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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(261) A colonização sionista da Palestina

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

O conflito Israel-Palestino não é produto de ódios étnicos antigos. É o confronto trágico entre dois povos que reivindicam a mesma terra. É um conflito fabricado, resultado de uma ocupação colonial de 100 anos.

 

Israel, tornou-se no destino trágico dos palestinos, que não tendo tido nenhum papel nos pogroms europeus ou no Holocausto, acabaram por serem os sacrificados no altar do ódio.

 

As elites britânicas sempre acreditaram que os judeus nunca poderiam ser integrados na sociedade britânica e que o melhor para eles seria emigrar.

 

Após a Guerra, as potências europeias lidaram com a crise dos refugiados judeus enviando as vítimas do Holocausto para o Médio Oriente.

 

A maneira mais segura de erradicar o direito de um povo à sua terra é negar sua ligação histórica com ela.

 

 

 

 

 

Após a terceira eleição em menos de um ano, Benjamin Netanyahu continuou a não conseguir formar governo, pelo que o Presidente de Israel encarregou o seu opositor, Benny Gantz, de apresentar um novo governo. Continuando Netanyahu a estar oficialmente acusado de suspeitas de corrupção, e no caso de Gantz não conseguir formar governo, Israel poderá ter de realizar um quarto processo eleitoral. Sinais de instabilidade, sinais de crise, numa das regiões mais críticas do planeta.

 

Foi Judith Shklar (1928-92), filósofa e politóloga da Harvard University, que, após uma visita a Israel e à Palestina em 1987, lembrou aos seus colegas de universidade, Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski, que as suas políticas de puro maquiavelismo de apoio incondicional a Israel, não eram realistas, devendo antes focalizarem-se sobre o que poderia ser alcançado e defendido.

Segundo ela:

 

Os Judeus de Israel conseguiram alcançar um dos objetivos do Sionismo: eles não são diferentes, nem piores nem melhores, que o resto da humanidade. Eles não são mais espertos, nem mais virtuosos que todas as outras nações”.

 

Mais de trinta anos passaram, e vejamos o que nos diz Chris Hedges (1), sacerdote americano e prémio Pulitzer, no seu artigo, “A Colonização Sionista da Palestina” (The Zionist Colonization pf Palestine), publicado a 24 de fevereiro de 2020, e que, pela sua importância, passo a transcrever na íntegra:

 

 

“O conflito Israel-Palestino não é produto de ódios étnicos antigos. É o confronto trágico entre dois povos que reivindicam a mesma terra. É um conflito fabricado, resultado de uma ocupação colonial de 100 anos por sionistas (2) e mais tarde por Israel, apoiada pelos britânicos, pelos Estados Unidos e por outras grandes potências imperiais. É um projeto que visa a tomada contínua de terras palestinas pelos colonizadores.

 Trata-se de fazer dos palestinos não-pessoas, eliminando-os da narrativa histórica, como se eles nunca tivessem existido e negando-lhes direitos humanos básicos. No entanto, para contrariar estes fatos incontestáveis ​​da colonização judaica - apoiados por inúmeros relatórios oficiais e comunicados públicos e privados, além de registros e acontecimentos históricos -, os defensores de Israel dizem tratarem-se de argumentos de antissemitismo e de racismo.

 

Rashid Khalidi (3), professor de estudos árabes modernos Edward Said (4) na Universidade de Columbia, no seu livro A Guerra dos Cem Anos na Palestina: Uma História de Colonização e Resistência, 1917-2017, documentou meticulosamente esse longo projeto de colonização da Palestina. A sua pesquisa exaustiva, que inclui comunicações internas e privadas entre os primeiros sionistas e a liderança israelita, não deixa dúvidas que os colonizadores judeus sabiam desde o início que o povo palestino tinha que ser subjugado e removido para criar o estado judaico.

A liderança judaica estava também ciente de que suas intenções tinham que ser escamoteadas por trás de eufemismos, como a da propalada legitimidade bíblica dos judeus para uma terra que era muçulmana desde o século VII, as banalidades sobre direitos humanos e democráticos, os supostos benefícios da colonização para os colonizados e o apelo falacioso à democracia e à coexistência pacífica para com os que eram os alvos a serem destruídos.

 

"Este é um tipo de colonialismo único ao qual fomos submetidos, porquanto eles não veem nenhuma serventia para nós", escreve Khalidi. E cita Said como tendo dito “O melhor palestino para eles é o que está morto ou o que se foi embora. Não é que eles nos queiram explorar ou que precisem de nos manter aqui, como uma subclasse a caminho da Argélia ou África do Sul. "

 

O sionismo nasceu dos males do antissemitismo. Foi uma resposta à discriminação e violência infligida aos judeus, especialmente durante os pogroms (5) selvagens, na Rússia e na Europa Oriental no final do século XIX e início do século XX, que deixaram milhares de mortos. O líder sionista Theodor Herzl, publicou em 1896, Der Judenstaat (O Estado Judeu), onde já avisava os judeus de que não estavam seguros na Europa, aviso que, em poucas décadas, provou ser terrivelmente presciente com a ascensão do fascismo alemão.

 

O apoio da Grã-Bretanha a uma pátria judaica foi sempre visto como antissemitismo. A decisão de 1917 do Gabinete Britânico, conforme expresso na Declaração de Balfour (6), de apoiar "o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu", foi o chavão de um empreendimento equivocado, baseado em medidas antissemitas.

Foi assumido pelas elites britânicas no poder, a ‘missão’ de unir a "judiaria internacional" - incluindo oficiais de ascendência judaica em altos cargos no novo estado bolchevique na Rússia - por trás da campanha militar britânica na Primeira Guerra Mundial.

Os líderes britânicos de então estavam convencidos de que os judeus controlavam secretamente o sistema financeiro dos EUA. Os judeus americanos, assim que lhes fosse prometido uma pátria na Palestina, trariam, pensavam os líderes britânicos, os Estados Unidos para a guerra e ajudariam a financiar o esforço de guerra.

Acreditavam ainda os britânicos, que judeus e dönmes - ou "cripto judeus" cujos ancestrais se haviam convertido ao cristianismo, mas que continuavam praticando os rituais do judaísmo em segredo - controlavam o governo turco. Se os sionistas tivessem uma pátria na Palestina, os judeus e os dönmes abandonariam o regime turco, que era aliado da Alemanha na guerra, e o governo turco entraria em colapso. Para os britânicos, a judiaria internacional, era a chave para vencer a guerra.

"Com a 'Grande Judiaria' contra nós", alertou o britânico Sir Mark Sykes, que juntamente com o diplomata francês François Georges-Picot criou o tratado secreto que dividiu o Império Otomano entre a Grã-Bretanha e a França, não haveria possibilidade de vitória. O sionismo, disse Sykes, era uma poderosa força subterrânea global, "internacional, cosmopolita, subconsciente e não escrita, mas muitas vezes não dita".

 

As elites britânicas, incluindo o ministro dos negócios estrangeiros Arthur Balfour, também acreditavam que os judeus nunca poderiam ser integrados na sociedade britânica e que o melhor para eles seria emigrar. É revelador o facto de o único membro judeu do governo do primeiro-ministro David Lloyd George, Edwin Montagu, se ter oposto veementemente à Declaração de Balfour. Ele argumentou que isso encorajaria cada estado a expulsar os seus judeus. "A Palestina tornar-se-á o gueto do mundo", alertou.

 

O que acabou por ser o caso, quando após a Segunda Guerra Mundial, centenas de milhares de refugiados judeus, muitos tornados apátridas, não tinham para onde ir, a não ser para a Palestina. Muitas vezes, as suas comunidades foram destruídas durante a guerra ou as suas casas e terras confiscadas. Os judeus que retornaram no pós-guerra a países como a Polónia, descobriram que não tinham onde morar e eram frequentemente vítimas de discriminação, de ataques antissemitas e até de massacres.

 

As potências europeias lidaram com a crise dos refugiados judeus enviando as vítimas do Holocausto para o Médio Oriente. Assim, enquanto os líderes sionistas entendiam que tinham que retirar e deslocar os árabes para conseguirem estabelecer uma terra natal, estavam também cientes de que não eram desejados nos países de onde fugiram ou foram expulsos.

 Os sionistas e seus apoiantes podem ter utilizado slogans como "uma terra sem povo para um povo sem terra" ao falar da Palestina, mas, como observou a filósofa política Hannah Arendt, as potências europeias tentavam lidar com o crime praticado contra os judeus na Europa, cometendo outro crime, contra os palestinos.

 Era uma receita para um conflito sem fim, especialmente porque dar aos palestinos sob ocupação direitos democráticos plenos, implicaria o risco de os judeus perderem o controle de Israel.

Ze'ev Jabotinsky, o padrinho da ideologia de extrema-direita que domina Israel desde 1977, uma ideologia adotada abertamente pelos primeiros-ministros Menachem Begin, Yitzhak Shamir, Ariel Sharon, Ehud Olmert e Benjamin Netanyahu, escreveu sem rodeios em 1923:

 

 “Toda a população nativa do mundo resiste aos colonos, desde que tenha a menor esperança de se poder livrar do perigo de ser colonizada. É isso que os árabes na Palestina estão a fazer e que persistirão enquanto houver uma centelha solitária de esperança em como eles serão capazes de impedir a transformação da 'Palestina' na 'Terra de Israel’”.

 

Esse tipo de honestidade pública, observa Khalidi, era raro entre os principais sionistas. A maioria dos líderes sionistas "afirmou a inocente pureza de seus objetivos e enganou os ocidentais, e talvez a eles próprios, com contos de fadas sobre as suas intenções benignas relativamente aos habitantes árabes da Palestina", escreve ele.

 

 Os sionistas - numa situação semelhante à dos atuais apoiantes de Israel - sabiam que seria fatal reconhecer que a criação de uma pátria judaica exigia a expulsão da maioria árabe. Essa admissão faria com que os colonizadores perdessem a simpatia do mundo. Mas, entre si, os sionistas entenderam claramente que o uso da força armada contra a maioria árabe era essencial para o sucesso do projeto colonial. "A colonização sionista (...) só pode prosseguir e desenvolver-se sob a proteção de um poder independente da população nativa - atrás de um muro de ferro, que a população nativa não possa violar", escreveu Jabotinsky.

 

Os colonizadores judeus sabiam que precisavam de um patrono imperial para ter sucesso e sobreviver. O seu primeiro patrono foi a Grã-Bretanha, que enviou 100.000 soldados para esmagar a revolta palestina da década de 1930, e armava e treinava milícias judaicas conhecidas como Haganah. A repressão selvagem dessa revolta incluiu execuções indiscriminadas e bombardeamentos aéreos, deixando 10% da população árabe adulta masculina morta, ferida, encarcerada ou exilada.

 

O segundo patrono dos sionistas foi os Estados Unidos, que ainda agora, gerações depois, fornecem mais de 3 bilhões de dólares por ano a Israel (7).

É que Israel, apesar do mito de autoconfiança que apregoa, não seria capaz de manter as suas colónias palestinas, sem a ajuda dos seus benfeitores imperiais. É por isso que o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções, assusta Israel. É também por isso que apoio o movimento BDS.

Os primeiros sionistas a chegar, compraram enormes extensões de terras férteis palestinas e expulsaram os habitantes indígenas. Subsidiaram a vinda de colonos judeus europeus para a Palestina, onde 94% dos habitantes eram árabes. Criaram organizações como a Associação de Colonização Judaica, mais tarde chamada Associação de Colonização Judaica da Palestina, para administrar o projeto sionista.

 

Mas, como escreve Khalidi, “uma vez que o colonialismo ficou malvisto na era da descolonização pós-Segunda Guerra Mundial, as origens e práticas coloniais do sionismo e de Israel foram branqueadas e convenientemente esquecidas em Israel e no Ocidente. De fato, o sionismo - por duas décadas o enteado mimado do colonialismo britânico – renomeou-se a si mesmo como um movimento anticolonial.”

 

Hoje, o conflito que foi gerado por esse clássico empreendimento colonial europeu do século XIX numa terra não europeia, apoiada a partir de 1917 pela maior potência imperial ocidental de sua época, raramente é descrito em termos tão brilhantes”, escreve Khalidi.

 “De fato, aqueles que analisam não apenas os esforços de colonatos israelitas em Jerusalém, na Cisjordânia e nas Colinas de Golã sírias ocupadas, mas toda a empresa sionista na perspetiva das suas origens e natureza da sua colonização, são frequentemente difamados. Muitos não podem aceitar a contradição inerente à ideia de que, embora o sionismo tenha, sem dúvida, conseguido criar uma entidade nacional próspera em Israel, as suas raízes são como os dos projetos coloniais (como são os de outros países modernos: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia).

Tampouco podem aceitar que ele não teria tido sucesso se não fosse o apoio das grandes potências imperiais, a Grã-Bretanha e, mais tarde, os Estados Unidos. O sionismo, portanto, poderia ser e foi ao mesmo tempo, um movimento nacional de colonos e um movimento colonial.”

 

Um dos princípios centrais da colonização sionista e israelita é o da negação da existência de uma identidade palestina autêntica e independente. Durante o controle britânico da Palestina, a população foi oficialmente dividida entre judeus e "não-judeus". "Não havia palestinos ... eles não existiam", brincou uma vez o primeiro-ministro israelita Golda Meir.

Essa eliminação, que requer um ato flagrante de amnésia histórica, é o que o sociólogo israelita Baruch Kimmerling chamou de "politicídio" do povo palestino. Khalidi escreve: "A maneira mais segura de erradicar o direito de um povo à sua terra é negar sua ligação histórica com ela".

 

A criação do estado de Israel em 15 de maio de 1948, foi alcançado pela Haganah e por outros grupos judeus, através da limpeza étnica e massacres dos palestinos que espalharam o terror entre a população palestina. A Haganah, treinada e armada pelos britânicos, rapidamente ocupou a maior parte da Palestina. Esvaziou Jerusalém Ocidental e cidades como Haifa e Jaffa, juntamente com inúmeras cidades e vilas, dos seus habitantes árabes. Os palestinos chamam a esse momento de sua história, Nakba, ou Catástrofe.

 

"No verão de 1949, a comunidade palestina tinha sido devastada e a maior parte de sua sociedade foi erradicada", escreve Khalidi. "Cerca de 80% da população árabe do território que no final da guerra se tornou o novo estado de Israel, foi expulsa das suas casas e perdeu as suas terras e propriedades. Pelo menos 720.000 dos 1,3 milhão de palestinos foram feitos refugiados. Graças a essa transformação violenta, Israel controlava 78% do território da antiga Palestina e agora governava os 160.000 árabes palestinos que tinham conseguido permanecer, um quinto da população árabe anterior à guerra.”

 

Desde 1948, os palestinos têm heroicamente vindo a esforçar-se por resistir, perante as represálias israelitas desproporcionais, a que acresce a sua demonização como sendo terroristas. Mas essa resistência também forçou o mundo a reconhecer a existência dos palestinos, apesar dos esforços febris de Israel, Estados Unidos e muitos regimes árabes para removê-los da consciência histórica. As repetidas revoltas, como disse Said, deram aos palestinos o direito de contar sua própria história, a "permissão para narrar".

 

O projeto colonial envenenou Israel, como temiam alguns dos seus líderes mais prescientes, incluindo Moshe Dayan e o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, que foi assassinado por um extremista judeu de direita em 1995. Israel é um estado de apartheid que rivaliza e muitas vezes supera a selvageria e o racismo do apartheid na África do Sul. A sua democracia - que sempre foi exclusivamente para judeus - foi sequestrada por extremistas, incluindo o atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que implementou leis raciais que antes eram defendidas principalmente por fanáticos marginalizados, como Meir Kahane (8).

 O público israelita está infetado com racismo. "Morte aos árabes" é um cântico popular nos jogos de futebol israelenses. Multidões e vigilantes judeus, incluindo bandidos de grupos juvenis de direita, como Im Tirtzu, realizam atos indiscriminados de vandalismo e violência contra dissidentes, palestinos, árabes israelitas e os infelizes imigrantes africanos que vivem amontoados nas favelas de Tel Aviv.

 

Israel promulgou uma série de leis discriminatórias contra não-judeus que se assemelham assustadoramente às leis racistas de Nuremberg (9), utilizadas contra os judeus na Alemanha nazista. A Lei de Aceitação de Comunidades, permite que cidades exclusivamente judaicas na região da Galileia de Israel, impeçam os requerentes de residência, com base na "adequação às perspetivas fundamentais da comunidade". O falecido Uri Avnery, político e jornalista de esquerda, escreveu que "a própria existência de Israel está ameaçada pelo fascismo".

 

Nos últimos anos, cerca de 1 milhão de israelitas deixaram Israel para irem viver para os Estados Unidos, entre eles muitos dos cidadãos mais esclarecidos e instruídos de Israel. Em Israel, ativistas de direitos humanos, intelectuais e jornalistas - israelitas e palestinos – viram-se difamados como traidores em campanhas patrocinadas pelo governo, colocados sob vigilância estatal e sujeitos a prisões arbitrárias.

 O sistema educacional israelita, começando na escola primária, é uma máquina de doutrinação para os militares. O exército israelita lança periodicamente ataques maciços com sua força aérea, artilharia e unidades mecanizadas contra 1,85 milhão de palestinos em Gaza, resultando em milhares de palestinos mortos e feridos. Israel administra o campo de detenção de Saharonim, no deserto de Negev, um dos maiores centros de detenção do mundo, onde os imigrantes africanos podem ser mantidos até três anos sem julgamento.

 

O grande estudioso judeu, Yeshayahu Leibowitz, a quem Isaiah Berlin chamou de "a consciência de Israel", viu o perigo mortal para Israel do seu projeto colonial. Ele alertou que se Israel não separasse Igreja e Estado, e não acabasse com a ocupação colonial dos palestinos, daria origem a um ‘rabinato’ corrupto. que transformaria o judaísmo num culto fascista. "O nacionalismo religioso é para a religião, o que o nacional-socialismo foi para o socialismo", disse Leibowitz, que morreu em 1994.

Ele viu que a veneração cega dos militares, especialmente após a guerra de 1967 em que Israel capturou a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, resultaria na degeneração da sociedade judaica e na morte da democracia.

 

"A nossa situação deteriorar-se-á como a de um segundo Vietnam [uma referência à guerra travada pelos Estados Unidos na década de 1970], uma guerra em constante escalada sem perspetiva de resolução final", escreveu Leibowitz.

Ele previu que “os árabes seriam os trabalhadores e os judeus os administradores, inspetores, funcionários e polícia - principalmente a polícia secreta. Um estado que governasse uma população hostil de 1,5 a 2 milhões de estrangeiros tornar-se-ia necessariamente um estado de polícia secreta, com tudo o que isso implica em educação, liberdade de expressão e instituições democráticas. A característica de corrupção de todo regime colonial também prevaleceria no Estado de Israel. O governo teria que suprimir a insurreição árabe, por um lado, e contratar informadores árabes, por outro. Também há boas razões para temer que a Força de Defesa de Israel, que até agora era um exército popular, como resultado de ser transformada num exército de ocupação, e os seus comandantes, que se tornaram governadores militares, se venham a assemelhar aos seus colegas de outras nações.

 

Os sionistas nunca poderiam ter colonizado os palestinos sem o apoio das potências imperiais ocidentais, e cujos motivos já vimos serem baseados num antissemitismo. Muitos dos judeus que fugiram para Israel não o teriam feito, exceto pelo virulento antissemitismo europeu que, no final da Segunda Guerra Mundial, tinha assassinado 6 milhões de judeus.

Israel era tudo para os muitos sobreviventes empobrecidos e apátridas, privados dos seus direitos nacionais, comunidades, e casas que a maioria de seus parentes tinham deixado. Tornou-se no destino trágico dos palestinos, que não tendo tido nenhum papel nos pogroms europeus ou no Holocausto, acabaram por serem os sacrificados no altar do ódio.

 

 

(1) Ver a biografia de Chris Hedges (https://www.truthdig.com/author/chris_hedges/#author-bio).

(2) Sionismo: termo usado pela primeira vez em 1890, é um movimento internacional que propunha originalmente a instalação de uma comunidade nacional judia ou religiosa na Palestina, futura base para o suporte do moderno Israel.

(3) Biografia de Rashid Khalidi (https://history.columbia.edu/faculty/khalidi-rashid/).

(4) Biografia de Edward Said (https://www.britannica.com/biography/Edward-Said).

(5) Definição de pogrom, palavra russa para descrever a violência das autoridades russas de então contra os judeus, incluindo massacres (https://www.history.com/topics/russia/pogroms).

(6) Carta escrita em 2 de novembro de 2017 pelo ministro britânico dos negócios estrangeiros, Arthur James Balfour, ao cidadão britânico judeu mais ilustre, Lionel Walter Rothschild, e na qual expressava o suporte do governo britânico à criação de um estado judeu na Palestina.

(7) Segundo documento do Congresso, “U.S. Foriegn Aid to Israel”, (https://fas.org/sgp/crs/mideast/RL33222.pdf).

(8) Biografia de Meir-Kahane, (https://www.britannica.com/biography/Meir-Kahane).

(9) Leis instituídas pelos nazis em Nuremberga, 1935, legalizando a prática das suas teorias raciais, (https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/the-nuremberg-race-laws).

 

(260) Pandemias na globalização

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

Já não necessitamos de ratos ou moscas para espalhar a doença, podemos agora fazê-lo nós próprios através das nossas deslocações e das cadeias de fornecimento de bens, David Goodhart.

 

Estamos a mudar a terra mais rapidamente do que a conseguimos entender […] imersos num dos maiores registos de extinção da história geológica.

 

Usufruir de água canalisada, ter ensino público e ter uma pequena televisão, no mundo de hoje, não significa que não se viva numa extrema pobreza.

 

É a desigualdade durante toda a vida que importa.

 

Podem existir eleições livres, porém, do modo como são apresentadas aos eleitores, não existe uma verdadeira escolha nas questões que realmente lhes interessam: as questões de economia.

 

 

 

 

 

Estou certo que quando Henry Ford decidiu criar o seu modelo de automóvel popular, não pensou na enorme expansão que os carros iriam ter ao longo do século, acabando por virem a adulterar o clima do planeta.

 Estou certo que quando os eminentes cientistas que permitiram e participaram na criação da bomba atómica, tivessem pensado na sua utilização imediata e no enorme desenvolvimento das armas atómicas que se lhe seguiu e que colocaram o mundo à beira da extinção, não o teriam feito. Fizeram-no apenas por cederem ao medo que lhes foi induzido pela possibilidade de os nazis de Hitler se anteciparem.

 

 Estou certo que tanto Carnot como Watt quando inventaram a máquina a vapor, não pensaram que estavam a entreabrir as portas da industrialização tal como ela se veio a verificar, nem na contribuição que ela teve durante os dois séculos que se lhe seguiram para o irreversível aquecimento global.

 

 

Já o mesmo não se passa com aqueles que nos convenceram daquilo que se entendia ser a “globalização”, processo ‘vendido’ acenando a noção romântica da aldeia global, onde todos estaríamos mais ligados uns aos outros do que no passado, onde teríamos muitos mais amigos, teríamos muito mais possibilidades de saber o que está a acontecer no mundo e de participar, muito mais possibilidades de termos muito mais coisas, e onde especialmente viveríamos todos muito mais desafogadamente.

Escondido e sem rabo de fora, encontrava-se o neoliberalismo que incentivava a destruição das forças que estavam a bloquear o desenvolvimento económico, e consequentemente, o progresso: os governos dos países (que pouco ou nada percebendo de economia, deveriam ser retirados da sua gestão ou de interferir nela) e o poço sem fundo da assistência social.

Finalmente ao fim de quarenta anos, assistimos ao eclipse das instituições governamentais em favor de corporações multinacionais, que atuam unicamente para maximizar os seus lucros em benefícios dos seus acionistas.

Mas será mesmo assim?

 

 

Aparentemente, para responder a esta questão, bastaria uma simples compilação e comparação sobre o estado do mundo, antes e depois.

O problema está nos cálculos, projeções, previsões. Está ainda na definição de conceitos, na consideração das bases de partida, na recolha de dados, nos algoritmos utilizados, sei lá que mais, tudo com a finalidade de dar crédito e justificar cientificamente coisas como o número de cidadãos da Grécia Antiga, suas rendas, seus índices de saúde, índices de desigualdade, etc. (faz-me sempre recordar aquela história do avião a cair com os motores parados, onde apenas existiam vinte paraquedas para vinte e uma pessoas, entre as quais seguia uma mais escura, muito mais, e se decidiu fazer perguntas para ver quem ficava excluído: quantos motores tem o avião? Em que cidades vamos cair? quantos habitantes tem? e quando chegou ao muito mais escuro a pergunta foi: nomes e números de telefone das pessoas que lá vivem?), para daí se concluir, por exemplo, que afinal está tudo a melhorar (1).

 

Basta consultar o seu arauto-mor, Steven Pinker (Enlightenment Now, The Case For Reason, Science, Humanism, and Progress), que Bill Gates diz ser “o meu livro favorito de sempre”, para que essa ideia de progresso irreversível, cumulativo e sem alternativa, conforte o nosso espírito de subclasse.

 

Globalização, industrialização, automóveis, computadores, roubo de dados pessoais só criminalizados se forem feitos por pessoas singulares sem empresas formadas, tudo no sentido positivo e inevitável do progresso. O copo meio cheio. Será que vai parar quando estiver cheio? Claro que há sempre a possibilidade de substituir o copo por um maior.

 

 

 

Vejamos o outro lado. A primeira grande compilação sobre o estado do mundo do ponto de vista ambiental, apareceu em 1970, com a publicação dos cálculos e projeções do Clube de Roma, no Limits to Growth.

 

Dez anos depois, em 1980, Willy Brandt, alemão europeísta, presidente de uma comissão cujo Relatório se intitulava Norte-Sul, um programa para a sobrevivência, fazia notar que “já são 800 milhões os pobres absolutos e o seu número está a aumentar; a escassez de cereais e outros bens alimentares agrava a perspetiva da fome e penúria; uma população em crescimento acelerado, com mais dois mil milhões nas duas próximas décadas, causará tensões muito maiores sobre a alimentação e os recursos do mundo”.

 

Em 2005, a pedido do Secretário-Geral das Nações Unidas, é apresentado o Millennium Ecosystem Assessment, que nos vem dar um resultado mais completo e atualizado, sobre a intervenção feita pelos homens relativamente à sustentabilidade do ecossistema, tendo em consideração a regulamentação da água, da erosão, o tratamento das águas e esgotos, a doença, as pestes, a polinização, o clima, os valores espirituais e religiosos, estéticos, recreação e ecoturismo.

Entre todos estes indicadores, só se verificou uma melhoria na regulamentação do clima.

 No respeitante à pobreza, das 37 milhões de pessoas que estavam malnutridas em 1997-99, passou-se para 85 milhões de pessoas em 2000-02; a desigualdade também aumentou, 21 países baixaram de posição segundo o Índice de Desenvolvimento Humano.

 

Note-se que estes níveis de empobrecimento global seriam muito maiores, aparecendo atenuados devido ao rápido crescimento económico da China e da India, o que significa que a pobreza se mantém profunda e persistente noutras regiões, especialmente na Africa subsaariana.

 

Para além do aumento substancial no consumo de matérias-primas e recursos vivos, o ritmo e a escala das alterações introduzidas na biosfera não têm comparação com qualquer outra época da história, tendo quase todas impacto negativo. A extinção de espécies atinge valores que vão de 100 a 10.000. “Estamos imersos num dos maiores registos de extinção da história geológica”.

 

As transformações que a Terra tem sofrido, introduzidas pelo homem, têm-se vindo a acelerar, particularmente nos países com processos de industrialização rápida, de tal forma que se diz que “estamos a mudar a terra mais rapidamente do que a conseguimos entender”.

 

Esta capacidade para destruir os sistemas essenciais para a vida é algo de novo. A humanidade está rapidamente a queimar os seus recursos naturais bem como a sua capacidade para suportar a vida, sem pensar não só no futuro, mas também nos direitos e necessidades atuais.

Este é o verdadeiro estado do Mundo.

 

 

Mas será mesmo? Não é isso que nos dizem nas notícias os órgãos de comunicação social. Não é isso que nos dizem aqueles líderes de opinião especializados e contratados para nos informarem.

Afinal há sempre uns que acabam na miséria e outros que prosperam, não é? Não, não é! É a desigualdade durante toda a vida que importa, e essa é enorme e tem crescido imenso durante os últimos anos.

 Afinal, a pobreza não é bem pobreza verdadeira, eles vivem muito melhor do que se estivessem noutro sítio, eles têm televisões, água canalisada, escolas públicas, não é? Não, não é! Usufruir de água canalisada, ter ensino público e ter uma pequena televisão, no mundo de hoje, não significa que não se viva numa extrema pobreza.

 

 

Vejamos com atenção o que nos diz o prémio Nobel da Economia, Joseph Stiglitz, no seu livro O Preço da Desigualdade:

 

Embora os problemas na zona euro se tenham revelado primeiro na Grécia, outros países como a Irlanda, Portugal, Espanha, Chipre e Itália, não demoraram muito a juntarem-se à lista de países em dificuldades. A extensão da lista devia tornar claro que não se tratava de uma questão de um país estar ‘no mau caminho’. Havia algo sistematicamente errado. Mas o diagnóstico dos líderes europeus era fundamentalmente defeituoso, as receitas seguidas estavam mel pensadas, e ainda vieram agravar mais a situação.”

 

“O diagnóstico dos líderes europeus focava-se no desregramento fiscal – ignorando o facto de que dois dos países em crise, Espanha e Irlanda, andavam a apresentar excedentes antes da crise. A recessão provocou os défices, e não o contrário.

 

Mas a receita seguida após o diagnóstico de desregramento fiscal foi a austeridade – que importa que praticamente não houvesse exemplos de países que tivessem recuperado de uma crise através da austeridade?

 

A não ser que o crescimento das exportações compense as despesas governamentais, a austeridade conduzirá a mais desemprego […], mas […] no meio de uma desaceleração económica global, o aumento das exportações seria, de qualquer modo, difícil.

O resultado foi o esperado: os países que seguiram a austeridade […] entraram em recessões mais profundas e, à medida que estas se aprofundavam, as melhorias esperadas na posição fiscal foram dececionantes.”

 

Os bancos sempre receberam implicitamente subsídios dos governos – o que se tornou evidente na crise de 2008, quando governo atrás de governo se envolveu em enormes resgates. A confiança no sistema bancário de um país depende da confiança na capacidade e na vontade dos governos em resgatar os bancos nacionais.

 Mas, quando um país é enfraquecido por uma recessão económica, a sua capacidade para resgatar os bancos é enfraquecida […] A confiança no sistema bancário de um país diminui inevitavelmente; mas o sistema europeu tornou mais fácil a saída de dinheiro de um país – exacerbando a recessão, corroendo ainda mais a confiança no sistema bancário e acelerando o declínio da economia […]

Para muitos, gerir bem o risco significava transferir o dinheiro dos bancos […] para instituições alemãs, havia a confiança de ver o dinheiro de volta […] mas enquanto o dinheiro saía do sistema bancário, os bancos ficavam mais fracos, emprestavam menos, o aperto de crédito aumentava, e os efeitos combinados da austeridade e do aperto de crédito amplificaram a recessão.”

 

Com as movimentações dentro da Europa tão fáceis, e sem harmonização fiscal, é relativamente fácil para os ricos mudarem-se para jurisdições com impostos baixos. Assim, a livre mobilidade de mão-de-obra, sem harmonização fiscal, é um convite ao nivelamento por baixo – para as jurisdições competirem em atrair os ricos e as grandes empresas mais lucrativas, oferecendo-lhes impostos mais baixos. Deste modo, a concorrência fiscal enfraquece a capacidade de ‘corrigir’ uma distribuição de mercado cada vez mais desigual.”

 

 

Sobre a globalização, Stiglitz afirma que “o modo como gerimos a globalização, em benefício das grandes empresas e do capital financeiro, fez aumentar a desigualdade e prejudicou a democracia no nosso país (USA).

 

No século XIX, os países pobres que deviam dinheiro aos bancos das nações ricas eram confrontados com um golpe militar, ou um bombardeamento: México, Egipto e Venezuela foram vítimas.

No século XX, em 1930, a Terra Nova prescindiu da sua democracia na medida em que se encontrava em bancarrota e ficou a ser administrada pelos credores.

 

A seguir à Segunda Guerra Mundial, o FMI passou a ser o instrumento de eleição da era pós-guerra: os países entregavam a sua soberania a uma agência que representava os credores internacionais.

 

Uma coisa são estes acontecimentos terem lugar em países pobres em vias de desenvolvimento; outra é ocorrerem em economias industriais avançadas. É isso o que tem acontecido ultimamente na Europa, uma vez que primeiro a Grécia, depois Portugal, Itália, entre outros, permitiram que o FMI, a par do Banco Central Europeu e a Comissão Europeia (todos não eleitos), ditassem os parâmetros políticos, e depois designassem governos tecnocratas para implementarem o programa.

Quando a Grécia propôs submeter-se a um duro programa de austeridade que estava a ser preparado para ser levado a referendo popular, um grito de horror se fez ouvir por parte dos oficiais europeus e dos banqueiros: os cidadãos gregos podiam rejeitar a proposta, e isso poderia significar que os credores não seriam pagos.”

 

E hoje assiste-se a uma rendição perante os mercados financeiros. “Se o país não faz o que os mercados financeiros desejam, estes ameaçam baixar-lhes os ratings, tirar-lhes o dinheiro de volta, aumentar-lhes as taxas de juro; as ameaças costumam ser eficazes. Os mercados financeiros conseguem o que querem. Podem existir eleições livres, porém, do modo como são apresentadas aos eleitores, não existe uma verdadeira escolha nas questões que realmente lhes interessam, as questões de economia.”

 

 

É por tudo isto que hoje já é suficientemente claro que “não podemos manter a democracia e a autodeterminação nacional em simultâneo com uma globalização total e sem restrições. Quem o afirma é Dani Rodrik, professor da Universidade de Harvard, na sua obra The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy.

 

 

Em resumo, pode-se constatar que passados 40 anos, relativamente às condições de vida, o estado do planeta é o seguinte:

 

 

Incapacidade dos estados nacionais em proteger os seus cidadãos; enfraquecimento do estado contemplando menos direitos sociais básicos; desemprego e ou precariedade do emprego; pobreza.

 

Deixa de haver condições para se exercer a cidadania, o que conduz à redução da cidadania a um direito formal.

 

Crise da democracia com consequente falta de transparência, o que leva a uma descrença generalizada nas suas potencialidades, a um estado de apatia e ao desinteresse pela política.

 

 

Foi isto que o coronavírus veio revelar à exaustão. Nada que os mentores desta globalização vendida não soubessem. Nada que não desejassem. Nada que uma vacina cara não cure. Nós pagamos, evidentemente.

 

Dizem-me que as quarentenas vão comportar a relocalização obrigatória de quem tiver dinheiro em paraísos fiscais: vão ser obrigados a irem viver para lá. Acreditam?

 

 

 

 

 

 

 

           

  1. Ver blog de 20 janeiro 2016, “Tudo azul, tudo muito azul” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/tudo-azul-tudo-muito-azul-11402),

 blog de 03 março 2016, “Era uma vez na América” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/era-uma-vez-na-america-12817),  blog de 28 setembro 2016, “Salamaleques”                                                (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/2016/09/), blog de 21 dezembro 2016, “O faroeste instalado” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/o-faroeste-instalado-24688), blog de 17 de maio 2017, “Madoff ganância sistémica” (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/111-madoff-a-ganancia-sistemica-30207), blog de 10 maio 2017, “A ordem natural´ do negócio”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/110-a-ordem-natural-do-negocio-29749), blog de 18 janeiro 2017, “Os revolucionários das massas”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/os-revolucionarios-das-massas-25802).

 

 

 

 

 

 

(259) Cuidados de saúde como ética

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

O que fazer quando um barco que leva 100 passageiros se afunda e houver apenas um bote salva-vidas?

 

Os cuidados de saúde não visam os doentes, mas antes os que não estão doentes, exatamente para que eles não adoeçam: trata-se de preservar a saúde.

 

O ser humano é um ser dominado pelo cuidado. O cuidado prolonga a existência do homem, melhora a sua condição no mundo, permite-lhe enfim a vida.

 

Naquele preciso momento da tomada de decisão, a pergunta mais importante que qualquer ser humano se defronta é a pergunta ética: “O que devo fazer?”

 

 

 

 

O representante do Ministério da Saúde da Grã Bretanha, Matt Hancock, deu a conhecer numa entrevista à BBC a 15 de março de 2020 (https://www.bbc.com/news/uk-51895873), que o Governo, por causa do COVID-19, tenciona obrigar os idosos de mais de 70 anos a permanecerem em casa durante um longo período de tempo, pelo menos 3 a 4 meses.

 

Também o The Telegraph de 15 de março, (https://www.yahoo.com/news/italians-over-80-left-die-151225888.html)  dá conhecimento de um documento, elaborado pela Proteção Civil da região de Piemonte (Itália), que está apenas a aguardar a aprovação do comité técnico-científico antes de ser enviado para os hospitais, no qual se estabelece que os critérios para o acesso “a cuidados intensivos passam a incluir a idade de menos de 80 anos ou uma classificação de menos de 5 no Índice de Charlson”.

Ou seja, quem vive e quem morre, passa a ser decidido pela idade e pelo estado de saúde do doente. “Tal como na guerra”.

Caso venha a ser impossível prestar os serviços de cuidado intensivo a todos os doentes, será necessário aplicar critérios para o acesso a esses cuidados, dependendo dos recursos limitados existentes”.

 

 “Eugenia”, é um termo que aparece pela primeira vez em 1883, na obra Inquiries into Human Faculty and Its Development, do inglês Sir Francis Galton. Segundo ele, a posição ocupada na sociedade pelas classes altas, devia-se ao facto da sua superioridade genética.

 Os seus seguidores acreditavam que, através da seleção, a humanidade poderia melhorar a sua própria evolução. Acreditavam na superioridade dos povos nórdicos, germanos e anglo-saxónicos, defendiam uma imigração restritiva e leis contra a miscigenação, bem como a esterilização compulsória dos pobres, deficientes físicos ou “imorais” (Nancy Ordover, American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism).

A nascente classe média americana, bem como grande parte dos académicos (em 1928, as principais universidades americanas tinham 376 disciplinas sobre eugenia, frequentadas por mais de 20.000 estudantes) e intelectuais, concordavam com estas ideias, que eram extensivamente suportadas pelas grandes empresas como a Carnegie Institution, a Rockefeller Foundation, a Harriman, e outras.

A esterilização compulsiva como parte da eugenia, começou por ser inicialmente tentada no estado de Michgan, em 1897, tendo sido vetada. Vai ser o estado de Indiana o primeiro a conseguir a aprovação em 1907, logo seguido de Washington e da Califórnia, em 1909. Entre 1909 e 1960, a Califórnia procedeu a 20.000 esterilizações eugénicas, um terço do total nacional de 60.000.

Na Alemanha nazi, o genocídio não começou com os judeus, nem foi apenas aplicado a eles. Ele começou com o programa de eutanásia para ser aplicado a todos os que fossem considerados como mental e fisicamente incapazes, vindo a abranger um total de cerca de 212.000 alemães.

Eis o que conta Laurence Rees (2005) no seu estudo, Auschwitz. The nazis and the “final solution”:

 

No mesmo mês, junho de 1941, uma série de decisões tomadas a muitas milhas de distância teve como resultado tornar Auschwitz num sítio ainda mais sinistro. Prisioneiros de Auschwitz estavam prestes a serem assassinados pela primeira vez por gaseamento, e não ainda segundo o método pelo qual o campo haveria de se vir a tornar tristemente conhecido. Estes reclusos iriam ser mortos porque se tornaram vítimas do programa nazi de “eutanásia para adultos”. Esta operação de assassinato teve a sua origem num decreto do Führer, de outubro de 1939, que autorizava médicos a selecionarem pacientes com doenças mentais crónicas ou fisicamente incapacitados e a matá-los.

De início foram utilizadas injeções de produtos químicos para assassinar os incapacitados, mas, mais tarde, o monóxido de carbono dos gases de escape dos camiões de transporte, passou a ser o método preferido. As câmaras de gás, desenhadas de modo a que parecessem salas para banhos de chuveiro, foram construídas em centros de matança especiais, a maioria antigos hospitais psiquiátricos.

Alguns meses antes de emitir o seu decreto de outubro, Hitler tinha autorizado a seleção e assassinato de crianças deficientes. Ao fazer tal, seguia a gélida lógica da sua visão ultra-darwinista do mundo. Estas crianças perderam o direito às suas vidas porque eram fracas e constituíam um encargo para a sociedade alemã. E, como profundo crente da teoria racial, estava preocupado com a possibilidade de estas crianças serem capazes de se reproduzirem quando atingissem a idade adulta.” (1)

 

Nos finais do século XIX e princípios do século XX, apareceu nos EUA um movimento (Progressive Era) de intelectuais e ativistas que se propunham acabar com os problemas causados pela industrialização, urbanização, imigração e pela corrupção política (https://en.wikipedia.org/wiki/Progressive_Era).

Entre os seus intelectuais mais notáveis encontrava-se Madison Grant (1865 – 1937), advogado, zoólogo, eugenista e conservacionista. Como eugenista, escreveu as que foram consideradas as obras mais importantes sobre o chamado ‘racismo científico’, tendo ainda sido fundamental a sua contribuição para a elaboração das leis anti miscigenação e da restrição à imigração, aprovadas nos EUA. Como conservacionista, lançou os fundamentos para a disciplina da conservação das espécies, salvando variadíssimas espécies de animais.

 Em 1916, preocupado com a alteração da proporção de “raças” que se estava a verificar nos EUA devido ao aumento de imigrantes vindos dos países do sul e leste da Europa, ultrapassando muito os que vinham do ocidente e do norte da Europa, escreve aquilo que vem a ser considerado como a Bíblia do racismo, The Passing of The Great Race or The Racial Basis of European History.

Para Grant, o motor de toda a civilização era a raça, e considerava a “raça nórdica”, os “nórdicos” (Nordic race, o Homo europaeus), originariamente sediados na Escandinávia, como o principal grupo social responsável por todo o desenvolvimento humano, pelo que era indispensável protege-lo a todo o custo da contaminação dos outros grupos. Sigamo-lo:

 

“Um rígido sistema de seleção através da eliminação daqueles que são fracos ou incapazes -noutras palavras, falhados socialmente – deverá resolver este problema em cem anos, e que ao mesmo tempo nos permitirá ficarmos livres dos indesejáveis que enchem as nossas prisões, hospitais, e asilos de loucos […] o estado, através da esterilização, deve assegurar que essas linhagens parem, caso contrário as futuras gerações serão amaldiçoadas por um sempre maior sentimentalismo mal intencionado. […] Esta é a solução prática, misericordiosa, inevitável, e pode ser aplicada […] começando pelos criminosos, os doentes, e os loucos, estendendo-se gradualmente a outros tipos que poderemos chamar de elos fracos em vez de defeituosos, e talvez por fim se possa estender a outras raças.”( The Passing of the Great Race, 1916, p. 139).

 

É importante lembrar que Grant fazia parte de uma das mais prestigiadas famílias da sociedade americana, sendo a mãe descendente  de Jessé de Forest, o valão huguenote que em 1623 recrutara os primeiros colonos que se fixaram  em New Netherland, e sendo o pai descendente de Richard Treat, um dos primeiros Puritanos que em 1630 se fixaram em New England, e familiar de Robert Treat Paine, signatário da Declaração da Independência. De si, Grant era amigo íntimo de Theodore Roosevelt e de Herbert Hoover.

Foi mais popularmente conhecido por estar na origem da fundação do jardim zoológico de Bronx, por organizar a American Bison Society para salvar os bisontes, e por utilizar toda a sua influência para que se organizasse a exibição no Bronx Zoo, em que Ota Benga, um congolês da tribo dos Mbuti, era mostrado ao lado de macacos.

 Quando os nazis chegaram ao poder na Alemanha, o The Passing of the Great Race de Grant, foi o primeiro livro a ser reimpresso, chegando Hitler a escrever a Grant, a fim de lhe manifestar a sua opinião/admiração: “Este livro é a minha Bíblia”.

 

Mas é o finlandês Pentti Linkola (1932 -) que apresenta, como forma de combater a degradação do ambiente, o racional mais claro com a sua proposta para o rápido e radical declínio da população. Diz ele, num artigo escrito em 1992, “The Doctrine of Survival and Doctor Ethics”:

 

O que fazer quando um barco que leva 100 passageiros se afunda e houver apenas um bote salva-vidas? Quando o salva-vidas estiver cheio, aqueles que detestam a vida vão tentar enchê-lo ainda com mais pessoas, acabando todos por se afundarem. Aqueles que amarem e respeitarem a vida, irão buscar o machado de emergência e cortarão as mãos de todos os outros que tentarem agarra-se ao salva-vidas depois de este estar cheio.” (2)

 

 

Embora haja quem queira ver nas posições dos governos britânico e italiano (e outros que se lhe seguirão) uma extensão ou uma forma mais benigna das posições racistas, xenófobas, nazis e neonazis acima expostas, é essencial notar que existe, logo à partida, uma grande diferença: ao passo que as primeiras são tomadas como uma posição de exceção para resolver uma “falha” de planeamento (3), as segundas são tomadas como estrito cumprimento de um plano devidamente organizado, com o fim de alterar coercivamente a humanidade.

Curiosamente, também parece ninguém notar que as primeiras posições só aparecem devido ao “descuido” dos governos, das empresas, dos teóricos do progresso constante dos lucros à custa dos cuidados sociais individuais, que aos poucos vão deixando indefesas sociedades inteiras, a maior parte das vezes com o beneplácito das populações entretidas com as missangas que lhes deixam. E é precisamente por ninguém notar que elas podem ser perigosas: podem resvalar para as segundas. Põem-se trancas nas portas com os ladrões lá dentro.

 

É, contudo, fundamental não esquecer que todas estas posições conservacionistas, ecofascistas, xenófobas, que pretensamente nos aparecem como neoliberais defendendo a humanidade, o que elas pretendem defender é o status quo dos que detêm o poder, para assim garantirem que todos os que sejam marginalizados, colonizados, empobrecidos, sejam sempre os últimos a entrar para o salva-vidas, se conseguirem entrar.

 

 

A Organização Mundial de Saúde define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, em que o indivíduo ou o grupo deve ser capaz de identificar e realizar as suas aspirações, satisfazer as suas necessidades, e de modificar o ambiente ou adaptar-se-lhe.”

É uma definição com um conceito amplo e dinâmico, onde se combinam os critérios objetivos, os subjetivos e os socioculturais, na medida que pressupõe o indivíduo não como um ser isolado, mas antes imerso numa sociedade em constante mutação, tendo ainda em conta que ele faz parte do ambiente ecológico que o rodeia. A saúde surge assim como a condição necessária para qualquer projeto de vida que se pretenda realizar.

 

Mas a saúde constitui ainda uma responsabilidade não só a nível individual, como também a nível da comunidade, a nível social. Daí a sua dimensão ética, radicada no espírito do homem e na sua liberdade, que deve ser gerida responsavelmente como um bem da própria pessoa.

Todos conhecemos malefícios resultantes de escolhas erradas a nível individual, casos do alcoolismo, da droga, da SIDA, e ainda os resultantes das opções, ou falta delas, a nível das comunidades e sociedades, como são os casos das tabaqueiras que através da desinformação e da dificuldade envolvida na pesquisa (nomeadamente pela enormidade de verbas necessárias, pelo secretismo e pela propaganda pró-tabaco – como era o caso de em plena campanha antitabaco nos depararmos com anúncios em todo o lado  a promoverem o seu consumo), atrasaram a implementação de políticas antitabaco, e os casos mais comezinhos e simples (deviam ser) como os da inexistência de parques e outros para a prática de exercício físico, que já vinham sendo reclamados desde os tempos da Grécia antiga.

Como notava Platão, “quem procura o saber ou quem exercita muito a atividade racional precisa de dar também ao corpo o seu movimento, adestrando-o com a ginástica” (Platão, Timeu, 88 B-C).

 

Quando Heidegger define técnica como um “saber fazer” que permite o surgir de algo que espontaneamente não existia, estava a atribuir a este saber fazer aquilo que seria a caraterística do homem, o construir, edificar, necessária para “habitar” na Terra.

Contudo, só o construir não seria o suficiente, e por isso Heidegger, seguindo Hölderlin (4), preconizava que esse habitar terá de ser um “habitar poético”, indissociavelmente ligado ao cuidar, como única forma de verdadeiramente habitar.

Ou seja, o homem só verdadeiramente habita, se não reduzir as suas potencialidades apenas ao aspeto de construir, alargando-as antes ao cuidar do que constrói. O cuidado prolonga a existência do homem, melhora a sua condição no mundo, permite-lhe enfim a vida. O ser humano é um ser dominado pelo cuidado.

 

No caso da saúde, é preciso entender que os cuidados de saúde não visam os doentes, mas antes os que não estão doentes, exatamente para que eles não adoeçam: trata-se de preservar a saúde.

Pelo que o acesso aos cuidados de saúde seja o caminho para evitar a ida ao hospital, o que faz da educação (educação para a saúde) o primeiro componente de um sistema de cuidados de saúde, através do qual as pessoas fiquem a saber o que é higiénico, o que é ser saudável. A higiene faz-se por razões de saúde e não por quaisquer outras razões.

 

Imerso na sociedade, o homem é simultaneamente participante e responsável pelas suas experiências de saúde e doença, na medida em que os participantes se envolvem e interagem, ou seja, o cuidado contém sempre uma componente relacional, exigindo sempre, para além da ciência, valores de sensibilidade humana, espiritualidade, solidariedade.

O cuidado de saúde, ao ser um cuidado com a vida, assume também uma função de responsabilidade para com a vida, não só no presente, mas também no futuro: é um dever ser no presente para garantir o ser no futuro. Na prática será sempre um dever fazer de alguém em resposta ao dever ser.

 

Daí a importância das decisões que muitas das vezes somos chamados a tomar relativamente à saúde. Essas decisões são tomadas por pessoas (individualmente ou coletivamente) relativamente a outras pessoas (indivíduos ou coletividades), tendo em atenção que os valores humanos devem figurar como a preocupação primeira, o que nem sempre acontece, pois com o pretexto de serem, erradamente, considerados subjetivos, só são tomados em conta depois de muitas e variadas considerações técnicas, tidas estas como objetivas.

Por isso, é preciso relembrar que, muito embora existam uma série de decisores com maior ou menor influência, políticas governamentais, de serviços, de ordens, de profissionais e de indivíduos, chegado aquele momento, o decisor é só um, exatamente o que se encontra perante a situação.

Naquele preciso momento da tomada de decisão, a pergunta mais importante com que qualquer ser humano se defronta é a pergunta ética: “O que devo fazer?”

 

 

 

 

 

 

  • No seguimento da interpretação de um verso de Hölderlin, em que este escrevia que “Pleno de méritos, e, contudo, poeticamente, habita o homem nesta Terra”, Heidegger vem-nos dizer que a expressão “pleno de méritos” tem que ver com os méritos do homem em construir, no sentido de edificar. Enquanto edifica, o homem assume o mérito, ou seja, a edificação depende do homem, é seu mérito.

Contudo, este edificar não é suficiente para habitar. É apenas necessário. E isto porque esse edificar pode levar ao esquecimento do que o homem está a fazer na Terra. É que habitar é, sobretudo, cuidar, proteger, cultivar, ou seja, salvar, tendo em consideração o abster-se da exploração ou de um esgotar da Natureza, tendo ainda consciência de a não instrumentalizar e de não nos sentirmos senhores dela.

É preciso pensar sobre o que estamos a construir. “Habitar poeticamente” é o que o poeta faz quando permanece nesta Terra, estando atento a ela, medindo-a (medição como atenção, como cuidado, como desvelo). Daí que seja o poeta aquele que verdadeiramente no seu medir, toma atenção à Terra: que habita poeticamente a Terra.

 

Toda esta interpretação se encontra nos Caminhos de Floresta, de Martin Heidegger, traduzido para a Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

 

 

(258) Cassetete: a mulher de um meu conhecido, Descartes, Espinosa e Leibniz.

 

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Substância é aquilo de que uma coisa é feita, sabedoria popular.

 

Embora não tivesse uma alma imortal, o corpo de um papagaio morto também não seria igual ao de um papagaio vivo: porque não seria já um papagaio.

 

Substância é aquilo que pode ser pensado como necessitando apenas de si mesmo para existir, para Descartes.

 

Segundo a teoria da unidade da substância de Espinosa, todas as coisas são Deus, ou então Deus é idêntico a cada uma das coisas.

 

Substância é aquilo que age, que possui força ativa, segundo Leibniz.

 

 

 

 

 

Durante uma daquelas conversas de café pós-almoço, a mulher de um meu conhecido, advogava convictamente que antigamente havia menos doenças do que agora, e que os culpados pelo aparecimento das novas doenças eram os médicos. Diagnosticavam imensas doenças cujos tratamentos eram os mesmos.

De igual forma também a filosofia e especialmente os filósofos são tidos como uns chatos que inventam problemas onde eles não existem, sem qualquer interesse prático.

É o caso, por exemplo, do conceito e definição de “substância”, que todos estamos fartos de saber que é “aquilo de que uma coisa é feita”.

 

Etimologicamente, “substância” é o que está por baixo, o que está dentro, o que suporta (do latim substantia, de substare). Ou seja, o que se mantém permanente na coisa e que a define, a sua essência. Exemplo: o caso da água quando se transforma em gelo. A teoria da substância diz que nesta transformação a água não é substituída pelo gelo, pois a matéria é a mesma. A humidade da água, a dureza do gelo, não lhe mudam a essência: são apenas “formas” com que ela se pode apresentar, são acidentes.

Cedo se começou a manifestar esta sensação da necessidade do conhecimento da noção da existência de uma substância individual ou que se mantivesse estável, como única forma para se conseguir fazer que o mundo em que vivíamos tivesse sentido. De onde tudo viera. Do começo de tudo.

 

Para Tales, tudo era primordialmente constituído por água. Para Anaxímenes, tudo era uma forma de ar. Para Anaximandro, a essência das coisas era indeterminada, por forma a que ela pudesse transmutar-se em água, ar, terra ou fogo. Para Demócrito, a substância única eram os átomos, que não eram em si nem cães nem gatos nem mesas nem cadeiras, mas que não mudavam de propriedades intrínsecas.

Platão ficava à parte, porquanto não tentava explicar o todo com base em conceitos materialistas sobre como as coisas eram feitas. Para ele, havia princípios que tudo governavam, as “Formas”, e que os objetos materiais tentavam copiar.

As Formas não eram substâncias, mas apenas princípios norteadores que davam estrutura e significado a tudo o demais. Se assim não fosse, tudo o demais seria um caos ininteligível. Eram eternas, não eram predicáveis (dizíveis), nem se alteravam. O facto de não se conseguirem alcançar as exigências das Formas não era culpa de Platão nem das Formas, mas dos critérios e das formas terrenas, por serem tão básicas.

Aristóteles, que tudo vai compilar e expandir, ao ponto de ainda hoje ser referência obrigatória nas Categorias e Metafísicas, Livro Z e H, com as suas definições e divisões ao considerar substâncias primárias e secundárias, conceitos de substância e outras propriedades, análises da forma (o que é o objeto) e matéria (de que é feito o objeto) de diversas substâncias e suas inter-relações (um animal apenas pode ser feito de tecido vivo, e não de pedra ou fogo, pelo que a matéria depende também da forma em que se apresentar), e muito mais.

Ao eliminar a possibilidade de a matéria poder ser substância, resta agora ter de a acomodar a ser ou só forma, ou a ser um compósito (o indivíduo) de forma e matéria, Aristóteles vai dar a primazia à forma, e tudo se complica: a matéria é uma componente essencial da substância, mas não em igualdade; apenas como catalisadora, de modo a que a forma venha a ser uma substância individual!

 

E isto porque Aristóteles acreditava que o mundo era eterno e que todas as espécies existiriam eternamente. Ou seja, mesmo que certos objetos particulares estivessem sujeitos a degeneração e envelhecimento, as espécies eram eternas.  Assim, a degeneração e o envelhecimento dependiam do material que compunha os compósitos.

 Pelo que, qualquer forma que não necessitasse de matéria para a sua atividade, seria, por natureza, eterna. Daí que o intelecto, a característica essencial dos humanos, bem como o primeiro motor imaterial e imóvel do cosmos, fossem eternos, muito embora Deus, esse primeiro motor, fosse ontologicamente e causalmente anterior a todas as outras substâncias.

 

Mais tarde, na Idade Média, começou-se a questionar sobre a diferença entre o corpo de uma pessoa morta e o corpo da mesma pessoa viva. Como a alma tinha partido, a forma do corpo com a alma imortal não poderia ser idêntica ao do corpo sem essa alma. E, mesmo não tendo uma alma imortal, o corpo de um papagaio morto também não seria igual ao de um papagaio vivo: porque não seria já um papagaio.

Começa-se também a tentar equacionar o problema da identidade:

 

Eu não sou o mesmo que era ontem, porquanto algo que era parte da minha integridade ontem, já foi usada, e outra parte que não fazia parte da minha integridade, já me foi hoje adicionado pela alimentação”.

 

 

É nas Meditações sobre a filosofia primeira (1641), que Descartes vai considerar o Homem como uma substância pensante (res cogitans), estabelecendo uma nítida distinção entre ela e a substância corporal (res extensa). Mais tarde, em 1644, nos Princípios da Filosofia, vai voltar a escrever sobre os princípios fundamentais da metafísica, substância, atributos e modos.

Começa por definir substância como “aquilo que pode ser pensado como necessitando apenas de si mesmo para existir”.

Por esta definição, só Deus poderia existir. Quaisquer outras criaturas só poderiam existir se sustentadas e conservadas por Deus, o que implica a teoria de “criação continuada” (o ato criador de Deus continua em todos os instantes do tempo e ao longo de todo o tempo, e só por isso, e graças a Ele, é que as substâncias conservam o seu ser).

E especifica que as coisas para existirem necessitam do concurso de Deus, que poderá ser extraordinário (pela Sua intervenção no mundo por ele criado, como por exemplo através de milagres), ou ordinário (pela Sua criação e conservação, encontrando-se neste caso as substâncias, nomeadamente o pensamento e a extensão)

Até aqui temos como substâncias Deus e algumas criaturas (apenas as que necessitam do concurso ordinário de Deus) e que são o cogito e o mundo.

 

Como se distinguem as substâncias umas das outras? Pelo atributo principal (atributo) e pela maneira como se podem diversificar (modo).

É por terem atributos que conseguimos distinguir as substâncias; o nosso conhecimento opera estas distinções, porque elas são realmente distintas entre si pelo atributo principal, a substância dá-se, pois, a conhecer pelos seus atributos (preocupação ontológica e gnosiológica, na medida em que os atributos não só expressam a substância, como tornam também possível o seu conhecimento por nós).

Assim, o atributo principal de Deus é a infinitude, o atributo principal do Cogito é o pensamento e o atributo principal do Mundo é a extensão.

 É por isto que a definição de substância para Descartes é analógica (o termo substância não se aplica de igual forma a Deus e às criaturas, sendo a distinção entre elas real: Deus é uma substância infinita, e as criaturas são substâncias finitas).

 

 As substâncias são distintas, quando podemos pensar numa sem pensar na outra. A distinção é dita real, como a que existe entre coisas que possuam o mesmo atributo principal (Ex.: O meu pensamento distingue-se do pensamento de outra pessoa); a distinção é dita de razão, porque embora não exista na realidade, pode ser feita pelo pensamento (Ex.: Não posso conhecer Deus por ser infinito, mas posso pensar em infinito embora não seja aquele outro); a distinção é dita modal (de modos, as várias maneiras como a substância pode existir) podendo ser entendida de duas formas: ou como uma distinção entre um modo e a substância da qual é um modo (Ex.: O corpo pode ser distinguido da sua figura ou movimento), ou como a distinção entre dois modos de uma mesma substância (Ex.: A figura de um corpo distingue-se do movimento do corpo).

Assim, para Descartes a distinção entre dois corpos ou pensamentos é uma distinção real ou substancial, que tem como corolário o facto de existirem várias substâncias que se limitam reciprocamente.

 

 

Já para Espinosa, a substância é “aquilo que é em si, e é concebido por si”.

Ser concebido por si, significa que se cria si próprio, e que se compreende por si mesmo sem o recurso a outra coisa de que dependa, ou seja, uma substância deve ser absolutamente a única causa para a sua existência.

Daqui se conclui que há apenas uma substância que é a “causa sui”, Deus. Daí que o que é em si e por si (substância), e o que não o é (não é substância, é o modo da substância), não podem gozar do mesmo tipo de substancialidade.

A substância vai exprimir-se nos seus atributos (preocupação ontológica), dependendo os modos quer dos atributos da substância, quer de outros modos. Como a substância é infinita, os seus atributos serão também em número infinito, cada um exprimindo uma essência eterna e imutável da substância.

 

Espinosa menciona só dois atributos, a extensão e o pensamento, por serem os únicos que possuímos em nós. O conceito de “atributo” para Espinosa é muito semelhante ao de “atributo principal” para Descartes, contudo ele nega que os corpos e os espíritos humanos sejam substâncias, e nega também a necessidade de uma substância ser limitada por um só atributo: pelo contrário, quanto mais realidade ou perfeição uma substância tiver, mais atributos terá; Deus, o mais real e perfeito ser, poderá ser assim definido como a substância que tem uma infinidade de atributos, cada um deles sendo infinito.

 Assim, para Espinosa, a sua conceção de substância é unívoca (o termo tem apenas um só significado para uma só coisa) pois a distinção que faz entre o infinito e o finito não é substancial e sim modal: cada corpo é um modo finito do atributo extensão, cada ideia é um modo finito do atributo pensamento.

 O facto de existir apenas uma única substância ou Deus, sendo os atributos a própria substância exprimindo-se, levou a considerar-se que esta teoria da unidade da substância fosse chamada de “o panteísmo de Espinosa”, como se Espinosa quisesse dizer que todas as coisas são Deus, ou que Deus é idêntico a cada uma das coisas.

Do que se trata é considerar que tudo é uma modificação ocasional ou acidente de uma única substância (Deus), sem o qual não teriam base para existir. Ou seja, os corpos e as mentes, são modos finitos de Deus, expressões locais ou temporárias, de uma natureza divina.

 

 

O problema que Leibniz enfrentou, foi o de tentar explicar exatamente como é que coisas finitas podem ao mesmo tempo ser dependentes de Deus e levarem uma existência separada.

A sua solução residiu numa clarificação da natureza da substância, forma básica de existência criada por Deus. Para que as substâncias criadas conseguissem gozar de uma existência separada de Deus, teriam de conter dentro delas próprias uma força permanente que conseguisse sustentá-las ao longo dos vários estados por que passariam.

 Vem, assim, dizer que as substâncias criadas por Deus são seres ativos com a capacidade de suportarem alterações das quais elas próprias são a causa. E isto está de acordo com a doutrina da conservação divina, pois segundo Leibniz, o que Deus mantém em existência é uma força permanente com um certo grau de perfeição.

Para Leibniz, Descartes tinha um conhecimento deficiente da natureza da substância, ao pensar que os corpos eram uma coleção de pequenas partículas materiais, ligadas palas leis do movimento; ora estas relações meramente mecânicas não permitiam constituir uma verdadeira unidade, mas apenas agregados divisíveis, “entes por acidente” e não “entes existentes por si mesmo”.

 Para isso, seria necessário que cada substância possuísse o que ele chamou de “força ativa” e que era a tendência para agir, contendo já uma realidade (intermédio entre a possibilidade e a própria ação).

Ou seja, para Leibniz a matéria não era só extensão (numa crítica a Descartes dizia que a extensão era apenas a repetição da substância, e, por isso mesmo não a podia explicar), era necessário que as substâncias que a compunham tivessem atividade interna (força ativa), para se poderem compreender fenómenos físicos como a inércia.

Os corpos devem ser vistos agindo de modo idêntico às almas, a partir de princípios internos e não apenas de forças externas. Substância é aquilo que age, que possui força ativa.

Sem a força, as coisas não passariam de modificações ocasionais de uma única substância divina, e é essa capacidade para agir que lhes dá individualidade e singularidade, o que significa que não existe só uma única substância universal, mas um conjunto de substâncias.

 Outra das divergências com Descartes, vinha do facto de este considerar a dualidade das substâncias (res extensa e res cogitans), dado que Leibniz considera antes a existência de uma pluralidade de substâncias (as mónadas).

A mónada seria uma substância simples, una, indivisível e inextensa, ocupando todo o universo (não existem lugares vazios) e dotada de perceção.

Há tantas substâncias quantas as mónadas. Todas as substâncias são mónadas, e todos os indivíduos são substâncias.

 As mónadas são substâncias individuais dotadas de perceção. Deus é a mónada mais perfeita, a que tem uma visão clara e distinta do estado do universo em cada instante. Ao contrário de Deus, cada mónada tem uma visão com um grau de clareza e distinção que não é absoluto.

No limite, há mónadas desprovidas de consciência, o que não significa que não tenham também uma perspetiva da totalidade do universo. Tudo o que acontece a uma substância tem de estar na sua própria natureza. Nada acontece a uma substância, se isso contrariar a sua essência.

 

Do século XVIII até agora, várias teorias e explicações tendencialmente unitárias e racionais sobre a substância e o universo, seja ele qual for e como for, têm sido tentadas, apresentadas, desenvolvidas.

O meu conhecido continua com a mesma mulher, Descartes, Espinosa e Leibniz já faleceram, embora tenham deixado descendência, e “substância” continua a ser entendida como sendo aquilo de que uma coisa é feita.

 

(257) “Tempo dos assassinos”

Tempo estimado de leitura:8 minutos.

 

Somente então, à beira do precipício, nos é dado compreender que “tudo o que nos ensinam é falso”, Henry Miller.

 

A crise moral do século XIX apenas cedeu lugar à bancarrota espiritual do século XX. É o ‘tempo dos assassinos’, e não há possibilidade de engano. A política tornou-se negócio de bandidos, Henry Miller.

 

 A morte de um líder político cuja carreira seja considerada como representando um perigo para a causa da liberdade, pode ser considerada como necessária […] Nenhumas instruções para assassinatos devem ser escritas ou gravadas, in A Study of Assassination, Manual da C.I.A.

 

“Eles têm aproximadamente um minuto para viver. Trinta segundos. Dez, nove, oito”. Ouviu-se uma explosão. E o oficial disse, “Desapareceram”, a morte de Suleimani, contada por Trump.

 

 

 

 

 

Um dos melhores escritos de Henry Miller talvez seja o seu pequeno estudo sobre Rimbaud, “consequência do fracasso de traduzir, da maneira desejada, Uma Estação no Inferno”. Nele, Miller exorta a América a “conhecer melhor essa figura lendária”, agora mais do que nunca, porquanto a “existência do poeta (tanto no sentido amplo quanto no específico) nunca esteve tão ameaçada”.          

E justifica esta opinião sobre o destino que a sociedade americana reserva aos poetas, remetendo-nos para o necrológio que Kenneth Rexroth escreveu, “Não Matarás”, (Thou Shalt Not Kill) (2), quando soube da morte de Dylan Thomas, autor do Portrait of the Artist as a Young Dog. Segundo Miller, a categoria e a condição do poeta revelam o verdadeiro estado de vitalidade de um povo.

Segundo Miller, tratam-se sem dúvida de assassinatos, porque “quando se sufoca a voz do poeta, a história perde todo o seu sentido e a promessa escatológica surge como uma nova e apavorante aurora na consciência do homem. Somente então, à beira do precipício, nos é dado compreender que ‘tudo o que nos ensinam é falso’”.

Vivemos inteiramente no passado, alimentados de ideias mortas, crenças mortas, ciências mortas. E é o passado que nos está engolindo, não o futuro. “O futuro sempre pertenceu e sempre pertencerá ao – poeta […] O futuro é todo seu, mesmo que não haja futuro.”

Quando o poeta não pode mais falar em nome da sociedade, mas apenas em seu próprio nome, é sinal de que nós estamos nas últimas. Como ele, ou renunciamos a tudo que a nossa civilização representou até agora, e tentamos construir tudo de novo, ou iremos destruir tudo com as nossas próprias mãos.

Temos andado a fugir desde o início dos tempos. O destino alcança-nos facilmente. Vamos ter a nossa Estação no Inferno, todo homem, mulher e criança identificados com esta civilização […] O homem, renegado, perdeu a fé no seu semelhante. A falta de fé é universal. E nisto até o próprio Deus é impotente. Pusemos a nossa fé na bomba e é a bomba que atenderá as nossas preces.

[…] Chegámos ao fundo? Ainda não. A crise moral do século XIX apenas cedeu lugar à bancarrota espiritual do século XX. É o ‘tempo dos assassinos’, e não há possibilidade de engano. A política tornou-se negócio de bandidos.

 

Tudo o acima exposto, e muito mais, consta dessa pequena obra de Miller, Tempo de Assassinos (The Times of the Assassins).

 

 

 

Em 1953, para ajudar a melhor cumprir a missão de retirar do poder o presidente da Guatemala, a C.I.A. elaborou um manual intitulado “Um Estudo do Assassinato” (A Study of Assassination) (1).

 Como bom manual, começa pela definição de assassinato:

a morte planeada de uma pessoa que não está sob a jurisdição legal do executante, que não está à mercê do executante, que foi selecionado por uma organização de resistência para ser morto, e cuja morte seja vantajosa para essa organização”.

E quando deve ser utilizado?

Deve-se assumir que tal medida nunca será ordenada ou autorizada por qualquer Comando Central dos EUA, muito embora em circunstâncias excecionais possam concordar com a execução desde que feitas por membros de um serviço estrangeiro associado […] Nenhumas instruções para assassinatos devem ser escritas ou gravadas.

Quais as justificações?

 “O assassínio de pessoas responsáveis por atrocidades ou atos reprováveis podem ser vistos como uma punição justa. A morte de um líder político cuja carreira seja considerada como representando um perigo para a causa da liberdade, pode ser considerada como necessária. Mas o assassinato pode ser encarado com consciência tranquila. Contudo, pessoas que forem moralmente impressionáveis não o devem tentar.

 

Depois, passa para as normas mais práticas, tais como a classificação das técnicas e seus executantes, o planeamento a seguir, os tipos de acidentes, as drogas, a escolha das armas, explosivos, finalizando com a descrição de alguns  exemplos célebres de assassinatos ou tentativas falhadas (de Marat, a Ghandi, passando por Lincoln, Rasputine, Trotsky, Hitler, Truman, Mussolini e outros).

 

O assassinato como ferramenta a utilizar pelo Estado, pelos governos e governantes, teve sempre os seus apoiantes e os seus adversários. O teólogo do século XVI, Thomas More, recentemente canonizado como santo pela Igreja Católica, defendia que o assassinato de “um príncipe inimigo” só deveria ser equacionado se daí se obtivessem “grandes vantagens” pela salvação de muitas vítimas inocentes.

No século XVII, o diplomata e jurista holandês, Hugo Grotius, publica em 1625 a afamada obra De Jure Belli ac Pacis (Sobre a Lei da Guerra e da Paz) em que lançava as bases para a moderna legislação internacional, considerava que “era permitido matar um inimigo seja em que lugar fosse”.

A partir daí, por razões que desconhecemos, talvez pelo eclodir das revoluções americana e francesa, a luz do Iluminismo, tenha conduzi a uma descompressão das sociedades, a um tempo de progresso bom para a economia, ou por razões mais comezinhas como o dos executantes dos serviços secretos não se quererem matar uns aos outros, foi também crescendo entre os líderes políticos a rejeição à legitimação do assassinato mútuo. Thomas Jefferson, descrevia em 1789, o “assassinato, o veneno e o perjúrio” como abusos incivilizados que não deviam ter lugar no século XVIII.

 

Contudo, o século XX veio pôr fim a essa “trégua civilizacional”. É assim que durante a Segunda Guerra, espiões britânicos treinaram agentes checoslovacos para matarem o general nazi Reinhard Heydrich (um dos arquitetos da “Solução Final”), e muitos governos (entre eles o soviético, o britânico, o americano) tentaram, em vão, assassinar Adolfo Hitler.

Após a guerra, os futuros dirigentes de Israel fizeram da perseguição dos nazis uma estratégia de sobrevivência para a sua Nação, para que não lhes voltasse a acontecer outro Holocausto. Isto apesar de David Ben-Gurion, o primeiro primeiro-ministro de Israel, se mostrar contra o terrorismo pessoal, contra o assassinato de nazis alemães, por entender que seria bastante mais útil recruta-los para a Mossad.

Em 1975, o Comité Church do congresso americano, começou a investigar as alegações da utilização abusiva do assassinato individual por parte das agências de inteligência e informação. No ano seguinte, são reveladas as tentativas feitas entre 1960 e 1965 para eliminar Fidel Castro (oito tentativas, incluindo o método da caixa de charutos envenenados), bem como de outros políticos.

 

O presidente Gerald Ford decide então emitir uma ordem executiva segundo a qual nenhum funcionário ou empregado do governo dos EUA “poderia envolver-se, ou conspirar para se envolver, em assassinatos políticos”. Em 1981, Ronald Reagan, alarga o alcance da ordem, retirando o “político”. “Assassinatos”, ponto.

Contudo, cinco anos depois, como retaliação à morte de cinco militares americanos numa discoteca em Berlim, a administração Reagan ordena o bombardeamento do local em que Muammar al-Gaddafi vivia.

Mas, a partir de julho de 2001, aparentemente devido a novos interesses económico-políticos, os EUA começam a condenar Israel pelo que disseram ser “assassinados dirigidos” contra palestinianos, “mortes extrajudiciais, que nós não apoiamos”!

 

Dois meses depois, aconteceram os ataques de 11 de setembro, e a partir daí, acabaram-se as restrições. De imediato, o presidente Bush autorizou o uso de drones, operações de comandos, ataques com mísseis de cruzeiro, fora das zonas de guerra. Qualquer resistência que pudesse haver a ataques de precisão dirigidos contra indivíduos desapareceu, e os limites da condução da guerra deixaram de ter qualquer ligação com o campo de batalha.

Aumentou também a cooperação entre a C.I.A. e a Mossad israelita, discutindo-se a efetivação de operações conjuntas.

Com o aparecimento das armas de precisão e a utilização de telemóveis, aumentaram-se as possibilidades para o planeamento e execução das missões para matar. Para se ter uma ordem de grandeza, entre 1948 e 2000, Israel conduziu aproximadamente 500 missões para matar. Entre 2000 e 2018, Israel conduziu pelo menos 1800 dessas operações. (3)

Nos EUA, a administração Bush lançou, desde 2001, pelo menos 59 operações deste tipo no Paquistão, Iémen e Somália. Nos oito anos seguintes da administração Obama, o número subiu para 572, a que se deve acrescentar em 2011 o raid que matou Osama bin Laden no Paquistão.

 

Para ultrapassar os problemas legais e morais que tal tipo de operações lhes punha, a administração Obama vai socorrer-se de dois conceitos. Para ultrapassar a interdição da ordem executiva sobre assassinatos, passa a chamar a tais operações, “mortes dirigidas” (targeted killings), o que mais tarde lhes vai pôr o problema da existência de uma lista prévia (o que evidentemente seria ilegal) com nomes de pessoas a serem mortas.

 Para ultrapassar os escrúpulos morais, vai socorrer-se do conceito cristão de “guerra justa” (4):

 “Se o alvo a abater for um alvo legitimamente militar e se tudo que puder ser feito para atingir o alvo for feito de forma a evitar que se matem pessoas inocentes, então -e lamento dizê-lo – está O.K.

 

Na prática, a guerra com drones torna indistinguíveis as mortes dirigidas dos assassinatos. Numa tentativa para melhor disfarçar, introduzem-se considerações sobre “ataque iminente”, mas, mais uma vez, na prática tal significará:

Este é um terrorista, e, em determinada altura deve ter, de uma maneira ou outra, participado ou planeado um ataque terrorista.  Não somos agora capazes de o parar, portanto o melhor é matá-lo”.

 

Contudo, e resumindo: no final da presidência de Obama, após quinze anos de ataques com drones, os americanos já não lhes prestavam muita atenção. Segundo as várias previsões, a grande maioria dos americanos era favorável a esses ataques dirigidos. Trump segue-lhe o exemplo: nos últimos três anos, foram feitos pelo menos 262 ataques, o que representa um acréscimo de 20%.

 

Na determinação dos alvos, é grande a troca de informações entre os serviços americanos e israelitas. Os suspeitos são seguidos dias, meses e anos, tendo sempre em vista o seu possível abate, decidido sempre a nível superior. Lembremos, entre outros, a destruição do reator nuclear da Síria, o assassinato dos principais cientistas nucleares iranianos e de outros dirigentes do Hamas.

Figuras como o líbanês Imad Mughniyed (técnico especialista no uso de bombardeamento sincronizado por forma a maximizar vítimas, arquiteto da estratégia militar do Hezbollah), o general brigadeiro sírio Muhammad Suleiman (supervisor nuclear que construiu o arsenal de armas químicas da Síria) e o major general Qassem Suleimani (comandante chefe do Corpo Revolucionário do Irão, Quds, força de elite que conduzia operações fora do Irão com o intuito de fazer avançar a revolução iraniana), eram alvos permanentes e preferenciais.

Assassinados os dois primeiros, em fevereiro (à bomba, pela Mossad) e agosto (snipers de uma unidade de fuzileiros israelita) de 2008, restava Suleimani. No dia 3 de janeiro de 2020, um ataque americano a partir de um drone, MQ-9 Reaper, acabou com a vida do importante chefe iraniano.

 

Instantes depois do Pentágono ter confirmado a morte, Trump colocou num seu tweet a imagem de uma bandeira americana.  Mais tarde, num discurso para os convidados pagantes de Mar-a-Lago, contou a operação, recordando o que lhe ia dizendo um oficial militar:

Eles têm aproximadamente um minuto para viver. Trinta segundos. Dez, nove, oito”. Ouviu-se uma explosão. E o oficial disse, “Desapareceram.”

 

Segundo a Convenção de Haia de 1907, o assassinato de um membro oficial de um governo estrangeiro não era permitido, a não ser em tempo de guerra. Daí que inicialmente se pensasse que a morte de Suleimani pudesse vir a provocar retaliações eminentes sobre os americanos.

Perante as perguntas e as críticas, a administração americana alterou a posição assumida, invocando que Suleimani se preparava para fazer uma “série de ataques”. Só que depois, Trump vem claramente dizer que isso não interessava, porquanto Suleimani era “um homem terrível, com um passado horrível de mortes americanas”.

 

Ou seja, a procura da cobertura pela legalidade deixava de ser importante. E é nisto que este caso é diferente. É que Suleimani, não era o chefe de uma rebelião sem estado (ex. Bin Laden), mas um alto representante de uma das nações mais populosas do Médio-Oriente, que, apesar de todo o seu envolvimento com o terrorismo, não estava em estado de guerra convencional com os EUA.

Ao adotar um procedimento de ataque a um inimigo só previsto para ações em tempo de guerra, a administração americana só podia utilizar a cobertura legal se tivesse atuado no convencimento de que estava em guerra com o Irão. O que parece ser a sua desculpa legal. “Estamos em conflito com o Irão desde 1979.” É deficiente.

 

Outro aspeto em que este caso se diferencia dos anteriores, foi no assumir público e publicitado da ação, pelo governo americano. Contrariamente a todos os outros relatados, em que ninguém se chegou à frente para reclamar a autoria, desta vez o próprio Presidente o confirmou.

Isto é uma novidade que vai alterar até o relacionamento entre os EUA e Israel. Se até aqui as administrações americanas tinham preocupações sobre o que as ações de Israel, unilateralmente, poderiam provocar na região, podendo acabar por arrastarem os EUA para um conflito, agora, são os israelitas que se passam a preocupar sobre as consequências de uma escalada americana na região.

 

Uma coisa parece ser certa: provavelmente pelo narcisismo de Trump, finalmente retirou-se a máscara sobre estas operações de assassinatos individuais a coberto do anonimato. A partir de agora, todos sabem (apoiando ou não) que o Estado pode utilizar os seus meios para assassinar qualquer pessoa, desde que o mesmo Estado a considere como inimiga. Estrangeiros ou nacionais, governantes ou não. A democracia na sua expressão mais lata. Morte como possibilidade igual para (quase) todos. Nada que já não soubéssemos.

Mas, atenção: não encaremos este desvelar, este estilhaçar da cobertura de proteção utilizada para não vermos o que está por baixo dela, como um produto do narcisismo de Trump. Acima de tudo, trata-se da forma da classe dominante (de que ele é o mais habilidoso representante) nos mostrar, mais uma vez, quem manda, de nos dizer que não temos minimamente de nos pronunciar sobre nada porque não entendemos nada.

 

Também o narcisismo de Henry Miller lhe obscurece a sua visão sobre o geral. Não que este não seja um tempo de assassinos, mas porque quase desde o início, os tempos foram sempre de assassinos. Lembremos Caim e Abel, e outros iguais pares de outras regiões que deram origem a civilizações.

 

 

 

 

  1. (https://archive.org/stream/CIAAStudyOfAssassination1953/CIA%20-%20A%20Study%20of%20Assassination%20%281953%29#mode/2up).
  2. Início do poema: They are murdering all the young men. For half a century now, every day, they have hunted them down and killed them […] (https://genius.com/Kenneth-rexroth-thou-shalt-not-kill-annotated).

 

  1. Ronen Bergman, Rise and Kill First: The Secret History of Israel’s Targeted Assassinations, Random House, New York, 2018.

 

  1. Ver o blog de 19 de abril de 2017, “Matar, com ética”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/no107-matar-mas-com-etica-28952).

 

 e o de 16 de novembro de 2016, “Fronteiras indefinidas da guerra”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/as-fronteiras-indefinidas-da-guerra-23353).

 

 

 

 

 

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