeus polacos. Na época, um sionista era um homem que tentava obter dinheiro dos judeus ricos para os pobres judeus polacos. Mas hoje Israel é o representante do povo judeu em todo o mundo. Que isso nos agrade ou não, é outra questão. Isso não significa que o judaísmo da diáspora tenha sempre que concordar com o governo israelita. Não é uma questão de governo, é uma questão de Estado. Enquanto esse Estado existir, ele obviamente será o que nos representa aos olhos do mundo.

 

Roger Errera: Precisamente, um autor francês, Georges Friedmann escreveu, há dez anos, um livro intitulado Fim do povo judeu? [7] onde concluiu que no futuro haveria de um lado um novo Estado, a nação israelita, e do outro lado, nos países da diáspora, judeus que se assimilariam e perderiam pouco a pouco as suas características próprias.

 

Hannah Arendt: Essa hipótese parece muito plausível e acredito que é totalmente errada. Nos tempos antigos, quando o Estado judeu ainda existia, já havia uma grande diáspora judaica. Ao longo dos séculos, através de tantas formas diferentes de governo e Estado, os judeus, o único povo antigo que sobreviveu ao longo dos milênios, nunca foram assimilados.

 

Se os judeus pudessem ter sido assimilados, já o teriam sido há muito tempo. Houve uma ocasião durante o período espanhol, houve outra durante o período romano, e mais evidentemente nos séculos XVIII e XIX. Um povo, uma comunidade, não se suicida. M. Friedmann engana-se porque não compreende que o sentimento dos intelectuais que podem realmente mudar de nacionalidade e absorver outra cultura, não corresponde ao sentimento do povo como um todo, e particularmente não ao de um povo que foi criado por leis que conhecemos.

 O "talento" - por assim dizer - de pelo menos uma certa parte do povo judeu é um problema histórico, um problema de primeira ordem para os historiadores. Posso arriscar uma explicação especulativa: somos o único povo, o único povo europeu, que sobreviveu desde a Antiguidade e praticamente intacto.

 Isso significa que conservámos a nossa identidade, e que somos os únicos que nunca conhecemos o analfabetismo. Sempre fomos alfabetizados porque não se pode ser judeu sem ser alfabetizado. As mulheres eram menos alfabetizadas do que os homens, mas mesmo elas eram muito mais alfabetizadas do que suas contrapartes noutros lugares. Não apenas a elite sabia ler, mas todo o judeu tinha que ler - o povo inteiro, em todas as classes e em todos os níveis de talento e inteligência.

 

Roger Errera: O que significa para os judeus a assimilação na sociedade americana?

 

Hannah Arendt: No sentido de assimilar os judeus ao seu ambiente, não há assimilação à cultura. Você poderia, por favor, dizer me como os judeus deveriam de ser aqui? Aos ingleses, aos irlandeses, aos alemães, aos franceses, a qualquer um que viesse?

 

Roger Errera: Quando dizemos que os judeus americanos são muito americanizados, não só americanos, mas americanizados, a que nos referimos?

 

Hannah Arendt: Pensamos no estilo de vida. Todos esses judeus são excelentes cidadãos americanos. Isso tem que ver com a sua vida pública, não a vida privada, não a vida social. A vida privada e social é mais judaica hoje do que nunca. Assim, um grande número de jovens aprende hebraico, embora os seus pais o tenham esquecido durante muito tempo.

 

Mas o essencial, é Israel. Somos a favor ou contra Israel? Considere, por exemplo, os judeus alemães de minha própria geração que imigraram para os Estados Unidos. Em muito pouco tempo, eles tornaram-se judeus muito nacionalistas, muito mais nacionalistas do que eu jamais fui, apesar do facto de eu mesmo ser sionista, e eles não eram. Eu nunca disse "sou alemã", sempre disse "sou judia". Mas agora,a que é que eles se assimilam? À comunidade judaica. Como estavam acostumados à assimilação, eles integraram-se à comunidade judaica da América. Com o fervor dos novos convertidos, tornaram-se ultranacionalistas e pró-israelitas.

 

Roger Errera: Ao longo da história, o que garantiu a sobrevivência do povo judeu foi principalmente uma ligação de natureza religiosa. Estamos numa época em que todas as religiões passam por uma crise e o vínculo religioso tende a enfraquecer. Nessas condições, o que, na contemporaneidade, une o povo judeu?

 

Hannah Arendt: Acho que você se engana um pouco. Quando você diz "religião", obviamente quer dizer a religião cristã, que é um credo, uma crença, uma fé. Esse não é absolutamente o caso da religião judaica. Ela é uma religião nacional em que religião e nação coincidem. Você sabe que os judeus, por exemplo, não reconhecem o batismo dos judeus convertidos ao cristianismo? Tudo acontece como se esse ato não existisse.

 

De acordo com a lei judaica, um judeu é sempre um judeu. Sempre que alguém nasce de mãe judia, a procura da paternidade é proibida, ele é judeu. O conceito de religião é completamente diferente. É muito mais um modo de vida do que uma religião no sentido particular e específico da religião cristã. Tive uma educação judaica e lembro-me que quando tinha cerca de 14 anos revoltei-me contra o nosso professor e quis chocá-lo. Levantei-me e disse: “Não acredito em Deus." Ele respondeu-me: “Ninguém te o está perguntando. "

 

Notas

 

[1] Bertolt Brecht, “Bemerkungen” em Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui, cf. Brecht, Werke (GroBe kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe), v. 24, pp. 315-319.

 

[2] Hannah Arendt, "Lying in Politics: Reflections on the Pentagon Papers", The New York Review of Books (18 de novembro de 1971), pp. 30-39; Para a edição francesa, cf. nota 6 em “Entrevistando Hannah Arendt”; Edição alemã: “Die Luge in der Politik: Uberlegungen zu den PentagonPapieren”, Die neue Rundschou (v. 83, no. 2 [1972]), pp. 185-213.

 

[3] A citação de Robert S. McNamara que Arendt tomou como slogan em "Lying in Politics" diz: [" A imagem da maior superpotência do mundo matando ou ferindo gravemente mil não-combatentes por semana, enquanto tentava submeter uma pequena nação atrasada em uma questão cujos méritos são calorosamente contestados, não é bonita. "]

 

[4] René Char: “A nossa herança não é precedida por qualquer testamento.” O aforismo é retirado de "René Char, Feuillets d´Hypnos ", no. 62 ver R. Char, Oeuvres completes (Paris: Gallimard, 1983), p. 190; cf. Hannah Arendt no seu “Prefácio” para Between Past and Future: Eight Exercices in Polirical Thought, (New York: Viking), 1968.

 

[5] Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, nova edição com prefácios adicionados (San Diego etc.: A Harvest I HBJ Book, 1979), p. 120

 

[6] Esta declaração e as seguintes devem ser lidas no contexto dos acontecimentos do dia. Em 6 de outubro de 1973, o Egito e a Síria atacaram Israel, dando início à Guerra de Outubro [Guerra do Yom Kippur].

 

[7] Georges Friedmann, Fin du peuple juif? (Paris: Gallimard, 1965).

 

 

 

 

 

  1. https://www.youtube.com/watch?v=3OFKx3yqJvw
  2. https://www.youtube.com/watch?v=AScblSGKAC8

 

 

(293) Escapatórias sem escape

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

Colonizar o espaço: a velha aspiração de deixar para trás todas as preocupações de se viver na Terra. Como se a Terra fosse a culpada.

 

Apenas uma das várias expedições lançadas a partir de uma colónia interestelar conseguirá alcançar o destino e sobreviver, Rpbert Hanson.

 

Só o fornecimento de água para os seis inquilinos da Estação Espacial Internacional custa cerca de 2 biliões de dólares por ano.

 

Não há nenhuma razão firme para supor que as pressões evolutivas empurrem sempre em direções desejáveis.

 

Singleton é a ordem mundial segundo a qual existe apenas uma única agência de tomada de decisão ao nível mais elevado, Nick Bostrom.

 

 

 

 

 

Foi recentemente notícia nos principais meios de comunicação a descoberta de moléculas de água na Lua. Seguiram-se vários artigos entusiasmados com a excitação provocada por tal descoberta, dadas as enormes possibilidades que entendiam abrirem-se para a colonização do espaço.

 Resumidamente, a descoberta de moléculas de água nas areias da Lua, permitiria, após a sua extração, o estabelecimento de colónias humanas sem a necessidade do custo e do transporte regular de enormes quantidades de água em naves cisternas a partir da Terra (só o fornecimento de água para os seis habitantes da Estação Espacial Internacional custa cerca de 2 biliões de dólares por ano), e poderia permitir mais tarde,  ao separar e acumular os átomos de oxigénio e hidrogénio, o abastecimento de combustível das naves no seu regresso à Terra.

 

Independentemente das considerações sobre as enormes dificuldades que tais processos acarretariam (alguns mesmo ainda sem resposta tecnológica) e dos custos exorbitantes, continua-se a insistir em glorificar e romantizar a “conquista do espaço” e a “colonização das novas fronteiras”, como fazendo parte da realização de um desígnio humano, uma ambição desde sempre ansiada da humanidade.

É neste sentido que nos são apresentados programas de exploração e conquista como os de Elon Musk do Space X, e Jeff Bezos. Musk pretende estabelecer uma colónia permanente em Marte (1), e a partir daí colonizar todo o espaço. Bezos prefere a colonização em gigantescas ilhas rotativas navegando no espaço.

Em qualquer dos casos, trata-se aparentemente de dar corpo à velha aspiração de se deixar para trás todas as preocupações de se viver na Terra. Como se a Terra fosse a culpada.

 

Na realidade, trata-se de um expediente perfeitamente idealizado e legalizado há séculos, para alguns poucos fazerem fortunas à custa dos muitos outros, através de fabulosos contratos feitos com os governos, que são pagos pelos estados, ou seja, pelos impostos dos do costume. Os grandes negócios privados que o público sustenta e sem os quais nos dizem que não haveria progresso.

Todos aqueles conhecimentos, tecnologias, e recursos gastos na corrida ao espaço, foram sempre suportados pelos governos: A NASA é uma empresa pública; A Estação Espacial Internacional, que custou cerca de 150 biliões de dólares, foi paga pelos impostos dos contribuintes dos EUA, Rússia, Europa, Canadá e Japão.

 

Embora se possa entender a euforia das primeiras “conquistas” espaciais, que tiveram muito mais que ver com a tentativa de resolução de problemas militares (2ª Guerra, V1 e V2 nazis) e de prestígio político (demonstração de conhecimentos e poderio inerente aos sistemas político-económicos em presença, URSS x EUA), os tempos das pandemias e das alterações climáticas têm vindo a obrigar a uma melhor ponderação na crença sobre o verdadeiro valor da conquista e até mesmo o da exploração como está a ser feita.

Segundo o astrofísico e Astrónomo Real, Lord Rees:

 

Nenhuma das centenas de pessoas que têm circulado à volta da Terra na Estação Espacial Internacional produziu qualquer trabalho de valor verdadeiramente científico que fosse suficiente para justificar, nem mesmo uma ínfima fração do dinheiro gasto no Shuttle e na Estação Espacial”.

 

Para ele, as sondas espaciais que nos enviam imagens e dados científicos de Marte, Júpiter, e do espaço interestelar, têm feito muito mais para transformar a nossa visão sobre o Universo do que o envio de astraunautas.

 

Nos últimos 40 a 50 anos, têm sido publicados milhares de artigos científicos sobre esta problemática das viagens espaciais, quase sempre na ótica da validação das suas possibilidades de realização, e onde a colonização interestelar aparece como um dos modelos a ser considerado.

Sabendo-se da limitação imposta pela velocidade da luz nas deslocações a efetuar, as viagens para os considerados ‘oásis’ a colonizar ficarão dependentes das tecnologias e preferências das civilizações que as efetuarem.

Na sua grande maioria, esses estudos incidem sobre o comportamento dos “colonizadores”, o tempo que acabarão por permanecer nesses oásis, as explorações que serão feitas a partir daí pelos seus descendentes, quantas e com que periodicidade serão feitas, que alterações físicas e comportamentais serão esperadas, etc.

 

Um dos artigos sobre os desafios da colonização espacial que tem normalmente sido negligenciado, é o de  Robert Hanson (1939-2014), "Burning the Cosmic Commons: Evolutionary Strategies for Interestellar Colonization", de 1998, (http://hanson.gmu.edu/filluniv.pdf).

 Nesse estudo, Hanson, utilizando modelos matemáticos, vai demonstrar, entre outros, que as colónias interestelares só lançam novas expedições quando as suas capacidades de crescer começarem a diminuir, que os colonizadores são muito relutantes relativamente a futuros investimentos em pesquisa, que apenas uma das várias expedições lançadas a partir de uma colónia interestelar conseguirá alcançar o destino e sobreviver, etc..

 

 

Mas para além destes estudos que se ocupam sobre a viabilização tecnológica e/ou humana do empreendimento, há um artigo que me parece ser da maior importância para os tempos em que vivemos, tendo em conta o comportamento que as várias organizações e entidades mundiais revelaram durante as recentes pandemias e alterações climáticas, porquanto aborda o problema do modelo de governação da humanidade em tempos de exploração e colonização do espaço.

 

Trata-se de um pequeno estudo de Nick Bostrom (2), publicado em 2005 na revista Linguistic and Philosophical Investigations, Vol. 5, No. 2 (2006): pp. 48-54, da Faculdade de Filosofia da Universidade de Oxford, intitulado “What is a Singleton?”, onde, apropriando-se deste conceito matemático, vai formular e analisar possíveis cenários que acabam por convergir na inexorabilidade da criação de uma ordem mundial na qual apenas existirá uma única agência de tomada de decisão ao nível mais elevado.

Eis a reprodução integral do artigo:

 

 

 “ 1. Definição

 

                Na teoria dos conjuntos, um ‘singleton’ é um conjunto contendo apenas um membro. Vou, contudo, utilizá-lo unicamente como noção, pelo que o termo apenas se referirá a uma ordem mundial na qual existe uma única agência de tomada de decisão ao nível mais elevado. [1] Entre os seus poderes estariam (1) a capacidade para prevenir quaisquer ameaças (internas ou externas) à sua própria existência e supremacia e (2) a capacidade de exercer controle efetivo sobre as principais características do seu domínio (onde se inclui a tributação e a distribuição territorial).

 

               Vários ‘singletons’ poderiam coexistir no universo se estivessem suficientemente afastados para não se verificar qualquer influência causal entre eles. Contudo, um governo mundial terrestre não poderia contar como único se existissem colónias espaciais independentes ou civilizações alienígenas que estivessem ao alcance da Terra.

 

  1. Exemplos e elaboração

 

Uma república mundial democrática pode ser uma espécie de ‘singleton’, o mesmo acontecendo para uma ditadura mundial. Uma máquina superinteligente amigável poderia ser outro tipo de ‘singleton’, supondo que fosse suficientemente poderosa para que nenhuma outra entidade pudesse ameaçar a sua existência ou frustrar os seus planos. Outro exemplo seria o de uma “força transcendente” que alcançasse o domínio mundial.[2]

 

Um ‘singleton’ também se pode formar por meio de uma evolução convergente, por ex. se todos os indivíduos ou culturas suficientemente avançadas passassem fundamentalmente a aceitar os mesmos valores ou objetivos. Esses valores comuns, em combinação com todos os indivíduos e culturas que os abraçam, formariam então uma “agência” no sentido amplo aqui pretendido, e constituiria um ‘singleton’.

 

Também se pode imaginar um ‘singleton’ surgido a partir da disseminação universal de um único código moral autoimposto. O código pode especificar que os agentes devam dar tratamento preferencial a outros agentes que sigam o código. Se tal código for aceite por um número suficiente de agentes, e se o monitorar e garantir a conformidade for suficientemente viável para a sua aceitação, pode ser do interesse dos agentes que ainda não adotaram o código fazê-lo. Isso pode levar à adoção universal do código. Se o código for suficientemente prescritivo para resultar num comportamento efetivamente orientado e coordenado a metas ao nível da sociedade mundial, ele constituirá um ‘singleton’.

 

Um ‘singleton’ não precisa ser monolítico. Ele poderá conter em si uma enorme variedade de agentes independentes, cada um perseguindo os seus próprios objetivos díspares, como é o caso num estado democrático liberal. Os objetivos e ações do ‘singleton’ poderiam ser decididos pelos seus habitantes ou representantes eleitos.

 

Um ‘singleton’ que seja uma máquina superinteligente pode adotar um modus operandi que tornaria a sua presença virtualmente indetetável no dia-a-dia de seus habitantes. Ele poderia atuar apenas como um reforço subtil de certas condições básicas que poderiam servir, por exemplo, para garantir a segurança ou para administrar algumas outras tarefas governamentais mínimas. Esse ‘singleton’ superinteligente também poderá usar algoritmos evolucionários e outros meios para aumentar a diversidade interna, se isso promover a sua capacidade para alcançar os seus objetivos. Ao considerar as características de um ‘singleton’, seria um erro supor que ele possuiria necessariamente os atributos comumente associados às grandes burocracias humanas - rigidez, falta de imaginação, ineficiência, tendência para a macrogestão e expandir seus próprios poderes, etc. Isso poderia ser verdade para alguns ‘singletons’ possíveis, mas poderia não ser verdade para outros.

 

O conceito de um ‘singleton’ é, portanto, muito mais amplo e abstrato do que o conceito de um governo mundial. Um governo mundial (no sentido comum da palavra) é apenas um tipo de ‘singleton’ entre muitos.

 

No entanto, todos os ‘singletons’ possíveis compartilham uma propriedade essencial: a capacidade de resolver problemas de coordenação global. As espécies inteligentes que desenvolvem a capacidade de resolver problemas de coordenação global, como as indicadas na próxima seção, podem, a longo prazo, desenvolver-se ao longo de trajetórias muito diferentes das espécies que não possuem essa capacidade. Isso é o que torna útil ter um conceito unificador para um conjunto tão diverso de estruturas.

 

  1. Vantagens de um ‘singleton’

 

Os ‘singletons’ podem ser bons, maus ou neutros. Uma razão para favorecer o desenvolvimento de um ‘singleton’ (do tipo bom) é que ele resolveria certos problemas fundamentais de coordenação que podem ser insolúveis num mundo que contém um grande número de agências independentes ao nível superior. Problemas de coordenação deste tipo, que podem ser de particular importância para o futuro da humanidade, incluem:

 

    . Evitar corridas armamentistas perigosas que poderiam causar enorme destruição ou mesmo extinção por meio de armas poderosas, incluindo armas futuras baseadas em nanotecnologia. [3] As corridas armamentistas custam caro mesmo quando não emanam da guerra.

    . Evitar uma futura corrida de colonização espacial que consumiria bens cósmicos. Robin Hanson desenvolveu um modelo que prevê que isso aconteceria na ausência de um ‘singleton’. [4]

    . Evitar resultados caracterizados por extrema desigualdade, como cenários onde um único estado (ou grupo de elite, ou um indivíduo) obtém uma vantagem tecnológica decisiva (com superinteligência ou nanotecnologia molecular avançada) e usa isso para prejudicar o resto da humanidade ou para se apropriar de enormes quantidades de recursos. (Tal cenário pode acontecer num indivíduo ou grupo privilegiado formando um ‘singleton’. Mas um ‘singleton’ criado por antecipação poderia ter conduzido a uma distribuição mais justa de benefícios.)

    . Evitar caminhos evolutivos indesejáveis ​​que levam a resultados radicalmente distópicos. Um ‘singleton’ poderia fazer isso remodelando deliberadamente a função de bem-estar para a população. (Não há nenhuma razão firme para supor que as pressões evolutivas sempre empurrem em direções desejáveis. Há uma análise minha mais detalhada deste tipo de cenário num outro artigo. [5])

 

  1. Desvantagens de um ‘singleton’

 

O maior risco na criação de um ‘singleton’ é o de ele acabar por ser um mau ‘singleton’. Unidades mais pequenas de tomada de decisão, como os estados, também se podem tornar maus. Mas se um ‘singleton’ for mau, então toda uma civilização inteira é má. É pôr todos os ovos numa cesta.

Além disso, numa ordem mundial menos coordenada, existem alguns processos que limitam o caráter destrutivo de certos tipos de falhas. Por exemplo, se um estado estagnar ou instituir um sistema econômico ruinoso, tal pode ser superado pela sua competição com outros estados. Outros estados podem invadir ou intervir. Parte de sua população pode emigrar. As tecnologias e o progresso científico desenvolvidos noutros estados podem eventualmente decair para um estado de estagnação. A existência de outras sociedades mais prósperas pode servir de modelo e inspiração para reformar ou revolucionar um mau estado. Esses mecanismos de proteção não funcionariam num ‘singleton’ mau. (Para reduzir este risco, um ‘singleton’ bom pode manter deliberadamente uma ecologia interna de diferentes sociedades e de diversidade regional.)

 

Alguns tipos de ‘singleton’ incorreriam num custo substancial devido à ineficiência resultante do aumento de camadas adicionais de burocracia. A magnitude desse custo, e se ele seria maior ou menor do que os ganhos da coordenação, depende da natureza do ‘singleton’, da sua estrutura e tecnologia de governo, e da gravidade dos problemas de coordenação que só podem ser resolvidos por um ‘singleton’.

 

Algumas formas de criar um ‘singleton’ também podem incorrer em custos e riscos, especialmente se uma nação ou algum grupo de agências tentar criá-lo à força num mundo multipolar onde as agências opostas têm poderes significativos. (Da mesma forma, também existem situações em que tentar evitar a criação de um ‘singleton’ pode ser caro e arriscado.)

 

  1. A hipótese ‘singleton’

 

A hipótese ‘singleton’ é que a vida inteligente originada na Terra (eventualmente) formará um ‘singleton’. É uma questão aberta saber se a hipótese do ‘singleton’ é verdadeira. A minha opinião é que é mais provável que seja verdade.

Historicamente, temos visto uma tendência abrangente para o aparecimento de níveis mais elevados de organização social, desde grupos de caçadores-coletores a chefias, cidades-estado, estados-nação e agora organizações multinacionais, alianças regionais, várias estruturas de governança internacional e outros aspetos da globalização. [6] A extrapolação dessa tendência aponta para a criação de um ‘singleton’.

 

Algumas tecnologias previstas podem facilitar a criação de um ‘singleton’, como vigilância avançada (incluindo a deteção de mentiras), tecnologias de controle da mente, tecnologias de comunicação e inteligência artificial. Outras tecnologias podem reduzir a probabilidade da criação de um ‘singleton’. Por exemplo, o maior uso da criptografia, especialmente à medida que grandes partes de nossas vidas e a economia migram para o ciberespaço, pode tornar mais difícil a formação de certos tipos de ‘singleton’ (‘singlestons’ que se apoiam num forte controle centralizado).

 

Um ‘singleton’ é um resultado plausível de muitos cenários em que uma única agência obtém uma liderança decisiva por meio de um avanço tecnológico em inteligência artificial ou nanotecnologia molecular. [7] Uma agência que tivesse obtido essa liderança poderia usar essa sua superioridade tecnológica para impedir que outras agências o alcançassem, especialmente nas áreas tecnológicas essenciais para sua segurança.

Pode-se desenvolver gradualmente um amplo apoio para a criação de um ‘singleton’, se um ‘singleton’ for de facto necessário para resolver os problemas de coordenação indicados na seção 3 e se a relevância desses problemas aumentar com o tempo. Um evento catastrófico que destacasse os perigos do fracasso em resolver os problemas de coordenação global, como uma guerra travada com armas de destruição em massa, poderia acelerar esse desenvolvimento. Até agora, os dois esforços mais ambiciosos para instituir formas limitadas de governo mundial, a Liga das Nações e as Nações Unidas, surgiram diretamente das experiências traumáticas de duas guerras mundiais. (Por outro lado, se os custos e riscos de criar um ‘singleton’ superam os benefícios, então é possível que a resistência iluminada reduza as hipóteses de formação de um.)

Uma vez formado, um futuro ‘singleton’ pode ser perpetuamente estável. Isso pode acontecer se a vigilância, o controle da mente e outras tecnologias de segurança se desenvolverem por forma a permitirem que um ‘singleton’ previna com eficácia o aparecimento de desafios internos.

 

Referências

 

Bostrom, N. (2005). The Future of Human Evolution. Death and Anti-Death. C. Tandy, Ria University Press.

Drexler, K. E. (1985). Engines of Creation: The Coming Era of Nanotechnology. Londres, Forth Estate.

Gubrud, M. (2000). Nanotechnology and International Security. Fifth Foresight Conference on Molecular Nanotechnology.

Hanson, R. (1998). "Burning the Cosmic Commons: Evolutionary Strategies for Interestellar Colonization." Disponível em http://hanson.gmu.edu/filluniv.pdf.

Wright, R. (1999). Nonzero: The Logic of Human Destiny. Nova York, Pantheon Books.

 

Notas

[1] This note is a write-up up of some informal remarks that I published in 2002.

[2] A “transcending upload” refers to a biological mind that has been uploaded to a computer and then enhanced to such a degree that it has become superintelligent.

[3] (Gubrud 2000)

[4] Hanson 1998)

[5] (Bostrom 2005)

[6] (Wright 1999)

[7] (Drexler 1985)”

 

 

(1) É sua intenção transportar colonizadores para Marte “inicialmente a 200.000 dólares por pessoa, podendo posteriormente ser feito a metade do preço. A nave transportará 100 a 200 pessoas de cada vez, estimando que a população de Marte seja de 1 milhão de habitantes ao fim de 40 a 100 anos”, segundo relata Marcia Smith, “Musk shares technical details of his dream for Mars colonization”, Space Policy Online, 27 September 2016.

(2) Nick Bostrom (1973- ), é um filósofo sueco (https://en.wikipedia.org/wiki/Nick_Bostrom) conhecido pelas suas teorias do transumanismo (que reconhece e antecipa alterações radicais na natureza dos humanos como resultado da aplicação de várias ciências e tecnologias), da superinteligência (teoria segundo a qual é possível que uma Inteligência Artificial se torne superinteligente ultrapassando e dominando a espécie humana) e da teoria da simulação (segundo a qual toda a realidade, incluindo a Terra e todo o resto do Universo, pode ser uma simulação artificial, uma simulação de computador).

 

 

(292) A Consolação do Dólar

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido, J. Cerqueira Gonçalves.

 

Toda a espécie humana é igualmente nobre, dado que descende de uma única e mesma origem, Severino Boécio.

 

Não há prazer que não implique dor.

 

O conhecimento está reservado para os conhecedores, de acordo com as suas capacidades cognitivas.

 

 

A humanidade, ao longo do percurso que tem vindo a percorrer, tem passado por aquilo que parecem ser algumas alterações, quer elas sejam físicas, psicológicas, comportamentais, ou outras, alterações essas que tiveram origem nas sociedades que foram construindo (e que por sua vez também as foram modificando) na tentativa de conseguirem perdurar o mais tempo possível. Indivíduos, sociedades, culturas, nações, civilizações.

Estabelecer diferenciações entre elas, torna-se por vezes difícil, especialmente quando delas fazemos parte, pela curta duração de uma vida, ou pelo tempo transcorrido entre o observador e o que se pretende observar.

Por exemplo, um habitante que fizesse parte da Alemanha durante o período nazi, teria dificuldade em não acreditar nos valores de superioridade instilados por essa sociedade, sociedade que se julgava vir a durar mais de mil anos no comando do mundo.

 

 

Uma sociedade só aparece após um processo mais ou menos elaborado em que se vão selecionando os modos mais eficazes para se resolverem problemas que lhes sejam postos, problemas reais da vida prática e emocional com que aquele conjunto humano se depara, ou seja: uma sociedade não aparece de um momento para o outro a partir do nada.

É por isso que aquela ideia vulgarizada de que quando as sociedades são substituídas por outras desaparecem na totalidade, não corresponde à realidade. Os seus resquícios farão sempre parte do acervo da humanidade, sempre prontos a serem utilizados quando necessários.

Como dizia Joaquim Cerqueira Gonçalves:

 

 “Em ciência, um paradigma substitui outro paradigma; em filosofia e nas ciências humanas, não há substituição, tudo é integrado, nada é esquecido.

 

Os mitos, formas não racionais de encarar os problemas que se punham às sociedades de então, entretanto dadas como desaparecidas, ao fim de todo este tempo não desapareceram. Eles constituem como que um refúgio a que nos acolhemos quando tudo for irracional, quando a racionalidade não conseguir resolver os problemas das sociedades. (1)

 

Nestas mudanças, vamos dizer civilizacionais, que se verificam ao longo do tempo, existem sempre momentos charneira de maior ou menor duração, em que uma forma de viver (comportamentos, visão do mundo, valores, etc.) vai dando lugar a outra, pelo que convém estarmos atentos para nos conseguirmos adaptar, resistir ou desistir conforme os casos, sob o risco de sermos marginalizados (postos na prateleira, desempregados, eliminados, etc.).

A sociedade a que pertencemos tem ultimamente vindo a desenvolver um processo de transformação mais acelerado, com várias consequências a nível individual e social. Contudo, contrariamente ao que nos querem fazer crer, as principais alterações não se têm verificado devido à utilização das novas tecnologias, computadores, inteligência artificial.

As grandes alterações estão a dar-se ao nível dos valores, e os valores não são veiculados pela tecnologia.

 

Ao longo dos últimos dois mil anos, os valores da nossa sociedade têm sido valores cristãos. O afastamento desses valores, a tentativa da sua substituição por outros completamente diferentes, talvez se possa melhor aperceber se conseguirmos encontrar um meio credível, qualificado e representativo de comparação, que torne evidente esse afastamento.

 

Severino Boécio (c. 475-524), foi considerado como um dos grandes filósofos, “o maior dos filósofos entre eles” (noster summus philosophus). Para além disso, ficou também conhecido devido às traduções (para latim) de algumas obras de Aristóteles e de Porfírio, sem as quais não teríamos tido conhecimento da lógica clássica.

Devido a uma intriga palaciana (na altura Roma era governada pelo ostrogodo Teodorico, que convidou em 520 Boécio para um cargo importante na sua administração, que o parece ter desempenhado por forma a travar a corrupção instalada, o que lhe criou inimigos que conseguiram convencer Teodorico que Boécio conspirava contra ele), foi preso, julgado por traição e condenado à morte.

Enquanto aguardava a execução, vai escrever cinco cadernos, A Consolação da Filosofia, que se tornaram uma das obras mais lidas em toda a Europa ao longo de mil anos.

 

A “consolação” (consolatio), era um género literário em voga nas classes altas, sendo como que lamentações, últimos escritos antes de morrerem ou após grande desgosto. Estados de alma. Purificações.

 

A forma desta obra aparece como um diálogo entre o Prisioneiro (Boécio) e a Filosofia (personificada por uma respeitável mulher de idade avançada) que lhe aparece na cela.

 

Boécio começa por nos dizer no Livro I que por ter querido ser justo nas suas decisões, acabou por ser caluniado e preso, enfrentando uma morte injusta. O seu único consolo é o que encontra na Filosofia.

Então a Filosofia começa por lhe mostrar que a felicidade não consiste nos bens mutáveis e perecíveis que dependem da Fortuna, mas sim num bem perene a ser encontrado.

Explica-lhe depois em que é que a felicidade não consiste, para lhe demonstrar em que é que consiste a verdadeira felicidade: na posse do Sumo Bem, ser perfeitíssimo e origem dos demais seres.

Passa a equacionar o problema do Destino como resultante da Providência, acabando por se debruçar sobre o problema da articulação entre Providência e livre arbítrio.

 

Interessa aqui sobremaneira o Livro III, aquele em que a Filosofia vai ajudar Boécio na sua procura da felicidade, desvendando as inconsistências e insuficiências dos bens aparentes.

Apesar de ser rico, Boécio admite que lhe faltava algo, pelo que a Filosofia lhe faz ver que tal significava que não era autossuficiente. E isso acontecia porque a riqueza não garantia a autossuficiência, pois esse património podia ser arrebatado, pelo que aqueles que o têm tornam-se dependentes da ajuda alheia para o conservarem. A riqueza pode diminuir a necessidade, mas nunca a elimina: logo, não garante a felicidade.

Também as honras são um engano. Frequentemente dispensadas a quem as não merece, não tornam os contemplados dignos de reverência e honra. Tornam até mais visível o desmerecimento.

Quanto ao poder, por ser efémero e ter a propensão para atrair a discórdia, é também uma ilusão da verdadeira felicidade.

A glória, tal como a fama, é enganosa, pois, na maioria das vezes, a multidão não atribui a glória a quem verdadeiramente a merece. E é também efémera.

A nobreza é outra ilusão. O prestígio da nobreza é oco e fútil, pois não resulta do mérito próprio, mas do mérito dos antepassados. A Filosofia declara, ainda, que toda a espécie humana é igualmente nobre, dado que descende de uma única e mesma origem, de um só e mesmo pai.

Quanto ao prazer, o seu desejo implica ansiedade. Por isso, os que a ele se abandonam sofrem depois, arrependendo-se, mais não seja porque a satisfação desenfreada dos prazeres comporta riscos físicos reais. Para mais, tal critério de felicidade não é especificamente humano. Nem mesmo uma esposa e filhos podem assegurar a felicidade, já que constituem por si mesmos, fontes de cuidados. Comparando-o a uma abelha, conclui que não há prazer que não implique dor:

 

“Isto tem toda a luxúria:

espicaça com agulhões os que dela gozam,

semelhante à alada abelha

que mal acaba de derramar o delicioso mel

foge e fere com picada demasiado pungente

os corações que tocou.”

 

Nem mesmo a beleza merece que lhe seja devotada uma vida, ela é frágil e muito rapidamente se desvanece por qualquer acidente ou doença. E se o nosso olhar fosse mais penetrante, cedo descobriríamos a nossa própria fealdade.

 

Após concluir que todos esses bens não conduziam à felicidade, eis o resumo das opções de vida que a Filosofia coloca perante o Prisioneiro:

 

Tencionas esforçar-te para amealhar riquezas? Terás de as subtrair a quem a tem. Queres brilhar com honrarias? Suplicarás a quem tem o poder de as outorgar e tu, que desejas ultrapassar os outros homens, tornar-te-ás vil ao rebaixares-te a uma situação de pedinte. Desejas o poder? Sujeitar-te-ás a expor-te aos perigos próprios dos que estão sujeitos às intrigas. Procuras eventualmente a glória? Renuncias a estar tranquilo, arrastando-te por tribulações de todo o tipo. Levas uma vida de prazeres? Mas quem não há-de desprezar o escravo da mais vil e frágil das coisas, o corpo? Ora os que têm em grande conta os bens do corpo em que se apoiam essa pobre e frágil propriedade! Porventura sereis capazes de superar os elefantes em peso, os touros em força, porventura ultrapassareis os tigres em agilidade?

 

Os valores que na nossa sociedade atual estão a tentar fazer prevalecer são, na maior parte dos casos, completamente diferentes: individualismo exacerbado, sentido quase inexistente de comunidade, rejeição da existência do bem comum, exibição ostentadora da riqueza como símbolo de sucesso merecido devido a qualquer dom superior concedido ou inato, etc.

Se bem que a comparação não possa ser estabelecida na sua totalidade, ela é suficientemente clara para nos apercebermos das diferenças sobre os valores que os nossos mandantes, donos, influenciadores, querem para as suas vidas.

Não se trata de valores que querem para a vida, mas sim de valores que querem para as suas vidas. Como já lapidarmente Margaret Thatcher tão bem definira sobre o que para ela eram os tempos de hoje:

 

"Não existe essa coisa de sociedade, o que há são indivíduos."

- no such thing as society [...] There are individual

 

 

Menos conhecida que Thatcher, diz-nos Lokas Cruz, medicado SNS a trabalhar em campos de refugiados:

 

Criminalizar quem faz a travessia é a punição. Na Europa em 2020, culpabilizamos quem é refugiado e esta é a maneira como o fazemos.

Esta também é uma mensagem que é intencionalmente passada para que mais pessoas não venham, para que passem a mensagem e a ideia de que as condições são tão más que ninguém queira vir. Há pessoas a suicidar-se no campo diariamente. Se as sujeitarmos a condições que as façam preferir morrer nas bombas da Síria, pelos talibã no Afeganistão ou na travessia, se as desumanizarmos ao ponto de quererem morrer, certamente que os contactos que têm na Turquia ou nos países de origem serão persuadidos a não vir – é uma tática consciente e política.”(2)

 

 

 

Não está ainda claro que os valores “antigos” venham a ser derrotados, ou que os “novos” valores venham a constituir os valores da sociedade futura. Nem por quanto tempo.

 

Regressando a Boécio, numa discussão entre o Prisioneiro e a Filosofia, um dos problemas levantado pelo Prisioneiro foi este:

Como apenas pode ser conhecido o que é certo e fixo, então a contingência dos acontecimentos futuros é, pela sua natureza própria, incerta e não fixada. A ser assim, a afirmação que Deus está sempre certo na predição que faz de acontecimentos futuros, assenta num conhecimento que é falso.

Ao que a Filosofia respondeu:

 

Tudo o que é conhecido é adquirido não de acordo com o seu poder, mas de acordo com a capacidade daqueles que efetivamente conhecem”.

 

Ou seja, o conhecimento está reservado para os conhecedores, de acordo com as suas capacidades cognitivas. Nada de novo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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