As principais formas do belo são a proporção e a simetria, Aristóteles.
Integritas ou perfeição…devido à proporção ou harmonia [consonatia]; e finalmente, luminosidade ou claridade [claritas], Tomás Aquino.
O prazer que retiramos da contemplação de um objeto deve ser desinteressado, não ligado a qualquer interesse útil, económico, moral e dos sentidos, segundo Kant.
Roubem um banco, mas não sejam apanhados, Ai Weiwei.
Há um provérbio grego, citado por Sócrates no Hípias Maior, que diz que “todo o belo é difícil”. De facto, como reconhecer que uma coisa é bela? Através de uma quantificação objetiva das suas qualidades, ou através do prazer subjetivo que dela extraímos?
Para Platão (Simpósio), esta reconciliação é tornada possível através de eros, recaindo a enfâse sobre a experiência e o prazer que se retira do belo no alinhamento do belo com eros.
Já Aristóteles (Metafísica, (1078 b,1), vai procurar definir mais objetivamente o belo, sustentando que as suas principais formas “são a proporção e a simetria”.
Esta diferença de abordagem, levando a uma distinção entre subjetividade e objetividade na interpretação do belo, ainda hoje continua viva.
Na filosofia medieval, prevaleceu o critério da objetividade, onde o belo era classificado como fazendo parte de um dos transcendentes, que tendo atributos como o Bom e o Verdadeiro, se unificavam na Perfeição Absoluta.
São Tomás de Aquino descrevia (Suma Teológica, I, 39, 8) as três condições do belo como sendo:
“Integritas ou perfeição…devido à proporção ou harmonia [consonatia]; e finalmente, luminosidade ou claridade [claritas] …”.
Estas eram as condições que permitiam “converter” o belo nos outros transcendentes: Integritas com o Único, consonatia com o Bom e a claritas com o Verdadeiro.
Leibniz, vai mais tarde combinar esta visão do belo como transcendente com a experiência do prazer, ao insinuar que é esta visão objetiva do belo, percebido de forma obscura, que está na base subjetiva do prazer.
Os sucessores de Leibniz vão cair na tentação de exagerarem, quer os aspetos objetivos quer os aspetos subjetivos do belo.
Kant, na sua Crítica da Faculdade do Juízo, vai seguir uma linha em que o juízo sobre o belo o afasta de qualquer dessas correntes. É assim que os juízos sobre o gosto passam a ser definidos de acordo com uma tabela de categorias, a saber:
. (qualidade), segundo a qual o belo “é o objeto de um prazer sem interesse” (§5), querendo com isto dizer que o prazer que retiramos da contemplação de um objeto deve ser desinteressado, não ligado a qualquer interesse útil, económico, moral e dos sentidos. Assim, se um quadro representar uma pintura de um fruto, se dissermos que ele é belo porque nos aguça o apetite para o saborearmos, então ele não é esteticamente belo; tem de nos dar satisfação sem referência a desejo. O sentimento estético não está, pois, interessado pela posse do objeto, mas somente pela sua contemplação.
. (quantidade), segundo o qual o belo “agrada universalmente sem conceito” (§9), querendo com isto dizer que, apesar do belo ser um sentimento subjetivo sem hipótese de demonstração objetiva, não tendo por isso um valor universal, pelo facto do livre jogo de faculdades que se encontram em mim como em todos os outros meus semelhantes (a imaginação e o entendimento), o sentimento do belo pode aspirar à universalidade.
. (relação), segundo o qual o belo é “forma da finalidade de um objeto…percecionada por ela própria, independente da finalidade que possa ter”, em que é belo o que dá a impressão de ter sido realizado segundo uma intenção, se bem que tal intenção não se possa provar. É o caso de uma flor: nós sentimos sem conceitos, que existe uma finalidade na flor, mas não sabemos qual é essa finalidade. O belo aparece-nos como uma espécie de fenómeno absoluto,sem outro fim que não seja o puro esplendor da sua própria manifestação, fim em si mesmo.
. (modalidade), segundo o qual o belo é “o objeto de um comprazimento necessário…independente do conceito” (§22), postulando assim o assentimento de qualquer um. Como os juízos estéticos não podem ser comunicados por conceitos ou por apelarem por uma regra lógica universal, a sua comunicabilidade só poderá ser feita pelo “senso comum”, única forma de poder levar qualquer um a aprovar também o objeto que eu declarei como sendo belo.
A natureza do belo é, pois, apresentada por Kant, quer em termos de negação da sensibilidade ou de conceito, quer em termos paradoxais como o de finalidade sem fim.
Ao separar o belo de qualquer conceito, quer racional quer sensível, vai limitá-lo: ao retirar o conceito de sensibilidade, então o objeto não poderá ser belo, mas apenas agradável; a existir um conceito, então o belo seria convertível em algo de racional.
É assim que para alguns críticos, Kant privilegia a beleza da natureza relativamente à beleza da arte, mesmo quando ele tenta recuperar a beleza da arte insistindo que ela aparece como sendo natural.
Devido às suas propriedades paradoxais, Kant chega a reclamar o belo como símbolo de moralidade (§59), como um suprassensível.
A influência desta teoria de Kant sobre o belo tem sido enorme, curiosamente porque contem sempre pelo menos um qualquer significado para qualquer um, desde a sua tentativa de servir de ponte entre a natureza e a liberdade, até à justificação para a arte abstrata (o belo livre, que vai libertar o artista do espartilho da simetria).
Daí que a teoria de Kant sobre o belo continue a servir como referência para qualquer reflexão sobre arte, e curiosamente, não apesar das suas inconsistências e reservas, mas exatamente por causa delas.
“[…] Os que me estavam a interrogar nunca acreditaram que aquilo que eu tinha feito pudesse ser chamado arte. Eles não conseguiam acreditar que tudo o que eu pudesse agarrar ou que pudesse deixar cair, ou uma ação na internet ou apontar com o meu dedo do meio para um monumento pudesse ser chamado arte. Eles achavam que eu era famoso por ser pago por forças ocidentais anti China. Não os censuro. Não me preocupo se o meu trabalho é considerado como arte ou não.
Eu sou um artista porque não tenho outro trabalho; não que eu goste muito do trabalho. É o único trabalho onde não se tem de trabalhar muito e ninguém o questiona porque, em qualquer dos casos, as pessoas também não percebem o que é arte. Gosto da liberdade de ser alguém que faz coisas que não são práticas.
Ao mesmo tempo, no Ocidente, inclusive no mundo da arte, também pensam que a minha obra não é “séria”. Julgo que talvez seja por eu não alinhar com o jogo da mesma forma que eles fazem, ou por a minha voz ao cantar ser diferente das vozes deles. Esta é uma das partes que eu mais gosto. Se eu me tiver de chamar de artista, então que o seja por ser diferente dos outros. […]
Que conselho dá aos artistas com dificuldades para sobreviverem financeiramente e espiritualmente ao atual confinamento?
Desistam da arte. Façam qualquer outra coisa que traga para casa pão e sopa. Roubem um banco, mas não sejam apanhados […]”.
O estudo da economia serve para evitar que as viúvas e os órfãos morram de fome, B. Lonergan.
Há coisas mais importantes que viver. Como seja o salvar este país para os meus filhos, e para os meus netos e salvar este país para todos nós, vice-governador do Texas, Dan Patrick.
Estamos encantados por anunciar a reabertura do Trump GolfLA a partir de sábado, dia 9 de maio! Estamos ansiosos para os acolher de novo. Marquem já os vossos jogos! Tweet da abertura do campo de golfe do presidente Trump na Califórnia.
Dizer que as pessoas não podem sair de suas casas e que se o fizerem serão presas, isso é fascismo, Elon Musk.
As teorias económicas só têm sido aplicadas à economia de segunda, porquanto a economia de primeira, a criminosa, não se vê, ou melhor, não se quer ver, nem os “respeitáveis professores da melancólica ciência” se aplicam na sua visibilidade e contenção.
“Há vida depois da morte”, expressão frequentemente usada, normalmente interpretada como um incentivo a que se continue a porfiar porquanto a vida está cheia de surpresas, acreditando-se que algumas possam vir a serem boas. Para os crentes, é também uma expressão de tranquilidade e incentivo nos que acreditam que depois da morte há toda uma vida não vivida à espera de ser vivida, talvez de outra maneira, mas que está lá. Em qualquer dos casos, são sempre expressões de conforto.
Mas, dizer que “há vida para além da morte” não é o mesmo que dizer “há coisas mais importantes do que viver”.
“No Texas, temos 29 milhões de pessoas e só morreram 495 […] Todas as vidas têm valor, mas por 500 pessoas em 29 milhões termos o estado fechado, significa esmagar o trabalhador médio. Estamos a esmagar os pequenos comerciantes. Estamos a esmagar os mercados. Estamos a esmagar este país.
Há coisas mais importantes do que viver. Como seja o salvar este país para os meus filhos, e para os meus netos e salvar este país para todos nós”.
“E eu não quero morrer, ninguém quer morrer, mas temos de assumir alguns riscos e voltar a jogo, para por de novo este país em marcha e a trabalhar. Não podemos suportar isto por muito mais tempo.”
O Trump International Hotel, hotel de luxo com 263 quartos, situado a alguns quarteirões da Casa Branca, Washington, que é propriedade e é gerido pela família do presidente, embora o edifício pertença ao governo dos EUA. E, se até há pouco tempo tenha estado praticamente cheio, pelas razões óbvias da promiscuidade entre politiquice/economia/negócios, encontra-se agora praticamente vazio, pelas razões também óbvias da pandemia.
Como o contrato de 60 anos assinado em 2013 com o governo (General Services Administration, G.S.A.), prevê o pagamento de uma renda mensal de 268.000 dólares, os familiares do presidente têm de reduzir custos. Neste sentido, o filho de presidente, Eric, pretende proceder a alterações dos termos do contrato, nomeadamente no respeitante ao ajustamento das rendas mensais.
Embora muitas outras empresas em igualdade de circunstâncias tenham também feito pedidos idênticos, este pedido da Organização Trump levanta um problema: se a G.S.A. negar o pedido, a agência arrisca-se a perder a boa vontade do presidente, que é quem nomeia o chefe da agência; mas se der provimento ao pedido, vai ser acerrimamente criticada pelos que veem nisso um ato de favorecimento. Em qualquer dos casos, um conflito de interesses.
Anote-se que a Organização Trump tem no seu portfolio mais de uma dúzia de clubes de golfe, a propriedade e/ou gestão de vários hotéis de cinco estrelas em Chicago, Havai, Las Vegas, New York, Vancouver, Washington, na Irlanda e na Escócia, (https://www.nytimes.com/2020/03/20/business/trump-businesses-coronavirus.html), e que devido ao coronavírus já se viu obrigada a reduzir para metade o pessoal dos hotéis de New York e de Washington, a cancelar as reservas para o hotel em Las Vegas e fechar os campos de golfe em Los Angeles e na área de Miami. Fecharam também o clube de Mar-a-Lago na Florida, que estaria nesta época a abarrotar.
De igual modo, a Organização tem também contactado com vários dos seus parceiros financeiros e credores, como por exemplo o Deutsche Bank. Só relacionado com os empréstimos para o hotel de Washington, o golfe resort de Doral na Florida e o arranha-céus na baixa de Chicago, o Deutsche Bank é credor de 300 milhões de dólares, pelo que a Organização Trump tem estado a pedir a possibilidade de diferir os pagamentos dos empréstimos.
O problema que aqui se levanta é quase idêntico ao da G.S.A., só que há uma outra pequena questão: é que o Ministério da Justiça americano está a investigar criminalmente o Deutsche Bank devido a alegada lavagem de dinheiro e outras condutas impróprias. Será que nestas circunstâncias o Deutsche Bank poderá não ceder aos pedidos da Organização Trump?
No dia 10 de maio, o clube de golfe de Trump na California, Trump GolfLA, publicou o seguinte tweet:
“O jogo está aberto! Estamos encantados por anunciar a reabertura do trumpgolfla a partir de sábado, dia 9 de maio! Estamos ansiosos para os acolher de novo. Marquem já os vossos jogos!”
Ao que o outro Trump, o presidente, logo se apressou a comentar num novo tweet:
“É ótimo ver como o nosso País começa de novo a abrir!”
“A Tesla vai interpor imediatamente uma ação contra o Distrito de Alameda. O não-eleito e ignorante ‘Diretor de Saúde’ de Alameda atua contrariamente ao Governador, ao Presidente, ás nossas liberdades Constitucionais & ao mais comum bom-senso!”
Tudo isto porque a Tesla decidiu que iria abrir as suas instalações a 6 de maio, contrariando as indicações do distrito de Alameda que mantém a ordem de confinamento emitida desde 29 de abril, não permitindo a abertura das instalações da Tesla até ordem em contrário.
Após ter recebido o relatório de atividade do primeiro trimestre da Tesla, Musk veio dizer o seguinte:
“Em minha opinião, isto não é outra coisa que manter as pessoas presas em casa contra todos os seus direitos constitucionais. […] não é para isto que elas vieram para a América {…] Mas que merda. Desculpem. Vergonha. Vergonha.”
“Dizer que as pessoas não podem sair de suas casas e que se o fizerem serão presas, isso é fascismo. Restituam já as malditas liberdades ás pessoas.”
[…] A Tesla sabe mais sobre o que é preciso ser feito sobre segurança devido á experiência da nossa fábrica na China, do que um mero oficial de justiça (não eleito) do Distrito de Alameda.”
E seguiu-se a ameaça de fechar a fábrica na Califórnia e mudá-la para o Texas ou Nevada, se não o deixassem abri-la e se o continuassem a tratar da mesma forma:
“Francamente, isto é a última gota de água. A Tesla vai desde já mudar a sua sede e os futuros programas para o Texas/Nevada. E a manutenção da atividade fabril em Fremont, fica para já dependente da forma como a Tesla será tratada no futuro. A Tesla é a última fábrica de automóveis que ainda está na Califórnia.”
(“Frankly, this is the final straw. Tesla will now move its HQ and future programs to Texas/Nevada immediately. If we even retain Fremont manufacturing activity at all, it will be dependent on how Tesla is treated in the future. Tesla is the last carmaker left in CA.”)
Nesse mesmo dia a Califórnia registou 67.500 infetados por CV19, e 2.700 mortos.
Nessa mesma semana, em resposta a uma pergunta sobre qual iria ser o nome do seu recém-nascido filho com a artista musical Grimes (Claire Elise Boucher), Musk escreveu no Twitter:
X, the unknown variable •Æ, my elven spelling of Ai (love &/or Artificial intelligence) •A-12 = precursor to SR-17 (our favorite aircraft). No weapons, no defenses, just speed. Great in battle, but non-violent + (A=Archangel, my favorite song)
Ao longo de toda a sua vida, Bernard Lonergan (1904-84), um dos grandes pensadores sobre a humanidade, foi sempre sensível aos problemas das pessoas, não podendo, portanto, ignorar a economia, especialmente nos tempos em que o seu impacto produziu efeitos devastadores como aqueles a que assistiu durante a grande depressão dos anos 20.
Tendo começado em 1930 pela análise económica, criando uma inovadora teoria sobre a natureza dos ciclos económicos (For a New Political Economy) vai, após um interregno de quarenta anos, dedicar-se mais profundamente à investigação no campo da economia, o que o leva a completar uma obra fundamental: Macroeconomic Dynamics: An Essay in Circulation Analysis.
Lonergan, embora entendendo a necessidade de se promover a expansão dos bens de produção, devidamente financiada por bens de capital, que por sua vez levará ao aumento dos bens de consumo, sabe também que este processo tem dado origem a grandes ciclos de regressões ou crises, que têm incorretamente sido atribuídas ao egoísmo, quer por parte dos patrões (ganância do lucro) quer por parte dos trabalhadores. Para ele, o problema deve ser atribuído à ignorância do processo económico por parte de todos os agentes e não só dos especialistas.
Não é a ganância dos agentes económicos que está na origem do mal-estar do presente, mas sim a ignorância, porque quando as pessoas não entendem o que se está a passar, nem porquê, então a inteligência deixa de comandar as nossas ações, e quando isso acontece o refúgio do ser humano é a auto-perservação:
“são os esforços frenéticos de auto-preservação que transformam a depressão em recessão, e a depressão em crash”.
Sem pôr em causa o sistema capitalista, o que Lonergan pretende é torná-lo suficientemente transparente, para o que bastará seguir o fluxo do dinheiro, mas com uma nova e simples contabilização, em que não se exclui do processo económico as atividades não produtivas.
Assim, conseguir-se-iam evitar os desajustamentos bruscos e nefastos provocados pela adaptação das fases do ciclo económico, na persecução de uma economia equitativa em que as receitas dos produtores e os rendimentos de produção fossem aceitáveis para a sociedade como um todo. Só assim, o processo económico, servido pelo processo financeiro, servirá a sociedade.
Tem plena consciência que não basta “levar os economistas a admitir a falha das teorias económicas”, para que “as consigam substituir”. E explica que o problema é que essas teorias económicas só têm sido aplicadas à economia de segunda, porquanto a economia de primeira, a criminosa, não se vê, ou melhor, não se quer ver, nem os “respeitáveis professores da melancólica ciência” se aplicam na sua visibilidade e contenção.
A proposta de Lonergan é que a economia valorize a importância da ética, dos problemas, em que os seus agentes, nós todos, sejamos mais educados, mais conhecedores, em que “os teóricos morais sobre a economia sejam também economistas”, e se não forem “então teremos de ter economistas melhores”.
Trata-se, portanto, no seu entender, de um problema de educação (ou de falta de educação), de um problema de ética (ou de falta de ética).
É que, como ele disse, o seu estudo da economia foi realizado para que “as viúvas e os órfãos não morressem de fome”.
Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher, Pitágoras.
O meu único repouso consistirá em ver o universo comigo confundido na mesma ruína: que tudo desapareça comigo! É doce, ao morrer, arrastar a outrem, Medeia de Sófocles.
Mentalidade primitiva [é] uma designação bastante justa para a conduta mental da maior parte dos homens de hoje, Nilsson.
Quem quer que, tendo no coração um outro sentido religioso, se aproximar destes olímpicos, em busca de elevação moral, de santidade, de imaterialidade espiritual, e procurar nos seus olhos amor e piedade, em breve decerto se afastará deles, irritado e desiludido, Nietzsche.
Mitos, são narrativas fabulosas inicialmente engendradas como explicação totalizante da vivência humana (drama ou tragédia) onde se congregam todos os ingredientes irredutíveis que a uma narrativa emprestam qualidade mítica, nela assumindo a forma de um sentimento, uma estrutura, um estado, um número, uma dificuldade.
Aparecem como um sistema, mais ou menos coerente, de explicação do mundo, em que cada um dos gestos dos intervenientes (heróis) que nele participam pode implicar consequências que se repercutirão em todo o Universo.
Estas elaborações, que muitos creem oriundas de mentalidades primitivas, têm, no entanto, muito pouco de primitivas, sendo antes conceções já bastante evoluídas que devem ter sido formadas em meios sacerdotais e que, pouco a pouco, foram sendo integradas com elementos filosóficos na forma de símbolos.
Os mitos que mais comumente se encontram em todas as civilizações são os que se referem à formação do mundo (mitos “cosmogónicos”) e ao nascimento dos deuses (mitos “teogónicos”).
Seguem-se-lhes os mitos que nos contam séries de episódios ou histórias, em que a única unidade é fornecida pela identidade de uma personagem que é o herói (Heraclito, Gilgamesh e outros). Os especialistas chamam-lhes “ciclos”.
Distinguem-se ainda as “novelas”, nas quais a unidade intrínseca é puramente literária, definindo-se apenas pela intriga. Por esse motivo não há um “ciclo Aquiles”, ou um “ciclo Helena (de Troia)”, mas antes a Ilíada, novela de uma longa aventura com histórias, episódios complexos e personagens variadas.
Só que estas distinções que aparentemente tão bem servem para um processo de arrumação classificativo, não são nem estáticas nem imutáveis. Nem no conteúdo, nem no tempo, nem na utilização. Daí que um mito cosmogónico ou teogónico, possa facilmente transformar-se num ciclo ou novela, conforme a fantasia ou as exigências espirituais da sociedade a que diz respeito lhes vai introduzindo. É esta plasticidade do mito que lhe tem permitido sobreviver desde esses tempos longínquos. Como metamorfose que continua a permitir-lhe sobreviver nos dias de hoje. Como a humanidade.
Um dos mais conhecidos mitos é o que aparece referenciado como “ciclo dos Argonautas”, relativo à procura e roubo do Velo de Ouro, e ao encontro e relação entre Jasão e Medeia. Ele é particularmente importante por, pela primeira vez, nos mostrar a diferença em confronto do papel atribuído pelos deuses ao homem e à mulher.
Muito esquematicamente, trata-se da expedição à Cólquida empreendida pelos Argonautas chefiados por Jasão com o fim de se apoderarem do Velo de Ouro, das dificuldades que tiveram para lá chegar, do encontro entre Jasão e Medeia, da superação de provas e da fuga com o Velo de Ouro, do fratricídio perpetrado por Medeia, do abandono de Medeia por Jasão, da vingança de Medeia, e do filicídio por ela cometido.
Compliquemos: Jasão, filho do rei Aesão de Iolcos, Tessália, vê-se forçado a exilar-se após o pai ter sido destronado pelo meio-irmão Pélias. Chegado à idade adulta, resolve regressar sem ser reconhecido e apresentar-se na corte de Iolcos. Alto, bem constituído, de cabelos loiros, vinha estranhamente vestido: com uma pele de pantera sobre os ombros, uma lança em cada uma das mãos, com o pé esquerdo descalço à maneira dos guerreiros antigos.
Ao vê-lo, Pélias recordou-se da profecia de um oráculo que o avisara para se acautelar com um parente que lhe aparecesse calçado com uma só sandália. Dirigindo-se ao jovem, perguntou-lhe qual seria o castigo que aplicaria a quem conspirasse contra o seu rei. Sem exitar, Jasão disse que o enviaria à Cólquida para conquistar o Velo de Ouro, máxima aspiração de Iolcos. Pélias faz-lhe ver que ele próprio acabara de se condenar e que, portanto, teria de obedecer e organizar uma expedição nesse sentido.
Segundo se acreditava, o Velo de Ouro era a pele de um cordeiro divino com lã de ouro, que Hermes tinha oferecido a Néfele, a primeira mulher do rei Átamas. Assim que Ino, a segunda mulher do rei, soube que Frixo e Hele, filhos de Néfele, se preparavam para regressar ao reino, organizou um plano para os prender e sacrificar. Para os salvar, Néfele resolve enviar aos filhos o cordeiro divino, que os deveria transportar pelos ares até à Cólquida (no Cáucaso).
Durante o percurso, ao atravessar o estreito, Hele caiu, afogando-se, pelo que desde essa altura o estreito passou a ter o nome de Helesponto (mar de Hele). Frixo conseguiu salvar-se e chegado a terra firme, num bosque sagrado de Ares, resolveu oferecer a Zeus o sacrifício do cordeiro. Aetes, o rei da Cólquida, acabou por se apoderar da pele do cordeiro, guardando-a ciosamente desde então.
Dando início à sua tarefa, Jasão começou por pedir ajuda a Argos, filho de Frixo. Com o aconselhamento de Atena, Argos inicia a construção de uma embarcação, a Nave Argo, que possuiria propriedades maravilhosas (podia falar e profetizar). Durante a construção, Jasão vai reunir uma tripulação de cerca de cinquenta homens, todos de boas famílias: os “navegadores de Argos”, os “Argonautas”.
Entre eles encontramos nomes dos principais príncipes e heróis da idade imediatamente anterior à guerra de Troia, todos eles filhos e netos de deuses: Hércules, Orfeu, o músico-mestre, os filhos de Tíndaro, Castor e Pólux, Peleu, o pai de Aquiles, Lince ou Linceu (“de quem um só golpe de vista descobre os objetos mais afastados”), Cálais e Zetes, ambos filhos do Vento Bóreas, Tífis (“o domador das vagas”).
Segue-se a descrição da tormentosa e aventureira viagem até à Cólquida, onde se contam peripécias como a estadia na ilha de Lemnos só habitada por mulheres (por Afrodite lhes ter morto todos os homens, ou por os homens terem fugido por elas cheirarem mal), os filhos que lá deixaram; o episódio da costa da Mísia onde Hércules perde o seu fiel pajem Hilas para as Ninfas; o auxílio que prestam a Fineu, o velho adivinho cego pelos deuses, combatendo e afastando as Harpias que o impediam de comer; o segredo revelado por Fineu que lhes permitiu a passagem incólume pelos Rochedos Movediços (Simplégades), enormes rochas errantes que se fechavam se um navio tentasse passar por elas.
Após mais algumas escalas, alcançam finalmente a Cólquida. Jasão apressa-se a informar o rei Aeëtes do motivo da sua presença. Aeëtes não se recusa a dar-lhes o Velo de Ouro, mas para isso, Jasão deveria primeiro enfrentar e domar os dois ferozes touros com patas de bronze e que deitavam fogo pelas ventas. Depois, deveria lavrar com os touros um determinado campo, no qual semearia dentes do dragão de Ares.
Tarefa impossível, não fosse a ajuda de Medeia, a filha do rei, que mal vira Jasão logo ficara loucamente apaixonada. Medeia dá-lhe um bálsamo mágico, que o tornaria invulnerável e imune às queimaduras. Explica-lhe também como teria de proceder após ter lançado à terra os dentes de dragão, dos quais iriam surgir guerreiros totalmente armados e prontos a matá-lo: Jasão teria de atirar uma pedra para o meio do círculo que os guerreiros fizessem, que eles logo se voltariam para o local onde a pedra cairia, e matar-se-iam uns aos outros.
Ao ver que Jasão sairia vencedor, o rei não cumpre a promessa de lhe entregar o Velo de Ouro, dirigindo-se antes para o porto para incendiar a Nave Argo. Entretanto, auxiliado por Medeia que consegue adormecer com uma canção de encantamento a terrível serpente que guardava o velo, Jasão apodera-se dele e fogem os dois. Medeia leva consigo o irmão mais novo, Absirto. Aeëtes persegue-os.
Para o retardar, Medeia mata o irmão, esquarteja-o e dispersa pelo mar as partes do corpo. O rei perde tempo a tentar recolher os vários pedaços do filho. Os Argonautas escapam e mudam de rota (há divergências sobre as possíveis rotas seguidas).
A voz da Argo faz-lhes saber que Zeus ficara irritado pela morte de Absirto, pelo que para se purificarem deveriam aportar ao país de Circe (irmã de Ates), na costa italiana. Purificados por Circe, atravessam o mar das Sirenes que, com as suas vozes encantatórias reteriam os Argonautas não fosse Orfeu que, com as suas canções e melodias, a todas elas emudecesse.
Passam o estreito de Messina, e são atirados para as costas da Líbia. Daí intentam prosseguir para Creta, onde o gigante de bronze Talo impede o acesso à ilha arremessando-lhes pedregulhos. Vale-lhes de novo Medeia, que com os seus encantamentos leva Talo a quebrar o seu tornozelo nos rochedos (único ponto em que era vulnerável, acabando por morrer). Finalmente, alguns dias depois, chegam à Grécia, desembarcando com o Velo de Ouro em Iolcos, onde continuava a reinar Pélias.
Durante o tempo em que reinara, Pélias levara o pai de Jasão ao suicídio, tendo a mãe morrido de desgosto. Medeia decide vingar-se de Pélias. Insinuando-se junto das filhas do rei, consegue persuadi-las a rejuvenescer o pai. Mostra-lhes como consegue com um cordeiro velho cortando-o aos bocados e pondo-o a ferver numa poção mágica, transformá-lo num cordeiro novo.
As filhas de Pélias não hesitam. Embebedam o pai, cortam-no aos pedaços, e põem-no num caldeirão a ferver. Quando procuram por Medeia para lhes dar a poção mágica, não a encontram.
Depois deste crime, Jasão e Medeia são banidos de Iolcos, retirando-se para Corinto, onde vivem por uns anos e lhes nascem dois filhos. Para melhor garantir a segurança da sua família, Jasão acede em aceitar para esposa, a filha do rei de Corinto. Fingindo aceitar a combinação, Medeia vai oferecer à noiva um vestido lindíssimo. Quando a noiva o veste, além de morrer envenenada, o vestido pega fogo ao palácio.
Para completar a vingança, sabendo que Jasão não lhe perdoaria, Medeia mata os dois filhos, e foge num carro voador puxado por dragões.
Este é um resumo possível das várias versões desta procura do Velo de Ouro. Convém, no entanto, estarmos atentos às realidades e não nos deixarmos envolver pelas espantosas histórias quase sem fim que tão bem cumprem a sua finalidade de não terem fim.
Estamos certamente perante a primeira narrativa de uma grande empresa ultramarina, fruto da abertura das rotas para o Mar Negro que se verificaram no século VIII a. C., e das expedições marítimas que se aventuraram naqueles tempos à conquista e colonização de novas terras, de regiões bárbaras, longínquas, inóspitas e desconhecidas que ocultavam tesouros magníficos, como o Velo de Ouro. O longínquo Este (far east).
Era o início de tempos novos que punham fim a uma época em que “cada um estacionava preguiçosamente sobre a sua própria costa, envelhecendo na terra dos avós, contente com o pouco que possuía e ignorante de quaisquer riquezas que não fossem as do solo natal” (Séneca, Medeia)
Esta gesta, foi contada, cantada e assumida naqueles tempos antigos por mais de centena e meia de autores, acabando, inclusivamente, por ser tida como verídica por alguns: Heródoto, outorgava valor histórico à viagem do Argo, bem como ao rapto de Medeia; o mesmo acontecendo, séculos mais tarde com Estrabão, que chega a aduzir como razões para a expedição a procura de riquezas minerais. Para alguns arqueólogos, a própria existência do velo poderia estar relacionada com o costume típico verificado na região do rio Fásis onde se utilizava a pele de um carneiro para peneirar as areias auríferas.
Estamos também perante uma grande narrativa anterior às de Homero, já que os heróis que participam na expedição pertencem cronologicamente a uma geração que precede a dos grandes heróis homéricos, onde também os deuses imortais, seja por suscetibilidade de amor, por capricho ou por misteriosa eleição, procuram, independente de qualquer forma carnal (cisne, touro ou homem) o ente humano, dando assim vida a Perseu, Aquiles, Eneias, Helena, Clitemnestra, Hércules, etc.
Nestes mitos helénicos, os heróis são sempre apresentados como seres assimétricos, não só pelo seu nascimento, por provirem do encontro entre dois entes que não guardam entre si proporção no valor, no estado, na finalidade de cada um (entre um deus ou deusa e um vulgar humano), como ainda pela influência que tal assimetria induz no seu comportamento.
É isso que faz com que o herói esteja condenado a não conciliar a afetividade natural (onde cabem o enamoramento, o desejo, a gratidão, a piedade) e um destino implacável, a que o seu impassível estado divino se conforma.
Píndaro (522 a.C.-443 a.C.), numa das primeiras referências escritas sobre Jasão, descreve-o como o arquétipo do herói, fazendo alusão à sua grande beleza física e à sua natureza virtuosa, a todos sobranceiro pela estirpe, pelo mando e pelo extremo vigor, com uma olímpica ataraxia que tudo lhe faz parecer natural, o primus inter pares, filho do rei deposto, o vingador, o designado da fortuna para a chefia da aventura portentosa, “aquele que à mera inspeção logo se distingue, e logo merece o descompassado arfar do peito de Medeia”. Mas também o que possui a impavidez de um coração de mármore, quando soa a hora do abandono de Medeia.
Já Medeia, aparece tratada pelo mesmo Píndaro com uma certa subalternidade e indulgência devida a uma jovem enamorada, de caráter crédulo (seduzida e enganada por Jasão), com dotes de feitiçaria, e pronta a trair.
Este esquema de mulher traidora já aparecera repetido noutras histórias, mas, neste caso de Medeia, a conotação vai alargar-se devido ao facto de ela ser vista como mulher bárbara por ser oriunda de uma região muito afastada da civilização grega e oriental e, portanto, a quem se atribui um caráter impulsivo e irracional.
Eurípedes, que com a sua Medeia representada pela primeira vez em 431a.C., ficou nesse ano em terceiro lugar no concurso de teatro, é, contudo, o primeiro a dotá-la de uma profundidade psicológica que a partir daí vai ser seguida pela maioria das recreações posteriores.
Antes de Eurípedes, o mito já continha o capítulo sobre o infanticídio dos filhos de Medeia, só que o ato não aparecia feito por ela, sendo antes levado a cabo como vingança pelo povo de Corinto. Ou então aparecia como resultado de uma ação involuntária de Medeia ao querer transmitir aos filhos o dom da imortalidade.
A atribuição do infanticídio a Medeia, vai permitir a Eurípedes “introduzir um clímax dramático realmente espetacular que produziria no espetador uma tensão máxima do seu pathos: o assassinato intencional dos seus próprios filhos”. A eleição de uma mulher estrangeira, feiticeira, abandonada e infanticida, seria bem o exemplo “das possibilidades e dos limites (ou falta deles quando a paixão é desmedida) do comportamento humano”.
Mais tarde, nas Metamorfoses, no primeiro, mais popular e difundido compêndio de todos os mitos heroicos da Grécia, Ovídio (43 a.C.-17 d.C.), vai assumir toda esta herança milenar, mostrando-nos Medeia como uma mulher estrangeira, bárbara, vingativa e malvada.
Posteriormente, Séneca, ao escrever a sua Medeia (60-61 d.C.), baseando-se sobretudo na versão de Ovídio, vai carregar mais nos adjetivos, apresentando-a como uma mulher malvada, sanguinária, rancorosa, vingativa e determinada, assassina fria, irracional e quase demente.
Esta versão de Séneca é importante por vir a ser a principal fonte de conhecimento utilizada pelos escritores que se lhe seguiram, perpetuando assim para as gerações futuras as “caraterísticas” da Medeia mulher.
Medeia passou a representar o protótipo feminino que leva ao abandono de tudo: do povo – ela a princesa da Cólquida; dos pais e do irmão, Absirto -o inocente que é por Medeia esquartejado e oferecido a Poseidon; do avô e deus, Hélio – Medeia era a sacerdotisa que velava pela conservação do Velo de Ouro, e que sacrificava cruelmente no altar todo o forasteiro; da sagrada hospitalidade de Pélias – morto graças a um expediente de feitiçaria; e do infanticídio dos seus filhos.
Medeia de tudo se despoja, a sua oferta de mulher não sofre restrições pela imolação do amor de um homem. Invocadora, “com voz sinistra do caos da eterna noite, reino oposto ao céu” (Séneca).
Esta tem sido a dramaturgia que até hoje tem prevalecido ao longo das várias épocas. Daí a importância deste “ciclo dos Argonautas” que, através das figuras de Jasão e Medeia, vai permitir desde então constatar a assimetria radical que define a condição masculina e a feminina:
“o desencontro sem remédio entre a compleição que pode ascender à mais olímpica ataraxia, e aquela outra na qual sobrenadam as noturnas potências do sentimento”, e que pode chegar a “uma total inconsciência da infâmia”. “Medeia não sabe moderar nem as iras nem os ímpetos amorosos” (Séneca).
É este comportamento atribuído a Medeia que justifica porque Jasão não tem que se dar à constância e à fidelidade para com ela. Alguma coisa nele escapa inelutavelmente ao domínio dos afetos comuns: a sua melhor parte, aquele “quê” divino herdado dos imortais.
Não é de estranhar que Séneca acabe a peça com Medeia a dizer:
“O meu único repouso consistirá em ver o universo comigo confundido na mesma ruína: que tudo desapareça comigo! É doce, ao morrer, arrastar a outrem.”
Até num pequeno estudo de Maria Helena da Rocha Pereira, “O mito de Medeia na poesia portuguesa”, se pode constatar desta permanência negativa da magia e do filicídio como fazendo parte do caráter da mulher Medeia.
Não é, pois, também de admirar que no pórtico do seu livro O Segundo Sexo, Fatos e Mitos, Simone de Beauvoir tenha inscrito esta sentença atribuída a Pitágoras:
“Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher”.
Não podemos esquecer que, tal como o teorema de Pitágoras não é dele, também a sociedade em que ele vivia e que tantas obras tidas como belas produziu, era eminentemente patriarcal, religiosa, machista e esclavagista.
Não podemos também esquecer que é possível que em todo o humano subsista um fundo impercetível e inescrutável de mentalidade primitiva, o que pode permitir considerar-se a “mentalidade primitiva uma designação bastante justa para a conduta mental da maior parte dos homens de hoje, exceto nas suas atividades técnicas ou conscientemente intelectuais”. (M.- P. Nilsson, The Minoan-Mycenean religion and its survivals in Greek religion).
E, sobretudo, não esquecer o que nos disse Nietzsche, A origem da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo, sobre os olímpicos que nos propõem como modelo:
“Quem quer que, tendo no coração um outro sentido religioso, se aproximar destes olímpicos, em busca de elevação moral, de santidade, de imaterialidade espiritual, e procurar nos seus olhos amor e piedade, em breve decerto se afastará deles, irritado e desiludido”.
Do outro lado da história, a bíblica, também consta a serpente, a maldade de Eva e a bonomia de Adão. Não há muito por onde escolher.
Encantatório
Ao reler alguns escritos relacionados com encantamentos, como que hipnoses, estupores inibitórios, estados de paralisia geral, do fascínio que outro nos causa, do olhar da serpente que assim imobiliza as suas presas, das falas suaves e cadenciadas que nos adormecem, recordei aquela figura mítica presente em quase todas as civilizações, a esfinge, corpo alado de animal, rosto parado de mulher que nos mira (julgamos nós) interrogando.
Conseguir verter todos estes sentimentos, emoções, estados de alma, para prosa escrita é tarefa só para alguns. Como é o caso de Jean Cocteau e a sua peça de teatro, La machine infernale, (1934), na parte em que Édipo encara a Esfinge. Aqui deixo a cena, sem sequer me atrever a traduzi-la:
LE SPHINX
Inutile de fermer les yeux, de détourner la tête. Car ce n'est ni par le chant, ni par le regard que j'opère. Mais, plus adroit qu'un aveugle, plus rapide que le filet desgladiateurs, plus subtil que la foudre, plus raide qu'un cocher, plus lourd qu'unevache, plus sage qu'un élève tirant la langue sur des chiffres, plus gréé, plus voilé, plus ancré, plus bercé qu'un navire, plus incorruptible qu'un juge, plus vorace que les insectes, plus sanguinaire que les oiseaux, plus nocturne que l'œuf, plus ingénieuxque les bourreaux d'Asie, plus fourbe que le cœur, plus désinvolte qu'une main qui triche, plus fatal que les astres, plus attentif que le serpent qui humecte sa proie de salive; je sécrète, je tire de moi, je lâche, je dévide, je déroule, j'enroule de telle sorte qu'il me suffira de vouloir ces nœuds pour les faire et d'y penser pour les tendre ou pour les détendre; si mince qu'il t'échappe, si souple que tu t'imagineras être victime de quelque poison, si dur qu'une maladresse de ma part t'amputerait, si tendu qu'un archet obtiendrait entre nous une plainte céleste; bouclé comme la mer, la colonne, la rose, musclé comme la pieuvre, machiné comme les décors du rêve, invisible surtout, invisible et majestueux comme la circulation du sang des statues, un fil qui te ligote avec la volubilité des arabesques folles du miel qui tombe sur du miel.
ŒDIPE
Lâchez-moi!
LE SPHINX
Et je parle, je travaille, je dévide, je déroule, je calcule, je médite, je tresse, jevanne, je tricote, je natte, je croise, je passe, je repasse, je noue et dénoue etrenoue, retenant les moindres nœuds qu'il me faudra te dénouer ensuite sous peinede mort ; et je serre, je desserre, je me trompe, je reviens sur mes pas, j'hésite, jecorrige, enchevêtre, désenchevêtre, délace, entrelace, repars ; et j'ajuste, j'agglutine, je garrotte, je sangle, j'entrave, j'accumule, jusqu'à ce que tu te sentes, de la pointe des pieds à la racine des cheveux, vêtu de toutes les boucles d'un seul reptile dont la moindre respiration coupe la tienne et te rende pareil au bras inerte sur lequel un dormeur s'est endormi.
Androides-como-escravos, metáfora da condição humana.
“Quite an experience to live in fear isn’t it? That’s what it is to be a slave”, Roy Batty, in Blade Runner.
Um dia, esse puramente mundo predatório acabará por se consumir a ele próprio…, in Cloud Atlas de David Mitchell.
Por isso, é que em tempos de crise, dizem que temos de estar todos juntos. Até a crise passar.
Uma obra de ficção científica é normalmente entendida como sendo um relato de algo que se virá a passar num tempo futuro, transportando-nos para locais e cenários que pouco têm que ver com os contemporaneamente existentes, e que com a ajuda do cinema tende a projetar ações, movimentos, sons espetaculares que tudo absorvem.
Contudo, subjacente a tudo isso, encontra-se sempre a intenção de nos dizer coisas importantes sobre a condição humana.
Quando Roy Batty, o replicante Nexus 6 do filme Blade Runner (adaptação do livro de Philip Dick, Do Andriods dream of Electric Sheep?), no seu monólogo final diz
“Quite an experience to live in fear isn’t it? That’s what it is to be a slave” (Grande experiência é o ter de viver com medo, não é? Isso é o que é ser escravo)
está a referir-se, não só à situação particular existente na altura, mas também a uma condição humana mais geral que se tem verificado ao longo dos tempos.
É, contudo, num dos episódios de Cloud Atlas, que melhor vai ser descrita esta relação de escravo-trabalhador-proprietário, de predador-presa. Cloud Atlas, é uma obra escrita por David Mitchell em 2004, na qual pretende enfatizar o facto de a experiência humana ser essencialmente universalatravés de todos os tempos.
Na sua adaptação de 163 minutos ao cinema, os (as) irmãos (irmãs) Wachowski (da trilogia Matrix) recortam o livro em seis episódios passados nas ilhas do Pacífico em 1849, em Cambridge/Edinburgh em 1936, em San Francisco em 1973, em Londres em 2012, em Nova Seoul em 2144, e na Grande Ilha, 106 invernos depois da Queda em 2321.
No episódio referido tudo se passa em 2144, “Orison of Somni-451”, época em que todos os trabalhadores são clones de humanos, e em que Mitchell vai explorar a possibilidade de uma revolta de clones e do aparecimento de um clone do Messias.
Somni-451 é uma empregada-escrava clone de humanos, que trabalha num restaurante de fast food em Nova Seoul. Acaba por entrar em contacto com ideias revolucionárias através de uma outra clone, Yoona-939. Depois de Yoona ser morta, Somni é resgatada pelo chefe rebelde Hae-Joo Chang, que a inicia na leitura de obras banidas de Aleksandr Solzhenitsyn. O líder carismático do movimento rebelde mostra-lhe o que acontecia aos clones: eram reciclados para comida de outros clones. Somni vai expor essas revelações numa emissão pública, antes de um ataque em que Hae-Joo é morto e em que ela é presa. Após ter contado a sua história a um arquivista, é executada.
Eis parte do que ela diz:
“As nossas vidas não nos pertencem. Desde o ventre até à tumba, encontramo-nos ligados a outros. Passado e presente. E por cada crime ou por cada ato de bondade, recomeçamos o nosso futuro.”
Segundo Mitchell, há como que uma servidão da condição humana (onde se incluem clones) que faz com que o privilégio dos predadores se mantenha:
“A crença é simultaneamente o prémio e a batalha, no espírito & no espelho do espírito, o mundo. Se acreditarmos que a humanidade é uma escada de tribos, um coliseu de confrontos, exploração e bestialidade, então essa humanidade será a que acabará por nascer, & prevalecerão Horroxes, Cabeças Rapinadas & Gansos. Tu & eu, os endinheirados, os privilegiados, os afortunados, não nos sentiremos tão mal nesse mundo, desde que a sorte não desapareça. E se a nossa consciência nos incomodar? Porquê minar o domínio da nossa raça, das nossas armas, da nossa herança & o nosso legado? Porquê lutar contra a ordem “natural” (oh, palavra vaga) das coisas?
Porquê? Apenas por isto: - Um dia, esse puramente mundo predatório acabará por se consumir a ele próprio…
Se acreditarmos que a humanidade possa transcender dentes e garras, se acreditarmos que diversas raças e credos puderem compartilhar pacificamente este mundo, se acreditarmos que os nossos líderes devem ser justos, as violências erradicadas, o poder responsabilizado & os ricos da Terra & os seus Oceanos compartidos equitativamente, então esse mundo predatório acabará por passar.”
O que Roy Batty nos vem mostrar é o reconhecimento do que é viver-se permanentemente com medo, numa sociedade cujo ideal é de, através da educação ou de outro qualquer meio, produzir trabalhadores obedientes, escravos-salariados, sejam humanos ou clones, que servem unicamente para alimentar as engrenagens do moinho da economia. Androides-como-escravos, metáfora da condição humana.
Abre a mão e solta a pombinha branca que voa em direção ao alto. Concessão estética de Ridley Scott? Imitação dos humanos que se assumem como escravos para se poderem depois libertar para depois em liberdade decidirem de novo serem escravos?
Para nós, humanos por enquanto, com menos vivência histórica que Roy, devemos, apesar de tudo, concluir que sempre que se tem verificado um desastre económico, o sistema vigente faz com que a tragédia reverta a favor das corporações. Os primeiros a serem descartados em grande número são os trabalhadores, dos quais apenas uma pequena parte acaba readmitida, mas com salários reduzidos e muitas vezes a tempo parcial, sem benefícios adicionais e sem segurança de emprego.
Eis o que diz Tim Bray, importante engenheiro e vice-presidente da Amazon, que saiu da empresa por discordar dos recentes despedimentos de trabalhadores:
Há, contudo, um paradoxo escondido: enquanto os grandes e pequenos possuidores do capital, os grandes e pequenos gestores e apaniguados seguidores, nos andam a convencer (e nós acreditamos, e eles também acreditam) que a economia depende essencialmente do saber e esforço deles, a realidade que fica bem demonstrada nos tempos de crise, é que a economia para funcionar depende essencialmente dos trabalhadores menos “qualificados”. Se estes falharem, não há economia. Por isso, é que em tempos de crise, dizem que temos de estar todos juntos. Até a crise passar.