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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(256) Lutas, controvérsias e horrores no século IV.

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

O século IV, por ser uma época de grande transição e de definição, é propício para se observar o ser humano, no seu melhor e pior. Podemos considera-lo ainda como o século da Evangelização que continua a condicionar-nos.

 

É no Concílio de Niceia, em 325, que se condena a heresia ariana e que se redige uma profissão de fé, o Credo, contendo as verdades dogmáticas da Igreja, numa espécie de manifesto anti arianista.

 

Como prova de vitalidade e da expansão do cristianismo na Península, nos inícios do século IV, mais de trinta sés episcopais reuniram-se em Elvira (onde participaram três bispos da Lusitânia).

 

Na De Isaia, Potâmio de Lisboa, descreve o martírio do profeta Isaías, condenado a ser serrado vivo com uma serra de madeira, começando pela cabeça e prosseguindo pelo resto de corpo, separando-o ao meio.

 

 

 

 

Os homens, as instituições e os tempos, têm mantido ao longo dos tempos relações estreitas e estranhas, umas vezes sendo os homens a influenciarem as instituições e outras as instituições a influenciarem os homens, ao mesmo tempo que iam fazendo os seus tempos ou sendo por eles influenciados.

 Daí, que em alguns períodos que se vêm a revelar como mais críticos, na medida em que quem neles viva não se apercebe muito bem sobre o que está em jogo, seja propício para o aparecimento de figuras de relevo, que tiveram ou a capacidade de resistir, ou a de entender a flutuação do tempo, ou simplesmente a de se deixarem flutuar ao sabor da corrente.

O século IV, por ser uma época de grande transição e de definição, é propício para se observar o ser humano, no seu melhor e pior. Podemos considera-lo ainda como o século da Evangelização que continua a condicionar-nos.

 

Sem o saber, o Império Romano preparava-se para o seu fim: desde a instabilidade e permeabilidade das suas fronteiras, às sucessivas hordas de “bárbaros” sempre à espreita de qualquer possibilidade de infiltração, as sucessivas guerras sem fim à vista, a grande heterogeneidade de populações que só a custo a romanização dava sentido, as sucessivas chefias militares cada vez mais mercenárias, em resumo: o enfraquecimento da “auctoritas”, da tradição, e uma religião de estado desmembrada e cada vez mais afastada dos povos, a quem não dava qualquer esperança.

É neste ambiente, que o Cristianismo inicia o processo de Evangelização: território imenso, ausência inicial de estruturas próprias, poder do estado não só desfavorável como contrário (as perseguições sucediam-se, os martírios atingiram o seu auge em todo o Império, entre 303 e 311, por ordem do Imperador Diocleciano), diversos povos, as diversas religiões, a rudeza da época, as peregrinações aos lugares santos greco-orientais com a sua religiosidade, cultura e literatura próprias.

 

Inicialmente, a Igreja não estava organizada territorialmente, estava apenas hierarquizada, sendo dirigida localmente a partir de certas cidades que se revelavam centros importantes da vida cristã, na medida em que contavam com grande número de fiéis; os poderes disciplinares e administrativos pertenciam às pessoas a quem a instituição fizera depositário das regras estabelecidas.

 Rapidamente estas jurisdições foram limitadas, passando em simultâneo a utilizarem-se as circunscrições do império Romano para fixar as da Igreja. Aparece assim em cada civitas uma igreja, dirigida por um bispo, que tinha jurisdição dentro dos limites da civitas, na diocese.

 

Como forma para resolverem questões relacionadas com a pureza da religião e com a fé, para conhecerem outros problemas de vivência e relacionamento das suas comunidades, para debaterem dogmas religiosos e correntes heterodoxas que punham em causa a ortodoxia, para o combate às heresias e julgamento de bispos e clero, criaram-se reuniões, os Concílios, onde regularmente, ou sempre que necessário, os dignatários da Igreja se reuniam.

Como prova de vitalidade e da expansão do cristianismo na Península, nos inícios do século IV, mais de trinta sés episcopais reuniram-se em Elvira (onde participaram três bispos da Lusitânia): nesse Concílio não estiveram particularmente em foco casos maiores de heterodoxia, debruçando-se os 81 cânones resultantes sobre a imposição do celibato a todos os clérigos, sob pena de degradação (note-se que ainda hoje faz parte da vida canónica), e outras proibições relativas à vida cristã.

 

O Imperador Constantino vai conceder liberdade de culto aos cristãos, em 313, quando publica o Édito de Milão, cujas consequências foram enormes para a expansão e enraizamento do cristianismo.

Em 325, para fazer face às heresias que poderiam provocar cismas no interior na Igreja, reuniu-se aquele que foi o Primeiro Concílio Ecuménico (assembleia de bispos de toda a igreja universal), o Concílio de Niceia, presidido pelo Imperador Constantino (na altura já convertido ao cristianismo e, como Imperador que restabelecera a paz no Império, desejava também a paz religiosa), sendo Papa, Silvestre I.

É neste Concílio que se condena a heresia ariana e que se redige uma profissão de fé, o Credo, contendo as verdades dogmáticas da Igreja, numa espécie de manifesto anti arianista.

 

O arianismo, é a doutrina pregada por Ário, nascido em Alexandria, falecido em 336. Embora a teologia de Ário seja também trinitária, o arianismo nega a consubstancialidade das três Pessoas, afirmando que são apenas semelhantes (homoiousion), ao passo que para o niceísmo as três Pessoas são da mesma substância (homoousion).

Para o arianismo, o Filho e o Espírito Santo têm substâncias diferentes do Pai, sendo o Filho criado por ato de vontade de Deus (estando-lhe assim, subordinado – subordinacionismo- como que Filho adotivo- adocionismo), sendo o Espírito Santo criado a partir do nada. Para o niceísmo, o Filho é gerado, consubstancial ao Pai, nascido do Pai antes de todos os séculos, e, o Espírito Santo é gerado, consubstancial ao Pai (procede do Pai).

No plano soteriológico, para o arianismo, Cristo é apenas uma criatura, só exemplo moral (ficando assim comprometida a salvação, um dos fundamentos do niceísmo), encarnando diretamente num corpo, sem o intermediário da alma, o que faz com que Cristo só tenha natureza divina (monofisismo). Para o niceísmo, Cristo encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e tem dupla natureza, divina e humana, e veio para nos salvar. No plano de valor mariano, o niceísmo, contrariamente ao arianismo, afirma a virgindade de Maria e a linhagem divina de Cristo.

 

O arianismo era mesmo a grande ameaça que poderia cindir a Igreja, e, mesmo após o Concílio de Niceia e apesar de contar com a conversão do Imperador, vai assistir a este mesmo Imperador, apenas três anos depois, fazer regressar do exílio alguns chefes arianos, que vão conduzir uma grande ofensiva contra o niceísmo, através do ataque pessoal a figuras importantes do Cristianismo: é assim que Santo Atanásio é exilado em 335.

 Em 337, após a morte de Constantino, o Império é dividido pelos seus três filhos, Constantino II, Constante e Constâncio. Com a morte dos seus dois irmãos em 353, Constâncio fica como imperador único.

Quanto a Santo Atanásio, que regressara do exílio em337, volta a ser exilado em 339. Esta nova arremetida do arianismo fazia-se sentir mesmo dentro da Igreja, de tal forma, que para fugirem à acusação de arianismo, os bispos, reunidos no sínodo da Dedicação, em 341 intentam uma via intermédia, de forma a contornarem o conceito da consubstancialidade.

Em 342, continuando a não aceitarem o conceito da consubstancialidade, concedem, contudo, que o Filho não é criado a partir do nada. De novo em 344 é reeditada a fórmula de 342 com uma nova edição.

Em 352, volta a abrir-se o processo contra Atanásio. O Papa Libério, por tomar partido a favor de Atanásio, é chamado a Milão, em 353, à presença do Imperador Constâncio, para assinar a condenação de Atanásio. Como não o fez, é exilado; em 357, acaba por redigir duas epístolas que envia a todos os bispos, explicando numa, a sua separação de Atanásio, e na outra, a sua profissão de fé agora marcadamente antiniceísta.

Nos finais de 357, no concílio de Sírmio, é finalmente redigida uma nova fórmula em que a via intermédia desaparece, em favor de uma via totalmente antiniceísta.

 

É neste contexto conturbado da luta entre niceístas e arianistas que vive Potâmio (Potamius), com data e local de nascimento desconhecidos, e que foi o primeiro bispo de Lisboa, daí ficar conhecido como Potâmio de Lisboa, tendo falecido por volta de 383.

Começa por ser niceísta, passando depois para o arianismo; no final da vida, regressou ao niceísmo. Como se sabe da sua passagem para o arianismo? Porque está documentada a estadia que teve com Epicteto, um bispo ariano, para intercederem junto do Papa Libério, em 357, a fim de que este, para além da epístola que enviara sobre a sua separação de Atanásio, fosse mais longe nas concessões ao nível da dogmática, o que, como vimos, veio a acontecer.

Provavelmente, participou também no concílio de Sírmio, no final de 357. Ainda em 357, escreveu uma obra pró arianista, o Líber contra Arianos de Foebade d’Agen.

A sua provável reconversão ao niceísmo é documentada pelo aparecimento, em 359, da Epistula ad Athanasium, onde faz uma defesa do niceísmo. A ser correta a data, e deve ser, pela cronologia dos acontecimentos históricos (após o terceiro desterro da Atanásio), então Potâmio regressou à ortodoxia do seu início: o niceísmo.

 

Obras de Potâmio que nos chegaram:

- Epistula ad Athanasium (Epístola para Atanásio);

-Epistula de Substantia Patris et Filli et Spiritus Sancti (Epístola sobre a substância do Pai e Filho e Espírito Santo);

-De Lazaro (Sobre Lázaro);

-De Isaia (Sobre Isaías).

 

Na Epistula ad Athanasium, Potâmio ataca o arianismo socorrendo-se da mesma fonte em que ele se apoia, neste caso o Evangelho de S. João. Vai dirigir a sua atenção sobre dois pontos cruciais: o problema do subordinacionismo e o da substância.

Sobre o primeiro, contrapõe à citação ariana dita por Jesus “ alegrar-vos-ei de que vá para o Pai, porque o Pai é maior do que eu” as seguintes:” Eu e o Pai somos uma só coisa “, “Quem me vê, vê também o Pai” e “Há tanto tempo que estou convosco ( para os apóstolos) e não conheceis ao Pai”.

 Sobre o segundo, rebatendo o que os arianos diziam por nas Escrituras não aparecer qualquer referência à substância, cita passagens onde esse vocábulo está inscrito, umas vezes falsamente, outras em que o significado é diferente, não querendo significar substância. Neste caso, Potâmio segue um procedimento vulgarmente adotado pelos apologistas, que era o de demonstrar o carácter bíblico do termo. Termina, com uma invocação à Virgem, mãe de Deus.

 

Na Epistula de Substantia Patris et Filli et Spiritus Sancti, Potâmio vai abordar o tema da consubstancialidade divina, socorrendo-se quer dos profetas, Isaías e Jeremias, e ainda de João (“E os três são uma só coisa”), quer de metáforas como a da túnica de Cristo por ter sido talhada de uma só peça, ou do corpo humano, onde apesar de ter vários membros e sentidos ser tudo a mesma substância.

Indica ainda o facto de os milagres de Cristo só poderem significar que Ele e o Pai serem só um e o mesmo.

Em De Isaia, Potâmio faz uma descrição horrífica, como se estivéssemos no local mais privilegiado, a assistir ao martírio do profeta Isaías, condenado a ser serrado vivo com uma serra de madeira, começando pela cabeça e prosseguindo pelo resto de corpo, separando-o ao meio. Mais não diz, daí que seja difícil integrar este De Isaia numa homilia.

 

Na homilia De Lazaro, Potâmio narra com um realismo inacreditável a decomposição do corpo de Lázaro durante os quatro dias que esteve morto, de acordo com a degradação que sofrem os quatro humores presentes no corpo humano (o sangue, a bílis amarela, o muco e a bílis negra, segundo a fisiologia grega) quando a alma o abandona. Depois é a ressurreição feita por Cristo, perante a alegria e espanto de familiares e assistentes.

Nesta homilia, Potâmio expõe a tese do homem como ser com corpo, alma e espírito. Embora não elabore sobre a relação alma-espírito, esta porta acabou por ser aproveitada por Santo Agostinho (que cita esta homilia) para conotar o espírito com a razão, sendo esta uma faculdade da alma. Mais tarde, Santo António de Lisboa, prosseguirá também, esta linha de pensamento.

 

 

 

 

AUXILIARES

Gomes, Pinharanda, História da Filosofia Portuguesa: A Patrologia Lusitana, Porto, Lello & Irmão, 1983, pp. 121-131.

Martins, Mário, Correntes da Filosofia Religiosa em Braga dos sécs. IV a VII, Porto, Livraria Tavares Martins, 1950

Menéndez y Pelayo, Marcelino, Historia de los heterodoxos españoles, Alicante, Biblioteca Virtual Miguel Cervantes, 2003 (Edición digital basada en la de Madrid, la Editorial Católica, 1978.

Moreira, António Montes, Potamius de Lisbonne et la Controverse Arienne, Louvain, Bibliothèque de l’Université, 1969, pp. 217-300.

Pacaut, Marcel, Les Instituitions Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1951, pp. 33-34.

Pimentel, Manuel Cândido, “História da Filosofia em Portugal”, UCL, 2011.

Silva, Paula Oliveira e, “Potâmio de Lisboa e a controvérsia ariana”, in AA. VV., História do Pensamento Filosófico Português, vol. I, lisboa, Editorial Caminho, 1999, pp. 43-65.

Yarza Urkiola, Valeriano, Potâmio de Lisboa: Estudio, edición crítica y traducción de sus obras, Vitoria, Sevicio Editorial Universidad del País Vasco, 1999.

 

(255) Antropoceno: de apagão em apagão

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Porque passaram os humanos a fazer parte da definição de uma época geológica?

 

A perceção do fim para toda a humanidade, que poderá chegar mais cedo ou mais tarde, volta hoje a ser um assunto presente.

 

Segundo a chamada “Hipótese do Planeta dos Macacos”, a inteligência humana é uma característica convergente com a evolução. O mesmo é dizer que “as coisas estúpidas tornam-se cada vez mais espertas”.

 

Os vários grandes apagões de Nova Iorque têm um saboroso ponto comum: a distribuição gratuita de sorvete.

 

Esperemos que, entretanto, as formigas e outros insetos resistam. Proteína. Chinesa.

 

 

 

 

Estávamos nós todos contentes a viver na época do Holoceno (iniciado vai para 11.650 anos) do período Quaternário (iniciado vai para 2,6 milhões de anos) da era Cenozoica (iniciada vai para 66 milhões de anos), quando nos vieram inquietar com o Antropoceno.

Embora só muito recentemente se tenha começado a ouvir falar em Antropoceno como sendo a época em que os humanos passaram a influenciar as grandes alterações do globo terrestre, o que talvez tenha acontecido devido às “fugas de informação” (intencionais ou não) sobre o aquecimento global e pelos “receios” das suas consequências, na verdade este conceito apareceu há quase um século.

 

As “divisões” geológicas e os nomes porque são conhecidas, têm todas de ser aprovadas e votadas pela Comissão Internacional de Estratigrafia, e posteriormente ratificadas pela União Internacional das Ciências Geológicas. Até agora, as considerações que deram lugar a essas divisões, tiveram que ver com diferenças no funcionamento da Terra como um sistema. Pelo que, normalmente, o início dessas divisões apareça sempre marcado por manifestações verificadas ao nível estratigráfico, podendo, ou não, ser complementado por outras mudanças correlacionadas.

Por exemplo, considera-se como marcador do início da era Cenozoica, o pico do aumento verificado de irídio, metal residual proveniente do impacto de um meteoro com a Terra, existente numa rocha datada com 66 milhões de anos encontrada em El Kef, na Tunísia, e não a extinção dos dinossáurios e o aumento do número de mamíferos que então se verificaram.

 

As discussões sobre a influência dos seres humanos na história do planeta, começou em 1778, quando o conde de Buffon (1707-1788) publicou uma história da Terra, em que reservou a sétima e última época para a humanidade, para assim não fugir muito à história bíblica dos sete dias da criação.

No século XIX, com a progressiva diminuição do papel atribuído à intervenção divina como força geológica, Charles Lyel (1797-1875), atreveu-se a propor, em 1830, que o tempo contemporâneo passasse a ser denominado como uma época, a época Recente, apresentando em sua defesa, três considerações: o fim da última glaciação, o coincidente aparecimento dos humanos e de civilizações.

Já Thomas Jenkyn (1794-1858), ao relacionar o homem com os achados geológicos, vai sugerir em 1854, que os então tempos presentes passassem a serem chamados de “época humana”. Segundo ele, “todas as rochas recentes, que na última lição tratámos como sendo do Pós-plistoceno, poderiam ser ditas como pertencentes ao Antropozoico, ou seja, rochas da época em que os humanos vivem.

Mas vai ser Paul Gervais (1816-1879), a conseguir em 1860, o reconhecimento internacional do conceito de “época Recente” de Lyel, quando a passou a chamá-la de Holoceno (tudo novo).

 

Ao longo de todo o século XIX, utilizaram-se indistintamente os termos Recente, Holoceno e Antropozoico, uma vez que concetualmente todos eles consideravam os humanos como parte da definição da época geológica em que se vivia.

 

Acontece que em 1922, o geólogo russo Aleksei Pavlov (1854-1929), imbuído do espírito epocal do “homem novo” que tudo vai mudar, vai propor que os nossos dias do presente deviam ser considerados como fazendo parte de um “período Antropogenético ou Antropoceno”.

 Os geólogos ocidentais (por oposição aos soviéticos) consideravam que não havia qualquer necessidade para o aparecimento de um novo termo e de uma nova divisão, dado que a influencia dos humanos já estava contida na definição do Holoceno, acabando por conseguirem que o Holoceno fosse reconhecido como termo oficial constante da Escala Geológica do Tempo, GTS (Geologic Time Scale).

  Os russos continuaram, no entanto, a insistir com o Antropoceno, pois também sabiam que ao fazê-lo retirariam ao Holoceno a sua caraterística única – humanos --, pelo que o Holoceno passaria a ser uma época vazia, não necessária.

 

Atualmente, estas pequenas lutas e influências continuam a verificar-se nos debates geológicos, com grandes reflexos nas considerações sobre o começo dos períodos.

 

Por exemplo, Paul Crutzen (1933-) e Eugene Stoemer (1934-2012) propõem em 2000, no seu estudo The Anthropocene, considerar que o seu início fosse coincidente com o começo da Revolução Industrial e o aparecimento da máquina a vapor de James Watt (1784). Estamos a falar do mesmo Crutzen, que recebeu o prémio Nobel da Química em 1995, por em 1970 ter demonstrado que os compostos de oxido de nitrogénio causavam a destruição acelerada da camada de ozono que protegia a Terra das radiações ultravioletas do Sol.

Outros sugerem que o marcador se situasse em meados do século XX, como consequência da queda das poeiras radioativas oriundas das experiências com armas nucleares.

Outros ainda, sugerem a época da transição para a agricultura que teve lugar há 11.000 anos (como marcador assinalam a presença de pólen fossilizado de plantas domesticadas). Muitos outros marcadores são ainda sugeridos, todas eles com as respetivas justificações.

 

De certa forma, todas as hipóteses continuam em aberto, e, aceitar uma ou outra, reflete apenas a “nossa” visão do mundo, tendo, contudo, grande importância para a determinação do futuro mais próximo.

Seja como for, a perceção do fim para toda a humanidade que poderá chegar mais cedo ou mais tarde, volta hoje a ser um assunto presente.

 

 

Este receio do fim da humanidade, tem-se vindo a manifestar através dos tempos, com maior ou menor intensidade, com maior ou menor regularidade, com maior ou menor consciência, estando talvez relacionado com o medo primitivo das noites passadas nas cavernas escuras a que se recolhia.

A nível individual, julgo não haver melhor exemplo que o das crianças que resistem o mais possível a irem para a cama à noite porque não têm a experiência, o conhecimento suficiente, de que um novo dia se lhe seguirá. Nos adultos, o receio já não é o de irem para a cama, mas o do desaparecimento, da morte. Extinção individual sem regresso.

A nível social, este medo tem sido aproveitado pelos vários regimes, pelas várias religiões, para nos assegurarem vidas eternas ou curtas, boas ou más, prazenteiras ou infernais, conforme as civilizações e culturas.

 

Mais perto culturalmente de nós, a consideração das profecias do Apocalipse, apareceu como forma de nos assegurar, tranquilizar, ao garantir que no final todos ressuscitaríamos e seríamos julgados num tribunal especial da justiça divina. Apocalipse como revelação.

Já a extinção da humanidade nada tem a ver com justiça, seja ela qual for: trata-se pura e simplesmente do desaparecimento, do fim de qualquer significado e moralidade, em que nada de humano sobrará. A extinção da humanidade nada tem a ver com o apocalipse.

 

A extinção da humanidade é um conceito que, de certa maneira, só aparece com o Iluminismo. Até aí, supunha-se que o cosmos estava cheio de valores morais, que todos os planetas eram povoados por “seres vivos e pensantes” como nós, pelo que nunca se extinguiriam.

Galileu (Diálogo), declarava que um mundo desabitado e despovoado era “naturalmente impossível”. Leibniz (Monadologia), dizia que não poderia existir nada no universo que fosse “estéril, ou morto”.

Halley, o anfitrião que nos informou das datas da vinda do visitante cometa com o seu nome, explicava em 1753 que o interior da Terra deveria ser habitado, pois não seria “justo que qualquer parte da natureza não estivesse ocupada por seres morais”.

Curiosamente, é dele a primeira teoria da “extinção em massa”, em que, evidentemente, os cometas desempenhariam papel principal, tal como anteriormente já tinham sido os causadores do desaparecimento total de algumas espécies. Acrescentava ainda que após cada um desses cataclismos “a civilização humana ressurgiria”. Só assim se poderia considerar que tais acontecimentos fossem moralmente justificáveis.

Denis Diderot, também considerava que a humanidade poderia ser extinta, mas que decorridos alguns milhões de anos “o animal bípede denominado homem” reapareceria noutra forma.

 Teoria que ainda hoje tem muitos seguidores, segundo a qual a inteligência humana é uma característica convergente com a evolução (a que Charles Lineweaver vai chamar de “Hipótese do Planeta dos Macacos”, refutando-a), ou dito de outra forma mais simples, desde que apareceu a vida ela tem-se tornado cada vez mais inteligente, aceitando-se assim que a evolução animal segue esse padrão que se acredita universal segundo o qual “as coisas estúpidas tornam-se cada vez mais espertas”, pelo que não será de espantar que o “animal bípede denominado homem”, reapareça noutras formas.

Ou seja, a inteligência humana seria o padrão seguido pela evolução cósmica, pelo que todas as biosferas alienígenas produziriam seres como nós. Pelo que se viéssemos a ser extintos aqui na Terra, acabaríamos por, mais tarde ou mais cedo, termos um regresso.

Este pensamento de que a humanidade não se extinguiria para sempre, estava generalizado entre os eruditos da época. O que implicava que não havia grande preocupação com o futuro da humanidade.

 

Havia quem discordasse, como o Barão d’Holbach, que figurava entre os poucos que desprezava esta “conjetura de outros planetas, como o nosso, poderem ser habitados por seres idênticos a nós”, atribuindo tal crença infeliz ao acreditar-se no dogma de o cosmos se encontrar cheio de valor moral. Também Louis-Sebastien Mercier, não acreditava em qualquer possibilidade de regresso, acrescentando que se a Terra se afastasse do Sol, o frio interestelar “aniquilaria a raça humana, e a Terra, vogando livre pelo espaço, acabaria por ter um aspeto desolado e despovoado”.

 

Mas em 1783, dá-se a erupção do Laki, vulcão na Islândia, que vai provocar uma enorme mancha de fumo, qual nevoeiro que se estendeu por toda a Europa durante todo o verão, que se vai juntar ao enorme aumento da concentração dos fumos e gases então provenientes da industrialização nascente.

 

Em 1815, dá-se a grande erupção do Monte Tambora, na Indonésia, que, para além do enorme impacto no clima mundial, vai originar fomes, perturbações políticas, doenças e epidemias que se estenderam a todo o globo: o ano seguinte foi excecionalmente frio e chuvoso, um “ano sem verão”, o “fim do clima mundial”.

Começam então a aparecer vários artigos em jornais considerando algumas possibilidades da extinção da humanidade: arrefecimento global, subida das águas dos mares, guerras por todo o planeta.

 

Encontrando-se a veranear nos arredores de Genebra, Lord Byron, Mary Shelley (do Frankenstein) e o marido, Percy Shelley, manifestaram grande preocupação pelo tempo terrível que se vinha fazendo sentir, excecionalmente frio, chuva contínua, céu escurecido, o que os fez pensar mais a sério na vulnerabilidade do ser humano perante as forças da natureza, e que poderiam levar à extinção da humanidade. O aproximar de uma época de glaciação. O arrefecimento global.

Segundo Byron, a grande diminuição da temperatura e a escuridão, levariam a guerras pelos recursos, ao colapso do ecossistema, fome e eventualmente à destruição de toda a vida no planeta. O seu poema escrito na altura, “Darkness”, é como uma antevisão de um inverno nuclear.

No Frankestein, existe já uma ligação ao arrefecimento global, acabando a “criatura” por ser destruída pelo seu criador por se adaptar muito melhor ao frio, podendo assim vir a suplantar os humanos. Uma criatura pós-humana que sobreviveria aos humanos numa Terra gelada.

Em 1826, Mary Shelley publica The Last Man (O Último Homem), a primeira grande novela sobre a extinção da humanidade provocada por uma pandemia.

 

As epidemias eram algo que as sociedades há muito se confrontavam com uma certa regularidade. Piores ou menos más, de maior ou menor duração, como a peste bubónica, que entre 1346 e 1353 matou um terço da população da Europa, e que foi permanecendo ao longo do tempo, por vezes com efeitos positivos locais (em 1384, dizimou grande parte do exército castelhano que cercava Lisboa) e negativos, quando, para além das mortes diretamente causadas, esteve na origem do medo que levou a violência irracional das populações, na tentativa de encontrarem culpados (os judeus, evidentemente, indevidamente acusados de envenenarem os poços de água, justificativo para assassínios em massa).

Como as epidemias da varíola, sarampo, papeira, febre-amarela, tosse convulsa e gripe, levadas pelos conquistadores europeus para a América.  Quando Fernando Cortez chegou ao território mexicano em 1519, viviam na América Central entre 15 a 30 milhões de índios. No final desse século, só lá restavam 2 milhões. 

A lepra, varíola, febre tifoide, cólera e febre-amarela causaram dezenas de milhar de mortes em 1833, 1855, 1856, 1857, 1861.

Ainda a Primeira Guerra não terminara, quando a 4 de março de 1918, num campo de treino de soldados no Kansas, EUA, é identificada uma nova estirpe de gripe, que vai rapidamente dar várias voltas ao mundo, tornando-se na mais mortal de sempre ao dizimar cerca de 5% da população mundial: a pneumónica, ou gripe espanhola (não por vir de Espanha, mas por este ser o único país em que a imprensa falava sem restrições sobre os efeitos desta gripe, o que induziu a opinião pública mundial a pensar que a sua origem fosse Espanha).

Só em Portugal, matou 60.000 pessoas, “entre as quais os pintores Amadeo de Souza-Cardoso e Guilherme de Santa-Rita … e dois dos protagonistas das aparições de Fátima, os pastorinhos Jacinta e Francisco Marto”.

As várias gripes anuais das aves, dos suínos, a SIDA, o Ébola, e outras que se lhe sucederão, fazem milhares de mortos todos os anos, contribuindo para aquela sensação de medo de uma possível pandemia que nos leve a todos sem sequer vermos os agentes.

 

Mas, a partir da segunda metade do século XX, este medo de um próximo fim do mundo torna-se muito mais real, pela grande probabilidade de acontecer um conflito nuclear. A construção e a compra de abrigos antiatómicos, as instruções de sobrevivência, as corridas aos supermercados, as compras de armas, etc. faziam parte do dia-a-dia das populações dos países mais possíveis de sofrerem destruições.

O Relógio do Fim do Mundo (Doomsday Clock), criado pela Revista dos Cientistas Atómicos em 1947, em que a extinção da humanidade está aprazada para a meia-noite, devido a catástrofe nuclear, alteração climática, e outras tecnologias disruptivas, informava a 23 de janeiro de 2020, que o ponteiro passava a estar a 100 segundos para a meia-noite.

 

Juntemos ainda, as muitas e variadas interrupções de fornecimento de eletricidade, os “apagões”, como por exemplo, e só para falar de nações de primeira e grandes metrópoles, o de 1965, que afetou mais de 30 milhões de pessoas durante 13 horas no Ontário (Canadá) e costa nordeste dos EUA; o de 1977 em New York, que se manteve durante dois dias, e que originou cenas de destruição, crime  e vandalismo (1616 lojas assaltadas, 1037 incêndios, 3776 pessoas presas, os túneis para automóveis foram fechados por falta de ventilação, 4000 pessoas foram retiradas dos túneis do metropolitano); o de 2003, que afetou mais de 55 milhões de pessoas, de novo a costa nordeste e central dos EUA e Canadá, durante 14 dias (!); e o de 2019, que afetou Manhattan durante um dia. É suficiente para termos uma visão aproximada do que serão os pequenos fins de mundo no dia a dia.

 

 Acrescentemos agora o aquecimento global há dezenas de anos previsto, mas só agora publicitado. Aparentemente estamos perante um cenário de catástrofe anunciada, a serem corretas as projeções e os cenários que delas derivam. E curiosamente, nenhuma das técnicas e tecnologias que lhe deram origem, conseguem agora reverter o processo. A velha caraterística do sistema: faz-se, dá dinheiro, chuta-se para a frente, depois logo se vê. O contrário será coartar a liberdade.

Passadas as grandes manifestações verdes, tudo voltará ao “business as usual!” Até porque as grandes inteligências artificias inteligentes acabarão por encontrar uma solução, seja ela meramente tecnológica de curta duração, seja ela pela clássica diminuição da população (pandemias, guerras atómicas limitadas, exclusão de grupos determinados, etc.), alterando assim as previsões projetadas.

Entretanto, vamos todos ser convencidamente obrigados a ter de comprar carros elétricos mais caros (de que iremos também pagar os postos de reabastecimento), estando previsto que isso será apenas para os próximos vinte a trinta anos, porque depois virão obrigatoriamente os carros a hidrogénio que serão ainda mais caros, bem como os postos de reabastecimento.

Mas não há problema: o aquecimento “natural” libertará imensas terras cultiváveis (a que nenhum de nós terá acesso pois já estão todas compradas ou apalavradas) de onde virão os alimentos com certificação (evidentemente mais caros, para compensar o investimento feito) únicos possíveis de comprar porque as outras terras pouco ou nada produzirão por terem secado. Esperemos que, entretanto, as formigas e outros insetos resistam. Proteína. Chinesa.

 

 

Dissemos atrás que volta hoje a ser um assunto presente a perceção do fim para toda a humanidade, que poderá chegar mais cedo ou mais tarde. E até deveria ser assim.

O que acontece é que a preocupação não é tão presente nem tão premente, ficando-se pelo vagamente presente, interessante como tópico de conversação, uma moda, entregando a solução a quem tão afincadamente se tem esforçado por tratar de nós. Recomendo aqui a audição do “FMI” do José Mário Branco (https://www.youtube.com/watch?v=sMKtedGh9Co).

 

 A quantidade enorme de informação (na qual incluo a desinformação, propositada ou não) despejada e o grande número de assuntos cobertos em muito curtos espaços de tempo, pouco mais permitem, no melhor dos casos, que a formação de uma simples opinião.

 A nosso favor resta-nos o conhecimento que esse fim, com sorte, chegará lentamente, dando tempo para as lamentações dos vivos para a morte. Mas, tal como gladiadores dos circos romanos faziam antes de serem mortos, continuamos a saudar César.

 

 

 

Recomendações:

 

Lewis, Simon & Maslin, Mark, “Defining the Anthropocene”, Perspectives,

(https://web.archive.org/web/20151224052554/http://www.realtechsupport.org/UB/MCC/Lewis_DefiningAnthropocene_2015.pdf).

Neste muito interessante estudo, é apresentada evidência em como o maior declínio de CO2 na atmosfera se verificou entre 1570 e 1620, devido à diminuição da população índia das Américas, que passaram de 54 milhões em 1492, para 6 milhões em 1650, com a consequente redução do número de fogos e cessação da agricultura, sendo substituídas por savanas e florestação.

 

Lineweaver, Charles H., “Paleontological Tests: Human-Like Intelligence Is Not A Convergent Feature of Evolution”, Dez. 2007. (https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/0711/0711.1751.pdf).

 

Holbach, Paul Henry Thiry (baron d’), The System of nature; Or, the Laws of the Moral and Physical World … (https://books.google.co.uk/books?id=W1e4H6A-XQIC&pg=PA146&dq=d%27holbach+%22inhabited+by+beings+resembling+ourselves%22&hl=en&sa=X&ved=0ahUKEwickcfR-L7jAhVFsXEKHc8xAWcQ6AEIKjAA#v=onepage&q=d'holbach%20%22inhabited%20by%20beings%20resembling%20ourselves%22&f=false)

 

José Mário Branco, letra do “FMI”, (https://www.vagalume.com.br/jose-mario-branco/fmi.html).

 

Os tempos em que vivemos, “Como enganar o clima”, 18 dezembro 2019 ( https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/246-como-enganar-o-clima-64728), “Ecologias revisitadas”, 29 maio 2019 (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/217-ecologias-revisitadas-57158), “Os grandes poluidores”, 8 maio 2019, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/214-os-grandes-poluidores-56332), “O futuro da civilização”, 31 julho 2019, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/226-o-futuro-da-civilizacao-humana-59419),“Dois minutos para a meia-noite”, 6 março 2019, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/205-dois-minutos-para-a-meia-noite-54195).

 

 

 

 

 

 

(254) Espaços de liberdade

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Todas as organizações políticas feitas pelos homens tiveram a sua origem num crime, Hanna Arendt.

 

A liberdade, onde quer que tenha existido como realidade tangível, foi sempre espacialmente limitada e temporalmente efémera.

 

Aquilo a que nós hoje chamamos de democracia, é uma forma de governo onde uns poucos governam, pelo menos supostamente no interesse de muitos…e onde a felicidade e a liberdade públicas…se tornaram privilégios desses poucos.

 

Os partidos políticos são os instrumentos através dos quais o poder do povo é controlado […] a sua finalidade é a de excluir as massas da vida pública […] e o seu efeito é criar uma cada vez maior indiferença por tudo o que é político.

 

 

 

 

 

O que levou Hanna Arendt a debruçar-se sobre revoluções, como nos mostra no seu denso e extenso estudo, On Revolution, foi a tentativa de conseguir entender e explicar aquilo que considerava ser nelas redentor, o problema de um novo começo, porquanto “as revoluções são os únicos acontecimentos políticos que nos confrontam direta e inevitavelmente com o problema do começo”.

Ou seja, para Arendt, o problema do começo, das possibilidades de novos começos, encontra-se eminentemente associado à revolução. E que esse começo estivesse intimamente ligado à violência, era também para ela um dado adquirido. Basta relembrar os começos lendários da nossa história, quer bíblicos quer clássicos: Caim assassinara Abel, Rómulo assassinara Remos.

 

A violência foi o princípio, e de igual modo, nenhum começo pode ser feito sem o uso de violência, sem violação […] todas as organizações políticas feitas pelos homens tiveram a sua origem num crime.”

“No início estava um crime – daí que a frase “estado natural” seja apenas uma paráfrase teoricamente purificada.

 

Simultaneamente e subsidiariamente, Arendt, procurou também, encontrar a existência e a formação de um espaço público onde a liberdade se pudesse expressar e acontecer, como emanação do verdadeiro espírito das revoluções modernas.

E, contudo, após os estudos que fez sobre as revoluções modernas, acabou por reconhecer que:

 

Aquilo a que nós hoje chamamos de democracia, é uma forma de governo onde uns poucos governam, pelo menos supostamente no interesse de muitos…e onde a felicidade e a liberdade públicas…se tornaram privilégios desses poucos.”

 

Para um autor que definira a revolução americana como um caso de sucesso, talvez único, expressar a sua visão sobre o estado da democracia atual desta forma, não corresponderá a uma certa desilusão sobre o processo seguido pela Revolução Americana de 1776? Que pontos de inflexão surgiram (nessa e nas outras revoluções posteriores) que poderiam ter sido aproveitados para a criação de espaços de liberdade, e não foram? Que lições podemos tirar?

 

A revolução para Arendt

 

Para Arendt, a finalidade da revolução é a instauração de liberdade política que se assuma como durável, por forma a garantir às futuras gerações o direito de participarem numa esfera pública, de se pronunciarem acerca dos assuntos políticos.

 A libertação da opressão deve ter com objetivo a liberdade, e a liberdade deve conduzir à constituição de uma república.

A república deve ser identificada não apenas como um governo constitucional que garanta os direitos privados, mas também como forma de organização política na qual os cidadãos possam viver juntos sem qualquer divisão entre governantes e governados.

A libertação será uma fase sempre associada ao drama e à violência, com o objetivo imediato da restituição dos direitos civis (à vida e à propriedade), devendo seguir-se a fase da liberdade, onde se procederá à calma fundação de um corpo político.

 

A revolução americana

 

 Assim, a Revolução Americana teve como objetivo a construção de um governo representativo baseado no consentimento do povo, numa moldura constitucional no qual os poderes se balanceavam de forma a garantirem os direitos privados e os direitos de propriedade, à luz da Carta dos Direitos (Bill of Rights), pese embora esta só tenha sido incluída na Constituição três anos depois da sua aprovação.

Mas Arendt reconhece que se devia ter feito mais para garantir os direitos da vida pública, bem como dos direitos privados. E não só Arendt, pois esta alternativa chegou de facto a ser proposta por Jefferson, mas a decisão que prevaleceu acabou por pender para o lado dos direitos privados, em detrimento da consolidação da vida pública.

Jefferson faz notar que na altura, estavam muito mais preocupados com a feitura da constituição e com o estabelecimento de um novo governo, do que com as atividades que constituíam o espaço de liberdade. Daí que na democracia representativa, apenas os representantes e não os representados, tivessem a possibilidade de se fazerem ouvir, discutir e decidir sobre as políticas públicas.

Arendt observa ainda, que a oportunidade para o exercício da liberdade pública e para o gozo da felicidade pública, diminuiu com o aparecimento da república dos Estados Unidos relativamente com a que havia nas colónias da América Inglesa.

 Foi um erro trágico de falta de visão pós-revolucionária, com consequências para o desenvolvimento político futuro, o facto de não se terem incorporado as “townships” (reuniões de discussão ao nível local) quer nas constituições dos estados, quer na constituição federal.

 Modernamente, Arendt considera que os partidos políticos são os instrumentos através dos quais o poder do povo é controlado, com programas que não passam de fórmulas que visam a execução e não a ação. Pelo que a sua finalidade é a de excluir as massas da vida pública, e o seu efeito é criar uma cada vez maior indiferença por tudo o que é político.

 

 

A revolução francesa

 

Na Revolução Francesa, Arendt não conseguiu entrever um espaço público de liberdade consistente. A direção da Revolução Francesa sofreu uma deflexão quase desde o princípio, devido às exigências impostas à libertação, não tanto da tirania, mas mais da miséria.

Arendt reconhece que não é possível qualquer revolução quando as massas vivem submergidas em miséria, uma vez que o prioritário será a libertação da necessidade urgente e não a construção da liberdade, e que nada é pior que a pobreza para a exclusão da “luz da felicidade pública”.

 Na América, o problema da pobreza embora não estivesse resolvido, estava escondido dos olhos do público, como acontecia com a escravatura.

 

 

As town-hall, as sociétés révolutionaires, as sections, os soviets, os conselhos de trabalhadores  

 

Esse tesouro escondido da herança revolucionária que procurava e que fosse o emblema do verdadeiro espírito das revoluções modernas, ou seja, a constituição de um espaço público onde a liberdade se pudesse expressar e acontecer, vem Arendt encontrar nas reuniões das câmaras (“town-hall”) na América, reuniões que Emerson reputava como sendo as unidades da República e as escolas do povo.

Na Revolução Francesa, encontra-o nas sociétés révolutionaires e nas sections da Comuna de Paris, que inicialmente estiveram na origem da eleição dos representantes para a Assembleia Nacional, antes de formarem a Comuna.

No século XX, encontra-o nos soviets da Revolução Russa e nos conselhos e comunas da Revolução Húngara de 1956: verdadeiros “espaços de liberdade” baseados na participação direta dos cidadãos na política pública.

 Como tal, recusavam-se a serem considerados como órgãos temporários da revolução, fazendo antes todos os esforços para se implantarem como órgãos permanentes de governo.

Longe de quererem fazer uma revolução permanente, o seu objetivo expresso era o de “lançar as bases de uma verdadeira república, o único governo capaz de acabar para sempre com invasões e guerras civis”. Não prometiam o paraíso na terra, uma sociedade sem classes, uma fraternidade comunista ou socialista, mas somente a implantação de uma verdadeira República para acabar com todas as lutas.

Tal como acontecera em Paris em 1871 e continuava verdadeiro na Rússia em 1905, quando as intenções dos primeiros soviets eram tão claras que as testemunhas experimentavam um sentimento de renascimento e formação de uma força que um dia poderia ser capaz de transformar o Estado.

O facto de todas estas organizações terem sido suprimidas quer pelas forças estabelecidas quer pelos novos governos revolucionários, atestam bem sobre o poder de liberdade de que estavam possuídos.

 

Mas Arendt, embora nos mostre a existência destes espaços de liberdade efémeros, tem plena consciência que estavam condenados a não serem mais do que “heranças perdidas”, devido a contradições internas.

Assim, os conselhos, embora estivessem particularmente dotados para desempenharem as suas funções ao nível da participação na política pública, encontravam dificuldades quando se tratava de desempenharem as funções sociais de administração e gestão, que necessitavam de estruturas mais burocráticas e mais hierarquizadas do que aquelas que os conselhos tinham.

Nas suas atuações a este nível do social, os conselhos ou eram inoperantes por excesso de intervenções, ou por afastamento da realidade. Convém lembrar que, devido ao seguimento das teorias de Rousseau, os cidadãos que fizessem parte destes conselhos nunca se poderiam pronunciar ou discutir sobre coisas que lhes dissessem respeito, falando apenas sobre o bem da comunidade, o que fazia com que normalmente se pronunciassem sobre assuntos que desconheciam completamente. Por outro lado, para estes conselhos eram escolhidos aqueles que eram considerados serem politicamente os melhores, e que tivessem especiais dotes oratórios, o que tornava “aristocrática” a sua composição.

 

Arendt chama ainda a atenção para o facto dos sistemas de partidos e os sistemas de conselhos terem-se sempre antagonizado, apenas se tolerando em curtos períodos de tempo. Estes conflitos inscrevem-se no quadro mais geral da problemática entre representação, ação e participação.

Essencialmente, os conselhos eram órgãos de ação, e os partidos, órgãos de representação, e assim, mesmo nos momentos mais acesos da luta revolucionária, os partidos tentaram sempre apoderarem-se dos conselhos pelo interior.

Para os partidos, a necessidade de ação sempre fora transitória, e sabiam que após a revolução estar ganha, não seria mais necessária qualquer ação, podendo esta vir mesmo a ser considerada como subversiva. E isto, por a finalidade do governo ser propiciar o bem-estar ao povo, e consequentemente a substância da política passar a ser a administração.

Arendt, considera exatamente por isso, que todos os partidos, da direita à esquerda, têm muito mais em comum entre eles, do que com os conselhos.

 

Por outro lado, os conselhos revolucionários, nunca foram capazes de entender, no seu todo, a enorme complexidade da maquinaria do governo num estado moderno e a sua grande dependência das funções administrativas. Nunca conseguiram distinguir claramente a diferença entre participação na vida política e a administração do interesse público. Insistiram vezes sem conta em se substituírem às administrações das fábricas, o que na maior parte dos casos conduziu ao desastre.

 Arendt levanta a hipótese de que tal postura, que conduzia os conselhos de trabalhadores a se aplicarem no interior das fábricas, a uma estratégia seguida pelos partidos revolucionários, com o duplo intuito de, por um lado afastar os conselhos de trabalhadores da luta política fora das fábricas, e por outro lado acusá-los de, pelo facto de não se preocuparem com os aspetos administrativos e de gestão, serem da classe média baixa, com uma mentalidade abstrata e liberal.

 

Sendo a Revolução Portuguesa posterior, Arendt não se pronunciou sobre ela. Mas, as suas observações são perfeitamente verificáveis em Portugal, onde naquele período revolucionário se assistiu primeiro á tentativa de ignorar o aparecimento das Comissões de Trabalhadores, com o argumento que já existiam os sindicatos, e depois com a infiltração de elementos sindicais nas comissões, seguida da criação de comissões controladas pelos partidos.

Entre as comissões, parte delas não desejava substituir-se às administrações, porque sabiam não ter as competências para tal: estas comissões desempenharam um papel importante, na medida em que naquele período de anarquia, eram os únicos elementos que dialogavam, permitindo assim às administrações um contraponto de uma realidade em que as suas decisões pudessem fazer sentido.

 

Breve conclusão

 

Tudo isto leva Arendt a concluir que a liberdade, onde quer que tenha existido como realidade tangível, foi sempre espacialmente limitada, e sempre temporalmente efémera.

 

 

 

 

 

 

 

Em Portugal (visitas último ano)


  1. Lisboa - 725

  2. Porto - 196

  3. não definido - 184

  4. Almada - 57

  5. Coimbra - 48

  6. Amadora - 47

  7. Braga - 31

  8. Sintra - 31

  9. Vila Nova de Gaia - 26

  10. Santarem - 25

  11. Cascais - 24

  12. Leiria - 18

  13. Guimaraes - 16

  14. Viseu - 16

  15. Queluz - 15

  16. Ponta Delgada - 14

  17. Angra do Heroismo - 13

  18. Entroncamento - 13

  19. Funchal - 13

  20. Povoa de Varzim - 13

No mundo (visitas último ano)


  1. Brasil - 3.704

  2. Estados Unidos - 67

  3. Moçambique - 24

  4. Angola - 20

  5. França - 19

  6. Reino Unido - 18

  7. Espanha - 15

  8. Suíça - 14

  9. Argentina - 8

  10. Canada - 8

  11. Holanda - 7

  12. Bélgica - 6

  13. Cabo Verde - 6

  14. Alemanha - 5

  15. Irlanda - 5

  16. Israel - 5

  17. Paraguai - 5

  18. Luxemburgo - 4

  19. Finlândia - 3

  20. Austria - 2

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(253) Grandes controvérsias

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Não se compreende para se acreditar, mas, ao contrário, acredita-se para se compreender.

 

Santo Anselmo x Gaunilo de Marmoutier, meditação sobre a existência e essência de Deus.

 

Uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo ser pensada e não ser pensada.

 

Tal como na Idade Média não havia alternativa para um pensamento fora de Deus, também agora nos querem fazer crer que não há alternativa fora do sistema económico-financeiro vigente. Os argumentos utilizados são os mesmos.

 

 

 

As grandes controvérsias dos nossos tempos andam quase todas elas sempre ligadas aos LR (livros de rosto, que em português se diz FB, Facebook), Instagram, apresentações em formato Conversas do Edu (Ted Talk), não se imaginando já sequer que elas se possam verificar fora desses meios de promoção e contaminação, a nível de imprensa escrita ou visualmente falada como na televisão.

Quanto aos assuntos em discussão ou apresentação vão variando alternadamente entre o maior número de câmaras que tornarão os telemóveis mais ou menos espertos, a necessidade de irmos a Marte, os russos que influenciam as nossas eleições, os chineses que tudo querem copiar e controlar, a Rainha de Inglaterra e família, quem vai ganhar o campeonato de qualquer coisa, se o Presidente vai ou não concorrer, o aquecimento global que nos traz frio, os carrinhos elétricos, os sacos de plástico, os preservativos de papel, as mulheres e homens que foram à penthouse dos produtores para datilografar guiões de filmes, finalmente os generais que estão a ser mortos e vão continuar a serem mortos (eufemismo para assassinados) o que parece ser mais democrático (já não são só os soldados, todos agora o podemos ser), as manifestações dos meninos e meninas que não querem herdar um mundo aquecido em que já se veem a trabalhar até ao fim da vida sem terem emprego nem horário de trabalho nem ar condicionado, etc.

Muito menos se consegue imaginar que quaisquer tipos de controvérsias pudessem ter tido lugar em épocas como a da ainda chamada de Idade Média, onde nem eletricidade havia, muito menos internet e telemóveis. Nem tipografia.

E, contudo, sem essa época os nossos tempos em que vivemos não teriam sido possíveis. Do progresso da agricultura, dos currículos escolares, das centenas de universidades, da recolha e cópia das grandes (e pequenas) obras nos mosteiros e milhares de igrejas, onde muito foi preservado ou iniciado. Muitas grandes e importantes obras foram escritas nesse tempo. E, muitas grandes e importantes controvérsias aí tiveram lugar. Como, por exemplo, esta controvérsia tida no século XI, que opôs Santo Anselmo (1033 – 1109) a Gaunilo de Marmoutier.

 

 

Quando alguns monges do mosteiro de  Bec pediram a Santo Anselmo, que escrevesse um modelo de meditação sobre a existência e essência de Deus, no qual tudo se pudesse encontrar nas razões da fé, para que não precisassem dos argumentos da Autoridade ou da Escritura, Santo Anselmo começou por alinhar num opúsculo (“Exemplo de meditação sobre a razão e a fé”) várias provas da existência de Deus.

 Na época, encontrava-se acesa a controvérsia entre os chamados “dialéticos” e os “anti-dialéticos”. Contra os dialéticos, Santo Anselmo afirmava o pilar da fé, recusando-se a submeter as Escrituras à dialética: a fé era o dado primeiro de que tudo devia partir. Pelo que, segundo Anselmo, não se compreende para se acreditar, mas, ao contrário, acredita-se para se compreender.

Já contra os anti-dialéticos, Santo Anselmo afirmava que não havia qualquer inconveniente em compreender racionalmente o que se acreditava, porque sendo a verdade de tal maneira vasta e profunda, nenhum mortal a poderá minimamente esgotar.

 Pelo que a ordem a observar na procura da verdade seria: primeiro, acreditar nos mistérios da fé antes de os discutir pela razão; segundo, esforçar-se por compreender no que se acredita.

 

Entretanto, Anselmo começa a pensar na possibilidade de encontrar apenas um único argumento que não necessitasse de nenhum outro, para demonstrar a existência de Deus (1, p.7). Finalmente um dia, ao meditar no coro, fez-se-lhe luz:

 

Deus é aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado”.

 

 Encontrado e amadurecido o conceito, resolve escrever outro opúsculo, a que deu o título, “A fé em busca da inteligência”.  Tanto este opúsculo como o anterior não levavam sequer nome de autor, só que, devido ao grande interesse e difusão dos mesmos, viu-se obrigado pela autoridade apostólica a inscrever neles o seu nome e a dar-lhes títulos mais convenientes: assim aparecem respetivamente o “Monologion” (solilóquio) e o “Proslogion” (alóquio).

 

 

É no capítulo II do “Proslogion” que Anselmo desenvolve o seu argumento, “Que Deus existe verdadeiramente”:

 

Nós acreditamos, com efeito, que tu és “alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado”. Será que não existe uma tal natureza, uma vez que o “insensato disse no seu coração: Deus não existe?” Mas certamente este mesmo insensato, quando ouve isto que eu digo— ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’— compreende o que ouve, e o que ele compreende existe na sua inteligência, mesmo se ele não compreende que isso existe na realidade. Porque uma coisa é que certa realidade esteja no intelecto, outra é compreender que tal realidade existe….

Mesmo o insensato está, pois, convicto de que ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’ existe pelo menos no intelecto: porque ele compreende-o quando o ouve, e tudo o que é compreendido existe no intelecto. Mas, sem dúvida, ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado’ não pode existir unicamente no intelecto. Se, na verdade, existe pelo menos no intelecto, pode pensar-se que exista também na realidade, o que é ser maior.

Se, pois, ‘aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado’ exista apenas no intelecto, então ‘aquilo mesmo maior do que o qual nada possa ser pensado’ é ‘algo maior do que o qual algo pode ser pensado’. Mas isto, como é evidente, é claramente impossível. Existe, pois, sem a menor dúvida, ‘alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado’ tanto no intelecto como na realidade.

 

Gaunilo, monge beneditino da abadia de Marmoutier em Tours, contemporâneo de Anselmo, critica este argumento, num breve opúsculo, com o sugestivo e apropriado título “Livro em Favor de um Insensato” (Pro Insipiente).

Convém dizer que Gaunilo não era um adversário de Anselmo: ambos defendiam a negação da intuição intelectual de Deus, tendo apenas visões distintas no que se referia à possibilidade da razão, sem qualquer auxílio, poder pensar o transcendente. Gaunilo negava tal possibilidade.

Basicamente, as objeções de Gaunilo tinham que ver com o considerar que ‘algo maior do que o qual nada possa ser pensado’ não estaria no intelecto, e que não era possível encontrar existência que lhe correspondesse. Eis o que ele escreve:

 

 “(…) que aquela entidade seja tal que, uma vez pensada, não possa deixar de ser apreendida por um intelecto, certo da sua indubitável existência, deve ser-me provado por um argumento irrefutável, não porém por este segundo o qual isto já está no meu intelecto quando, uma vez ouvido, o entendo, Ora, neste mesmo intelecto, ainda julgo poder haver quaisquer outras incertezas ou mesmo falsas, ditas por alguém cujas palavras entendesse e ainda mais se, como acontece várias vezes, acreditasse nelas, eu que nisto ainda não acredito” (Pro Insipiente, ponto 2).

 

 Ou seja, não é só por estar no intelecto que faz com que exista na realidade. E mesmo para estar no intelecto, não basta só pensá-la, temos que entendê-la.

Põe ainda em causa o entendimento e coerência da expressão que designa Deus. E argumenta com o exemplo de uma ‘Ilha Perdida’, que só pelo facto de se poder pensar nela, daí se poderia depreender a sua existência.                                          

 

Anselmo responde às críticas num opúsculo, a que chamou “Livro Apologético” (Responsio Editoris), explicitando e expandindo a argumentação exposta no “Proslogion”. Começa logo por advertir Gaunilo ao dizer que se propõe responder “ao católico” e que lhe pede, portanto, a sua “fé e consciência” na crença de que Deus existe.

E entra diretamente no assunto, afirmando:

 

 “sem duvidar: se ao menos se pode pensar que existe (que aquilo maior do que o qual nada se pode pensar), é necessário que exista. Efetivamente, não se pode pensar que exista senão como não tendo começo. Pelo contrário, tudo aquilo que pode pensar-se que existe, mas de facto não existe, é mediante um começo que pode pensar-se que existe. Logo, -aquilo maior do que o qual nada se pode pensar- não se pode pensar que existe, e não existir de facto. Por conseguinte, podendo-se pensar que existe, necessariamente existe.” (Resp., p.124).

 

 E se: 

 

 “realmente se pode ao menos pensar, é necessário que exista. Com efeito, ninguém negando ou duvidando de que exista alguma coisa – maior do que o qual nada se pode pensar-, nega ou duvida de que, se ele existisse, não poderia deixar de existir tanto na realidade como no intelecto” (Resp. p. 124).

 

Sobre a afirmação de Gaunilo de que mesmo que exista no intelecto não se poder de aí concluir que se entenda, Anselmo vai explicar pela contradição da não-existência (não contradição), pois:

 

 “se – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, existe somente no intelecto, isso mesmo é aquilo, maior do que o qual alguma coisa se pode pensar. Mas, evidentemente, em nenhum intelecto, aquilo, maior do que o qual alguma coisa se pode pensar, é – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar. Não é evidente pois que se tem de concluir: -aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, se existe nalgum intelecto, não existe somente no intelecto? Na verdade, se existe somente no intelecto, é ao mesmo tempo aquilo, maior do que o qual alguma coisa se pode pensar. Ora isto repugna”, (Resp. p.126.).

 

Anselmo, prevendo já alguma dificuldade de compreensão relativa à expressão ‘algo maior do que o qual nada pode ser pensado’, escrevera que:

 

 “de uma maneira diferente é pensada uma coisa quando se diz a palavra que a significa; de outro modo diferente, quando é compreendido aquilo mesmo que a coisa é. Da primeira pode pensar-se que Deus não existe, mas da segunda, de modo nenhum <se pode pensar que Deus não existe>. Ninguém pode, seguramente, compreendendo o que Deus é, pensar que ele não existe, ainda que possa dizer estas palavras no coração sem nenhuma significação, ou com qualquer estranha significação” (Pros., cap.IV,p. 14).

 

 Depois, vai demonstrar como é possível apreender a existência real do ‘algo maior do que o qual nada pode ser pensado’, começando por explicar que:

 

 “nada impede que se fale do inefável, embora não se possa precisar o que é isso que denominamos inefável. Semelhantemente, pode pensar-se o impensável, embora não possa pensar-se o que vem a ser isso. Do mesmo modo, quando alguém profere – aquilo, maior do que o qual nada pode ser pensado-, o que se ouve pode indubitavelmente ser pensado e inteleccionado, embora essa realidade, maior do que a qual nada se pode pensar, não possa ser pensada nem inteleccionada. De facto, mesmo se alguém é tão insipiente, que afirme não existir – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, não será tão impudente que declare não poder inteleccionar ou pensar o que diz.” (Resp. p. 104.).

 

Dada a resposta, vai ainda mais longe para demonstrar que esses conceitos só podem ser apreendidos negativamente:

 

 “Quem quer que negue existir uma realidade, maior do que a qual nada se pode pensar, intelecciona sem dúvida e pensa a negação que formula…Ora uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo ser pensada e não ser pensada. Logo, quem pensa – aquilo, maior do que o qual nada pode ser pensado-, não pensa que isso pode não existir, mas que ‘não pode não existir’.”

 

Embora na resposta de Anselmo, ele dedique o capítulo III ao problema da ‘Ilha Perdida”, é contudo no capítulo V (‘O Maior, e o Maior Pensável’) que o resolve, aproveitando um aparente e inexplicável erro de interpretação de Gaunilo: é que este, assenta todo o seu episódio da ilha perdida confundindo a fórmula de Anselmo – ‘algo maior do que o qual nada pode ser pensado’-, como se ela fosse ‘o maior de todos’.

Diz Anselmo:

 

 “Em primeiro lugar, repetes frequentemente que eu afirmo o seguinte: aquilo que é a maior de todas as coisas existe na inteligência, e se existe na inteligência, existe também na realidade; de outro modo, a maior de todas as coisas não seria a maior de todas as coisas. Ora, em tudo quanto disse, não se encontra em parte nenhuma tal argumentação.”

 

Depois, vai ao cerne do problema, e escreve:

 

 “Na verdade, o que existe pode não existir, e o que pode não existir pode pensar-se que não existe. Mas tudo aquilo que se pode pensar que não existe, se existe não é – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar; e se não existe, evidentemente que se existisse, não seria –aquilo maior do que o qual nada se pode pensar”, e, virando o argumento ao contrário “se não é possível provar de igual maneira, a respeito do que se diz ser –a maior de todas as coisas- o que a respeito de si, por si mesmo prova –aquilo, maior do que o qual se pode pensar- injustamente me censuraste de ter dito o que não disse, e é tão diferente do que eu disse. Mas, se é possível prová-lo, ao menos depois de outro argumento, nem neste caso devias censurar-me de haver dito que se pode provar… Com efeito, de maneira nenhuma se pode inteleccionar – aquilo, maior do que o qual nada se pode pensar-, senão como aquilo que é a única coisa maior que todas.

 

 

Anotações breves:

 

Gaunilo não está a fazer um ataque pessoal a Anselmo; pelo exposto, está é a negar, que o conceito sirva para explicar o desconhecido, defendendo assim a impossibilidade de conhecimento racional de Deus. Ao considerar Deus como “a maior de todas as coisas “, coloca-o como supremo na ordem do real, o que torna possível pensar que, ou não exista (tal como para os entes que lhe estão abaixo), ou que possa existir um ser que lhe seja superior, mesmo que não exista.

Ou seja, dessa expressão “a maior de todas as coisas”, não se segue necessariamente todos os atributos divinos não tenham a mesma força que a expressão anselmiana.

No respeitante a Anselmo, o “insuperável da ordem do pensável”, só fará sentido no racional, se admitirmos que a dupla existência do ser, no intelecto e na realidade, é maior do que apenas se for no intelecto, e que a existência necessária é maior que a contingente.

 

Acima de tudo, Santo Anselmo mantêm-se fiel ao seu pensamento, que, como escrevemos no início, impunha a fé como dado primeiro de que tudo devia partir: não se compreende para acreditar, mas, ao contrário, acredita-se para se compreender.

 

 

Gaunilo, tão preocupado com os problemas inerentes à linguagem, à relação entre as palavras e a realidade que elas pretendem representar, aparentemente ignorou a razão principal que levou Anselmo a utilizar o “algo maior do que o qual nada pode ser pensado”: exatamente por um problema de linguagem, neste caso o da “limitação da linguagem humana para dizer Deus”.

 

De certa forma, tal como na Idade Média não havia alternativa para um pensamento fora de Deus, também agora nos querem fazer crer que não há alternativa fora do sistema económico-financeiro vigente. Os argumentos utilizados são quase os mesmos.

 

 

 

Bibliografia Mínima:

 

SANTO ANSELMO, “Argumento endonoético”, in Opúsculos Selectos da Filosofia Medieval, 4º ed, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2004.

SANTO ANSELMO, “Proslogion seu Alloquium de Dei existentia”, in Textos Clássicos de Filosofia, tradução de José Rosa, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008, ou na (http://www.lusosofia.net/textos/anselmo_cantuaria_proslogion.pdf).

COPLESTON, Frederick, A History of Philosophy, vol II, Medieval Philosophy, Image Books, Doubleday, New York, 1993.

GILSON, Étienne, La Philosophie au Moyen Age, des Origines Patristiques a la Fin du XVI Siécle, 2ª ed., Payot, Paris, 1962.

HIMMA, Kenneth Einar, “Ontological Argument for the Existence of God”, Internet Encyclopedia of Philosophy, (htpp://www.iep.utm.edu/ont-arg/print/).

S. A., “Ontological Arguments”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, http://plato.stanford.edu/entries/ontological-arguments/

 

 

 

 

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