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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(234) Gatos escondidos com rabo de fora

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A cultura e a integridade de uma nação são “eternas”, e qualquer alteração introduzida, quer seja através de uma influência estrangeira, quer seja por uma política progressista, poderão por em risco a nação, M. Barrès.

 

Não se trata de racismo, xenofobia ou perseguição. Trata-se apenas de auto preservação, proteção da condição natural europeia: cristianismo, raça branca e ordem social correta.

 

Os nacionalistas fascistas esperavam conseguir mudar radicalmente as suas sociedades, ao passo que os nacionalistas atuais pretendem apenas parar e reverter a mudança social.

 

A restauração da nação exige a purificação cultural, e como tal, purificação de raça.

 

A atual assunção do igualitarismo é vista como uma traição à nação, porquanto lhe diminui as possibilidades de sobrevivência.

 

 

 

 

 

Lembram-se da cena do filme Matrix em que é perguntado a Neo se prefere viver num mundo difícil, mas real, ou num mundo agradável, mas que não passe de uma ilusão? E que se ele optasse pelo primeiro, deveria tomar a “pílula vermelha”. Tomar a pílula vermelha permitia-lhe ver ‘a verdade’. (https://www.youtube.com/watch?time_continue=77&v=D4eJx-0g3Do).

 

O problema é que para a atual chamada “Nova Direita”, a ‘verdade’ que veem é a de um mundo destruído pelos conceitos liberais de igualdade entre os géneros e identidades nacionais, entre os fracos e os fortes, entre os ricos e os pobres, naquilo que entendem ser uma deturpação das condições “naturais”, porquanto estas o que fazem é premiar a força e punir a fraqueza. Pelo que concluem que este mundo em que vivemos é o mundo “não natural” que os liberais construíram.

 

Há estudiosos (1) que dizem que as linhas de atuação e a ideologia desta Nova Direita pouco têm que ver com os fascismos dos anos 20 e 30. Assim, quando grupos de jovens e não-jovens marcham provocatoriamente em áreas habitadas por minorias, por vezes descambando em agressões, ou discursando sobre a “mestiçagem imposta” que está a levar à substituição de europeus por muçulmanos, reclamando que ”a pátria é nossa”, fazem-no apenas por fervor nacionalista por não quererem ver o seu país, a sua cultura, os seus empregos, as suas aspirações, as suas cidades e até as suas mulheres, serem tomados e destruídos por uma invasão de emigrantes.

Mas, ao mesmo tempo, e exatamente por essas mesmas intenções, também percorrem os bairros e ruas das cidades prestando assistência aos sem-abrigo, fornecendo-lhes comida, roupas e bebidas, evidentemente, desde que, evidentemente, pertençam à cultura do país, verdadeiros nacionais com antepassados brancos.

Dizem, por isso, que não se trata de racismo, xenofobia ou perseguição. Trata-se apenas de auto preservação, proteção da condição natural europeia: cristianismo, raça branca e ordem social correta.

 

Estas posições filiam-se numa luta que se vem travando ao longo de alguns séculos, onde de um lado se afirma que a humanidade não é uma única entidade, encontrando-se antes dividida naturalmente em várias entidades nacionais (e temos os nacionalismos), e do outro lado a crença na universalidade da humanidade e consequentes noções de igualdade de direitos, humanismo e liberalismo.

 

Esta separação pode-se ver perfeitamente na época da Revolução Francesa que originou e impôs a conceção universal dos “Direitos do Homem”, e a ideia de “nação” subsequente desenvolvida por Napoleão, e segundo o qual apenas os franceses, e não todos os homens, deveriam gozar desses direitos. Meio século depois, Otto von Bismarck, restringia mais estes direitos, ao considerar que os mesmos só deveriam ser aplicados apenas aos cidadãos que fossem leais.

 

Em 1897, o francês Maurice Barrès, vai fundamentar o nacionalismo, ligando-o ao nascimento e à cultura. Segundo ele, a cultura e a integridade de uma nação eram “eternas”, e qualquer alteração introduzida, quer fosse através de uma influência estrangeira, quer fosse por uma política progressista, poderiam por em risco a nação, afirmando ainda que se a cultura quiser sobreviver tem de se manter inalterada, bem como a raça que a produziu.

 

Estas são as ideias que hoje se encontram nas Novas Direitas Alternativas quando atacam os liberais, feministas, socialistas, progressistas e estrangeiros.   

 

Os estudiosos fazem-nos notar as diferenças relativamente aos fascistas. Para estes, a geopolítica entre os estados, assentava na competição pela sobrevivência. Por isso, em vez de acreditarem na conservação da sociedade, optavam por prepará-la para a luta existencial que se aproximaria. Advogavam por isso, uma alteração social radical, incluindo uma mudança biológica.

Ou seja, em vez de evitarem uma mudança cultural, eles desejam-na e seriam os seus agentes. Uma das medidas que propõem para a alteração da sociedade é a de organizarem os trabalhadores para comerem, exercitarem-se e socializarem juntos, em vez de o fazerem com a família. Não parecendo, trata-se de uma grande mudança no quotidiano das pessoas e das suas vidas familiares: uma reforma com o objetivo de instilar lealdade ao estado e ao seu chefe.

Grandes cultores da utilização da ciência para a purificação racial e para a expansão da sociedade, começaram pelo desenvolvimento de programas que permitiriam a repovoação das novas terras após a destruição das populações originais, como por exemplo, a intervenção nos corpos das mulheres por forma a que as suas gravidezes fossem sempre de gémeos.

 

Resumidamente, os nacionalistas fascistas esperavam conseguir mudar radicalmente as suas sociedades, ao passo que os nacionalistas atuais da Nova Direita pretendem apenas parar e reverter a mudança social.

 

Com a sua crença de que as sociedades e os indivíduos são naturalmente desiguais, que a sobrevivência dos mais fortes, mais ricos, seria e será a condição natural, bastará libertar a sociedade dos igualitarismos e socialismos. Então surgirá a verdadeira cultura.

E, nem necessitam de falar sobre raça, por que ao falarem sobre cultura como produto de raça e nascimento, ou seja, cultura como sendo biologicamente mediada em vez determinada socialmente (quem for biologicamente diferente não pode participar da mesma cultura), tal implicará que a restauração da nação exige a purificação cultural, e como tal, purificação de raça.

Obviamente, os mais extremistas podem retirar a conclusão sobre a necessidade de uma guerra para garantir a sobrevivência da raça branca, dos “europeus”.

 

A atual assunção do igualitarismo é vista como uma traição à nação, porquanto lhe diminui as possibilidades de sobrevivência. É isto que explica o tratamento diferenciado que estes novos nacionalistas têm para com todos os que não participam na formação natural da “cultura”. Sejam os pobres, os desintegrados, as mulheres que não desempenham as suas funções da “ordem natural” ao quererem controlar as suas funções reprodutivas.

O mesmo para com as emigrações, em que o argumento para as limitar não aparece nunca como sendo o racial, mas o da necessidade de voltarmos a ter o controle das nossas fronteiras” em nome da preservação e prosperidade da nação e da nossa cultura.

 

Quando os chefes destes movimentos utilizam expressões popularuchas, quando dizem enormidades, quando mentem descaradamente e depois voltam atrás, dizendo que não disseram o que todos sabem que disseram, “os factos alternativos”, o que eles nos estão a dizer (e a induzir, e a mostrar) é que não se importam de transgredir todo o edifício de “mentiras” que o liberalismo construiu sobre raça, género e cultura. São os heróis libertadores da verdadeira sociedade que fora sufocada. E nós, que fomos e somos os sufocados, até acreditamos e gostamos de ouvir: finalmente alguém que nos defenda.

 

 

Pode-se até dizer que estes nacionalistas das Novas Direitas têm uma visão triste e redutora da humanidade em que a cultura é mediada biologicamente, imutável e restrita, não sendo, portanto, fruto da aprendizagem e da criatividade. Mas é exatamente esse conforto da imutabilidade e a dificuldade da aprendizagem e criatividade que têm vindo a preencher a nossa vida quotidiana.

 

Dizem os estudiosos que “os nacionalistas da Nova Direita não são nacionalistas fascistas”. Direi que  estes estudiosos  não devem estar a contar com a noção de tempo, do seu fluir, nem com a  encenação e teatro que faz parte da vida. Embora seja importante comhecer as diversas origens, mais importante é reconhecer onde é que elas conduzem. Os nacionalistas das Novas Direitas não são ainda fascistas, ou melhor, os nacionalistas fascistas têm ainda de se disfarçarem de nacionalistas das Novas Direitas.

 

 

(1)  Orellana, Pablo de, e Michelsen, Nicholas, “Reactionary Internationalism: the philosophy of the New Right”, Review of International Studies, 2019.

 

 

 

 

(233) “Beam me up!”

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

O conceito de teletransporte só será possível de se realizar se considerarmos que todos os seres humanos possam, na sua totalidade e singularidade, ser traduzíveis (reduzíveis) a um padrão de informação, por uma expressão matemática.

 

Tal padrão ficará sempre registado no sistema como uma cópia, pelo que o processo poderá sempre ser repetido, o que permitirá colonizar todos os planetas com o mesmo indivíduo, ou com apenas os escolhidos.

 

O que é que vos faz ter tanta certeza que a lógica matemática corresponde ao modo como pensamos? Stanislaw Ulam.

 

A matemática é uma das formas que temos para tentar entender o mundo, o que não significa que o mundo seja uma construção matemática que exista fora de nós e a que alguns privilegiados têm acesso.

 

O que cantam, e porque cantam as baleias (que não têm tecnologia, mas têm cérebro)?

 

 

 

 

Parece-me que todos nós estamos hoje já familiarizados com a frase “Beam me up!”, corrente e recorrente em todos as séries e os muitos filmes de ficção dita científica, quando os heróis, os escolhidos, são instantaneamente transportados (“teletransportados”, em português erudito, ou “bim mi âpe” em atual português feirante) de um lugar do universo para outro lugar, quer seja do mesmo universo ou de outro verso, dado que o universo deixou de ser uno (Matrix dixit), não que alguma vez tivesse sido outra coisa para além daquilo que nos parece ser.

Em português corrente temos a expressão “Tirem-me daqui!”, mas, convenhamos, não é a mesma coisa. Embora se refira a um idêntico pedido numa situação de aflição, tem muito menos hipóteses de ser atendido por não ser feito na linguagem universal dos deuses (sabemos agora que não era o latim) que governam todo o conhecimento.

 

“Tirem-me daqui” parece ser um pedido de alguém que caiu num buraco, e não de alguém envolvido numa avançada experiência ou situação num ambiente tecnologicamente evoluído. Já imaginaram alguém numa série ou filme passado no espaço, dizer para o comando central “Tirem-me daqui!”? Não dá. Ficava lá com certeza.

 

E, no entanto, relativamente ao “Tirem-me daqui!”, a expressão “Beam me up!” contém elementos bastante menos racionais: Por quê o “up”? Porque puxá-lo para cima? Devia ser conhecido (e é, trata-se apenas de condescendência para com os pobres de espírito cá de baixo, ou talvez resquícios religiosos do Céu como morada dos deuses a que aspiramos retornar) que no universo, cima ou baixo não constituem referências.

 

Bastante mais importante é já o conceito expresso no “Beam me”, por implicar a transformação de um ser vivo num raio, num feixe de energia, na sua desmaterialização, transporte e nova materialização, seja de um lugar para outro ou de, e para o mesmo lugar.

A concretizar-se, tal conceito de teletransporte só será possível de se realizar se considerarmos que todos os seres vivos, neste caso os seres humanos, puderem, na sua totalidade e singularidade, serem traduzíveis (reduzíveis) a um padrão de informação, por uma expressão matemática.

 

Se a consciência (o que quer que seja) fosse possível de ser ‘scaneada’ (neste caso, talvez ‘sacaneada’ seja o mais correto), destruída (porque neste processo há sempre um instante em que desaparecemos, ou seja, em que nos encontramos mortos) e depois  reproduzida como se tratasse de um mero e inanimado bife, então a individualidade (identidade) seria também possível de ser programada, deixando, portanto, por definição, de ser individualidade.

 

Algumas outras questões menores, ainda ligadas ao teletransporte:

 

 Tratando-se este processo da transmissão de um padrão de informação, tal padrão ficará sempre registado no sistema como uma cópia, pelo que o processo poderá sempre ser repetido, o que permitirá colonizar todos os planetas com o mesmo indivíduo, ou com apenas os escolhidos.

 

Sendo a consciência um estado sempre em atualização, mutável, sujeito inclusivamente a ‘estados de alma’, chegado o momento de ser ‘scaneadaqual será o estado de alma reproduzido? O novo humano reconhecer-se-á? Ficará agradado com a nova consciência?

 

Contudo, o problema mais grave que este conceito de teletransporte de seres humanos apresenta, tem que ver com a mentalidade mais geral com que aos poucos estes nossos ‘novos’ tempos têm vindo a serem conduzidos no afã de tudo ser matematizável, como única forma para tudo entender, uma só teoria para todas as coisas.

 

Daí todos os recursos serem canalizados para aprofundar essa vertente; muitos milhares de estudos vão nesse sentido, sentido sem fim e provavelmente sem regresso. A ‘justificação’ baseia-se sempre na certeza que a utilização da seriedade da matemática lhe confere, bem como no infinito de possibilidades que esse caminho pode propiciar, só significando também que por isso é verdadeiro.

 

Esta opção sobre o caminho a seguir, assenta no pretenso facto de nos fazerem crer que o cérebro tem uma atuação lógica, como tal possível de ser ‘descoberta’, reproduzida e melhorada. A ‘ilusão’ de uma Inteligência Artificial igual e melhor que o cérebro e que, fatalmente, conduzirá a um cérebro reduzido a “pensar” como a IA.

 

Como bem fazia notar Stanislaw Ulam, (1909-1984), grande matemático polaco que trabalhou no projeto da bomba de hidrogénio e da propulsão nuclear de veículos espaciais, quando perguntou numa sala de reuniões cheia de matemáticos:

 

“O que é que vos faz ter tanta certeza que a lógica matemática corresponde ao modo como pensamos?”

 

Todos aqueles grandes matemáticos sabiam perfeitamente que a maneira de funcionar do cérebro não era fundamentalmente lógica (consultar um interessante artigo de Pei Wang, Cognitive Logic x Mathematical Logic   https://pdfs.semanticscholar.org/67c6/767406677685e9a40a46af5d592bbd8a35eb.pdf).

 

E, não se culpe a matemática. Por si, a matemática desenvolve uma forma de linguagem e pensamento que serve de base para as ciências naturais e tecnológicas.

A matemática é uma das formas que temos para tentar entender o mundo, o que não significa que o mundo seja uma construção matemática que exista fora de nós e a que só alguns privilegiados têm acesso.

Desafortunadamente, nos nossos tempos, está a ser quase exclusivamente usada por aqueles que pretendem que nos fixemos apenas no conhecimento que lhes permita avançar mais rapidamente para o que lhes der mais e maiores ganhos, ou para a realização dos seus objetivos pessoais. Tudo o resto é para esquecer.

 

Relembremos o que disse James C.  Maxwell, (1831-1879), o físico-matemático inglês que deu a conhecer o eletromagnetismo:

 

Algumas pessoas conseguem alcançar o seu conhecimento sobre o que é o mundo, através de símbolos e da matemática. Outras conseguem alcançar esses objetivos através da pura geometria e espaço. Outras há que através de uma aceleração que lhes é comunicada por um esforço muscular, conseguem sentir a força dos objetos que se movimentam neste mundo. Pelo bem-estar das pessoas destes diferentes tipos, quer elas queiram a calma do simbolismo matemático, ou os aspetos mais robustos do confronto muscular, devemos apresentar todos esses modos, todos esses caminhos. É a combinação deles que nos permitirá o melhor acesso à verdade

 

Relembremos ainda Georg Cantor, (1845-1918), o matemático alemão a quem coube a elaboração da moderna teoria dos conjuntos que permitiu a diferenciação e comparação entre conjuntos infinitos. Ou seja, uma coisa era saber-se que no intervalo entre os números 1 e 2 existia uma quantidade infinita de números, e que de 1 até ao infinito dos números existia também uma outra quantidade infinita de números; outra coisa era provar-se matematicamente a validade deste conceito, que foi o que Cantor conseguiu fazer.

 

Pelo que o infinito não pode só por si servir de prova de verdade. Há muitos infinitos. Ou seja, havendo imensos campos de conhecimento por explorar, porque se faz a opção de privilegiar um relativamente aos outros?

 

Provavelmente porque já se sabe “porque cantam, e o que cantam as baleias”, ou “porque é que os cães sabem que os donos vão chegar a casa”, ou por ainda muitas outras ‘coisas’ que não são consideradas importantes, mas que demonstram que apesar de não terem tecnologia, têm cérebro.

 

 

 

 

(232) Das necessidades quotidianas

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

Todas as necessidades humanas são reais e legítimas, Ágnes Heller.

 

E isto contraria abertamente aquilo que nos têm andado a querer fazer crer:  que temos vivido acima das nossas possibilidades.

 

Quem tem o poder para decidir quais são ou não as necessidades reais de cada um?

 

Tão ditatorial é a sociedade de consumo como são os sermões moralistas do poder que invoca a austeridade atual, Marina Garcés.

 

 

 

 

A 19 de julho deste ano morreu uma pouco conhecida e muito importante filósofa húngara, Ágnes Heller, nascida a 12 de maio de 1929 em Budapeste.

Segundo ela, toda a sociedade tem uma vida quotidiana, e todo o homem, seja qual for o lugar que ocupe na divisão social do trabalho, tem uma vida quotidiana muito própria. Contudo, isto não significa que o conteúdo e a estrutura da vida quotidiana para toda a sociedade e para todas as pessoas sejam idênticos, até porque toda a reprodução do homem particular é a reprodução do homem concreto com uma vida quotidiana muito própria.

 

Para a reprodução de um escravo são necessárias atividades distintas das necessárias para um cidadão livre, para um pastor, para um operário ou para um comerciante. Na vida quotidiana de cada homem são muito poucas as atividades que são tidas em comum com os outros homens, e mais, mesmo as que são consideradas como idênticas só o são num plano muito abstrato.

 

Todos necessitam de dormir, mas nenhum dorme nas mesmas circunstâncias e pelo mesmo período de tempo; todos têm necessidade de se alimentar, mas não da mesma quantidade e do mesmo modo.

Todo o homem nasce no quotidiano, mas ao produzir reflexões teóricas, filosóficas, artísticas, políticas, estará numa dimensão não quotidiana, que, contudo, tem a sua origem no próprio quotidiano.

Independente de qualquer estágio de consciência histórica em que seja lançado no mundo, o homem nasce no quotidiano e aí se desenvolve”.

 

E daqui Heller parte para uma ideia muito importante: a de que todas as necessidades humanas são reais e legítimas.

O que contraria abertamente aquilo que nos têm andado a querer fazer crer:  que temos vivido acima das nossas possibilidades. Que as nossas necessidades não são assim tão reais.

 

O que nos dizem quando sentimos que necessitamos de casa, automóvel, eletrodomésticos, viagens de férias, comer fora em restaurantes, é que essas não são necessidades reais, são falsas necessidades. E com o aprofundar da crise vão aumentando as listas dessas nossas falsas necessidades: cuidados de saúde para todos, medicina de alto nível para todos, escola de qualidade para todas as classes sociais, universidades públicas que todos possam frequentar, etc.

E é assim que acabam por instalar em nós essa ideia de que vivemos acima das nossas possibilidades desnecessariamente, e que nos levam a criticar quem muda de telemóvel todos os anos, quem muda de carro regularmente, quem acumula tudo o que a sociedade de consumo nos oferece ás catadupas.

 

Mas quem tem o poder para decidir quais são ou não as necessidades reais de cada um?

E é aí que sobressai a radicalidade de Ágnes Heller ao afirmar que todas as necessidades humanas são reais e legítimas. Só partindo desse princípio é que poderemos evitar o aparecimento de ditaduras que se arrogam o poder de nos dizer o que necessitamos e o que não necessitamos.

Tão ditatorial é a sociedade de consumo como são os sermões moralistas do poder que invoca a austeridade atual”.

 

Mas Ágnes Heller dá mais um passo quando diz que embora todas as necessidades humanas sejam reais, nem todas são boas e nem todas se podem satisfazer.

A ética e a política vão ter que entrar em ação para que esta clarificação se dê. Sendo a ética a elaboração de valores concretos que nos permitirão decidir coletivamente sobre a bondade ou não de uma necessidade, e a política a tomada de decisões tendo por base a ética, temos aqui os pilares que deveríamos usar para a condução dos processos históricos que se desejam plurais, mesmo que conflituantes.

 

É por isto, que uma verdadeira política democrática que conte com a participação de todos os indivíduos na elaboração dos nossos sistemas de necessidades e sua satisfação, embora possa ser apresentada como radical e utópica pelos mesmos que determinam quais são as nossas necessidades, torna-se cada vez mais urgente neste mundo com quase 8.000 milhões de humanos que se guerreiam e esgotam os recursos do planeta.

 

 

 

 

(231) Como nos consumimos

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

A novidade constitui sempre a condição do prazer, S. Freud.

 

A vida do consumidor é uma sequência interminável de ‘novos começos’, Zygmunt Bauman.

 

As distrações exerceram uma grande força atrativa em todas as sociedades porque oferecem a possibilidade de esquecer momentaneamente as preocupações do presente, de esquecer as tensões que sofremos, de aligeirar a vida quotidiana.

 

Embora a televisão venda «tempo de cérebro humano disponível» destinado a preparar o espetador para receber as mensagens publicitárias, oferece sobretudo programas que dão a satisfação da inatividade mental, G. Lipovetsky.

 

 

 

 

Gilles Lipovetsky, é um filósofo e sociólogo francês que se tem dedicado à compreensão e explicação particular e global da sociedade em que atualmente vivemos, a sociedade “pós-moderna” do “híper-tudo”. A sua obra base, um ensaio de 1983, L’Ère du vide: essais sur l’individualisme contemporain (A era do vazio, ensaio sobre o individualismo contemporâneo), contém todas as problemáticas que posteriormente vai desenvolver em abordagens sistemáticas aos vários problemas da sociedade.

Basta ver as publicações que se lhe seguiram: L’Empire de l’èphémère: la mode et son destin dans les sociétés modernes (O Império do efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas), 1987; Le Crépuscule du devoir: l’éthique indolore des nouveaux temps démocratiques (O Crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos), 1992; La Troisième femme: permanence et révolution du féminin (A Terceira mulher: permanência e revolução do feminino), 1997; Métamorphoses de la culture libérale: éthique, médias, enterprise, 2002; Le Luxe éternel: de l’âge du sacre au temps des marques (O Luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas), 2003; Les Temps hypermodernes (Os Tempos hipermodernos), 2004; Le Bonheur paradoxal: essai sur la société d’hyperconsommation (A Felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo), 2009; La Société de déception (A Sociedade da deceção), 2006; L’Écran global: culture-médias et cinema à l’âge hypermoderne (O Ecrã global: do cinema ao smart-phone), 2007; La Culture-monde: réponse à une société désorientée (A Cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientadas), 2008; L’Occident mondialisé: controverse sur la culture planétaire (O Ocidente mundializado: controvérsia sobre a cultura planetária), 2010; L’Esthétisation du monde: vivre à lâge du capitalisme artiste (O Capitalismo estético na era da globalização), 2013; De la légèreté (Da leveza: para uma civilização do ligeiro), 2015; Plaire et toucher. Essai sur la société de la séduction (Agradar e tocar. Ensaio sobre a sociedade da sedução), 2018.

 

É desta sua última obra, Agradar e tocar. Ensaio sobre a sociedade da sedução, que aqui deixamos um pequeno excerto, sem nada acrescentar, retirar ou comentar:

 

 

Retrato de Don Juan como consumidor

 

Através das novidades, já não são tantos os bens e as riquezas honoríficas que se procuram, mas as sensações e experiências do prazer. Agora, a novidade comercial tem menos um valor estatutário do que um valor emocional, lúdico e distrativo. A atração do consumismo prende-se com a sua capacidade de providenciar sensações indefinidamente renovadas: por isso, a compra do novo confunde-se com uma estética do consumo.

Num contexto dominado pelo culto dos prazeres efémeros, cada um tende a tornar-se «um colecionador de experiências», à espreita de intensidades novas, de mudança, de sensações inéditas vividas como pequenas «aventuras» que animam o universo do quotidiano. Aquilo que atrai no consumo é menos a dimensão do ‘ter’ do que os prazeres fornecidos pela mudança, o refrescamento do vivido, o arrebatamento das pequenas transformações, que são começos sem risco. Zygmunt Bauman exprimiu bem isto:

 

 «A vida do consumidor é uma sequência interminável de ‘novos começos’

 

A compra-prazer funciona assim como uma das vias que permitem mais ou menos sair da rotina dos dias, escapar à perpetuação do mesmo, sentir novas emoções, conhecer novos «princípios». A sedução do consumismo reside precisamente neste poder perpétuo do começo, pois nada seduz mais que os momentos de começo:

 

 «As inclinações nascentes, afinal de contas, têm encantos inexplicáveis, e todo o prazer do amor está na mudança» (Don Juan, Ato I, cena 2).

 

Cada consumidor contemporâneo comporta-se como o Sedutor de Sevilha: formidável vetor de prazeres efémeros, máquina de experiências múltiplas, a economia consumista gerou um donjuanismo generalizado, banalizado, que, obcecado com sensações novas e aventuras incessantes, se manifesta muito para além do domínio da conquista amorosa. A figura paradigmática do donjuanismo contemporâneo já não é o «pretendente do género humano», mas o consumidor móvel, emocional, dos tempos hipermodernos.

 

Verdade, escolha e personalização

 

O processo de mudança perpétua acompanha-se de um processo de diferenciação sistemática da oferta comercial, com as economias de solicitação do desejo a esforçarem-se para que os produtos nunca se apresentem como tipo único: tudo deve ser oferecido numa profusão de modelos, de opções, de diferenças grandes ou pequenas. Pondo em causa o modelo fordiano baseado na produção de grandes séries repetitivas, o capitalismo do hiperconsumo tende para a individualização dos produtos, para a declinação de variantes, para a proliferação industrial da variedade.

Enquanto durante os Gloriosos Anos Trinta, a massificação homogénea triunfava sobre a variedade, agora dominam a personalização dos produtos, as séries curtas, a multiplicação dos modelos. Com a hipersegmentação dos mercados, a sedução do diverso impôs a sua lei à ordem da produção industrial massificada.

 

O capitalismo da sedução deu origem a uma economia da variedade tanto no domínio da manufatura como no domínio da distribuição e da cultura. Cada vez mais ofertas de produtos utilitários e de varações, cada vez mais canais de distribuição, mas também mais filmes, séries, tendências da moda, estilos díspares: o capitalismo da sedução apresenta-se como um imenso supermercado com uma oferta prolífera e não estandardizada, que corresponde à diversidade dos gostos e dos desejos individuais. O princípio da sedução concretiza-se na lei da diversificação crescente.”

 

“[…] Criar o espetáculo e o sensacional, privilegiar o distrativo em detrimento da seriedade da informação: para reter a atenção do público e ganhar a corrida às audiências, tudo deve ser espetáculo e até hiperespetáculo. O divertimento, o riso, os jogos são os grandes vetores da sedução televisiva.

 

A atração irresistível da preguiça

 

As distrações exerceram uma grande força atrativa em todas as sociedades porque oferecem a possibilidade de esquecer momentaneamente as preocupações do presente, de esquecer as tensões que sofremos, de aligeirar a vida quotidiana. Este ponto é essencial.

 No entanto, não é, contudo, suficiente para explicar o facto de, nas nossas sociedades, o desejo de entretenimento se concretizar principalmente no consumo de imagens televisivas e não noutros tipos de lazeres que podem produzir os mesmos efeitos de evasão. Por que é que o espetáculo televisivo ocupa a maior parte do tempo de lazer da maioria da população? Por que é que nos tornámos tão viciados na televisão, por que razão ligamos a televisão antes de consultar os programas, por que é que continuamos a ver programas que nos aborrecem e por que preferimos mudar de canal a desligar o aparelho?

[…] A verdade é que não vemos televisão para ter o sentimento de participar numa sociedade, mas sim para não termos de fazer, durante algum tempo, os esforços (trabalho, pensamento, responsabilidade) exigidos pela vida coletiva. O que seduz é o lazer espetacular e passivo, estranho ao universo do sentido: para o espetador, o que conta é o esquecimento dos problemas da vida séria, a neutralização das dificuldades quotidianas, a suspensão dos esforços que esta implica e, nomeadamente, os da reflexão, da atividade intelectual.

A sedução televisiva consagra o triunfo da preguiça mental, que pode chegar à passividade total. A força de atração considerável da televisão reside no facto de não mobilizar nenhum esforço, nem físico nem mental. As imagens do pequeno ecrã seduzem tanto mais quanto menos implicarem algum trabalho, algum esforço reflexivo; alimentam a preguiça mental, o prazer de não ter de pensar, de não ter de pensar em nada.

Embora a televisão venda «tempo de cérebro humano disponível» (Patrick Le Lay) destinado a preparar o espetador para receber as mensagens publicitárias, oferece sobretudo programas que dão a satisfação da inatividade mental.

 

[…] Mesmo quando os programas não apaixonam, a televisão continua a exercer uma certa sedução: a da preguiça, da passividade espetacular, a de não ter de prestar contas, de não fazer nada, de não precisar de refletir.

Não há manipulação nem mistificação das massas sem cérebro, mas a exploração de uma aspiração fundamental do ser humano: o gosto do menor esforço, aceder a momentos ligeiros, não fazer nada, fugir ao peso do sentido, ficar livre de toda a carga mental.

A ligação ao pequeno ecrã não resulta do facto de permitir ouvir falas públicas e de estar ligado aos outros, mas do facto de constituir o meio mais fácil de esquecer, no imaginário, os problemas da vida social. Não é o polo público que seduz, mas a desconexão privada.”

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