O ser humano é o único animal que renega a sua própria condição de animal.
O ser humano não pode determinar-se a si próprio se, ao mesmo tempo, fugir da realidade.
Todos somos diferentes, mas apenas porque nos diferenciámos uns dos outros.
O cristianismo é uma consequência de um movimento migratório espiritual e pessoal que não tem nada que ver com a essência da Europa. A Europa não tem essência.
Dizem os entendidos que a principal característica do ser humano é a de ser o animal que renega a sua própria condição de animal. O aparecimento dos movimentos pós-humanistas e trans-humanistas são disso o exemplo mais recente, porquanto vão no sentido da eliminação do ser humano e sua substituição por um ciborgue composto de elementos humanos, animais e tecnológicos.
Aliás, seguindo a linha do Superman e outros idênticos heróis tão propagandeados por Hollywood, que nos garantiam a possibilidade da transformação de simples mortais terrenos em imortais a viver num futuro melhor. Não é de admirar que a investigação e a tecnologia tenham progredido nesse sentido, acabando por emprestar o aval do seu peso “científico” ao associarem-se a essa fantasia de sermos capazes de superar a mortalidade na Terra.
Estamos perante uma fuga da realidade que só poderá ser resolvida com uma nova visão daquilo que é ser humano, de um “novo humanismo” que nos inclua a todos, a todos mesmo, sejam estrangeiros, nacionais, amigos, vizinhos, mulheres, homens, crianças, homossexuais, transsexuais, raças, cores, religiões.
É essencial fazer notar isto, porque o humanismo vigente e que nos tem acompanhado desde o renascimento apenas diz respeito aos homens brancos, europeus, adultos, politicamente relevantes e ricos.
Basta ver o que escreveu um dos mais notáveis teóricos da dignidade humana universal, Kant, para se entender da necessidade de um novo humanismo. Escrevia Kant, para justificar a introdução dos “negros” como escravos, em substituição dos “escravos vermelhos” (índios):
“Os escravos vermelhos são demasiado débeis para trabalhar no campo, daí se necessitarem dos negros […] todos os negros cheiram a ácido fosfórico”, o que vai influenciar a cor negra da pele.
“Certamente, o calor húmido favorece o forte crescimento dos animais, e rapidamente, origina o negro, que provavelmente se adapta bem ao clima, quer dizer, é forte, boa carnação, ágil, mas em consequência do manto protetor da sua mãe pátria, que o brinda com abundantes alimentos, é também preguiçoso, suave e mole”.
Outra característica do ser humano parece ser a de poder determinar-se a si próprio, ou seja, a capacidade que tem para descobrir valores morais para os quais consegue orientar as suas ações. Esta liberdade, pois é disso que se trata, contudo, não significa que as nossas ações sejam sempre morais (ou não seria liberdade). Significa apenas que podemos atuar de qualquer maneira, moral ou imoralmente.
No seu Systema Naturae, onde pela primeira vez aparece a expressão Homo sapiens, Carl von Linné (1707-1778), vai atribuir ao ser humano a sapiência socrática do “conhecer-se a si próprio”. Esta sapiência não passa da capacidade para se determinar a si próprio. O problema é que a sabedoria também não implica automaticamente que se atue de forma correta.
Nestes tempos em que vivemos, o aparecimento (a importância atribuída) dos factos alternativos, da idade pós-factual, das reprimendas aos meios de comunicação e até da supressão da liberdade de imprensa em muitos países, quando acompanhado com o aparecimento do novo realismo, faz com que o ser humano não possa determinar-se a si próprio se, ao mesmo tempo, fugir da realidade.
É isto que faz com que seja extremamente fácil semear a discórdia entre nós, como, por exemplo, quando se propala que todos somos diferentes devido à diferença da nossa natureza, tendo esta que ver com a cor da pele, o sexo, a religião, a cidadania ou a tradição cultural. Na realidade todossomos diferentes, mas apenas porque nos diferenciámos uns dos outros.
Por exemplo, pretender-se uma Europa, onde se defenda a exclusão de etnias inteiras, como a islâmica, cujos antepassados tiveram influência decisiva na civilização europeia através de grande número de eruditos e não só, é ir contra qualquer sentido comum humano universal. Defender-se que para se ser humano e disfrutar de direitos humanos na Europa, se torna necessário ter antepassados que tenham trazido algo com eles, significa que se está a medir a condição de ser humano pelo rendimento que se tem. E por aí fora.
Não há pessoas naturais, nunca houve. Não há europeus naturais. Não há identidades culturais claras e nunca as houve. Pelo que não se pode defender que a Europa tem um fundamento cristão, até porque esse mesmo cristianismo foi fundado no Próximo Oriente por um judeu que foi executado por esse mesmo império europeu, império esse que foi conquistado posteriormente pelo cristianismo. O cristianismo é uma consequência de um movimento migratório espiritual e pessoal que não tem nada que ver com a essência da Europa. A Europa não tem essência.
Se na realidade vivemos atualmente numa crise, provocada entre outros pelos processos globais relacionados com a revolução digital, as guerras, as ciberguerras, o aquecimento global, as alterações climáticas, o que nos mergulha numa grande incerteza, então é fundamental que nos interroguemos sobre quem somos realmente, e quem queremos vir a ser no futuro.
Mas, se o pensamento que temos sobre nós assentar em premissas falsas, defeituosas, então a saída da crise aparecerá deformada e com muita probabilidade de conduzir a um desastre. Pelo que se torna urgente saber afinal quem somos nós os europeus que habitamos este espaço geográfico, e quem queremos nós ser no futuro se quisermos continuar a habitar este espaço.
Vivemos numa era de maldade radical. Esses arquitetos do mal radical estão aqui desde o começo, Chris Hedges.
Como o Evangelho de Lucas nos lembra, "o que é valorizado pelos seres humanos é uma abominação aos olhos de Deus".
A cultura corporativa serve um sistema sem rosto. O governo de ninguém e, por essa mesma razão, talvez a forma menos humana e mais cruel de governo, Hannah Arendt.
Algumas pessoas dizem que o sistema não funciona. Estão errados. O sistema funciona exatamente como foi projetado para funcionar.
Chris Hedges, pastor presbiteriano ordenado, jornalista vencedor (2002) de um Prémio Pulitzer, autor de vários livros na coleção dos mais vendidos (bestsellers) do The New York Times, professor em várias universidades (NYU, Princeton U., Columbia U.), proferiu domingo, 13 de outubro de 2019, na Igreja Presbiteriana de Claremont, em Claremont, Califórnia, o seguinte sermão:
“Foi ImmanuelKant quem cunhou o termo "mal radical". Era o privilégio de colocar o interesse próprio de cada um acima dos interesses dos outros, reduzindo efetivamente aqueles ao seu redor a meros objetos a serem manipulados e usados para os seus próprios fins. Hannah Arendt, que também usou o termo "mal radical", percebeu que ele era muito mais grave do que isso de o reduzir ao tratamento dos outros como objetos. O mal radical, escreveu ela, tornava supérflua a existência de um grande número de pessoas. Elas deixavam de possuir qualquer valor. A partir da altura em que não podiam ser utilizadas pelos poderosos, elas eram simplesmente descartadas como lixo humano.
Vivemos numa era de maldade radical. Os arquitetos deste mal estão a destruir a terra e a conduzir a espécie humana à extinção. Estão a despojar-nos dos nossos direitos civis mais básicos e das nossas liberdades. Estão a orquestrar a crescente desigualdade social, concentrando a riqueza e poder nas mãos de uma meia dúzia de oligarcas globais. Estão a destruir as nossas instituições democráticas, transformando os cargos eleitos num sistema de suborno legalizado, atulhando os nossos tribunais com juízes que invertem os direitos constitucionais, de modo a possibilitar que as grandes corporações possam investir todo o dinheiro que quiserem em campanhas políticas, disfarçado como direito de petição ao governo ou como uma forma de garantir a liberdade de expressão. A sua conquista do poder vomitou demagogos e vigaristas, incluindo Donald Trump e Boris Johnson, cada um deles só por si representando a distorção de uma democracia fracassada. Estão a transformar as comunidades pobres da América em colónias militarizadas, onde a polícia realiza campanhas letais de terror e usa o instrumento contundente do encarceramento em massa como uma ferramenta de controle social. Estão a financiar e a travar guerras sem fim no Médio Oriente e a desviar discricionariamente metade de todos os gastos para um exército inchado. Estão a colocar os direitos da corporação acima dos direitos do cidadão.
Arendt viu o mal radical de um capitalismo corporativo, no qual as pessoas se tornaram supérfluas - trabalho excedente, como disse Karl Marx - empurradas para as margens da sociedade onde elas e os filhos não são mais considerados como tendo qualquer valor, valor sempre determinado pela quantidade de dinheiro produzido e acumulado. Mas, como o Evangelho de Lucas nos lembra, "o que é valorizado pelos seres humanos é uma abominação aos olhos de Deus".
Quem são aqueles que nos sacrificam no altar do capitalismo global? Como é que conseguiram acumular o poder de nos negar uma voz, de insistir que a Terra é uma mercadoria inerte que eles têm o direito de explorar até que o ecossistema que sustenta a vida entre em colapso e a espécie humana, juntamente com a maioria das outras espécies, se extinga?
Esses arquitetos do mal radical estão aqui desde o começo. São os proprietários de escravos que amontoavam homens, mulheres e crianças nos porões dos navios e os vendiam em leilões em Charleston e Montgomery, separando as famílias, retirando-lhes os seus nomes, idioma, religião e cultura. Eles usavam chicotes, correntes, cães e patrulhas de escravos. Eles orquestraram o holocausto da escravidão e, quando a escravidão foi abolida, depois de uma guerra que deixou 700.000 mortos, usaram o empréstimo de condenados (1) - outro nome para a escravidão - juntamente com os códigos de linchamento e os códigos negros (2), para realizarem um reinado de terror que ainda hoje continua nas nossas cidades desindustrializadas e nas nossas prisões. Corpos pretos e castanhos, quando estão nas ruas das nossas cidades decadentes, não têm qualquer valor para os nossos senhores donos de corporações, mas presos em gaiolas, cada um deles gera 50 ou 60 mil dólares por ano. Algumas pessoas dizem que o sistema não funciona. Estão errados. O sistema funciona exatamente como foi projetado para funcionar.
Esses arquitetos do mal radical são as milícias brancas e as unidades do Exército que roubaram a terra, dizimaram as manadas de búfalos, assinaram os tratados que rapidamente foram violados e realizaram uma campanha de genocídio contra os povos indígenas, prendendo em acampamentos os poucos que permaneceram como prisioneiros de guerra. São os pistoleiros, agentes da Baldwin-Felts e da Pinkerton que mataram, às centenas, trabalhadores americanos que lutavam para se organizarem, forças do mesmo tipo que hoje supervisionam o trabalho servo de trabalhadores na China, Vietnam e Bangladesh. São os oligarcas, J.P. Morgan, Rockefeller e Carnegie, que pagaram para esses rios de sangue e que hoje, como Tim Cook, da Apple, e Jeff Bezos, da Amazon, acumulam fortunas surpreendentes à custa da miséria humana.
Conhecemos esses arquitetos do mal radical. Eles são o DNA do capitalismo americano. Podemos encontrá-los nas secretárias da Goldman Sachs. O índice de mercadorias da empresa financeira é o mais negociado no mundo. Esses investidores compram futuros de arroz, trigo, milho, açúcar e gado e aumentam os preços das mercadorias no mercado global até 200%, para que os pobres da Ásia, África e América Latina não possam mais comprar alimentos básicos, e morrerem de fome. Centenas de milhões de pessoas passam fome para alimentar essa mania com lucro, esse mal radical que vê os seres humanos, incluindo crianças, como nada valendo.
Esses arquitetos do mal radical extraem o carvão, o petróleo e o gás, envenenando o ar, o solo e a água, exigindo enormes subsídios dos contribuintes e bloqueando a transição urgente para as energias renováveis. São as grandes corporações proprietárias de fazendas industriais, incubadoras de ovos e fazendas leiteiras, onde dezenas de bilhões de animais sofrem abusos horrendos antes de serem desnecessariamente abatidos, parte de uma indústria de agricultura animal que é uma das principais causas multifatoriais da catástrofe climática. Eles são os generais e fabricantes de armas. São os banqueiros, os gestores de fundos de risco e os especuladores globais que saquearam US $ 7 triliões do tesouro dos EUA após os esquemas de pirâmide e fraudes que eles mesmo executaram, que implodiram a economia global em 2007-2008. São os capangas da segurança do estado que nos tornam na população mais espiada, observada, monitorada e fotografada da história humana. Quando o governo nos observa 24 horas por dia, nós não podemos usar a palavra "liberdade". Esse é o relacionamento entre o senhor e o escravo.
A cultura corporativa serve um sistema sem rosto. É, como Hannah Arendt escreveu, "o governo de ninguém e, por essa mesma razão, talvez a forma menos humana e mais cruel de governo". Por ele, ele não vai parar por nada. Qualquer pessoa ou movimento que tente impedir os seus lucros será obliterado. Esses arquitetos do mal radical são incapazes de reforma. Apelar ao melhor da sua natureza é uma perda de tempo. Eles não têm natureza melhor. Eles manipularam o sistema, dominam as eleições pelo dinheiro corporativo, pelos tribunais e pela imprensa, um vasto espetáculo burlesco com fins lucrativos, e é por isso que eles passam tanto tempo focados em Trump. Não há como votar contra os interesses da Goldman Sachs ou da Exxon, Shell, BP e Chevron, que juntamente com as outras 20 principais empresas de combustíveis fósseis contribuíram com 35% para o total mundial de todas as emissões de dióxido de carbono e metano relacionadas com a energia - 480 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente desde 1965.
Conhecemos esses arquitetos do mal radical. Eles estiveram e sempre estarão connosco.
Mas quem são aqueles que resistem? De onde vêm eles? Que forças históricas, sociais e culturais os criaram?
Eles também são conhecidos. Eles são Denmark Vesey, Nat Turner, John Brown, Harriet Tubman e Frederick Douglass. Eles estão Touro Sentado, Crazy Horse e Chief Joseph. São Elizabeth Cady Stanton, Susan B. Anthony e Emma Goldman. Eles são "Big Bill" Haywood, Joe Hill e Eugene V. Debs. Eles são Woody Guthrie, Martin Luther King Jr., Malcolm X, Ella Baker e Fannie Lou Hamer. Eles são Andrea Dworkin e Caesar Chavez. Eles são aqueles que desde o princípio lutaram contra, muitas vezes para serem derrotados por esse mal radical, mas sabendo que foram chamados para o desafiar, mesmo à custa das suas próprias reputações, segurança financeira, maledicência social e, por vezes, das próprias vidas.
Os arquitetos do mal radical estão a espremer, a sugar, até que chegue ao fim o último programa de serviço social financiado pelos contribuintes, da educação à Previdência Social, porque vidas que não aumentem os seus lucros são consideradas supérfluas. Deixem morrer os doentes. Muitos dos pobres - 41 milhões de pessoas, incluindo crianças - vão para a cama com fome. Deixem que as famílias sejam postas na rua. Deixem os jovens formados não terem um emprego significativo. Deixem aumentar o sistema penitenciário dos EUA, que conta já com 25% da população encarcerada do mundo. Deixem a tortura continuar. Deixem as espingardas de assalto proliferarem para alimentar a epidemia de tiroteios em massa. Deixem as estradas, pontes, represas, barragens, redes elétricas, linhas ferroviárias, metropolitanos, serviços de autocarros, escolas e bibliotecas desmoronarem ou fecharem. Deixem aumentarem as temperaturas, os padrões climáticos, os ciclones e furacões monstruosos, as secas, as inundações, os tornados, os incêndios, as calotas polares derreterem, os sistemas de água envenenados e o ar poluído piorar até que a espécie morra.
Muitos na igreja são cúmplices desse mal radical, falhando em nomeá-lo e em denunciá-lo, assim como nós deixamos de ver nos milhares de homens, mulheres e crianças que foram enforcados a própria crucificação, como apontou James Cone. É essa cumplicidade e silêncio, que nos condena. É por isso que W.E.B. Du Bois chamou à "religião branca" um "fracasso miserável".
“Os negros não precisavam ir ao seminário e estudar teologia para saber que o cristianismo branco era fraudulento”, escreveu Cone em “A Cruz e a Árvore dos Enforcados”. “Quando adolescente no Sul, onde os brancos tratavam os negros com desprezo, eu e outros negros sabíamos que a identidade cristã dos brancos não era uma expressão verdadeira do que significava seguir Jesus. Nada do que os seus teólogos e pregadores pudessem dizer, nos convenceria do contrário. Ficamos imaginando como é que os brancos poderiam viver com sua hipocrisia – em tão flagrante contradição com o homem de Nazaré. (Eu ainda continuo a pensar nisso!) O flagrante endosso do cristianismo conservador branco ao linchamento como fazendo parte da sua religião e o silêncio dos cristãos liberais brancos sobre o linchamento colocou ambos fora da identidade cristã. Não consegui encontrar um sermão ou um ensaio teológico, nem mesmo um livro, opondo-se ao linchamento, escrito por um proeminente pregador liberal branco. Não é possível existir uma comunidade que possa apoiar ou ignorar o linchamento na América, e que continue a pensar que possa representar em palavras e ações aquele que foi linchado por Roma.”
Falhámos em denunciar os fascistas cristãos que nos vendem um Jesus mágico que nos tornará ricos, um Jesus que abençoa a América acima de todos os outros países e a raça branca acima das outras raças, um Jesus que transforma a barbárie da guerra numa cruzada sagrada, pelos hereges que eles são. E também falhámos em enfrentar o mal radical do capitalismo corporativo. Não vamos mais uma vez fazer da nossa fé um fracasso miserável.
Desafiar o mal não pode ser defendido racionalmente. Há que dar um salto para a moral, que está para além do pensamento racional. É recusar a atribuir um valor monetário à vida humana ou ao mundo natural. É recusar a ver-se alguém como supérfluo. É reconhecer a vida humana, na verdade toda a vida, como sagrada. E é por isso que, como Arendt ressalva, as únicas pessoas moralmente confiáveis não são aquelas que dizem "isso está errado" ou "isso não deve ser feito", mas aquelas que dizem "eu não posso fazer isso".
Aqueles que pertencem a uma tradição religiosa, qualquer tradição religiosa, têm a responsabilidade de combater esta última interpretação do mal radical, que está rapidamente a garantir que a nossa espécie e muitas outras espécies, não terão futuro nesta terra. É nosso dever religioso colocar os nossos corpos na frente da máquina, como muitos de nós fizemos nos protestos organizados pela Rebelião da Extinção (Extinction Rebellion) na semana passada em todo o mundo.
"A lei, como atualmente é reverenciada, ensinada e aplicada, está a tornar-se num atrativo para a ilegalidade", escreveu Dan Berrigan. “Advogados, leis, tribunais e sistemas penais estão quase imóveis diante de uma sociedade abalada, que está a tornar a desobediência civil um dever civil (ouso dizer religioso). A lei está a alinhar-se cada vez mais com formas de poder cuja existência é cada vez mais questionada. ... Então, se eles obedecerem à lei, [as pessoas] estão a ser forçadas, no presente momento crucial, a desobedecer a Deus ou a desobedecer à lei da humanidade.”
No presente período histórico, não repitamos os nossos pecados do passado. Afirmemos a nossa fé afirmando o nosso desafio, a nossa disposição para nos envolvermos em atos de desobediência civil sustentada contra as forças do mal radical. Que as gerações futuras digam de nós que tentámos, que não fomos cúmplices de nossa colaboração ou silêncio. Haverá um custo. A história mostra-nos isso. Todas as batalhas morais têm um custo, e se não houver um custo, a batalha não será moral. Aceite tornar-se um pária. Jesus, afinal, também era um pária. Somos chamados por Deus para desafiar o mal radical. Esse desafio é a forma mais elevada de espiritualidade.”
Após a Guerra Civil, os estados do Sul, impedidos legalmente de recorrerem à escravatura, contornaram a lei através da implementação de legislação que permitia o empréstimo (convict leasing) por parte do estado, de trabalhadores negros que se encontrassem presos, independentemente da idade (https://eji.org/history-racial-injustice-convict-leasing).
Note-se que muitas destas leis já vinham sendo aplicadas mesmo antes da Guerra Civil, inclusivamente nos estados do Norte. Desde a Idade Média existem leis cuja finalidade era a de “resolver” o problema dos mendigos, pobres, vagabundos e desempregados. Nos casos vertentes, acrescentou-se apenas a cor, desde que não fosse branca.
A nossa ordem global passou a ser descrita como estando assente no marketing dos meios de comunicação social.
Atualmente é o mapa que precede o território, ou seja, é o mapa que cria o território, J. Baudrillard.
A política geral da companhia de não permitir a publicação de anúncios pagos com afirmações falsas, não se aplica aos políticos, Nick Clegg, executivo do Facebook.
A finalidade da ordem simbólica é a de persuadir os participantes do espetáculo de que tudo está em ordemmesmo apesar de as condições de funcionamento da ordem social, que frequentemente reproduzem, irem contra os seus próprios interesses, Guy Debord.
A senadora Elizabeth Warren, candidata à nomeação pelo partido Democrata para a eleição à presidência dos EUA, fez recentemente (11 de outubro de 2019) publicar nos meios de comunicação social este anúncio:
“Últimas notícias: Mark Zuckerberg e o Facebook acabaram de dar o apoio à reeleição de Donald Trump.
Provavelmente devem estar chocados, pensando, “como é que é possível que isto seja verdade?”
Pois bem, não é verdade. (Desculpem). Mas o que Zuckerberg “fez” foi dar a oportunidade a Trump de poder mentir na sua plataforma – e depois pagar ao Facebook montes de dinheiro para que as suas mentiras chegassem aos votantes americanos.
Se Trump tentar mentir num anúncio para televisão, a maior parte das estações de televisão recusam-se a emitir tal anúncio. Já o Facebook limita-se a receber os cheques de Trump.
O Facebook já ajudou Donald Trump a ser eleito uma vez. Agora, deliberadamente permitem que um candidato possa intencionalmente mentir ao povo americano. É altura de responsabilizar Mark Zuckerberg. Acrescente o seu nome se concordar.”
Esse anúncio, em que Warren reconhece como lemos, que tanto Zuckerberg como o Facebook não deram o apoio explícito a Donald Trump, vem no seguimento do Facebook ter permitido a publicação de um anúncio de Trump previamente rejeitado pela CNN por conter afirmações falsas. Segundo o executivo do Facebook, Nick Clegg, “a política geral da companhia de não permitir a publicação de anúncios pagos com afirmações falsas, não se aplica aos políticos”.
Sobre o anúncio de Warren, um porta-voz do Facebook, Andy Stone, acrescentou ainda:
“Se a senadora Warren quiser dizer coisas que ela sabe não serem verdadeiras, estamos certos que o Facebook não está em posição de censurar tal discurso”.
Se quisermos uma abordagem mais leve e popular para tentarmos entender aquilo que nos aparece com este e outros “espetáculos”, sem dúvida que a frase que Seinfeld utilizou para definir sobre o que era o seu programa, um “Show about nothing”, é a mais adequada, até porque resume também o alargado momento que se vem vivendo: espetáculos acerca de nada.
Mais eruditamente, mas menos conhecida, há uma frase de Jean Baudrillard (Simulacres et simulation), que expressa o mesmo:
“Hoje em dia a abstração já não é a do mapa, o duplo, o espelho ou o conceito. A simulação já não é a de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a do aparecimento de uma realidade através de modelos que não têm nem origem nem realidade: a hiper-realidade. O território já não precede o mapa e nem tão pouco lhe sobrevive. Agora é o mapa que precede o território – o precursor do simulacro -, é o mapa que cria o território.”
Dito de outra forma: passámos a descrever a nossa ordem global assente no marketing dos meios de comunicação social. Como resultado, a realidade deixa de nos aparecer como é na realidade para nos aparecer apresentada no seu formato retocado. Os novos mitos.
É assim que a realidade do que se passa com os combustíveis fósseis, com o aço, a indústria automobilística, o fracking (fracturação hidráulica), as plataformas petrolíferas, o dieselgate, etc., começa a ser substituída pela “realidade feliz” da inevitabilidade do novo mundo digital.
Como a “realidade” mediática não consegue deter os processos da realidade social (é enorme a brecha existente entre a ilusão de que estamos muito próximos de conseguir uma digitalização da vida e da sociedade no seu conjunto, e a realidade social),vamos assistindo à tentativa de uma autorrepresentação do sistema social, ou seja, à tentativa de por na cena pública as ideias que os grupos dominantes têm sobre com funciona a sociedade no seu conjunto.
Esta autorrepresentação, a que Jacques Lacan chamou deordem simbólica, não implica que seja verdadeira, representando antes um sintoma do antagonismo de uma sociedade.
Esta ordem simbólica pode ver-se em quase todas as cerimónias como os discursos do Ano Novo dos chefes de estado, os discursos da Rainha (a única que conta), nos espetáculos desportivos, nos debates televisivos entre candidatos políticos, nos seus anúncios de campanha eleitoral, nas tomadas de posse dos presidentes, nos Jogos Olímpicos, nos substratos das séries de televisão e filmes, nas redes sociais, etc. O tema comum é: “Estamos nisto todos juntos”. “Os nossos corações batem em uníssono”.
Segundo Guy Debord, no seu livro, A sociedade do espetáculo, (1967), a ordem simbólica toma a forma de um espetáculo cuja finalidade é a de persuadir os participantes do espetáculo de que tudo está em ordem, mesmo apesar de as condições de funcionamento da ordem social, que frequentemente reproduzem, irem contra os seus próprios interesses.
Daí que as chamadas bases eleitorais, perante as cortinas de fumo que lhes são lançadas, nem sequer se dão conta que estão a votar contra os seus próprios interesses.
É ver a excitação constante dos meios de comunicação e dos temas de conversa das pessoas sobre as últimas informações e comentários expendidos sobre membros dos governos. Com Trump atingiu-se o ponto mais alto: as bolas de gelados e os bolos de chocolate que Trump devora ou que serve aos seus convidados, os hambúrgueres que gosta de comer, as enormidades ditas e quebras de protocolo por ele feitas, os livros (e as revelações) que se escrevem sobre ele, tudo isso e muito mais que não tem qualquer importância e que só contribui para que simbolicamente já se esteja a reeleger Trump.
Tudo isso faz da presidência de Trump, a definição por excelência de um mandato de simulação, em que a distração da realidade se pratica com a finalidade da manipulação perfeita dos produtores e consumidores de bens.
Mas, atenção, não se deve ver esta estrutura do espetáculo como sendo uma conspiração intencional e exclusiva do mundo capitalista moderno. Basta recordarmos o “pão e circo” da antiga Roma. Talvez que a origem deste espetáculo tenha que ver com o processo de produção de bens: à medida que ele se foi desenvolvendo, a partir de certo ponto começamos a deixar de percebê-lo na sua particularidade, pelo que nos vimos forçados a contar-nos uma história que nos faça “entender” e fiar bem com o processo.
Dito de outra forma: a origem do espetáculo talvez esteja na divisão do trabalho, que, a partir de uma certa ordem de grandeza dos grupos sociais e de um certo desenvolvimento da troca de bens, se torna impossível de evitar.
Foi este contar de histórias que foi permitindo a coesão de grupos já com uma massa crítica. Sempre que um sistema social não se consegue entender através das suas condições de produção, conta histórias. Mitos.
O mesmo se passa hoje. Contam-se histórias. Sendo as condições de produção imensamente variadas, numa multiplicação quase infinita de ordens simbólicas, contam-se mais histórias.
Os melhores dias são aqueles em que não se tem de ir a lado nenhum, Charles Tomlinson.
Já vi tudo que nunca tinha visto/Já vi tudo que ainda não vi, Bernardo Soares.
E o que vemos não é o que vemos, mas antes o que somos, Bernardo Soares.
"I know not what tomorrow will bring”, Fernando Pessoa.
Na sua novela À rebours de 1884, J. K. Huysmans, (1848-1907), vem-nos contar a história do duque Jean Des Esseintes, um aristocrata que vivia sozinho num grande palacete nos arredores de Paris, que passava os seus dias a ler os clássicos, colecionando pensamentos sobre a humanidade. Das poucas vezes que saíra para ir a uma aldeia vizinha, depressa começara a sentir um sentimento de repulsa, que o levara a não mais querer afastar-se de casa. “Para evitara fealdade e a estupidez”.
Até que, talvez por influência do que lera de Dickens, um dia acordou com o enorme desejo de conhecer Londres. Mandou os criados fazerem-lhe as malas, vestiu-se à inglesa, fato de tweed, chapéu de coco e capa de inverno, e eis que parte para Paris no primeiro comboio. Dispondo de tempo até apanhar o transporte que o levaria para Londres, foi a uma livraria comprar o Guia de Londres de Baedeker, o que lhe permitia sonhar com os passeios que pensava vir a fazer.
À hora do almoço, entrou numa taberna inglesa da rua de Amsterdão, perto da Gare Saint Lazare. Local tipicamente inglês, escuro e cheio de fumo, um grande balcão e filas de torneiras de barris de cerveja, pequenas mesas de bancos corridos onde se sentavam “robustas inglesas de traços masculinos, com os seus dentes grandes como espátulas, as suas faces afogueadas como maçãs, e as mãos e os pés enormes”. Comeu sopa de rabo de boi, rosbife com batatas, dois pintos de cerveja e queijo de Stilton.
Quando por fim chegou a hora do transporte para Londres, Des Esseintes sentiu-se subitamente muito cansado só de antever que teria ainda de se pôr a caminho da estação, disputar um bagageiro, subir para o comboio, dormir numa cama estranha, apanhar frio, pôr-se em bichas só para visitar afinal os lugares que o Baedeker tão minuciosamente descrevia.
“Para quê viajar se podia fazer viagens maravilhosas sentado na sua cadeira? Não estaria ele já em Londres, cujos cheiros, clima, população, pratos de cozinha sem que faltassem sequer os talheres, já o rodeavam? Que mais poderia esperar para além de tudo isso, a não ser novas deceções?”
Des Esseintes pagou a conta, saiu da taberna, e com os seus baús, os seus sacos, os seus fatos emalados, guarda-chuvas e bengalas, apanhou o primeiro comboio de regresso a Paris, e nunca mais saiu de casa.
Há quem considere que Des Esseintes pertence aquela categoria para a qual a realidade não pode deixar de ser senão dececionante. Ao que o poeta e tradutor Charles Tomlinson se atrevia a acrescentar que “os melhores dias são aqueles em que não se tem de ir a nenhum lado”
Diferentemente se colocam aqueles para quem a viagem é tudo, ou quase tudo. Lembremos Jack Kerouac, para quem “a estrada é a vida”; Bill Bryson, para quem a viagem permitia “experimentar as coisas pela primeira vez”; Mark Twain, para quem a viagem era um antídoto contra “o preconceito e a intolerância”; Constantin Cavafy e o seu inigualável poema da viagem a Ítaca; Santo Agostinho, para quem “o mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas uma só página”.
Vem tudo isto a propósito de um artigo de César Antonio Molina, publicado no El País a 5 de outubro de 2019, titulado como “Um passeio pela Lisboa de Pessoa”, e que passo a transcrever.
"A ideia de viajar nauseia-me", escreve Bernardo Soares no Livro do Desassossego. Soares, o heterônimo que melhor combina com a biografia do seu criador, Fernando Pessoa, nunca quis deixar a sua cidade, Lisboa. " Já vi tudo o que nunca tinha visto”, escreve ele, e acrescenta outro comentário paradoxal: “Já vi tudo que ainda não vi.” No entanto, naquela Lisboa do primeiro quartel do século XX, Soares, que está rodeado por pessoas que se mudam através de um porto tão importante, Soares renuncia a viajar como modo de vida, porque a sua existência é mais completa no imobilismo e na monotonia diária do seu trabalho num escritório comercial na Rua dos Douradores. "Ah, viajem os que não existem!" Para viajar, segundo ele, basta existir. E as viagens são os viajantes. E “o que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”. Isso coincide com Cícero e Séneca, que já haviam explicado que pelo simples facto de se mudar de lugar, não deixamos de ser nós próprios nem abandonamos as nossas preocupações e inquietações. Nunca, não importa o quão longe estivermos do nosso eixo vital, desembarcamos de nós mesmos. Em várias das páginas deste extraordinário jornal filosófico-literário, Soares dedica-se não apenas a criticar viagens e viajantes, mas também a quem utiliza esse gênero. O heterônimo confessa que apenas uma mera viagem entre Lisboa e Cascais o deixava exausto. E que Cacilhas, em frente a Lisboa, lhe parecia outro continente. E o Tejo, todos os oceanos do mundo.
Mas Soares, que é como o próprio Pessoa, uma boa pessoa, mas muito sarcástico, sente compaixão pela "estupidez" do empregado do escritório empolgado com a mera ideia de conhecer outros lugares do mundo além da Baixa Pombalina. Aquele rapaz “colecionava folhetos de propaganda de cidades, países, companhias de transportes; tinha mapas, recortes de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios”. Parte das sua horas livres, investia-as visitando consulados, embaixadas, agências de turismo. Melancolicamente, Soares pergunta-se o que lhe terá acontecido. Um dia, ele desapareceu do trabalho e nunca mais se soube dele. Embarcou? Para onde? Soares sente essa curiosidade inconfessável e até duvida de seu próprio sedentarismo imutável. "Ele era o maior viajante, porque o mais verdadeiro que tenho conhecido: era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. " Onde está então a felicidade, no imobilismo ou no viajar?
Pessoa viajou para Durban várias vezes. Aí viveu os anos mais importantes da sus formação. Por motivos familiares, residiu na África entre 1896 e 1905, ano em que finalmente regressou a Portugal. Não mais viajou. Tentativas de ir para Londres, onde ele tinha família, ou para a Galiza. Mas Pessoa talvez tenha sido o maior viajante de sua cidade natal e arredores. E os seus locais de paragem habituais atraem aqueles que hoje buscam o seu rastro. Teve mais de vinte endereços. O mais estável foi o último, na Rua Coelho da Rocha, número 16, 1º D. Aí viveu de 1920 a 1935. Morreu relativamente próximo, no hospital de São Luís dos Franceses, localizado na Rua Luz Soriano. Ainda existe hoje. A imagem do exterior mantém-se a mesma: uma parede caiada de branco circunda o hospital onde se entra por um portão largo. Atualmente, está pendurada uma placa de mármore onde se encontra reproduzida a última frase que ele escreveu, em inglês: "I know not what tomorrow will bring” (Não sei o que o futuro nos reserva "). Quem pode saber?
Na sua última morada, ele habitava um quarto na companhia da sua pequena, porém seleta biblioteca, um baú com os seus milhares de manuscritos não publicados, a cómoda onde ele escrevia de pé, a máquina de escrever, a cama muito estreita e pouco mais. Hoje pode-se visitar esta casa-museu. Eu tê-la-ia conservado tal como era, mantendo assim o espírito do escritor, mas o interior foi demolido, restando apenas o quarto que agora permanece como um elemento estranho dentro do conjunto. A atividade cultural deste centro é, no entanto, muito importante. Se alguém olhar pela janela da sala, a casa vermelha em frente ainda é a mesma contemplada por ele. A rua permanece quase intacta. Ainda hoje se preserva o contrato assinado pelo proprietário e inquilino. Pessoa deve ter feito a mudança utilizando os carros-elétricos que tão inspiradores eram para ele. "Quem nunca deixou Lisboa viaja até o infinito de carro elétrico quando vai a Benfica e, se um dia for a Cintra, sente que foi a Marte", escreve Soares.
Se a histórica Lisboa e a área circundante são os locais por onde Pessoa se move com segurança, o seu heterônimo confinava-se à quadrícula pombalina. A Baixa, reconstruída após o terremoto de 1755 pelo Marquês de Pombal. Centro ainda financeiro, comercial e político, mas acima de tudo o recetáculo de um oceano de turistas. Na Baixa fica a Rua Augusta (rua principal), com o arco da Praça do Comércio e com a estátua de José I ao fundo. A Praça do Comércio, com entradas e saídas de elétricos novos e antigos, terraços, mercados e cafés antigos, como o Martinho da Arcada frequentado por Pessoa e outros escritores e artistas. É um dos lugares mais belos e nostálgicos do mundo. E aquele cais com as duas colunas que parecem submergir-se totalmente na maré alta. E ao lado, numa outra praça, a Casa dos Bicos, dedicada ao primeiro Prêmio Nobel de literatura em português, José Saramago, cujas cinzas estão depositadas debaixo de uma oliveira.
Muitas das ruas da Baixa são nomeadas de acordo com os ofícios dos primeiros comerciantes da região: Prata, Ouro, Douradores, Correeiros, Sapateiros. Nesta quadrícula de ruas pedonais, alguns dos estabelecimentos ainda sobrevivem. Bernardo Soares vive, trabalha e medita numa dessas ruas. Precisamente numa das que menos se dá conta, a Rua dos Douradores. Aquela rua que é para si a sua vida inteira. Aí fica o escritório e também o seu quarto, a que ele se refere vagamente. Ele nunca dá o número do imóvel, mas é o 190. No rés-do chão ficava o restaurante de galegos onde ele comia. Hoje, no mesmo local, existe outro, com um terraço com vista para uma pequena praça. "Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores", escreve Soares. O escritório, sórdido até à medula, representava para ele a vida, representava para ele todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas "salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução". O escritório dava-lhe “para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever-dormir”. O escritório organizava a monotonia e a anarquia da vida cotidiana. Soares (guarda-livros, tradutor e redator de cartas oficiais) sabe que é explorado, mas está satisfeito por ser um contabilista ou assistente de contabilista. Na verdade, ele não se vê como um grande escritor, mas como um grande e famoso contabilista. Soares sente-se muito satisfeito em passar o tempo com o contabilista Moreira, o chefe Vasques (uma de suas grandes deceções ao descobrir que é um ladrão), o caixa Borges, o sócio capitalista e os demais empregados. "O escritório é como uma página com palavras de pessoas, a rua é um livro."
Nas primeiras décadas do século XX, a Baixa de Lisboa era habitada, para além das pessoas, por lojas de loterias, tabacarias, mercearias, lanchonetes, escritórios, lojas de todos os tipos, alfaiataria, barbearias, tabernas, consultórios médicos, escritórios estatais, hotéis, pensões, igrejas, sapatarias, casas de encontros, padarias, confeitarias, frutarias principalmente na Rua da Prata, correios, etc. Quase nada disso pode agora ser visto. Os carregadores e garotos que puxavam à corda saindo ou entrando nos armazéns da Rua dos Douradores já não existem e, portanto, a vida agitada que este lugar teve é hoje circunscrita aos turistas, felizmente poucos por esta rua estreita, ensombrada, onde permanecem apenas hotéis, restaurantes, uma igreja vizinha e pouco mais. Muitos dos edifícios estão a serem restaurados.
No seu apartamento na Rua dos Douradores, por cima do escritório, Soares refere-se aos móveis usados do seu quarto barato. As pessoas que passam por esta rua hoje não são mais "sempre as mesmas que por aqui passaram há pouco”. Todos ou quase todos então se conheciam. Já não. “Amanhã também eu vou desaparecer da Rua dos Douradores, da Rua da Prata. Eu também serei o que deixou de passar por estas ruas”. Hoje, já ninguém se conhece. Soares, para além da sua rua por excelência, cita ainda outras como habituais nas suas idas e vindas: a Rua Nova de Almada, a Rua da Prata (o primeira paralela à dos Douradores na direção oeste, onde ficava a livraria do velho Pires frequentada por Pessoa), a Rotunda, a praça Marquês de Pombal, a Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o Chiado mais acima por um lado e o castelo pelo outro ... Soares-Pessoa percorriam estes caminhos refletindo sobre o sentido desconhecido dessa viagem obrigatória da vida. Às vezes, como antes, como agora, a chuva oblíqua mudava o barulho da rua e o Tejo passava da cor azul esverdeada a ouro.
A Rua dos Douradores é pequena, insignificante, difícil de caminhar pelas calçadas quebradas. Mas, como dizia Soares, vale mais do que as grandes avenidas. "Quantos Césares já fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores!" “Também há universo na Rua dos Douradores. Deus também garante que aqui não falta o enigma da vida. E assim, se eles são pobres, como a paisagem de carros e caixões, os sonhos que consigo extrair entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que tenho, o que posso ser.”
Soares-Pessoa adorava as longas tardes de fim de verão, a calma da Baixa. O escritório era um baluarte contra uma vida vazia. E os livros de contabilidade eram como os seus próprios livros. Morava em casa de outra pessoa. O resto, uma caminhada tranquila e contínua, uma conversa contínua entre homens, casas, pedras, sinais e céu; uma multidão amigável, que se acotovela com palavras na grande procissão do destino. Soares ama as praças solitárias da Baixa, não só as pequenas e insignificantes, mas também as maiores, como a Praça da Figueira, com os vendedores ambulantes agora convertidos em feirantes. Esta praça, onde ficava o antigo mercado da cidade, é presidida pela estátua de João I. Ao lado fica a Praça do Rossio, com a estátua de D. Pedro IV, o primeiro imperador do Brasil. Outro dos heterônimos, Álvaro de Campos, escreveu estes versos: “A Praça da Figueira de manhã, / quando o dia está ensolarado (como acontece / sempre em Lisboa), nunca se me esquece, / embora seja apenas uma lembrança vã. / Há tantas coisas mais interessantes / que este lugar tão lógico e vulgar, / mas por isso mesmo o amo assim... Que sei eu / porque o amo? Pouco importa. Adiante ...”
A Rua dos Douradores é a rua pessoana por excelência. Hoje já não nos cruzamos com o jovem carregador, com o barbeiro que contava piadas, com o empregado de mesa que lhe desejava as melhoras porque ele apenas bebera metade da garrafa de vinho (Pessoa morreu de cólica hepática) , com o empregado da tabacaria (que se suicidou), com o mercador que trouxe as sedas do Indo, de Samarcanda ou da Pérsia. Na Rua dos Douradores, já ninguém atirará uma caixa de fósforos vazia do último andar do número 190 para o abismo do empedrado. Na Rua dos Douradores, já não há mais livros de caixa abertos, mas antes computadores frios e abstratos. Tornou-se mais uma das ruas do mundo. Mas continuará a ser, toda ela, filosofia e literatura universal. "O que escrevo no livro caixa auxiliar e o que escrevo neste pedaço de papel da alma são coisas exclusivamente limitadas à Rua dos Douradores, que dizem muito pouco aos grandes espaços milionários do universo". Ainda permanecem lá os instantes, os milímetros e as sombras das pequenas casas, ainda mais humildes do que elas. Rua dos Douradores, tão estreita e efêmera que ninguém seria capaz de expressar um desejo.
Os lugares fundamentais da geografia pessoana são: o número 4 do Largo de São Carlos, onde nasceu no quarto andar; o número 190 da Rua dos Douradores; a Rua Coelho da Rocha, número 16, 1º D; o hospital de São Luís dos Franceses, na Rua Luz Soriano; o cemitério dos Prazeres, onde ele foi enterrado (muito perto de sua casa), e os Jerónimos, onde está hoje. Mas é a Rua dos Douradores uma das essências simbólicas da sua grande obra. "Eu serei sempre da Rua dos Douradores, bem como a humanidade inteira." Soares-Pessoa e companhia tinham um grande rio, um grande oceano, uma doca e todos os navios com todas as bandeiras do mundo para zarpar e, contudo, ainda assim, ficaram ali na Rua dos Douradores, um lugar insignificante no mapa, mas que agora é uma epifania do mundo. Alberto Caeiro, outro heterônimo, escreveu estes versos: "Da janela mais alta da minha casa / com um lenço branco, digo adeus / aos meus versos que partem para a humanidade". Soam como a carta de Emily Dickinson, da qual creio ela não voltou a ter notícias. Outra sedentária como ele. Soares, cansado da vida, fechou as persianas do seu quarto, na Rua dos Douradores, para se excluir do mundo e obter liberdade. "Oh tristeza revisitada, Lisboa de outra época, hoje!"
Será que toda a nossa vida consciente não passa de uma simulação produzida pela estimulação do nosso cérebro? Hilary Putnam.
As coincidências felizes da vida são exatamente isso: coincidências felizes. E as coincidências infelizes, ou seja, os acidentes, também não são coincidências.
No tempo em que vivemos,substituímos o discurso de Deus pelos das máquinas que nos parecem inteligentes porque instalámos nelas a nossa lógica.
Talvez que o sentido da nossa vida espiritual não passe de uma fuga do medo primário ao sem sentido das coisas.
Quando em 1999 as irmãs Lilly e Lana Wachowski realizaram a primeira parte da trilogia The Matrix, começam por nos apresentar os protagonistas a viverem numa realidade ilusória, numa simulação, tal como se tratasse de um jogo-vídeo programado de forma realista. A esta realidade ilusória vão chamá-la de “Matrix”.
O protagonista principal de Matrix é Neo (Keanu Reeves), um hacker dentro da Matrix. Por razões totalmente incompreensíveis, algumas pessoas tinham conseguido defender-se das máquinas (que abusavam das pessoas utilizando-as como plantas geradoras de energia; para manter vivos os organismos humanos, as máquinas estimulavam os cérebros das pessoas mediante a criação de uma realidade onírica que às pessoas parece completamente real, uma simulação muito perfeita, ou seja, conseguindo através de uma estimulação cerebral criar uma simulação perfeita).
Chefiados por Morfeo (Laurence Fishburne), entram no programa da consciência de Neo e libertam-no da simulação, para que ele conseguisse iniciar uma guerra contra as máquinas que controlavam a realidade básica.
Este enredo provém de um capítulo do livro do filósofo e matemático americano Hilary Putnam (1926-2016), Reason, Truth, and History, Cambridge: Cambridge University Press, 1981.
Nesse capítulo, Putnam aborda a questão de se saber se toda a nossa vida consciente seja apenas uma simulação produzida pela estimulação do nosso cérebro, que inclusivamente poderia não se encontrar no planeta Terra, mas num outro lugar numa cuba, e ligado através de tecnologia avançada para produzir alucinações.
Eis como começa o capítulo:
“Uma formiga arrasta-se lentamente sobre a areia. Conforma avança, vai traçando na areia uma linha. Por puro azar, a linha desvia-se e volta à posição anterior, por tal forma que acaba por traçar aquilo que parece ser uma reconhecida caricatura de Winston Churchill. Terá a formiga traçado um retrato de Winston Churchill, um desenho que represente Winston Churchill?”
Será possível que a formiga tenha mesmo desenhado a caricatura de Churchill?
Da mesma forma podemos perguntar se será possível que exista o desenho de uma cara na Lua? Se será possível que existam as constelações em forma de pessoas, de animais, de objetos correntes? E as formas das nuvens?
Se vemos uma caricatura de Churchill é porque nós conhecemos Churchill. Acreditamos ver um escorpião no céu porque nós conhecemos o que é um escorpião. Mas, a formiga não conhece Churchill, e, portanto, não pode fazer uma caricatura dele, do mesmo modo que o céu não conhece nenhum escorpião, e não o pode representar. Aliás, o céu não conhece nada.
Segundo Putnam, as formigas poderiam produzir uma caricatura de Churchill apenas de forma acidental, se considerássemos a possibilidade do que chama de teoria mágica da referência. Só por milagre se poderia explicar.
Ponto assente é que as formigas não podem refletir sobre Churchill. Se acreditarmos que estamos a ver uma caricatura de Churchill criada de forma acidental por uma formiga, então o que estamos a fazer é projetar a nossa intencionalidade à linha traçada pela formiga (tese da projeção). Estamos a conferir à realidade um significado que não teria se não dispuséssemos da nossa boa-vontade particular.
Esta tese aparece pela primeira vez, ainda que não explicitada, no século VI a. C. com o pré-socrático Xenofonte, quando escreve:
“Os etíopes dizem que os seus deuses são chatos e negros, e os trácios dizem que os seus deuses têm olhos azuis e cabelo claro, […] Se os bois, os cavalos ou os leões tivessem mãos e fossem capazes de pintar com elas e de fazer figuras como os homens, ao cavalos desenhariam imagens de deuses semelhantes à dos cavalos e os bois semelhantes às dos bois e fariam os seus corpos tal como cada um tem o seu”.
Já em 1841, Ludwig Feuerbach, no seu livro A essência do cristianismo, vai explicitamente fazer notar que o cristianismo projeta as qualidades humanas para o céu, daí o Deus cristão compartir muitas das suas características com o ser humano. Ao desenhá-lo à nossa imagem vamos acabar por o projetar para o mundo exterior. Ou seja, Deus foi criado à nossa imagem e não nós à imagem dele.
Seguindo esta linha que considera o ser humano o ser de maior pensamento, todos os outros animais passam a serem considerados num plano inferior. O que não deve significar que tenhamos direito a matá-los. Da mesma forma que não matamos as crianças por não terem um pensamento tão desenvolvido como nós, os adultos.
Os seres vivos não devem de ser moralmente respeitados pela inteligência que possam ter, mas pelo facto de terem a capacidade de poderem sofrer.
É por isso que temos obrigações morais para com os animais, mas já as não temos relativamente aos telefones inteligentes. Os telefones inteligentes têm maior capacidade matemática do que todos os animais e crianças, e, contudo, nada nos impede de destruir um telemóvel, já o mesmo não sucedendo relativamente às crianças.
Curiosamente, também transferimos atributos humanos para a nossa tecnologia. Da mesma forma que a humanidade durante milénios dotou o universo de um significado (que não tem) ao qual nos adaptássemos, atualmente consideramos o progresso tecnológico como uma força superior que não podemos controlar. Nos tempos em que vivemos, substituímos o discurso de Deus pelos das máquinas que nos parecem inteligentes porque instalámos nelas a nossa lógica.
Mas atenção: nem tudo o que nos parece um pensamento ou um fenómeno mental é, na realidade, um pensamento ou um fenómeno mental. E isto porque inclusivamente projetamos também os nossos próprios processos de pensamento no nosso entorno natural e social.
Por exemplo: imagine-se que após muitos anos de não ver um amigo, nos encontremos com ele numa cidade em que estamos de passagem, exatamente no momento em que estamos a pensar nele.
Isto não significa que o nosso amigo se encontre propositadamente nessa cidade para que nos voltássemos a encontrar. Aliás, seria estranhíssimo que ele tivesse conseguido programar esse encontro casual precisamente para uma altura em que eu estivesse a pensar nele. Igualmente estranho seria se um ser superior, um Deus, dirigisse os destinos de tal maneira que se encontre com um amigo, e que antes disso, se lhe dê um pequeno indício da feliz coincidência que iria acontecer.
As coincidências felizes da vida são exatamente isso: coincidências felizes. E as coincidências infelizes, ou seja, os acidentes, também não são coincidências.
Devido à combinação de um número praticamente infinito de fatores, estão sempre a acontecer coisas que não são de nenhuma maneira deliberadas. A nossa civilização não foi desenhada a régua e esquadro, não permitindo por isso uma planificação totalmente racional. Daí que a melhoria das condições de vida das pessoas dependa de uma série de circunstâncias que não são previsíveis.
O que significa que vivemos, fomos largados, num ambiente onde as coisas existem sem que ninguém o tenha antecipadamente planeado. Todas as produções tecnológicas e culturais humanas visaram sempre o tentar atenuar ou controlar esse ambiente que nos rodeia e que nos pressiona, criando cada vez mais estruturas que mantenham afastada o mais possível essa natureza perigosa e imprevisível.
Mas como nós mesmos, como seres vivos, somos naturalmente imprevisíveis, isto põe-nos um problema que, nos tempos atuais está a tentado ser ultrapassado através da superação (tecnológica) do nosso corpo biológico.
Com a expansão da informatização generalizada, acabamos atualmente por passar mais tempo no mundo da informação que no mundo da natureza. Por exemplo, ao passo que anteriormente numa viagem nos guiávamos por mapas impressos, onde teríamos a possibilidade de uma experiência original de caminhos que nos pusessem em contacto com uma natureza alheia ao humano, tudo o que agora experimentamos nessa mesma viagem é o que nos vem dado através dos telemóveis, com as fotografias ou vídeos dos locais a percorrer, ou seja, uma viagem que será feita pelos caminhos mentais que previamente marcámos.
E evitamos esse contacto por uma boa razão: é que a natureza que é alheia ao humano, não é nem nossa amiga nem nossa inimiga. É uma simples presença de materiais e “leis” da natureza, em cuja elaboração as nossas espectativas de sentido não têm nenhuma intervenção.
Perante esta ausência de sentido da realidade que nos rodeia, os seres vivos pensantes como nós, acabam por criar nichos de intencionalidade, a criação de uma "infoesfera", de uma nossa própria atmosfera espiritual. Pelo que o sentido da nossa vida espiritual talvez não passe de uma fuga do medo primário ao sem sentido das coisas.
Ouçamos o que nos diz Luciano Floridi, The Philosophy of Information:
“A vida espiritual é, portanto, o resultado de uma reação de triunfo ante um horror vacui semantici primário: o caos sem sentido (no sentido não existencialista de «ainda carente de significado») ameaça com desgarrar o nosso ser [..] Este terror primário ante a aniquilação urge o nosso ser a preencher continuamente qualquer espaço semanticamente vazio com um qualquer significado que possa encontrar; em resumo, urge a fazê-lo com o maior sucesso que lhe seja permitido pelo conjunto de restrições contextuais, as possibilidades e o desenvolvimento da cultura.”
Para preencherem os seus dias, as formigas, substituem a intencionalidade pelo trabalho 24 horas por dia. Pelo menos, as chinesas, pelo que dizem. Todas as outras se lhes seguirão.