Para se fabricar uma simples T-shirt gastam-se 594 galões de água, a mesma quantidade que uma pessoa bebe em dois anos e meio.
Uma fábrica que produz vestuário para exportação, e que necessita de energia para passar a ferro e tingir as roupas, utiliza o equivalente a 2,3 milhões de pés cúbicos de madeira, todos os meses.
A indústria da moda emite mais dióxido de carbono do que todos os voos internacionais e todos os transportes marítimos.
A sustentabilidade, que deveria ser entendida como sustentabilidade para os ecossistemas, para os recursos e para o trabalho humano, é engolida pela gigantesca máquina que exige a superprodução, plenamente convicta que a insegurança do público o leva, e levará sempre, a sobre comprar.
Talvez não seja para nós muito claro, mas o facto é que a moda, a indústria da moda, acabou por influenciar e marcar toda a indústria que se lhe seguiu (1). Ela foi, e continua a ser, a sua precursora, daí a sua importância para os tempos que vivemos e para os que se avizinham.
Tudo começou quando Charles Frederick Worth (1825-95), fez algo que se revelou extremamente importante para toda a indústria futura, para qualquer indústria, ao impor uma organização em pirâmide, em que o vértice era o studio a quem cabia elaborar os modelos, que eram depois enviados para os diferentes ateliers com as suas diversas especializações, cada um com as suas várias hierarquias.
Vai assim separar as funções de direção e execução, de conceção e fabricação, dando origem a uma lógica que irá presidir à organização futura de fábricas, hospitais, escolas e força militares. Ou seja, vai colocar o processo da moda na origem da substituição da ordem artesanal pela moderna ordem burocrática.
Na altura, a diferença para com as outras indústrias é que para a moda, essa substituição é feita em nome do gosto e da novidade:
“Em vez da produção de objetos úteis, a Alta-costura propõe a glorificação do luxo e o refinamento frívolo. Em vez de um traje uniforme, propõe a pluralidade de modelos. Em vez de uma programação e de um código regulamentar, propõe a iniciativa pessoal. Em vez da coerção regular, impessoal e constante, propõe a sedução das metamorfoses da aparência.”
Adiantando-se a todas as outras indústrias, a moda propõe antes um processo de sedução como lógica do poder. Esta sedução, com a teatralização e sobre-exposição do produto, com a multiplicação de protótipos e a possibilidade de escolha individual (a tal “liberdade de escolha”), irá estimular e desculpabilizar a compra e o consumo.
A moda aparece como um dos principais condutores do “progresso”, se o considerarmos como o tipo de mudança que desvaloriza tudo o que deixa para trás e o substitui por algo novo. A moda como precursora da organização do efémero e do superficial.
É apenas tendo em conta esta definição de “progresso”, que a sociedade atual se baseia para nos convencer que nos traz “felicidade”. “Felicidade” como condição segura e permanente, obtida assim pela obsolescência de tudo, levando a uma cada vez mais rápida substituição dos bens (computadores, tablettes, telemóveis, roupas, etc.) e mudança de identidade da pessoa (nem que seja pela alteração do traje ou aparência), e que só se poderá verificar numa sociedade desregulamentada, privatizada e individualizada.
É dessa forma, que as pessoas desejam escapar à necessidade de pensar sobre a sua “condição infeliz”. Procuram apenas ocupações urgentes e que as absorvam, para assim poderem parar de pensarem sobre elas, colocando como finalidades objetos atrativos que as possam seduzir. A vida passa a girar à volta da perseguição constantemente elusiva da moda, não dando qualquer sentido à vida. Aliás, a finalidade é mesmo banir dos nossos pensamentos a questão do significado da vida.
Mas eis que nos tempos que correm, a indústria da moda começa a preocupar-se com a sua “sustentabilidade”. E, se bem que para alguns esta preocupação tenha que ver com a indústria no seu todo, para quase todos os outros a preocupação que têm é tão só a da sua sobrevivência e imposição no mercado.
É o caso da Burberry, que apesar de ter como mote “Tornar Circular a Moda” (Making Fashion Circular), com o fim de reduzir os desperdícios e manterem os ativos em circulação, incineraram 38 milhões de dólares de peças não vendidas para que elas ”não caíssem em mãos erradas”. (2)
O mesmo fez a H&M em 2017, quando queimou na Suécia 19 toneladas de roupa obsoleta (equivalente a 50.000 pares de jeans) e 100.000 peças de roupa na Alemanha.
Os donos da Cartier, compraram aos seus revendedores cerca de 575 milhões de dólares de relógios para evitar que eles fossem vendidos a preços mais baratos ou vissem a figurar em vendedores não autorizados. A maior parte era depois destruída, sendo algumas partes recicladas.
A Nike, rasga roupas e ténis não vendidos, para que não possam ser reutilizados.
Estas e outras técnicas similares são seguidas por muitas das principais empresas, numa vertigem de destruição sem paralelo. E continuam sempre a produzir mais: cada ano, mais de 100 biliões de produtos à base de fibras virgens, são lançados no mercado.
A energia necessária para alimentar esta indústria é inacreditável. Por exemplo: uma fábrica em Phnom Penh que produz vestuário para exportação, e que necessita de energia para passar a ferro e tingir as roupas, utiliza o equivalente a 2,3 milhões de pés cúbicos de madeira, todos os meses. Não há floresta que resista.
Segundo a Ellen MacArthur Foundation (3), a indústria da moda emite mais dióxido de carbono que todos os voos internacionais e transportes marítimos.
Para se fabricar uma simples T-shirt gastam-se 594 galões de água, a mesma quantidade que uma pessoa bebe em dois anos e meio. No seu total, a indústria gasta 1,3 triliões de galões de água por ano só para tingir os tecidos (https://www.wri.org/blog/2017/07/apparel-industrys-environmental-impact-6-graphics), sem contar com os químicos e tintas que vão destruir ecossistemas, matar a vida aquática e contaminar os níveis freáticos. E esta poluição continua depois das peças serem fabricadas e compradas: cerca de 15 milhões de microfibras são libertadas no processo de lavagem das roupas, contribuindo para a poluição das águas. (4)
As empresas que verdadeiramente se preocupam com a sustentabilidade da indústria, têm tentado, sem grandes resultados, várias aproximações, desde esquemas de devolução, reciclagem (muito cara e não resolvida), novos materiais mais duráveis mas que consomem grande energia para produzir, como o algodão orgânico (sem pesticidas ou fertilizantes), poliéster reciclado, lyocell, circulose (feito de vestuário reciclado), econyl (espécie de nylon feito com produtos do lixo), etc.
Mas, ao mesmo tempo, as grandes empresas continuam a aumentar a sua expansão. O grupo H&M, que só nos EUA têm 593 lojas, abriram em 2019 mais 281 lojas fora dos EUA, tendo nesse ano fabricado 600 milhões de peças. Em 2018, o valor dos seus produtos atingiu 4,3 biliões de dólares.
A Zara, invade o mercado com 500 novos modelos por semana, mais de 20.000 por ano.
A realidade, é que se continua a impulsionar o sistema de baixo-custo, de grandes quantidades, que torna inevitável a posterior incineração e destruição. Está estimado que compramos anualmente hoje mais 60% de vestuário do que em 2000, e que usamos cada vez menos cada peça antes de a deitarmos fora.
Pelo que a sustentabilidade que deveria ser entendida como sustentabilidade para os ecossistemas, para os recursos e para o trabalho humano, é engolida pela gigantesca máquina que exige a superprodução, plenamente convicta que a insegurança do público o leva e levará a sobre comprar.
Mas tenhamos esperança: a Zara prometeu que em 2025 toda a sua roupa será feita com material 100% sustentável (5). Vem-me à memória uma velha canção da Dalida, “Parole, parole, parole”.
A peste está aqui, é a companheira constante das nossas vidas transitórias. Pode até acontecer que nos venha a matar a todos.A peste está em todo o lado e está sempre connosco.
A peste não é nem racional nem justa.A peste representa o absurdo.
E tudo o que podemos fazer é cuidar uns dos outros.Lutar desafiadoramente contra o absurdo, segundo Camus.
É humano ter compaixão dos aflitos, citado por Boccaccio.
É preciso imaginar Sísifo feliz, Camus.
Panorâmica da peste (1350)
Há um autor e obra que, através de uma panorâmica multifacetada, nos descreve quase que cinematograficamente a Peste Negra (1347-1351) da Idade Média, na qual cerca de metade da população europeia morreu. Trata-se de Giovanni Boccaccio (1313-1375) e os seus cem contos sobre mercadores e serventuários contidos no Decameron (1350).
A intenção de Boccaccio era a de despertar os seus leitores para a responsabilidade que todos deveriam de ter para com os outros, dando a conhecer como é que os ricos se relacionavam com os pobres em tempos de desespero, e como os pobres sofriam nesses tempos. Acima de tudo, era uma tentativa para indagar sobre o valor que se dava à vida.
Para isso, recorre a um artifício literário: enquanto a cidade de Florença explodia em degradação física e moral causada pela peste, vai “ouvir” dez jovens (sete mulheres e três homens) que se recolheram numa igreja florentina (Santa Maria Novella) a fim de evitarem a peste, e que resolveram, para passarem o tempo, contar cada um dez histórias, durante os dez dias da quarentena. Toda a vida humana, com seus desencontros, sentimentos, morte e superação, aparece ali narrada como num grande afresco. Da degradação à elevação, tudo ali se vai encontrar.
No seu prefácio, começa por mostrar como os ricos viviam em suas casas, com bons vinhos e boa comida, música e outros entretenimentos, e como, ao menor sinal de peste, abandonavam essas suas casas nas cidades e se refugiavam nas suas luxuosas mansões das suas propriedades rurais, “como se a peste apenas atacasse quem ficasse dentro dos muros da cidade”.
Passa depois a descrever como a classe média e os pobres viveram esses tempos:
“Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte.
Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respetivas casas e punham-nos diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante.
E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes.
Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora [...], abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.”
“[...] foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho [...] mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados!”
Curiosamente, muito embora logo no início do prefácio Boccaccio comece por citar o provérbio, “É humano ter compaixão dos aflitos”, na grande maioria dos contos que se lhe seguem, as personagens que nos descreve vão se mostrar quase todas indiferentes ao sofrimento dos outros, pondo à frente as suas inclinações e ambições. Leiam os contos. (1)
A comunicação social das mortes (1665)
Durante os surtos epidémicos ocorridos no século XVII, apareceu em Londres uma singela publicação semanal, “Lord Have Mercy Upon Us”, que, além de incluir um histórico sobre as epidemias anteriores, medicamentos, orações, continha ainda os números relativos à mortalidade por paróquias, o que permitia acompanhar mais precisamente a progressão da epidemia, inspirando um pouco de confiança a uma população urbana totalmente amedrontada sobre as partes da cidade que deveriam evitar. (2)
Alguns dos remédios caseiros então usados, ainda hoje se recomendam:
“Num copo de leite colocar dois pequenos dentes de alho, e beber de manhã em jejum (ou ao pequeno almoço), é o bastante para o afastar da infeção”.
No The Truthers Journal de 17 de fevereiro de 2020, no artigo sobre os “Dez melhores tratamentos naturais para o coronavírus”, pode-se ler:
“[…] Alho:
Esta cura natural tem propriedades antibacterianas e antivirais que podem ajudar a combater o coronavírus. Deve-se tomar dois alhos frescos logo pela manhã, ou tomar suplementos de alho.” (https://thetruthersjournal.home.blog/2020/02/17/1575/).
Filosofia da peste (1947)
A ação desenrola-se na cidade de Oran, na Argélia, onde começam a aparecer mortos milhares de ratos. Assustada, a população exige ação por parte das autoridades, uma matança dos ratos. O que é feito, descansando a população, que regressa à vida normal. Contudo, o Dr. Bernard Rieux, médico ateísta, avisa as autoridades de que se está perante uma peste. As autoridades duvidam, são lentas a responder, só mais tarde acabando por declarar uma pandemia. Com os hospitais sobrelotados, muitos começam a morrer.
Decretada a quarentena, as reações das pessoas variam: desde o suicídio ou a fuga encapotada da cidade, ao padre que afirma tratar-se de uma punição divina, ao criminoso que acaba rico com o contrabando, até ao Dr. Rioux que se mantém a tratar os doentes o melhor possível.
Com a situação a agravar-se, as autoridades declaram o estado de emergência, para controlarem a violência e os roubos. Os funerais passam a serem conduzidos sem qualquer cerimónia ou preocupação para com as famílias. Os que fogem são apanhados e fuzilados. Aos poucos, as pessoas, gastas emocional e fisicamente, entram num estado de apatia.
A peste mantém-se durante meses. Um medicamento contra a peste acaba por aparecer, mas não é sequer suficiente para salvar uma criança. O padre diz que o sofrimento da criança é um teste à fé, mas, muito em breve também ele morre.
Gradualmente, as mortes oriundas da peste começam a diminuir, e as pessoas apressam-se a celebrar. Muitas pessoas morreram, algumas sem terem qualquer relação com a peste, como foi o caso da mulher do dr. Rieux. Apesar de tudo isto, o narrador conclui que há mais para admirar nos humanos do que para depreciá-los.
Este é um breve resumo de A Peste, obra que Albert Camus (1913 – 1960) publicou em 1947, e na qual, de certa forma, Camus se vai servir da peste numa demonstração literária em como o mundo não tem nem sentido nem razão, que a vida é absurda e vã, e tentando ainda responder ao problema filosófico sério de julgar se a vida merece ou não ser vivida.
A peste, ao não poupar nem distinguir ninguém, quem vive e quem morre, está para além da justiça. Não é possível de a explicar através de mitos religiosos ou deuses desvairados. Nem através de qualquer significado racional ou moral. Os deuses limitam-se a observá-la de braços cruzados, sem nada fazerem, por não poderem ou por não quererem. A peste não é nem racional nem justa. A peste representa o absurdo.
Ao estar por todo o lado, ao atingir todos independentemente do estatuto ou das proteções que julgavam ter, a vulnerabilidade é total e acontece a qualquer momento: não é só ao fim do túnel, mas aqui, agora.
A peste está aqui, é a companheira constante das nossas vidas transitórias. Pode até acontecer que nos venha a matar a todos. A peste está em todo o lado e está sempre connosco.
O que devemos então fazer? Aquilo que o dr. Rieux faz: aceitar o absurdo do sofrimento, da morte, e do sem significado da vida, tentando ajudar os nossos companheiros de viajem o melhor possível, com cuidado e preocupação. É tudo o que podemos fazer: cuidar uns dos outros. Lutar desafiadoramente contra o absurdo.
Que é a posição filosófica defendida por Camus, porquanto ele defendia que nos devemos revoltar contra o absurdo, não cometendo suicídio ou procurando refúgio em fés religiosas, mas assumindo a responsabilidade pelas nossas vidas, disfrutando da bondade e beleza que nos rodeiam, e criando a nossa própria razão de ser num mundo sem qualquer razão de ser. Lutar desafiadoramente contra ele. (3)
Em O Mito de Sísifo ensaio sobre o absurdo, publicado em 1943, já Camus escrevia:
“O seu (de Sísifo, herói do absurdo) desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra.”
E termina:
“Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil […] A própria luta para atingir os píncaros basta para poder encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.”
O futuro presente que vivemos (2020)
Sem se saber porquê (ou melhor, sem se querer saber porquê, sendo sempre mais fácil atribuir a culpa aos chineses, aos russos, aos islamitas, aos cubanos, aos morcegos, aos pangolins, ele há tantos que uma vida inteira não dá para nada concluir mesmo porque se for para concluir perde-se a conclusão antes de chegar à conclusão) vamos quase todos sermos voluntariamente obrigados a viver e a sermos enterrados de máscara, mas sempre muito felizes por cumprirmos as diretivas que nos fazem pertencer a nações valentes e imortais, elas, nós não.
Os poucos outros que sobram, aristocraticamente prescindirão da máscara (para além da que são), mas serão também enterrados. Aqui na Terra.
Vem-me à lembrança uma visão daquele samba brasileiro, em que bamboleando e saltando, vamos alegremente cantando “Tristeza não tem fim, Felicidade sim”.
Tem razão Camus:
“É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Só acrescentar, ao fim destes milhares de anos de progresso, a recomendação altamente tecnológica que nos dão: “Não esqueça de lavar as mãos com água e sabão”.
O homem “não é uma criatura terna e necessitada de amor, que só se defenderia se fosse atacado, mas antes pelo contrário, é um ser em cujos instintos se deve incluir uma grande dose de agressividade”, é “uma besta selvagem sem o menor respeito pelos seres da sua própria espécie”, com uma “inclinação inata para a maldade, a agressão, a destruição e também para a crueldade”, Freud.
Fontes de sofrimento que impedem o homem de ser feliz: o poder superior da natureza, a fragilidade do nosso corpo e a inadequação das regras que praticamos na nossa vida social, Freud.
O valor de liberdade individual não constitui a finalidade do desenvolvimento da civilização, Freud.
O destino da espécie humana será decidido pela circunstância de se – e até que ponto – o desenvolvimento cultural conseguirá fazer frente às perturbações da vida coletiva originadas pelo instinto de agressão e de autodestruição, Freud.
É no Capítulo III do Mal-Estar na Civilização, que Freud nos vai explicar as teses que defende sobre o que é a civilização, através de uma brilhante exposição, simultaneamente esclarecedora e ambivalente, em que nos revela a aplicação do conceito filogenético (segundo o qual o desenvolvimento de um organismo refletiria exatamente o desenvolvimento evolutivo da espécie) à origem de uma civilização repressiva em si, abordando ainda a possibilidade, ou não, da conciliação entre as necessidades do indivíduo e as da civilização.
Freud começa por analisar aquilo que considera serem as três fontes de sofrimento que impedem o homem de ser feliz: o poder superior da natureza, a fragilidade do nosso corpo e a inadequação das regras que praticamos na nossa vida social.
Quanto às duas primeiras, reconhece serem uma inevitabilidade facilmente aceite por todos. Já o mesmo não se passa relativamente à fonte social de sofrimento, em virtude de se tratar de algo que nós próprios criámos para vivermos melhor em sociedade. Chama-nos, contudo, a atenção para o facto de essa própria criação poder ser inevitável, devido à nossa constituição psíquica ser limitada.
Em qualquer dos casos, a nossa civilização seria a culpada da nossa infelicidade.
Mas, tal assunção poderá levar a que apressadamente se possa concluir que poderíamos ser mais felizes se abandonássemos a nossa civilização, regressando ao estado primitivo, onde a vida era simples, com poucas necessidades.
Tal conclusão teria por base as observações sobre a vida que os novos povos primitivos descobertos levavam, onde, aparentemente, a felicidade reinava, e sobre os casos recentes de pessoas neuróticas devido à sua inadequação em suportar a frustração imposta pelas normas da sociedade, e que certamente seriam felizes se estas normas fossem retiradas.
Ao que se poderia ainda acrescentar o facto de o enorme progresso técnico e científico que se tem verificado não nos ter trazido mais felicidade, apesar de todos os avanços e suas aplicações que contribuíram para o nosso bem-estar. E não nos devemos esquecer que todas as coisas que procurámos para nos proteger da nossa infelicidade, fomos e vamos busca-las a essa mesma civilização.
O que o leva a concluir que “o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural” . O que isso significa é que “não nos sentimos confortáveis na civilização atual”.
Mas como saberemos objetivamente se os homens de outros tempos eram mais felizes? Sendo a felicidade um conceito subjetivo, por mais que nos queiramos pôr no lugar deles, não poderemos nunca sentir o que eles sentiam. Pelo que esta via de raciocínio não nos conduzirá a nada.
Passa então a definir o que entende por cultura/civilização, palavra “que descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem as nossas vidas da dos nossos antepassados animais, e que servem dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos “.
No respeitante à proteção dos homens contra a natureza, diz-nos que os primeiros atos de civilização foram a utilização de instrumentos, a construção de habitações e o controle sobre o fogo, sendo este último o mais importante. Com a ciência e a tecnologia que desenvolveu, o homem pensa que tudo pode, tornando-se uma espécie de “Deus de prótese” e mesmo crendo nisso não se sente feliz neste seu papel semelhante a Deus.
Define uma civilização como sendo de alto nível quando, tudo o que puder ser útil para o homem (tudo o que o puder ajudar na exploração da natureza e na proteção contra as suas forças), estiver disponível para si e ao seu alcance.
Mas considera também como sinal de civilização, as preocupações dos homens para com aquilo que não tenha valor prático, que não dê lucro, ou seja, com a beleza.
O asseio e a ordem são outras das exigências que a civilização deve de comportar.
Contudo, aquilo que para ele mais identifica uma civilização é o seu grau de apreço pelas atividades mentais, as suas realizações intelectuais, científicas e artísticas, bem como o papel que as ideias desempenham, nomeadamente as que se encontram nos sistemas religiosos, na filosofia e nas ideias de perfeição e aperfeiçoamento do homem e da humanidade.
Quanto à segunda parte da sua definição de civilização, a que tem que ver com o modo como são regulados os relacionamentos entre os homens, começa por nos lembrar que a civilização aparece quando pela primeira vez se tentaram regular esses relacionamentos sociais, evitando assim ficar-se dependente da arbitrariedade e poder dos fisicamente mais fortes.
O aparecimento do poder da comunidade em vez do poder de um indivíduo, é o passo decisivo para a civilização, mesmo que isso seja feito à custa de uma perca de parte da possibilidade de satisfação dos membros da comunidade.
Daí a primeira exigência da civilização ser a justiça, a fim de garantir que uma lei uma vez criada, não seja violada a favor de um indivíduo. Esta perca de satisfação dos membros da comunidade é feita à custa de um sacrifício dos seus instintos.
Pelo que o valor de liberdade individual não constitui a finalidade do desenvolvimento da civilização, porquanto o máximo de liberdade individual pré-existe à civilização, que só a vai restringir.
Daí que este impulso de liberdade apareça dirigido contra exigências específicas da civilização ou contra a civilização no geral: o homem defenderá sempre a sua liberdade individual contra a vontade do grupo.
Seja como for, o facto é que no caminho para a civilização, o guia para a alcançar é o sentimento comum. Ressalva, no entanto, que civilização não é sinónimo de aperfeiçoamento. Contudo, este caminho para a civilização pode levar a alterações de instintos dos seres humanos, o que, de certa forma, pode contrariar a ressalva acima feita.
Como exemplos apresenta o erotismo anal da criança, onde o seu interesse pela função excretória e seus produtos, se vai transformar ao longo do crescimento em parcimónia, ordem e limpeza, exatamente as mesmas exigências que foram consideras importantes para a civilização.
Freud impressiona-se por esta semelhança entre os processos da civilização e o desenvolvimento libidinal do indivíduo.
E apresenta ainda os casos em que se assiste à deslocação das condições de satisfação para outros caminhos, que é o que se passa com a sublimação dos instintos.
A sublimação desempenha um papel muito importante, pois é através dela que as atividades científicas, artísticas e ideológicas se tornam possíveis. Freud não tem dúvidas de que “a sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos de forma total pela civilização”.
Finalmente, ao considerar a civilização como sendo construída pela renúncia ao instinto, à não satisfação desses instintos, conclui que o campo dos relacionamentos sociais é dominado por esta “frustração cultural”, causa da hostilidade nas civilizações.
E conclui, opinando que “o desenvolvimento da civilização constitui um processo especial, comparável à maturação normal do indivíduo”.
A Ambivalência Esclarecedora como método
Através de exemplos sempre paralelos, em que a par de uma referência retirada da civilização, facto ou acontecimento histórico específico, apresenta um correspondente desenvolvimento humano, Freud vai sistematicamente carreando argumentos que nos conduzem até à conclusão apresentada no último parágrafo do capítulo, na qual nos diz que “o desenvolvimento da civilização constitui um processo especial, comparável à maturação normal do indivíduo” (8).
Ao atribuir à fonte social de sofrimento constituída principalmente pela nossa própria constituição psíquica uma das três formas de infelicidade, Freud não é suficientemente claro sobre a sua, ou não, inevitabilidade, mas responsabiliza-nos por ela.
E é esta ambivalência envolvente que ao longo do texto desenvolve: é assim que a civilização é por um lado a grande responsável pela nossa desgraça e simultaneamente a proteção da infelicidade; o progresso traz felicidade (vias de comunicação, contactos mais facilitados entre as pessoas, aumento de idade, e outros), mas de que adianta uma vida mais longa que só dará aso a mais tempo para desgraças?
É ao desenvolvimento da nossa cultura que ficamos a dever o que de melhor nós somos, mas também lhe ficamos a dever grande parte dos nossos sofrimentos. Estes sofrimentos, estes sentimentos de mal-estar, são o preço que temos de pagar para apreciarmos as imensas vantagens que tiramos da cultura. Não há, pois, cultura sem essa inquietação, não sendo possível existir civilização sem descontentamento.
Esta ambivalência utilizada por Freud como método expositivo, é muito mais do que isso: revela um autor que não nos pretende convencer escamoteando o conhecimento, que o expõe nas suas várias vertentes, aduzindo argumentos a favor de todos para logo nos apresentar uma outra possível alternativa, dentro de um sistema coeso em desenvolvimento.
Talvez até seja fruto da sua postura de aprendizagem psicanalítica, onde todos os fatores teriam de ser contemplados, sem prévia preferência, ou mesmo da sua conceção de homem e da sociedade, sempre dependente e oscilante entre a busca do prazer e a agressividade.
Liberdade e felicidade, sentimento de culpa e agressividade
Freud vai interrogar-se sobre a compatibilidade entre as necessidades do indivíduo e as da civilização e se a acomodação portadora de felicidade, entre as reivindicações do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, “pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável”.
Para Freud, a liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Aliás, é o próprio desenvolvimento da civilização que impõe restrições à liberdade e, por sua vez, a justiça (“primeira exigência da civilização”) vai impedir a fuga a essas restrições, ao garantir que o indivíduo não possa violar a lei em seu favor.
Apesar disto, a revolta de uma comunidade humana contra uma injustiça pode originar um progresso na civilização, sendo, portanto, compatível com a civilização, e por outro lado a revolta do indivíduo baseada nos “remanescentes de sua personalidade original” ainda não domada pela civilização, pode converter-se numa hostilidade contra a civilização em geral.
E segue explicando, que é sua intenção
“Apresentar o sentimento de culpa como o problema capital do desenvolvimento da civilização e de nos fazer ver porque é que o progresso desta deve ser pago por uma perca de felicidade devido ao reforço desse sentimento” .
Ou seja, Freud não tem dúvida em estabelecer uma relação entre o progresso da civilização e o crescimento do sentimento de culpa.
Há mesmo uma necessidade de reforçar o sentimento de culpa:
“Como a civilização obedece a uma pulsão erótica interna com a finalidade de unir os homens numa massa mantida intimamente amalgamada, esse objetivo só poderá ser alcançado através de uma constante e progressiva acentuação do sentimento de culpa. O processo que começou pelo pai vai concluir-se com a massa. Se a civilização é a via indispensável para que se faça evolução da família para a humanidade, então este reforço está intimamente ligado a esse percurso, quer como consequência do conflito de ambivalência com o qual nascemos, quer devido à querela eterna entre o amor e o desejo da morte. E, talvez um dia, esta tensão do sentimento de culpa venha a atingir um nível tão alto que tal se torne difícil de ser suportado pelo indivíduo”.
Daqui se infere que a sociedade civilizada se encontra permanentemente ameaçada de desintegração, devido a uma hostilidade primordial dos homens, o que a leva a pôr barreiras para tentar dominar essas tendências agressivas.
O homem “não é uma criatura terna e necessitada de amor, que só se defenderia se fosse atacado, mas antes pelo contrário, é um ser em cujos instintos se deve incluir uma grande dose de agressividade”, é “uma besta selvagem sem o menor respeito pelos seres da sua própria espécie”, com uma “inclinação inata para a maldade, a agressão, a destruição e também para a crueldade”.
Lapidar é frase que Freud escolhe para descrever o homem na sua relação com o seu semelhante:
“Homo homini lupus”.
É esta tendência agressiva do homem, que Freud crê instintiva, inata e autónoma, que constitui o maior obstáculo à civilização. Sabendo isto, o que é que a civilização poderá fazer para controlar ou tornar inofensivos estes desejos agressivos?
Seguindo a história evolutiva do indivíduo, Freud vai dizer-nos que a agressão é internalizada, “devolvida ao sítio de proveniência, ao próprio ego, incorporando-se numa parte dele que na qualidade de superego se opõe à parte restante assumindo a função de consciência [moral], que vai tratar o ego com o mesmo grau de agressividade com que este, de bom grado, teria satisfeito essas mesmas pretensões. O sentimento de culpa que se manifesta sob a forma de necessidade de castigo, é o resultado da tensão criada entre o severo superego e o subordinado ego”.
Donde, a forma com que a civilização poderá dominar a agressividade individual será enfraquecendo-a, desarmando-a e pondo-a debaixo de vigilância por uma entidade alojada no seu interior.
Resumindo: os objetivos do desenvolvimento do indivíduo e o da civilização são diferentes. O indivíduo tem como primeiro objetivo alcançar a felicidade, mas para a civilização tal objetivo não consta entre os que lhe são atribuídos por Freud (limpeza, ordem, beleza, justiça), o que significa que a civilização lhe irá impor restrições para a sua realização.
Estas restrições levarão a uma insatisfação crescente do indivíduo que tem de ser reprimida e sublimada (desvio da pulsão), o que leva à situação estranha de a civilização para progredir necessitar de reprimir as pulsões, mas ao fazê-lo irá aumentar a insatisfação dos seus membros.
Concluindo
Ao dizer que “a civilização foi conquistada devido à renúncia da satisfação dos instintos e exige de todo o novo indivíduo a repetição de tal renúncia”, Freud leva-nos a concluir que a civilização é fundada na repressão dos instintos. Não pode, pois, haver coincidência entre as necessidades do indivíduo e as necessidades da civilização.
Ao comparar o desenvolvimento da civilização à maturação normal de um indivíduo, uma vez que as experiências da infância de cada indivíduo ficam ligadas às experiências da espécie, e dado que essas experiências determinantes da infância são baseadas nas tendências instintivas, Freud vai fazer depender o destino da humanidade das tendências dos instintos.
E o controlo destes instintos não é nem efetivo, nem previsível, o que não permite programadamente impor modificações à nossa civilização de forma a alcançarmos uma felicidade.
Reconhece que “o homem civilizado tinha trocado uma parte da sua possível felicidade por segurança; não nos devemos, contudo, esquecer que na família primitiva só o chefe é que gozava da liberdade dos instintos, ao passo que os outros viviam oprimidos como se fossem escravos”.
E, contudo, embora o desígnio da felicidade seja irrealizável, reconhece também que “não se deve – nem se pode – abandonar os esforços para nos aproximarmos, seja como for, da sua realização”. E isto, não porque saiba qual vai ser o final desta luta da civilização, nem mesmo se esta tendência civilizacional ligada à restrição da vida sexual e à implantação dum ideal humanitário é mesmo uma lei inexorável da Natureza, mas pela contribuição da luta sempre constante e indecisa entre as forças da vida e as da morte.
“O destino da espécie humana será decidido pela circunstância de se – e até que ponto – o desenvolvimento cultural conseguirá fazer frente às perturbações da vida coletiva originadas pelo instinto de agressão e de autodestruição”.
Isto de estarmos todos no mesmo barco, e da guerra que todos temos de combater, não passam de lindas historinhas que nos contam.
Enquanto se discutem guerrinhas culturais, os oligarcas, no poder ou esporadicamente fora dele, continuam a pilhagem.
Tal como durante a Segunda Guerra Mundial, em que a GM, a Ford, e a Chrysler, maximizavam os seus lucros fornecendo aos dois lados o material que eles precisavam para conduzirem a guerra.
Tal como os Republicanos, os Democratas são a face política da oligarquia.
Sempre que os oligarcas tomam o poder, a sociedade será confrontada entre aceitar a tirania ou escolher a revolução, Aristóteles.
Esta linda historinha que nos contam de estarmos todos no mesmo barco, só surge quando quem comanda a embarcação navega por águas muito agitadas que podem levar à eclosão de motins a bordo. Só acontece, portanto, em tempos de crise.
Mesmo admitindo a bondade da comparação, devemos lembrar que não só os lugares no barco não são iguais, como nem tão pouco a sua distribuição é feita aleatoriamente: lugares da frente, do meio, da parte de trás, os de cima, os de baixo, os camarotes superiores, os de primeira, os de segunda e terceira, etc., e os da ponte de comando onde efetivamente se dirige a embarcação. E isto se todos forem da mesma região, da mesma cor, do mesmo formato de olhos, do mesmo género, do mesmo clube, sei lá que mais considerações para a determinação (escolha?) do poleiro. E, tal como na Arca de Noé, só os escolhidos lá entraram.
Também é interessante a historinha que nos contam da guerra que todos temos de combater, porque, para além da mais que evidente separação existente entre os que a comandam e os que nela são por eles lançados, ela permite-nos perceber quem efetivamente dirige os que comandam, e em nome de quê.
Durante a Segunda Guerra Mundial, tendo a Alemanha Nazi falta de bauxita para a fabricação de alumínio para os seus aviões e os Aliados falta de magnetos para a regulação da ignição nos seus aviões, aprestaram-se a fazerem a troca (1) através de uma firma Suíça (neutral, evidentemente, tudo legal), podendo assim prolongar-se a guerra por mais uns tempos. Morreram mais uns soldados, mas fizeram-se mais negócios.
Segundo o United States Senate Committee on the Judiciary (1974), a General Motors, a Ford e a Chrysler, tiveram parte importante na preparação e progressão para a guerra, com a construção de motores para a aviação nazi e de veículos pesados de transporte (o diretor executivo da Ford, recebeu em 1938, a Águia Alemã Nazi de primeira classe), tudo isto ao mesmo tempo que as suas fábricas nos EUA produziam motores de avião para a U.S. Army Air Corps.
Como resumia esse relatório do Senado, “maximizaram os seus lucros fornecendo aos dois lados o material que eles precisavam para conduzir a guerra”, o que permitiu manter “a viabilidade dessas corporações e os interesses dos seus acionistas” (2).
As oligarquias que nos têm vindo a governar desde quase sempre (3),têm tentado convencer-nos que a eliminação ou redução de impostos para os ricos e para as corporações, o comércio livre, a globalização, o neoliberalismo, a desindustrialização, a destruição dos sindicatos, o estado de constante espionagem sobre os indivíduos, as guerras sem fim, a austeridade, tudo isso resulta de uma lei natural que conduz ao progresso social e económico, mesmo que isso venha a acabar com a democracia liberal e até com a vida humana devido à crise climática.
Tudo isso não passam de ideologias ou instrumentos utilizados pelos oligarcas para aumentarem cada vez mais os seus proventos por forma a permitir-lhes diferenciarem-se dos outros mortais, para o que arrebanham exércitos de advogados, publicitários, políticos, juízes, académicos e jornalistas, a fim de censurarem e controlarem o debate público e afastarem os dissidentes.
“Os oligarcas deliciam-se a falar sobre raça. Deliciam-se a falar sobre identidade sexual e género. Deliciam-se a falar sobre patriotismo. Deliciam-se a falar sobre religião. Deliciam-se a falar sobre imigração. Deliciam-se a falar sobre o aborto. Deliciam-se a falar sobre a posse de armas e seu controle. Deliciam-se a falar sobre a degenerescência cultural ou sobre a liberdade cultural.”
Se repararem, todos estes temas, raça, género, religião, aborto, imigração, controle de armas, cultura, patriotismo, são temas que dividem o público, que põem vizinhos contra vizinhos, que levam a violentos ódios e antagonismos, conduzindo à divisão entre as pessoas. Enquanto se discutem estas guerras culturais, os oligarcas, no poder ou esporadicamente fora dele, continuam a pilhagem.
Em nenhum sítio se vê isto tão bem como nos EUA, com as pretensas grandes diferenças apregoadas entre os partidos Republicano e Democrata.
E, contudo, “os democratas, tal como os republicanos, servem os interesses das indústrias farmacêuticas e dos seguros. Os democratas, tal como os republicanos, servem os interesses dos contratantes da indústria da defesa. Os democratas, tal como os republicanos, servem os interesses da indústria de combustíveis fósseis. Os democratas, juntamente com os republicanos, autorizaram os gastos de 738 biliões de dólares para as já inchadas forças armadas durante o ano fiscal de 2020. Os democratas, como os republicanos, não se opõem às guerras sem fim no Médio Oriente. Os democratas, tal como os republicanos, retiram as liberdades civis, incluindo o direito à privacidade, à liberdade de não ser espiado pelo governo. Os democratas, tal como os republicanos, legalizaram a possibilidade da doação de fundos ilimitados pelos ricos e pelas corporações para os partidos, transformando o processo eleitoral num sistema legal de corrupção. Os democratas, tal como os republicanos, militarizaram a polícia e construíram um sistema de encarceração de massas que conduziu aos EUA terem 25% de todos os presos do mundo para uma população de apenas 5% do mundo.”
Elucidativo também, é o exemplo de Bernie Sanders, cujo socialismo democrático pouco se afasta do New Deal do democrata Roosevelt. As suas propostas de acabar com as guerras no exterior, redução do orçamento militar, cuidados de saúde para todos, abolição da pena de morte, eliminação das prisões privadas, aumento de impostos para os ricos, aumento do vencimento mínimo para 15 dólares à hora, cancelar os débitos dos estudantes, eliminar o Colégio Eleitoral, banir as explorações do petróleo de xisto, não são propriamente propostas revolucionárias.
Ele não propõe a nacionalização dos bancos, das indústrias de armamento e de combustíveis fósseis. Não propõe a criminalização das elites financeiras que deram cabo da economia mundial, ou dos políticos e generais que mentiram para iniciarem guerras preventivas, consideradas à luz do direito internacional como guerras criminosas de agressão, que devastaram grande parte do Médio Oriente e que resultaram em centenas de milhar de mortos e milhões de refugiados, que custaram, só aos EUA, 5 a 7 triliões de dólares. Ele não incita os trabalhadores a apoderarem-se das fábricas e dos negócios. Ele não fala em punir as corporações que transferiram a sua produção para além-mar. Ele não concorda com ações de desobediência civil de massa que levem a fazer cair o sistema.
E, contudo, Sanders nunca poderá contar com o apoio dos democratas influentes do partido, que preferirão, inclusivamente, se se viesse a chegar a isso, Trump. Tal como os republicanos, os democratas são a face política da oligarquia.
É que apesar de Trump ser um embaraço para os oligarcas, não os ameaça. Deixará sempre os ricos à parte.
E tudo isto porque Sanders se atreveu a falar de ricos e pobres como classes antagónicas. Os interesse dos ricos não são os interesses dos pobres. As vidas dos ricos não são as vidas dos pobres. Atreveu-se a romper com a tão bem montada máquina que tanto se delicia a discutir apenas sobre o que quer discutir e acha importante.
Vale a pena lembrar Aristóteles quando escreveu que sempre que os oligarcas tomem o poder, a sociedade será confrontada entre aceitar a tirania ou escolher a revolução.
Como corolário a este pensamento político do filósofo, cito o aforisma mais popular que nos avisa que quando o mar bate na rocha o mexilhão acaba sempre lixado.