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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(278) O efeito Medeia: a inevitável auto-extinção.

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A cólera só é assassina quando encontra as condições propícias.

 

A sustentabilidade não passa de um paliativo que só será possível de atingir após uma reorientação drástica da sociedade […] que parece difícil de alcançar e até de ser seu desejo.

 

A vida tem sido  a causa de quase todas as grandes extinções que ocorreram, podendo tornar-se autodestrutiva, Peter Ward.

 

Para os mais sonhadores, a evolução far-se-á como resultado caprichoso do jogo entre a deusa da Terra (Gaia) e a maviosa assassina Medeia.

 

 

 

 

 

Quando se pretende comparar o surto de qualquer epidemia ao ataque inesperado de um “inimigo invisível” (por exemplo, o Covid-19 ao 11 de setembro), o que se está a fazer é tentar identificar ambos como sendo de natureza semelhante e que, além disso, ocorrem aleatoriamente.

 Ou seja, como acontecimentos que aparecem fora dos sistemas político e económico, nada têm que ver com eles, e em que, portanto, a desigualdade e os cuidados de saúde não contribuem para uma maior ou menor incidência da doença e mortes, e onde nem tão pouco o género, raça e classe se vejam incluídos.

Sem precisarmos de recuar muito, basta irmos até à pandemia de cólera, que obrigou nos finais do século XIX à criação em Inglaterra e França da disciplina de “epidemiologia”. É exatamente por ela ter sido criada nessa altura, que esse campo de estudo não pode ser separado da gestão do sistema político e económico.

E, contudo, mais de um século passado, a cólera continua a matar anualmente 95.000 pessoas, mormente em África, América do Sul e Ásia, onde a urbanização – e não a densidade populacional, mas a inexistência de sanitização e de água corrente – tende a aumentar as mortes.

Dizia a Organização Mundial de Saúde em 2018:

“Clarifiquemos, a cólera espalha-se quando as pessoas não têm outra possibilidade de escolha que comerem alimentos e beberem água que contenham fezes”.

 

Em 2018, mais de 2 biliões de pessoas continuam a usar  água contaminada com produtos fecais; 2,4 biliões não têm serviços sanitários. Como nota The Lancet:

 

“Disseminada pela rota feco-oral, a doença afeta os pobres e os mais vulneráveis.”

 

Ou seja, a cólera só é assassina quando encontra as condições propícias.

 

 

O modo como temos vindo a explorar a Terra, ao acelerar a degradação ambiental e a extinção de espécies que o agravamento das alterações climáticas exponencia, começou a pôr o problema da sua insustentabilidade. A comunidade científica mostra-se cada vez mais preocupada, sucedendo-se os estudos sobre o impacto dos humanos na biosfera e possíveis estratégias de correção.

Um dos problemas que limita a capacidade de uma possível intervenção corretora radica no desconhecimento que temos sobre a biodiversidade (ainda hoje não sabemos quantas e quais espécies vivem na Terra; não sabemos quais as relações entre o funcionamento do ecossistema e a biodiversidade; e devido à própria inércia do planeta – mesmo que hoje deixássemos de usar combustíveis fósseis reduzindo as emissões de CO2, as alterações climáticas induzidas manter-se-iam ainda por décadas ou mesmo séculos).

 Outro dos problemas tem que ver com os sistemas económicos e sociais que se têm mostrado muito reticentes em aceitar os “novos” conhecimentos, e tudo têm feito para reduzir ou abandonar as práticas destrutivas que têm vindo a seguir.

 

Não é de admirar que face à deterioração da natureza tenha aparecido a tentativa de harmonizar o desenvolvimento humano com a conservação da natureza através da noção/conceito de “sustentabilidade” como forma de garantir “as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de futuras gerações garantirem as suas próprias necessidades”, a que posteriormente se acrescentou “a persecução simultânea da prosperidade económica, qualidade do ambiente e equidade social”.

Conceito que se espalhou tão rapidamente por todos os setores da sociedade a ponto de se considerar que o que é sustentável é bom e o que é insustentável é mau, pelo que hoje tudo é dito, anunciado, e tido como “sustentável”. Daí que hoje na prática, sob o ponto de vista ecológico, talvez o melhor seja nada fazer, parar de estragar a natureza e preservar o seu estado atual.

 

Mas, o que é o “estado natural”?

Para aqueles que advogam o regresso a um estado puro da natureza, devemos lembrar que tal estado não existe, porquanto a natureza esteve sempre em mutação: após biliões de anos de evolução biológica e alterações ecológicas, com e sem intervenção humana, é impossível determinar qual seria o estado natural do ambiente.

Para os que advogam o desenvolvimento sustentável das sociedades humanas, é bom lembrar que a sustentabilidade não passa de um paliativo. É que a sustentabilidade só será possível de alcançar após uma reorientação drástica da sociedade e de um decrescimento económico, o que acarretará mudanças profundas, nas sociedades e nos indivíduos, que parecem difíceis de alcançar e até de sequer serem seu desejo.

 

Como “correção”, o que se tem feito até agora, tem sido atribuir valor monetário à biodiversidade e aos serviços do ecossistema, utilizando as regras do mercado para as gerir (o tal custo/benefício).  O problema é que não é por se submeterem os recursos naturais a análises económicas que se conseguem garantir práticas sustentáveis.

Em primeiro lugar porque a riqueza é finita e limitada pela capacidade de suporte da Terra: se certas componentes planetárias, como o clima, a acidez dos oceanos, a água doce e a biodiversidade, se alterarem para além de certos limites, poder-se-ão desencadear consequências catastróficas a uma escala global.

Depois, porque certas componentes da riqueza dependem umas das outras: a construção de uma autoestrada através de uma floresta pode aumentar a riqueza, mas tem o preço da degradação natural, exaustão de recursos, perca de biodiversidade e aumento de poluição.

Se este tipo de modelo de crescimento continuar, os custos da riqueza serão muito altos: o colapso dos sistemas ecológicos e económicos. Mesmo nas melhores práticas do modelo económico dominante, ao incorporar o capital natural nas análises de custo-benefício, a natureza continua a perder: o crescimento humano ilimitado e o desenvolvimento sustentável são incompatíveis.

 

Pelo que as comparações de pandemias com guerras impostas que vêm do nada (ou da China), a sua prevenção ou erradicação sem alteração das condições económicas e sociais, a introdução de conceitos como o da sustentabilidade como panaceia, não passam de manobras para convencer os crédulos.

 

 

Entretanto:

 

 Até ao aparecimento da vida há cerca de 3,8 biliões de anos, a Terra existiu sem humanos. O Homo sapiens só apareceu há cerca de 200.000 anos, mas só apenas há cerca de 10.000 anos é que começou a alterar o meio ambiente numa escala considerável.

Ou seja, antes desses 10.000 anos, os ganhos e as perdas de biodiversidade eram o resultado de uma evolução natural, em que as extinções não eram determinadas pelas necessidades de uma espécie.

 

Por outro lado, com base em dados paleontológicos e geológicos, o paleontologista americano Peter Ward vai concluir que a evolução não parece ser um processo linear, propondo em 2009 aquilo a que chamou de hipótese Medeia (1), segundo a qual:

 

A evolução da vida despoletou uma série de desastres que são inimigos da vida e continuarão a sê-lo no futuro”.

 

 Ou seja, para Ward, a vida pode tornar-se autodestrutiva, tendo sido ela a causa de quase todas as grandes extinções que ocorreram.

Com exceção da grande extinção dos dinossáurios ocorrida há 65 milhões de anos, provavelmente devida ao impacto de um meteorito, todas as outras resultaram de fenómenos biológicos: a proliferação de micróbios produtores de metano que no início envenenaram a biosfera e desencadearam uma diminuição significativa da temperatura; a oxigenação da atmosfera, causada pela evolução de organismos fotossintéticos; a glaciação global do planeta devida à diminuição atmosférica dos gases de estufa; e a eutrofização (excessiva riqueza de nutrientes) das águas costeiras.

Segundo Ward, a sexta extinção em massa está agora a desenrolar-se, devido à perca de biodiversidade causada pelas atividades humanas. Desta vez, seremos nós, seres de vida superiores, os executores de Medeia.

Se ele estiver certo, pouco poderemos fazer para a evitar. Podemos atrasá-la tendo em vista as algumas poucas gerações que se vão seguir, preservando algumas espécies que nos serão necessárias para a subsistência ou prazer. Não mais do que isso.

 

Mas, não é caso para desesperarmos, porquanto os dados mostram que após cada extinção em massa  tem-se seguido sempre um período em que se verifica uma explosão na diversificação (“depois da tempestade segue-se a bonança”, ou como muito argutamente notou Trump, “tudo vai piorar antes de melhorar”). A Terra voltará a regenerar-se conforme a hipótese de Gaia (“a Terra é um ser vivo do qual nós somos o sistema nervoso”) exposta pelo químico e médico inglês, James Lovelock (2).

 Para os mais sonhadores, a evolução far-se-á, portanto, como resultado caprichoso do jogo entre a deusa da Terra (Gaia) e a maviosa assassina Medeia (3).

 

Acontece que em qualquer dos casos, a humanidade tal como a conhecemos, mais explosão definitiva ou mais explosão regenerativa, terá desaparecido. E vamos ficar sem saber se o aparecimento da vida no universo foi um acontecimento improvável ou se foi um acontecimento inevitável.

Ou seja, terá a vida aparecido por acaso, ou será consequência de uma inescapável e previsível lei natural? Será a vida biológica um fogacho ou uma regularidade? No primeiro caso poderemos tirar a conclusão que estamos sozinhos no universo qual anomalia estatística. No segundo caso, então o fenómeno poderá ser comum no universo, pelo que também poderá vir a ocorrer noutros planetas desde que se verifiquem certas condições.

 

Nada que impeça retirar a máscara para comer um pastel de nata personalizado e pensar que talvez não exista mais ninguém no mundo para além do pasteleiro ou da impressora 3D com forno automático. É assim o ser humano bem alimentado. E o que não é, também. Não come é o pastel de nata. Sustentabilidade.

 

 

 

 

 

 

(1) Peter Ward, The Medea Hypothesis, Is Life on Earth Ultimately Self-Destructive? (https://dl.uswr.ac.ir/bitstream/Hannan/130313/1/THE%20MEDEA%20HYPOTHESIS.pdf).

(2) Sobre a tese de Gaia, ver (https://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3%B3tese_de_Gaia), ou James Lovelock no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=QqwZJDEZ9Ng).

 (3) Sobre Medeia, ver blog de 13 de maio de 2020 “A bondade do homem a maldade da mulher, https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/267-a-bondade-do-homem-a-maldade-da-71118.

 

 

 

 

(277) Pela internet morre o peixe

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

A internet nunca esquece, T. Yasseri.

 

Durante anos, avisei sobre os perigos de pandemias. O ano passado escrevi sobre o perigo possível do coronavírus e sobre a necessidade urgente de planeamento, Dominic Cummings, Conselheiro Chefe do Primeiro Ministro do UK.

 

Há cerca de 330 versões do seu blog no Arquivo […] sendo duas de 11 e 15 de abril de 2020. Se as compararmos com a original, podemos facilmente verificar que foram adicionadas à versão original de 2019, T. Yasseri.

 

Propositadamente Cummings acrescentara afirmações suas de 2020 a um seu blog de 2019, para que nele figurassem as suas premonições sobre a pandemia. Adulterava um documento para seu próprio benefício.

 

Atuou responsavelmente, legalmente e com integridade, Boris Johnson.

 

 

 

 

 

O muito conceituado e promissor político inglês Dominic Cummings, atual Conselheiro Chefe do Primeiro Ministro britânico, o estratega político que coordenou a campanha do Brexit, foi apanhado pela polícia a conduzir fora de Londres para a quinta dos pais, em Durham, durante o confinamento obrigatório devido ao Covid-19. Alertada a comunicação social, a oposição no Parlamento é rápida a pedir a sua resignação “se as alegações se vierem a provar verdadeiras”.

Boris Johnson vem dizer que Cummings “atuou responsavelmente, legalmente e com integridade”. A Polícia também não considera que Cummings tivesse cometido qualquer ofensa maior, porquanto as normas de distanciamento estavam a ser cumpridas e quando muito poderia teria sido aconselhado a regressar a casa, e só se o não fizesse é que a polícia atuaria, o que não foi o caso.

Toda esta agitação, vai obrigar Cummings a dar em 25 de maio uma conferência de imprensa nos jardins da residência oficial do Primeiro Ministro (10, Downing Street), para apresentar a sua versão dos factos.

Não fosse Taha Yasseri, Investigador Sénior de Computação em Ciência Social, membro da Alan Turing, Universidade de Oxford, e tudo acabaria ultrapassado e esquecido, face às explicações apresentadas. Yasseri, vai chamar a atenção para uma das frases ditas por Cummings (https://theconversation.com/dominic-cummings-how-the-internet-knows-when-youve-updated-your-blog-139517):

 

Durante anos, avisei sobre os perigos de pandemias. O ano passado escrevi sobre o perigo possível do coronavírus e sobre a necessidade urgente de planeamento.

 

Ao dizer isto, Cummings pretendia chamar a atenção para o facto da sua grande importância como conselheiro, alertando com tempo para a defesa do interesse público.

 

Como o que se segue é demasiado técnico, e para não cometer erros, passo a citar grande parte do artigo de Yasseri.

Yasseri, começa por recorrer à Wayback Machine (1), que pertencendo ao Arquivo da Internet explora mais de 451 biliões de páginas da net (web pages) (2) guardadas ao longo do tempo, e onde verificou que, azar dos azares, nas páginas do blog de Cummings só há uma menção a coronavírus num parágrafo colocado entre 11 de abril e 15 de abril de 2020, parágrafo esse que foi adicionado a um seu blog emitido a 4 de março de 2019.

Isto significava que Cummings acrescentara propositadamente afirmações suas de 2020 a um seu blog de 2019, para que nele figurassem as suas premonições sobre a pandemia. Adulterava um documento para seu próprio benefício.

 

Como é que se sabe que essas linhas foram acrescentadas depois? E em que data?

Yasseri explica:

 

“Nos últimos anos de 1980, Tim Berners-Lee inventou a World Wide Web (WWW), frustrado pela dificuldade que sentia em encontrar diferentes documentos em diferentes computadores. A sua proposta original foi a de um protocolo que ligasse documentos independentemente do computador em que estivesse armazenado e que permitisse aos leitores navegarem entre esses documentos “hipertexto”. A primeira fase do desenvolvimento da rede (web) permitiria “apenas ler”.

Contudo, esse primeiro leitor (browser) da rede era já um editor.  Considerando a natureza digital dos documentos da rede, seria estúpido trata-los como objetos “estáticos, como se fossem impressos em papel.

A rede nasceu como um conceito intrinsecamente dinâmico. A rede de documentos pode crescer e alterar-se, assim como os documentos.

Mas isto põe dois problemas. O primeiro é que os documentos necessitam de serem armazenados em algum lado e por várias razões (incluindo a escassez de armazenamento nos anos 90) alguns documentos podem ser apagados. Ironicamente, a verdadeira primeira página da rede parece ter-se perdido, ou então encontra-se algures num local desconhecido.

O segundo é a necessidade de se poder aceder a arquivos das versões prévias das páginas depois de elas terem sido alteradas – até por razões legais.

 

Para resolver estes dois problemas, começou-se a pensar na ideia de arquivar regularmente os conteúdos da rede. Em 1996, aparece “The Internet Archive”, uma biblioteca digital americana, que vasculhava a rede e fazia cópias das páginas […]

O elemento essencial do arquivo é o vasculhador (web crawler), uma parte do programa que navega via hyperlinks visitando páginas da rede e copiando o seu conteúdo. Este Arquivo contém centenas de biliões da maior parte das páginas e disponibiliza-as ao público num seu serviço, a Wayback Machine (máquina que olha para o passado).

[…] O vasculhador do Arquivo tenta visitar as páginas “mais importantes” e “mais dinâmicas” com mais frequência. Por exemplo, a Google.com, entre 11 de novembro de 1998 e 27 de maio de 2020, foi arquivada mais de 7 milhões de vezes, ou seja, uma média de 700 vezes ao dia.

 

[…] É por este Arquivo que se pode verificar que Cummings tem o seu blog desde 2013, e que a primeira edição data de março de 2014 – muito embora alguém tenha o nome do domínio desde 2004.

Há cerca de 330 versões do seu blog no Arquivo […] sendo duas de 11 e 15 de abril de 2020. Se as compararmos com a original  (https://web.archive.org/web/diff/20200411090759/20200415092918/https://dominiccummings.com) podemos facilmente verificar que foram adicionadas à versão original de 2019.

Se o blog de Cummings fosse mais frequentemente visitado pelo vasculhador do Arquivo, poderíamos determinar com maior precisão a hora exata da alteração. Em qualquer caso, sabemos que foi feita em abril de 2020.

[…] Arquivar, é algo que estou certo que Cummings pensará da próxima vez. Lembre-se, a Internet nunca se esquece.”

 

Há um velho ditado popular que diz que “é mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo”. Infelizmente essa sabedoria popular não nos diz o que fazer com os mentirosos, aliás, nem com os coxos. Omissão que se compreende em virtude da origem destas sabedorias populares radicar da imersão na humanidade, pelo que não seria de esperar que a humanidade se condenasse a ela própria. O clássico caso de que “a culpa é de todos, logo a culpa não é de ninguém”.

Acontece que o mentir, o saber mentir, é uma disposição (pré?) cada vez mais valorizada, sem a qual o sistema colapsaria. Dos vendedores de banha de cobra ao saboroso dito brasileiro “Me engana que eu gosto”, o equilíbrio do clima de paz socialmente suportável só se torna possível com esta identificação prazenteira. Mesmo sabendo que vamos ser enganados, compramos.

Não é de admirar que os maiores conglomerados privados e públicos (aparelhos dos estados), procurem afanosamente os melhores de entre estes vendedores. Para nosso bem, evidentemente. Ou, como diziam: “A Bem da Nação.”

 

 

 

 

 

(276) A ténue linha vermelha: matar ou deixar morrer

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Se pudesse por um mero desejo matar um ser humano na China, e herdasse depois a sua fortuna na Europa […], Chateaubriand.

 

Nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão! Eça de Queiroz.

 

Matar, meu filho, é quase sempre equilibrar as necessidades universais […] O assassino é um filantropo! Eça de Queiroz.

 

Você pensa que realmente conhecia o seu marido? R. Matheson.

 

Não é de admirar que ao Covid 19 o chamem de “vírus chinês”, nem que à gripe que nada teve que ver com Espanha a chamem de “gripe espanhola” (poderia corretamente ser inglesa, alemã, francesa, ou americana do Kansas), nem que à fome, embora mais apropriadamente, a chamem de “negra”.

 

 

 

Tendo-se exilado a partir de 1790 em Inglaterra, François-René Chateaubriand, perante os ataques a que a religião cristã estava a ser sujeita pela Revolução Francesa, vai escrever Beautés de la Religion Chrétienne (publicado em 1802 em França), tentando provar que o cristianismo não era difícil de aceitar, porquanto,  mais do que pela razão ou pela lógica, nós éramos antes de tudo governados pela consciência:

 

“Consciência! É possível que não passe de um fantasma da imaginação, ou do medo da punição dos homens? Ausculto o meu próprio coração, e pergunto-me: ‘Se pudesse por um mero desejo matar um ser humano na China, e herdasse depois a sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que tal facto nunca viria a ser descoberto, será que poderia sequer consentir em ter tal desejo?’ […] apesar de todos os meus subterfúgios inúteis, ouço uma voz no mais íntimo da minha alma, a protestar tão vibrantemente contra a mera ideia de tal suposição, que não posso nem por um momento duvidar da realidade da consciência.”

 

Por mais argumentos que tentasse para se convencer da validade da proposta (o chinês não era boa pessoa, já estava velho, já estava a morrer, a filantropia que poderia vir a fazer com a fortuna herdada), o que sempre lhe aparecia, à frente de todos, era  a imoralidade da escolha.

Esta expressão de ambiguidade do seu pensamento ficou conhecida como o “paradoxo do Mandarim de Chateaubriand”.

 

 

 

Em 1880, é publicada em Lisboa, O Mandarim, uma novela escrita em Bristol por Eça de Queiroz.

O narrador é Teodoro, funcionário público que mora em Lisboa, na casa de hóspedes da Dona Augusta. Magro e corcovado – hábito seu, pelo muito que se vergara perante os mestres da Universidade e os diretores da repartição - levava uma vida monótona e medíocre, suspirando por aventuras amorosas com viscondessas belas, um bom jantar num bom hotel para o qual não tinha dinheiro.

Um dia descobre, na Feira da Ladra, um livro que continha a lenda do Mandarim, segundo a qual um simples toque de campainha, a uma certa hora, mataria o Mandarim, tornando-o herdeiro dos seus milhões. O Diabo aconselha-o a tocar a campainha. “Toque a campainha, seja um forte”!

 

Assim o faz. Enriquece instantaneamente, iniciando uma vida de luxo e luxúria. Começa, no entanto, a desenvolver um sentimento de culpa pelo Mandarim que assassinara.

Resolve ir à China, para compensar a família do Mandarim. E tudo lhe corre mal. Acaba por regressar a Lisboa, sempre perseguido por visões do Mandarim. No fim, acaba por deixar a sua fortuna ao Diabo.

 

 

Para meu prazer e o de quem me acompanhar, transcrevo o início do escrito, os argumentos utilizados para convencer Teodoro a tocar a campainha, e o final:

 

“Eu chamo-me Teodoro – e fui amanuense do Ministério do Reino.

Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceição nº 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, a esplêndida D. Augusta, viúva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do bairro Central, esguio e amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa.

A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina à carteira da minha repartição, ia lançando, numa formosa letra cursiva, sobre o papel «Tojal» do Estado, estas frases fáceis: «Il.mo e Ex.mo Sr. – Tenho a honra de comunicar a V. Ex.ª … Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.ª e Ex.mo Sr.…»

Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no Verão, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido, num lençol como um ídolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fricção mole das carinhosas mãos da D. Augusta; e ela, arrebitando o dedo mínimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos […]

 

Passemos  aos argumentos utilizados pelo Diabo para o convencer:

 

Aqui está o seu caso, estimável Teodoro. Vinte mil réis mensais são uma vergonha social! Por outro lado, há sobre este globo coisas prodigiosas: há vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romannée-Conti de 58 e o Chambertin de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil réis; e quem bebe o primeiro cálice, não hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai … Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de tão suaves molas, de tão mimosos estofos, que é preferível percorrer nelas o Campo Grande, a viajar, como os antigos deuses, pelos céus, sobre os fofos coxins das nuvens … Não farei à sua instrução a ofensa de o informar que se mobilam hoje casas, de um estilo e de um conforto, que são elas que realizam superiormente esse regalo fictício, chamado outrora a «bem-aventurança». Não lhe falarei, Teodoro, de outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Teatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Café Anglais … Só chamarei a sua atenção para este facto: existirem seres que se chamam Mulheres – diferentes daqueles que conhece, e que se denominam Fêmeas. Estes seres, Teodoro, no meu tempo, a páginas três da bíblia, apenas usavam exteriormente uma folha de vinha. Hoje, Teodoro, é toda uma sinfonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, baptistes, cetins, flores, jóias, caxemiras, gazes e veludos … Compreende a satisfação inenarrável que haverá , para os cinco dedos de um cristão, em percorrer, palpar estas maravilhas macias; - mas também percebe que não é com o troco de uma placa honesta e cinco tostões que se pagam as contas destes querubins … Mas elas possuem melhor, Teodoro: são os cabelos cor de ouro ou cor da treva, tendo assim nas suas tranças a aparência emblemática das duas grandes tentações humanas – a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda têm mais: são os braços cor de mármore, de uma frescura de lírio orvalhado; são os seios, sobre os quais o grande Praxíteles modelou a sua Taça, que é a linha mais pura e mais ideal da Antiguidade … Os seios, outrora (na ideia desse ingénuo Ancião que os formou, que fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados à nutrição augusta da humanidade; sossegue porém, Teodoro, hoje nenhuma mamã nacional os expõe a essa função deterioradora e severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gás das soirées, - e para outros usos secretos. As conveniências impedem-me de prosseguir nesta exposição radiosa das belezas que constituem o fatal feminino … De resto, as suas pupilas já rebrilham…. Ora todas estas coisas, Teodoro, estão para além, infinitamente para além dos seus vinte mil réis por mês […]

[…] Que me diz de cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, é uma bagatela… Mas enfim, constituem um começo, são uma ligeira habitação para conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrépito e está gotoso: com homem, como funcionário do Celeste Império, é mais inútil em Pequim e na humanidade, que um seixo na boca de um cão esfomeado. Mas a transformação da Substância existe: garanto-lha eu, que sei o segredo das coisas… Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem apodrecido, e restitui-o além ao conjunto das formas como vegetal viçoso. Bem pode ser que ele, inútil como mandarim no Império do Meio, vá ser útil noutra terra como rosa perfumada ou saboroso repolho. Matar, meu filho, é quase sempre equilibrar as necessidades universais. É eliminar aqui a excrecência para ir além suprir a falta. Penetre-se destas sólidas filosofias. Uma pobre costureira de Londres anseia por ver florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma flor consolaria aquela deserdada; mas na disposição dos seres, infelizmente, nesse momento, a Substância que lá devia ser rosa é aqui na Baixa homem de Estado… Vem então o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipóias atrás; a matéria começa a desorganizar-se, mistura-se à vasta evolução dos átomos – e o supérfluo homem de governo vai alegrar, sob a forma de amor perfeito, a água-furtada da loura costureira. O assassino é um filantropo! Deixe-me resumir, Teodoro: a morte desse velho Mandarim idiota trouxe-lhe à algibeira alguns milhares de contos. Pode deste este momento dar pontapés nos poderes públicos, medite na intensidade deste gozo! É desde logo citado nos jornais: reveja-se nesse máximo da glória humana! E agora note: é só agarrar a campainha, a fazer ti-li-tim. Eu não sou um bárbaro! Compreendo a repugnância de um gentleman em assassinar um contemporâneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e é repulsivo o agonizar de um corpo humano. Mas aqui, nenhum desses espectáculos torpes… É como quem chama um criado… E são cento e cinco ou cento e seis mil contos […]

[…] Eu sei o que deve a si mesmo um cristão. Se este personagem me tivesse levado ao cume de uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia, e aí, mostrando-me cidades, raças e impérios adormecidos, sombriamente me dissesse: «Mata o mandarim, e tudo o que vês em vale e colina será teu», eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo ilustre, e erguendo o dedo às profundidades consteladas: «O meu reino não é deste mundo!» Eu conheço os meus autores. Mas eram cento e tantos mil contos, oferecidos à luz de uma vela de estearina, na Travessa da Conceição, por um sujeito de chapéu alto, apoiado a um guarda-chuva…

Então não hesitei. E de mão firme, repeniquei a campainha.”

 

E o final:

 

“[…] Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio, pertence-lhe, ele que os reclame e que os reparta …E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: «Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos. Nunca mates o Mandarim!»

E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!”

 

 

 

Em 1970, a revista Playboy publica um conto de Richard Matheson (1926-2013), com o título de “Button, Button” (Botão, Botão), em que um casal lutando com dificuldades económicas, Arthur e Norma, são visitados por um homem misterioso, Mr. Steward, que lhes começa por perguntar sobre a encomenda que tinham acabado de receber, e que continha o que ele chamava de uma “unidade de botão”. Explica-lhes que quando eles carregassem no botão, duas coisas aconteceriam. “Alguém que vocês não conhecem, morrerá”. Por outro lado, ao fazerem isso receberiam 50.000 dólares, dinheiro mais que suficiente para se verem livres dos seus problemas financeiros.

Ao princípio ficaram incrédulos e espantados. Quem quereria matar um estranho a troco de dinheiro? Mas, quanto mais pensavam sobre o assunto, mais o racionalizavam:

“As pessoas morrem todos os dias, não é?”

“E se fosse um velho chinês camponês?”, perguntava Norma. “Ou alguém com cancro?”

“E se for um bebé recém-nascido?”, respondia Arthur.

“O Mr. Steward faz parecer tudo tão simples”. “Mas não é assim tão simples, pois não?”

 

 

Em 1974, a CBS produziu na sua rubrica dedicada ao Teatro de Mistério na Radio, um drama a que chamou “The Chinaman Button” (O Botão do Chinês), numa adaptação livre do conto de Matheson. Embora ligeiramente diferente do original, pois aqui tratava-se de um homem de negócios moderadamente corrupto que ao perder um contrato depois de um cliente (ou um colega, há várias versões) ter dito que ele cobrava mais do que o devido, resolve vingar-se tentando corromper esse cliente/colega honesto levando-o a premir o Botão Chinês.

O sucesso radiofónico foi tão grande que ainda hoje esse processo psicológico se chama de Botão Chinês. Não é de admirar que ao Covid 19 lhe chamem de “vírus chinês”, nem à gripe que nada teve que ver com Espanha de “gripe espanhola” (poderia corretamente ser inglesa, alemã, francesa, ou americana do Kansas), nem, embora mais apropriadamente, à fome de “negra”.

 

Em 1986, como fazendo parte da primeira série do programa de televisão The Twilight Zone, é exibido o episódio 20b, “Botão, Botão”, baseado no conto de Matheson. Pequenas foram as diferenças introduzidas, como o prémio em dinheiro que passou para 200.000 dólares (correção para a inflação) e o final (não tão interessante como o do conto original, no qual a mulher acabava por premir o botão e matar o marido que se encontrava num comboio em viagem. Ao indagar o estranho sobre ter sido o marido a acabar morto, este responde-lhe: “Você pensa que realmente conhecia o seu marido?”)

 

Uma breve nota para dizer que Richard Matheson não era um escritor menor. Vários dos seus temas deram origem a filmes, como o Eu sou a lenda (I Am Legend), O Último homem sobre a Terra (The Last Man on Earth), os 16 episódios da série The Twilight Zone, adaptando ainda para o cinema obras como O corvo (The Raven), A casa de Usher, O duelo (The Duel) de Spielberg, O homem que encolhia, e variadíssimos muitos outros filmes e séries de televisão.

 

Em 2009, é realizado o filme A Caixa (The Box), com Cameron Diaz e James Mardsen, tendo mais uma vez por base o conto de Mathesonn.

 

 

Em 2020, a noção de “botão chinês” aparece-nos já bastante mais clara. Deixa de ser um botão e aparece em seu lugar, o “vírus chinês”, o Covid-19, não se mantendo, aparentemente, a ideia de que premindo o vírus (falando, espirrando, tossindo, respirando, existindo) alguém do outro lado do mundo morreria, porque agora poderá ser alguém próximo de nós, estranho ou não.

E digo aparentemente, porquanto agora, temos mesmo de escolher entre confinar verdadeiramente e enfrentar mortes por paralisação do sistema económico com o qual estamos confortáveis, ou desconfinar e assumir as mortes por pandemia de pessoas que conhecemos, de pessoas das nossas comunidades que não conhecemos e de pessoas que não conhecemos mesmo, mas que fazem parte da grande comunidade a que todos pertencemos.

 

Em qualquer dos casos, de uma forma ou de outra, acabaremos por premir o botão. Transformámo-nos, ou transformaram-nos, em assassinos que ou matamos ou deixamos morrer. A isso nos conduzimos ou a isso fomos conduzidos.

E ainda que sejamos todos estranhos uns para os outros e agora sermos nós os chineses, não dos contos, mas da realidade atual, talvez seja importante lembrar que as nossas vidas estão sempre nas mãos de outros. O problema é em que mãos nos deixámos colocar.

 

(275) O futuro não precisa de nós

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Estamos a ser rapidamente conduzidos para um novo século sem quaisquer planos, sem controle e sem travões, Bill Joy.

 

Se alguma coisa puder vir a correr mal, tal acabará por acontecer, Lei de Murphy (Finagle’s law).

 

A nossa onda é confiar na ciência e abraçar o progresso, sejam quais forem as suas consequências […] A tecnologia pode servir para que a polícia te localize e te ponha o joelho no pescoço. Mas também serve para convocar e organizar manifestações contra a polícia, Aviador Dro.

 

 Estes seres humanos “feitos”, poderão serem felizes numa tal sociedade, mas, certamente, não serão livres. Eles serão reduzidos ao estatuto de animais domésticos, Theodore Kaczynski.

 

 

 

 

Bill Joy (1954- ), cientista em computadores, cofundador e engenheiro chefe da Sun Microsystems, preocupado com a grande influência que o rápido desenvolvimento tecnológico estava a ter no futuro da humanidade, bem como com possíveis consequências não desejadas do uso da tecnologia, publicou em abril de 2000 na revista Wired, um importante artigo intitulado “Porque é que o Futuro Não Necessita de Nós” (Why The Future Doesn’t Need Us).

Nas conversas/discussões que teve com vários especialistas para se conseguir inteirar do que se estava a passar, começava sempre por lhes pedir para lerem os parágrafos seguintes constantes do livro do visionário  Ray Kurzweil, The Age of Spiritual Machines, uma utopia/distopia na qual os humanos conseguiam a imortalidade ao transformarem-se em robôs:

 

Comecemos por postular que os cientistas de computadores conseguem desenvolver máquinas inteligentes que fazem tudo melhor que os humanos. Nesse caso, presumivelmente, todo o trabalho passaria a ser feito por enormes sistemas de máquinas altamente organizados, não sendo, portanto, necessário qualquer trabalho humano.

 A partir daqui uma de duas coisas poderá ocorrer: ou às máquinas lhes é permitido tomarem todas as decisões sem supervisão humana, ou então acautela-se para os humanos a possibilidade de terem controle sobre as máquinas.

 

No caso de às máquinas lhes ser permitido tomarem as suas próprias decisões, então nós deixaremos de poder conjeturar sobre os resultados que irão ser obtidos, porque é impossível adivinhar como é que as máquinas se vão comportar. Neste caso, o destino da raça humana ficará à mercê das máquinas.

Poder-se-á argumentar que a raça humana não será tão louca ao ponto de entregar todo o poder às máquinas. Não vamos sugerir que a raça humana entregue voluntariamente o poder às máquinas, nem que as máquinas queiram por si só tomarem o poder. O que sugerimos é que a raça humana se possa deixar ficar indolentemente numa posição de dependência das máquinas em que acabe por aceitar todas as decisões das máquinas.

 À medida que a sociedade e os problemas que enfrenta se tornarem cada vez mais complexos, e que as máquinas se tornarem cada vez mais inteligentes, as pessoas deixarão cada vez mais as máquinas tomarem decisões por elas, até porque as decisões tomadas pelas máquinas proporcionam melhores resultados que as tomadas pelos homens.

Eventualmente, pode-se atingir um patamar em que as decisões necessárias para manter o sistema a funcionar sejam tão complexas que os seres humanos sejam incapazes de racionalmente as tomar. A partir dessa fase, as máquinas estarão efetivamente no controle. As pessoas não serão sequer capazes de desligar as máquinas, porque desligá-las significará suicidarem-se.

 

A outra opção é a possibilidade de os humanos terem efetivamente controle sobre as máquinas que possuem. É o caso do controle que o homem médio poderá ter sobre máquinas privadas que lhe pertencem, como os seus carros, computadores. Só que o controle sobre os grandes sistemas de máquinas ficará nas mãos de uma pequena elite, tal como se passa hoje, mas com duas diferenças.

 Devido a uma melhoria das técnicas, a elite tem um maior controle sobre as massas, e como o trabalho humano já não se torna necessário, as massas serão supérfluas, um fardo inútil para o sistema. Se as elites forem humanas, poderão servir-se da propaganda ou de outras técnicas psicológicas ou biológicas para reduzirem a natalidade das massas até que elas se extingam, deixando o mundo para a elite. Ou, se a elite for formada por liberais de bom coração, podem decidir desempenhar o papel do bom pastor para o resto da raça humana. Assegurarão a todos as suas necessidades físicas, que todas as crianças sejam criadas em condições higiénicas psicologicamente, que todos tenham uma ocupação que os mantenha entretidos, e que todos, mesmo os que assim não estejam satisfeitos, sejam submetidos a “tratamentos” para curar os seus “problemas”.

 Evidentemente, a vida será tão sem sentido que as pessoas terão de ser biologicamente ou psicologicamente “feitas” por forma a remover-lhes a apetência pelo processo do poder ou de se lhes “sublimar” essa compulsão para o poder transformando-a numa ocupação inócua. Estes seres humanos “feitos”, poderão serem felizes numa tal sociedade, mas, certamente, não serão livres. Eles serão reduzidos ao estatuto de animais domésticos.”

 

 

Após terem lido estes parágrafos, Bill Joy explicava-lhes que o que tinham acabado de ler, apesar de constar do livro de Kurzweil, fazia parte do célebre Unabomber Manifesto, “Industrial Society and its Future” (1) de Theodore Kaczynski, o bombista assassino, em que ele desenvolvia racionalmente o problema das consequências não desejadas do uso da tecnologia.

 

São conhecidos exemplos clássicos de consequências não desejadas, como foram, e são, o uso excessivo de antibióticos que levaram ao aparecimento de bactérias resistentes, e a utilização de DDT contra os mosquitos que acabaram por tornar resistentes os parasitas da malária.

Na mesma direção, embora com outro argumento, aparece o cientista de robótica da Universidade Carnegie-Mellon, Hans Moravec, quando no seu livro, Robot: Mere Machine to Transcendent Mind, explica que as espécies biológicas quase nunca sobrevivem ao encontro com competidores superiores.

Apresenta o caso dos marsupiais do continente Sul americano que foram praticamente eliminados quando o istmo a ligar com o Norte apareceu, pondo-os em contacto com as espécies de placenta com sistemas metabólicos, reprodutivos e nervosos mais efetivos.

Daí que para Moravec, mesmo que queiramos vir a desenvolver uma “cooperação com as indústrias robóticas” decretando leis para que os robôs sejam “boas pessoas” (foi Isaac Asimov, que no seu livro de 1950, I, Robot, incluiu as chamadas “Três Leis da Robótica”: 1. Um robô não poderia fazer mal a um ser humano, ou deixar que um ser humano se aleijasse. 2. Um robô deveria obedecer às ordens dadas pelos seres humanos, exceto se essas ordens conflituassem com a Primeira Lei. 3. Um robô deveria proteger a sua própria existência, desde que essa proteção não entrasse em conflito com a Primeira e Segunda lei), os robôs acabarão, eventualmente, por nos suceder, estando os humanos condenados à extinção.

 

Bill Joy vem depois chamar-nos a atenção para o facto de não nos preocuparmos muito com os avanços tecnológicos nos campos da robótica, engenharia genética e nanotecnologia. Após os sustos com o desenvolvimento da energia atómica do século XX, foram-se sucedendo sempre a ritmo crescente os sucessos científicos, muitos deles com aplicações práticas positivas, pelo que nos fomos habituando ao seu aparecimento.

E, segundo Joy, devíamo-nos de preocupar, porque são muito mais perigosos os avanços do século XXI que os do século passado. As tecnologias por detrás das armas de destruição massiva – nuclear, biológica e química – eram muito poderosas e constituíam uma enorme ameaça, só que implicavam o acesso a matérias primas raras, num ambiente altamente secreto, desenvolvidas em enormes instalações mandadas construir pelos governos e operadas por militares.

Já as tecnologias do século XXI, não necessitam de enormes instalações nem de matérias primas raras, sendo quase exclusivamente desenvolvidas por corporações privadas para fins comerciais, o que implica a existência de pressões adicionais que possam vir a provocar toda a classe de acidentes e abusos. Além do mais, contrariamente às bombas que só rebentam uma vez e terminam o seu uso, estes novos produtos (robôs, organismos criados geneticamente, nanobots) podem-se auto-replicar.

 

A quando da construção e utilização das bombas atómicas, para além as muitas dúvidas científicas que se foram pondo (por exemplo, Edward Teller estava convencido que uma explosão nuclear poderia incendiar toda a atmosfera, e mesmo Oppenheimer estava tão preocupado com o resultado da experiência da primeira bomba, que preparou a possível evacuação de todo o sudoeste do Novo México), vários foram os dilemas morais  que se foram verificando, especialmente perante o horror das mortes em Hiroxima. 

Contudo, Oppenheimer manteve-se firme na defesa da atitude científica que levou à construção da bomba atómica, afirmando, três meses após os bombardeamentos, que:

 “Não é possível ser-se cientista a não ser que se acredite que o conhecimento do mundo, e o poder que ele confere, é algo que é um valor intrínseco da humanidade, e que ele é usado para ajudar a espalhar o conhecimento e que, portanto, deve estar pronto para arcar com as consequências.” 

Dois anos depois, em 1948, o mesmo Oppenheimer:

 

De uma forma chã sem qualquer vulgaridade, sem humor, ou sem que qualquer nova declaração possa extinguir, podemos dizer que os físicos conheceram o pecado, e isto deve ser um conhecimento que não podem perder.”

 

Esta falha do entendimento sobre as consequências das nossas invenções enquanto estamos obcecados pela descoberta e inovação parece ser uma falta comum aos cientistas e tecnologistas. A procura do conhecimento como caraterística definitória do ser humano (Por natureza, todo o homem deseja conhecer, Aristóteles), base da procura científica, sem pausa para se aperceber que o progresso para novas e mais poderosas tecnologias podem conter em si vida própria, com consequências imprevisíveis.

 

Da mesma forma que as explosões das primeiras bombas atómicas conduziram a uma corrida ao armamento nuclear que nos colocou, e continua a colocar, à beira da extinção, as novas tecnologias anunciadas para este século (a robótica, com os seus dois grandes sonhos: 1. A criação de máquinas inteligentes que farão todo o trabalho por nós, libertando-nos para uma vida de prazer, um novo Paraíso. 2. A substituição gradual de nós próprios por tecnologia robótica, podendo finalmente alcançar-se uma espécie de imortalidade fazendo o download da nossa consciência. A engenharia genética, com os seus sonhos: 1. Revolucionar a agricultura eliminando os pesticidas, criando novas espécies de bactérias, plantas, vírus e animais, substituir a reprodução pela clonagem. 2. Criar cura para muitas doenças, aumentando os anos e vida e a qualidade da vida. A nanotecnologia, com os seus sonhos: 1. A manipulação da matéria a nível atómico poderá criar um futuro de abundância, em que quase tudo pudesse ser feito a baixo custo, e qualquer doença ou problema físico poderiam ser resolvidos. 2. A criação de ”montadores” (assemblers) a nível molecular que possibilitassem energia solar a baixo custo, o aumento da capacidade do sistema de imunidade humano, a limpeza do ambiente, e a restauração de espécies extintas), podem colocar-nos cada vez mais próximos da criação de alimentos geneticamente modificados, da criação de Grandes Pragas universais e a criação (ou não) dos seus antídotos, da criação de aparatos seletivamente destrutivos que possam afetar apenas uma determinada área geográfica ou um certo grupo de pessoas, animais, plantas, bactérias ou vírus, que sejam geneticamente distintas, que por um simples acidente, erro ou intenção, poderão acabar com toda a biosfera.

 

Para Bill Joy, “estamos a ser rapidamente conduzidos para um novo século sem quaisquer planos, sem controle e sem travões.  Será que já nos encontramos tão afastados do caminho que já não conseguimos alterar o caminho? Não acredito, mas o facto é que não estamos a tentar o suficiente, e o ponto de não retorno aproxima-se rapidamente.”

 

Para finalizar, o bem-intencionado Joy, transcreve um excerto de um livro de Jacques Attali, Fraternités, que nos descreve como os nossos sonhos de utopia têm mudado ao longo do tempo:

 

No alvor das sociedades, os homens viam a sua passagem pela Terra apenas como um labirinto de dor, no fim do qual se encontrava uma porta que os conduzia, após a morte, à companhia dos deuses e à ‘Eternidade’. Com os Hebreus e depois os Gregos, alguns homens atreveram-se a libertarem-se das exigências teológicas e sonharam uma ‘Cidade’ ideal onde florescesse a ‘Liberdade’. Outros, notando a evolução da sociedade do mercado, perceberam que a liberdade de alguns significava a alienação de outros, e pensaram em ‘Igualdade’.”

 

 

Vinte anos depois deste artigo/alerta de Bill Joy, o povo está sereno. Como lhe dissera então, para seu espanto, o seu amigo e cientista futurista Danny Hillis (cofundador da Thinking Machines Corporation, e da Long Now Foundation), as mudanças (homens misturarem-se com partes de robôs) virão gradualmente, e que nos iríamos habituar a elas.

E acrescentou:

Gosto tanto do meu corpo como qualquer pessoa, mas se eu pudesse vir a ter 200 anos com um corpo de silicone, não exitaria”.

 

Servando Carballar (autodenominado BiovacN), teclista e voz principal do grupo espanhol de música eletrónica, Aviador Dro (El aviador dro y sus obreros especializados), diz numa muito recente entrevista (https://retina.elpais.com/retina/2020/07/03/tendencias/1593765837_057706.html):

 

A nossa primeira intenção era formar um grupo de ação que recolhesse os nossos postulados de que a robótica e a cibernética iam contribuir para a melhoria da humanidade […]”

A nossa onda é confiar na ciência e abraçar o progresso, sejam quais forem as suas consequências […] A tecnologia pode servir para que a polícia te localize e te ponha o joelho no pescoço. Mas também serve para convocar e organizar manifestações contra a polícia”.

 

Outra das suas citações:

 

Os seres humanos irão desaparecer. Mais, é necessário eliminá-los para passarmos para um estado mecânico. Neste estado, não haverá liberdade individual, existe apenas a liberdade coletiva. Os problemas deixarão de existir porque cada homem-máquina será adequadamente programado e todos seremos felizes” ( https://en.wikipedia.org/wiki/Aviador_Dro).

 

Coitado do Bill Joy. Vá-se lá ser prior nesta freguesia. Por isso é que os priores agora são outros. Como observava José Mário Branco, no seu FMI, “Entretém-te, filho, entretém-te” (2).

 

 

 

 

 

Notas:

 

 

Sugestões:

 Para complementar os assuntos, sugiro

 

 

 

 

 

 

 

(274) As galinhas criadas livres e a liberdade de expressão

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Nada de se contrariar a liberdade das galinhas, forçando-as a ir para o exterior. Galinha forçada dá carne menos tenra e põe menos ovos.

 

Os meios de comunicação social de massa são os aviários do discurso, Caitlin Johnstone.

 

Como ser humano interessado em manter o emprego, passei a fazer comentários menos críticos, Krystal Ball.

 

O que eu estou a dizer é que se você acreditasse em alguma coisa diferente, não estaria sentado no sítio onde está, Chomsky.

 

 

 

 

Em quase todos os países, os seus ministérios da agricultura emitem legislação mais ou menos idêntica, que visa regulamentar a utilização e tratamento dos animais. Nos EUA, o Serviço de Inspeção da Saúde de Animais e Plantas (APHIS) do Departamento da Agricultura dos Estados Unidos (USDA) (1), é o responsável pela regulamentação de atividades com vista a reduzir o risco de doença nos bandos de galinhas, bem como das normas que regulamentem a nomenclatura dos produtos.

Por exemplo, para que se possam comercializar galinhas com o rótulo de “criadas livres” (Free Range), os produtores:

 

 “devem providenciar uma breve descrição das condições em que as aves estejam instaladas para que possam ser aprovadas. A descrição escrita dessas condições será avaliada tendo em conta que as aves devem ter livre acesso contínuo ao espaço exterior durante 51% das suas vidas, i.e., durante o seu ciclo normal de crescimento. […]”

 

Na prática (2), o que acontece é que milhares de galinhas são amontoadas em andares por forma a caberem o maior número delas nos barracões dos aviários, onde uma pequena porta de comunicação para um pátio exterior é aberta na extremidade mais longínqua, difícil de encontrar para uma pessoa fará para uma galinha, pelo que a grande maioria delas nunca a consegue encontrar.

Legalmente, a USDA não impõe que as galinhas tenham de ser criadas no exterior, mas apenas que tenham “acesso ao exterior”. Também não regulamentam o que o “exterior” será, ou como será, pelo que na prática comercializam “galinhas criadas livres” que nem nunca encontraram a porta, nem nunca se aventuraram a ir para a porta, nem nunca se aventuraram a sair. Nada de se contrariar a liberdade das galinhas, forçando-as a ir para o exterior. Galinha forçada dá carne menos tenra e põe menos ovos.

 

 

A jornalista e analista política, Krystal Ball, contou no seu programa Rising (3), um caso passado consigo, para exemplificar como o império de propaganda dos grandes meios de comunicação social funciona de forma a excluir das principais plataformas os jornalistas que não sigam as suas linhas editoriais:

 

Em 2015, na MSNBC, fiz uma pequena peça na qual pedia para que Hillary Clinton não se candidatasse. Disse que as suas ligações elitistas não estavam em consonância com o partido e com o país, pelo que se ela concorresse acabaria por ser a nomeada e no fim acabaria por perder. Ninguém me censurou, pude dizê-lo, mas o pessoal da campanha de Clinton queixou-se à MSNBC, e ameaçou com retirar o acesso à estação para o restante da campanha. Foi-me dito que eu poderia continuar a dizer aquilo que quisesse, mas teria que previamente saber se a campanha de Clinton não se queixaria ao presidente da estação. Como ser humano interessado em manter o emprego, passei a fazer comentários menos críticos para a Clinton do que faria antes do acontecimento.”

 

 

Há uma muito interessante entrevista (vale a pena ver) de Andrew Marr a Noam Chomsky (4), em fevereiro de 1996 para o programa da BBC, “The Big Idea”, em que Chomsky contraria aquela falsa imagem que os jornalistas dos meios de comunicação mais importantes se atribuem de serem “profissionais independentes, de causas, adversários que se levantam contra o poder”, dizendo que tal será quase uma impossibilidade em qualquer meio de comunicação social importante e representativo.

Ao que Marr contrapôs:

 

 “Como é que sabe que eu estou a impor-me qualquer tipo de autocensura? Como é que sabe como os jornalistas são?”

 

Resposta de Chomsky:

 

 “Eu não estou a dizer que você se autocensura. Estou certo que você acredita em tudo aquilo que diz. O que eu estou a dizer é que se você acreditasse em alguma coisa diferente, não estaria sentado no sítio onde está.”

 

O que está subentendido na afirmação de Chomsky é que para os jornalistas dos chamados grandes meios de comunicação social, como o The New York Times, a CNN, a BBC, as portas estão abertas para que possam, se quiserem, expressar opiniões que difiram da narrativa oficial sobre como vai o mundo. O que acontece é que eles escolhem não o fazer, porque, tal e qual aquelas galinhas que nunca saem do barracão, são “desincentivados” a fazê-lo.

Daí, Caitlin Johnstone considerar os grandes meios de comunicação de massa como sendo os aviários do discurso, com idêntica porta ao fundo do barracão.

 

 

Em outubro de 1981, Louis Malle realizou o filme “My Dinner with Andre”, do qual transcrevo um diálogo (5) entre Wallace Shawn e Andre Gregory:

 

Penso que Nova Iorque é o novo modelo para um novo campo de concentração, em que o campo foi construído pelos próprios residentes, onde os residentes são também os guardas, e em que têm orgulho naquilo que conseguiram construir – construíram a sua própria prisão – existindo, portanto, num estado de esquizofrenia onde eles são simultaneamente guardas e prisioneiros.  Como resultado, eles – tendo sido lobotomizados –não têm mais a capacidade para deixarem a prisão que eles próprios fizeram ou mesmo de a verem como prisão.”

 

 

Por volta de 1956, Allen Ginsberg, escreveu um pequeno poema/fábula sobre uma rãzinha que vivia no fundo de um poço muito escuro e húmido, e que, juntamento com outras rãs, passava o dia inteiro a trabalhar procurando afanosamente insetos e larvas, carreando materiais de construção  do lodo, que teria de entregar ao conselho das rãs, que era quem distribuía as tarefas e quem administrava tudo o que se passava no poço muito escuro e húmido, e uma andorinha que descendo até ao fundo do poço a fitava, e que lhe disse:

Não tenhas medo. Eu sou uma andorinha”.

  “Porque é que passas a vida aqui no fundo deste poço tão escuro e húmido?

Ao que a rãzinha respondeu:

E vou para onde?

Apontando para cima, para a abertura do poço, a andorinha disse-lhe:

Porque é que não vais lá para fora, onde há muita luz, muito espaço para saltares, com muitos sítios para procurares comida e comeres o que quiseres, para poderes construíres a tua própria casa, enfim, para fazeres o que quiseres?


Mas eu não sei fazer mais nada, só sei fazer o que me mandam.  Sempre foi assim, e sempre será assim”.


A andorinha foi-se embora, mas passou a descer todos os dias ao fundo do poço escuro e húmido, tentando convencer a rãzinha a abandonar aquele local, encorajando-a a ver o céu azul e claro que aparecia qual claraboia sobre o fundo do poço.

Mas a rãzinha só punha problemas, desde o que iria fazer, como encontraria outras rãzinhas, se não acabaria sendo comida por outros, quem a protegeria, e acima de tudo, como é que iria até lá cima.


Finalmente a andorinha conseguiu convencer a rãzinha a abandonar o poço muito escuro e húmido. Combinaram o dia e a hora e como seria a fuga. Era suposto a andorinha parar por um momento no fundo do poço, o tempo suficiente para que a rãzinha saltasse para cima dela, saindo depois as duas a voarem em direção ao céu prometido.


Só que a rãzinha não conseguiu conter-se e contou o que se iria passar e como é que iria ser feito. Quando no dia seguinte a andorinha voltou, e conforme o combinado parou no fundo do poço escuro e húmido onde já se encontrava a rãzinha, foi apanhada com redes previamente mandadas montar pelo conselho das rãzinhas, foi aprisionada, amarrada a um poste e imediatamente morta pelos guardiões.


Na assembleia das rãzinhas seguinte, foi decidido pelo conselho das rãzinhas construir uma estátua da andorinha amarrada ao poste, passando a ser obrigatório, a partir daquela altura, em todas as reuniões dominicais, venerar e celebrar a andorinha como sinal de conforto enviado pelo Além, garantia que a sociedade das rãzinhas se encontrava no bom caminho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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