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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(221) Maneiras de poder. Maneiras do poder.

Tempo estimado de leitura: 3 minutos.

 

Quem tem o poder de formular as perguntas e de determinar a validez das suas respostas?

 

Quem separa a verdade da mentira?

 

Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor a que habitualmente chamamos de silêncio? W. Herzog, em O Enigma de Kaspar Hauser.

 

Aqui jaz um desconhecido assassinado por um desconhecido, lápide no túmulo de Kasper Hauser.

 

 

 

 

Quando Veiga Simão fundou em 1962 os Estudos Grais Universitários em Moçambique, para garantir a portugalidade e a credibilidade da instituição, a realização dos exames finais das várias cadeiras eram normalmente feitos por professores catedráticos convidados vindos da Metrópole.

 Numa das cadeiras do curso de medicina, o professor, interrogando o aluno sobre a bilharziose, pediu-lhe para elaborar um plano para a erradicação da doença. Uma vez que para o seu desenvolvimento necessita de passar pelos caracóis de lagoas, charcos, rios, o aluno começou por elencar como objetivo prioritário, a morte dos caracóis. Ao que o professor, do alto da sua cátedra, ironizou, perante o riso da assistência e o embaraço do aluno:

Então, e como é que os matava? Com um pauzinho?

 

Acontece que anos mais tarde, já após a independência, a quando da deslocação à China do então presidente de Moçambique, Samora Machel, integrado na sua comitiva seguia esse tal aluno, moçambicano negro, já formado em medicina.

Sendo a bilharziose uma doença endémica em Moçambique, foi com admiração que constatou que na China, tal doença já não existia. Interessado, quis saber qual o plano que tinham seguido. “Muito simples”, disseram-lhe. “Matámos os caracóis”.

Mas como?

Com um pauzinho. Todos os meses, ao fim de semana, saímos para o campo, e todos os caracóis que víamos, matávamos”.

 

Em 1974, Werner Herzog, realizou um filme com o título Cada um por si e Deus contra todos, que nos nossos cinemas foi publicitado com o nome de O enigma de Kaspar Hauser.

Basicamente, o filme conta a história de um adolescente que aparece em 1828 numa praça de Nuremberga. Ninguém sabia quem ele era, nem donde vinha. Trazia uma carta de apresentação anónima para o capitão da cavalaria, contando que fora criado sem nenhum contacto humano, num porão, e pedindo para que fizessem dele um cavaleiro.

Quando mais tarde aprendeu a falar, contou que alguém lhe deixava alimentos durante a noite, mas nunca vira ninguém.

Há um professor que o acolhe e tenta socializá-lo. No filme, aparecem algumas cenas desse processo de socialização. Finalmente, em 1833, Hauser acaba assassinado não se sabe por quem.

 

Juntamente com o aparecimento dos vários “meninos selvagens”, estas situações deram origem a estudos e teorias relacionados com a importância do processo de socialização para o desenvolvimento do ser humano, como, por exemplo, os que consideravam que não bastava falar para se entender o que se passava ao seu redor.

 

Há, contudo, no filme, uma cena particularmente interessante:

Para aferir sobre a inteligência natural de Hauser, um sério professor de lógica entende pôr-lhe o conhecido problema do mentiroso: Como será possível apenas com uma só pergunta, descobrir quem está a mentir quando duas pessoas se encontram numa encruzilhada do caminho, sendo que uma delas vem de uma aldeia onde todos dizem sempre a verdade e outro de uma aldeia onde dizem sempre mentiras?

Ainda hoje a grande maioria de nós terá dificuldades em reproduzir a lógica intrincada que permite resolver o assunto. O mesmo aconteceu com Kaspar. Só que ele diz:

 “Eu faria antes outra pergunta. Perguntar-lhes-ia a cada um deles se eram uma rã. O verdadeiro diria que não era, e o mentiroso dir-me-ia que era uma rã.

O professor de lógica irritou-se, considerou a pergunta como inválida, terminou a sessão e deu Kaspar como sendo retardado.

 

Num tempo como o nosso, em que através de uma cultura participativa-interrogativa se tem vindo a envolver a sociedade, que a leva a formar juízos de valor sobre o que é bom e mau, verdadeiro e mentiroso, talvez seja importante perguntar:

Quem tem o poder para formular as perguntas e determinar a validez das suas respostas?

 

A escolha da rã como exemplo é perfeita como jogo intelectual. A sua lógica obriga-nos a saltar como ela para um outro campo de jogo. E, não vale a pena continuar a perguntar. O quadro é outro.

 

Tal como o catedrático em Moçambique, e o professor de lógica em Nuremberga, também Samora Machel quando regressou da China, resolveu tentar levar à prática um programa para acabar com as moscas, pondo cada moçambicano a matar meia dúzia de moscas por dia, tal como os chineses tinham feito.

 Hoje continua a haver bilharziose e moscas em Moçambique. Mas, não é disso que aqui se trata. Trata-se é da identificação de um mesmo processo de pensamento como moldura que baia o pensamento. Maneiras de poder. Maneiras do poder.

 

 

 

(220) O abismo da liberdade e a liberdade do abismo

Tempo estimado de leitura: 8 minutos.

 

Uma revolução representa um tempo entre o fim de um passado que já não satisfaz e que já não dá respostas, e um novo começo que se oferece como absolutamente imprevisível.

 

A violência, tão característica do início de uma revolução como meio (instrumento) para atingir um fim (a libertação, a conquista de direitos básicos), não pode ser confundida com o terror, que só aparece quando a violência passa a ser um fim em si mesmo.

 

Qualquer vendedor formado numa grande empresa capitalista sabe resolver uma questão dessas; mas 99 comunistas responsáveis em cada 100 não sabem, Lenine.

 

Tem havido uma luta de classes nos últimos 20 anos, e a minha classe ganhou, Warren Buffett.

 

 

 

 

 

Em 1963, no seu estudo sobre a revolução ( On Revolution), Hannah Arendt, apesar de pensar que “uma revolução é claramente um novo começo”, deixa-nos a indicação que tal não significa que seja impossível um começo sem se iniciar uma revolução, para o que basta pensar no fenómeno da desobediência civil ou numa participação política alargada e efetiva que nos permita um novo começo.

Daí que, para ela, a violência, tão característica do início de uma revolução como meio (instrumento) para atingir um fim (a libertação, a conquista de direitos civis básicos – vida e propriedade), não possa ser confundida com o terror, que só aparece quando a violência passa a ser um fim em si mesmo, não sendo, portanto, um instrumento.

 

Como bem observou Arendt, as revoluções não consistem apenas numa mudança, como sucede com um golpe de estado, desobediência civil ou transformação de um governo. Não se trata de restaurações ou de tentativas de retrocesso a um momento original ou primitivo em que a ordem estaria estabelecida. Pelo contrário, a revolução tem como consequência a instauração de uma novidade absoluta em termos de instituição, até aí não existente.

Ou seja, uma revolução representa um tempo entre o fim de um passado que já não satisfaz e que já não dá respostas, e um novo começo que se oferece como absolutamente imprevisível.

 

É a imprevisibilidade de um futuro que ainda está por-vir, agravada pelo facto de o passado imediatamente anterior já-não dar qualquer resposta, que torna o desejo inicial da revolução absolutamente incerto.

 

É exatamente por isto que os homens que as realizam se confrontem com a sensação de abismo que se segue ao momento inicial em que a iniciam. Eles sentem que a linha desse tempo não é de continuidade, mas sim de desconexão, em que se dá uma interrupção no tempo da sequência dos acontecimentos.

É o aparecimento de um hiato entre o passado e o futuro, entre o tempo do fim de um passado que já-não satisfaz, e um novo começo que ainda-não satisfaz, em que aparentemente é suprimida a continuidade dos acontecimentos no tempo, projetando-os para aquilo que é reconhecido como sendo o medo fundamental do abismo da liberdade.

 

É, talvez, este medo fundamental resultante de uma interrupção do tempo sem retorno, que faz, em maior ou menor grau, com que os homens que realizam as revoluções, recorram, apesar de tudo, ao passado para enfrentarem os problemas de um novo começo. Ou seja, não há um abandono absoluto do passado.

 

Por exemplo, na Revolução Americana, a luta contra o recente domínio colonialista britânico, não significou o abandono ou o corte com a tradição, levando os americanos da revolução a procurarem no passado (na ideia romana de autoridade como reconhecimento da importância do novo começo, da nova fundação a que a Constituição daria corpo) a garantia para que a própria finalidade da revolução (a liberdade política, o permitir às futuras gerações o direito de participarem numa esfera pública, de se pronunciarem acerca de assuntos políticos) adquirisse a durabilidade necessária.

Essencialmente, seria através da Constituição, com a separação de poderes e seu sistema de verificações e equilíbrio (“check and balances”), que se veriam livres dos Jorge III, dos reis acima da lei, de qualquer lei.

 

Na Revolução Francesa, a luta contra o secular domínio da nobreza e sua exploração, vai dar lugar aos conceitos de “bondade natural” do povo, de “vontade geral” do povo, e de um ideal de não representatividade associado ao poder legislativo, o que conduziu à fragilidade da autoridade e ao predomínio da libertação geral sobre a liberdade política.

 

Condições diferentes, que levam Arendt a distinguir entre o “le peuple” francês, como multidão una e miserável, e o “we, the people” americano, que embora também multidão, não era composto por miseráveis, não estava unido pela miséria, mas antes pela sua variedade, pela consciência da sua pluralidade.

Em vez da preocupação constante de fundar um corpo político que permitisse a liberdade, o objetivo principal da Revolução Francesa passou a ser a proclamação dos direitos do homem, que lhe eram reconhecidos pelo simples facto de terem nascido.

Embora a Revolução Americana tenha sido considerada por Arendt como o modelo da revolução perfeita, apesar de não ser dirigida para todos (a escravatura, etc.), foi a Revolução Francesa, com o seu apelo universal, que acabou por ser o modelo para as revoluções comunistas que se lhe seguiram.

 

 

 

Na Revolução de Outubro de 17 na Rússia, país onde há centenas de anos a governação quase feudal dos Czares faria parecer quase democrática a dos monarcas da Europa, a guerra perdida contra o Japão logo seguida da entrada na 1ª Guerra Mundial, a miséria, fome e repressão por um lado, e a enorme ostentação de luxo por uma pequeníssima parte, levaram à sublevação popular e à queda do imperador.

O governo parlamentar que se lhe seguiu, limitou-se, contudo, a conservar quase todas as instituições a funcionarem da mesma forma, incluindo continuando a manter a Rússia na guerra sem qualquer solução.

 Rapidamente um pequeno partido de revolucionários comunistas que advogavam a alteração radical do sistema (político, económico, cultural), com o seu programa de acabar com a guerra e com a entrega das terras a quem a trabalhava, ganha apoio maioritário entre a população, e assalta o poder.

Guerra civil, guerra movida pelo exterior, debandada quase geral de quadros intermédios, aceleram o aparecimento das comissões de trabalhadores, soldados e marinheiros, sindicatos, comissões de bairro, etc., como elementos de confiança e apoio do governo para o controle político e económico do Estado. A desconstrução do sistema instalado começara, a construção do novo sistema ia tomando lugar, excluindo radicalmente o anterior.

 

No campo económico os resultados não estavam a ser brilhantes, podendo até serem estrategicamente negativos.

Lenine, faz aprovar uma Nova Política Económica (NPE), segundo a qual reinstala parte das práticas e procedimentos capitalistas. Acusado por pretender abandonar o socialismo, vê-se forçado a defender a NPE e a sua posição, o que faz durante o XI congresso do Partido Comunista Russo bolchevique, PCR(b), realizado em Moscovo entre 27 de março e 2 de abril de 1922.

Eis algumas das suas declarações:

 

“[…] Temos de reconhecer que o problema da NPE, o problema fundamental, decisivo e incontornável é o de estabelecer uma ligação entre a nova economia que começámos a criar (muito mal, de forma desastrada, mas que começámos, de qualquer forma, a criar, com base numa economia socialista completamente nova e num novo sistema de produção e distribuição) e a economia camponesa […]

[…] Temos de provar que o conseguimos ajudar e, neste momento, quando o pequeno camponês se encontra num estado da mais lastimável ruína, pobreza e fome, os comunistas estão realmente a ajudá-lo. Ou o conseguimos provar, ou ele vai mandar-nos para o Inferno. Isso é absolutamente inevitável […]

 

[…] Estamos agora a formar empresas mistas, o que, tal como o nosso comércio estatal e a nossa NPE, significa que nós, comunistas, estamos a recorrer a métodos comerciais capitalistas […]

[…] O capitalista conseguia fornecer bens. Fazia-o de modo ineficaz, cobrava preços exorbitantes, insultava-nos, roubava-nos. Os trabalhadores e os camponeses comuns, que não discutem o comunismo porque não sabem o que é, estão bem cientes disso.

“Mas os capitalistas, afinal de contas, conseguiam-nos coisas; e vocês? Vocês não o conseguem fazer.”  Foi isto o que ouvimos na primavera passada […]

Por isso formamos as empresas mistas. Os capitalistas estão a trabalhar ao nosso lado. Estão a trabalhar como ladrões; fazem lucro; mas sabem fazer as coisas. Mas vocês estão a tentar fazer as coisas de uma maneira nova: não têm lucro, os vossos princípios são comunistas, os vossos ideais são esplêndidos […] Mas será que conseguem fazer o que precisa de ser feito? […]

Serão vocês capazes de gerir a economia tão bem como os outros? Os velhos capitalistas são capazes; vocês não são. É esta a primeira lição, a primeira parte principal do relatório político do Comité central. Não somos capazes de gerir a economia [..]

Ou provamos o contrário no ano que se segue, ou o poder Soviético não poderá existir […]

A questão é que os comunistas responsáveis, até os melhores entre eles, que são indubitavelmente honestos e leais, que nos velhos tempos sofriam a servidão penal e não temiam a morte, não sabem fazer negócio, porque não são homens de negócio, não aprenderam a fazer negócio, não querem aprendê-lo e não compreendem que têm de o começar a aprender do nada […]

[..] Temos poder político mais do que suficiente […] O poder económico nas mãos do Estado proletário da Rússia é perfeitamente adequado para assegurar a transição para o comunismo. Então, o que falta? Obviamente, o que falta é cultura na camada de comunistas que desempenham funções administrativas […]

É preciso estudar muito para o fazer, e os nossos não o estão a fazer. Espalham ordens e decretos por toda a parte, mas os resultados são bem diferentes dos desejados […]

[…] A ideia de construir a sociedade comunista exclusivamente com mãos comunistas é infantil, absolutamente infantil. Nós, comunistas, não passamos de uma gota de água no oceano, uma gota no oceano do povo […]

Porque foi necessário, três anos depois da evolução, na capital da República Soviética, fazer duas investigações, ter a intervenção de Kamenev e de Krasin e instruções do Politburo para comprar alimentos enlatados? O que faltava? Poder político? Não. O dinheiro também estava disponível […] O que faltava, então?

Cultura. Noventa e nove em cada cem oficiais da Sociedade Cooperativa dos Consumidores de Moscovo … e do Comissariado Popular do Comércio Externo têm falta de cultura […]

Qualquer vendedor formado numa grande empresa capitalista sabe resolver uma questão dessas; mas 99 comunistas responsáveis em cada 10 não sabem. E recusam-se a compreender que não sabem que têm de aprender o bê-á-bá deste negócio […]

Aquilo que o camponês conhece e a que está habituado é ao mercado e ao comércio. Não fomos capazes de introduzir a distribuição direta comunista. Faltaram-nos as fábricas e o equipamento para o fazer. Assim sendo, temos de dar aos camponeses aquilo de que precisam através do comércio, e temos de o fazer tão bem quanto os capitalistas o fizeram. Ou o povo não irá tolerar a nossa administração. Este é o ponto-chave da situação […]

A caraterística principal é não termos as pessoas certas para os lugares certos; é terem sido atribuídas a comunistas responsáveis, que combateram magnificamente durante a revolução, funções comerciais e industriais acerca das quais nada sabem […] Tendo em conta que durante algum tempo teremos de viver entre um sistema capitalista […] há que escolher as pessoas certas e introduzir formas práticas de controle. É isso que o povo irá valorizar […]

 

A 2 de março de 1923, Lenine, envia uma carta ao XII Congresso, debaixo do título “Como Devemos Reorganizar a Inspeção dos Trabalhadores e Camponeses”, onde podemos ler a célebre frase sobre a educação:

 

Para renovar o nosso aparelho de estado, devemos, custe o que custar, estar dispostos a, em primeiro lugar, aprender; em segundo lugar, aprender; e, finalmente, aprender; e depois garantir que a aprendizagem não seja letra-morta nem se limite a ser apenas um chavão da moda […]

Temos de seguir a regra: é melhor menos, mas melhor.”

 

 

 

A partir das eleições de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher, com o favorecimento dos mercados livres como reguladores do sistema económico e político, passou a acreditar-se que a globalização e as novas tecnologias, estão na base de uma nova economia em que o que se considera como talentos especiais devem ser particular e excecionalmente remunerados, o que fez disparar a desigualdade existente.

 Acredita-se, também, que quaisquer tentativas para reduzir a desigualdade através de impostos, falharão, porque a elite global esconderá o dinheiro nos paraísos fiscais. Além disso, acredita-se que o aumento dos impostos sobre os ricos, fará desaparecer a criação de riqueza (porque eles não terão interesse em se esforçarem), pelo que todos acabaremos mais pobres.

Acredita-se que o sucesso nada tem que ver com a sorte. Ignorando o lugar que a sorte desempenha no nosso sucesso, isso faz-nos sentir, se obtivermos sucesso, que tal se deva exclusivamente a nós próprios, ao nosso próprio valor. Os muito bem pagos, acreditam que o que ganham tem apenas que ver com o que se esforçaram para alcançarem essa posição.

Acredita-se que os pobres são preguiçosos, e que o trabalho árduo acabará por significar uma melhor qualidade de vida. Acredita-se que merecemos aquilo que temos, e que temos aquilo que merecemos.

Acredita-se que benefícios sociais generosos tornam as pessoas pobres mais preguiçosas e que os salários elevados são fundamentais para motivarem as pessoas talentosas.

Por tudo isto, acredita-se na existência da desigualdade por a sociedade ser, em si mesma, profundamente desigual (há 50 anos, um CEO nos EUA ganhava em média umas 20 vezes o salário de um típico trabalhador; hoje, o CEO ganha 354 vezes mais). Daí que a desigualdade se auto-perpetue, sem qualquer resistência.

Daí que os 1% dos mais ricos sejam cada vez mais ricos, pois têm mais incentivos e habilidades para enriquecerem cada vez mais.

Exercem cada vez mais influência nas políticas, desde subsidiarem as campanhas eleitorais até influenciarem as leis e regulamentos governamentais. O que Robert Reich chama de “socialismo para os ricos”, e que tão bem sintetizou Warren Buffett quando disse:

 

“Tem havido uma luta de classes nos últimos 20 anos, e a minha classe ganhou” (https://www.washingtonpost.com/blogs/plum-line/post/theres-been-class-warfare-for-the-last-20-years-and-my-class-has-won/2011/03/03/gIQApaFbAL_blog.html?utm_term=.b99288f7ab17).

 

Daí que se acredite que os impostos sobre o rendimento seja uma espécie de roubo, uma vez que o rendimento corresponde a algo que as pessoas ganharam correta e legalmente. Daí que tal imposto seja considerado como um mal necessário, que deverá, portanto, desaparecer ou ser o mais baixo possível.

Mesmo apesar de se saber que o que se ganha depende da educação que se teve, das circunstâncias do nosso nascimento e subsequentes cuidados de saúde, que mesmo se forem “privados” não deixam de depender da educação de médicos e enfermeiros, remédios e demais tecnologia, e que, tal como as mercadorias e serviços, dependem da infraestrutura económica e social, redes de transporte e de comunicações, fornecimento de energia e demais legislação existente, e ainda da contribuição de gerações anteriores, dos seus colegas atuais, e das ações do governo, pois mesmo assim, acredita-se que o que ganhamos se deve apenas ao facto de sermos os mais espertos e trabalhadores e que os altos impostos que pagamos não passam de um roubo que o governo delapidará em proveito próprio e em assistência social. Daí a justificação económica e moral para o abandono do país (fisicamente ou em dinheiro), trocando-o por outro onde se paguem menos impostos.

As irreversíveis forças dos mercados. A liberdade do abismo.

 

 

 

Recomendação:

Jonathan Aldred, Licence to be Bad: how Economics Corrupted US.

 

(219) Um só mundo ou um mundo comum?

Temo estimado de leitura: 3 minutos.

 

Um mundo comuma só nação, um só povo a viver em paz”.

 

Um só mundo, é sempre um sonho de poder, de poder político e de poder tecnológico.

 

“Se todas as árvores fossem coqueiros, que grande monotonia seria a natureza”.

 

Um mundo comum não pode ser transparente (como muito convém aos extirpadores de almas e inquisidores contemporâneos) porque “acolhe as sombras do que não sabemos, os nossos desejos e lutas, as fricções, tudo o que fica por fazer e o temor dos nossos medos e incertezas”.

 

 

 

 

Há quem entenda que foi a globalização dos fins do século XX que veio tornar possível a existência de um só mundo, em que todos finalmente nos poderíamos comunicar livremente, acabando por permitir a unidade desse mundo.

O problema é que por detrás desse rebuçado que tenta escamotear a utilização dos big data, dos GPS e dos ataques encobertos e programados do Big Brother dirigidos ao âmago mais profundo dos indivíduos (que não das empresas e governos), todo o esforço vem sendo desenvolvido para o controle das nossas almas, evidentemente sempre com o intuito “louvável” de transformar-nos num povo unificado e pacificado.

 

É que a globalização, como apetite por um só mundo, não é um sonho que só agora tenha aparecido. Todos os “grandes conquistadores”, de Alexandre a César, passando por Gengis Khan e outros Khans mais próximos de nós, sem esquecermos os séculos do comércio das descobertas, já tiveram esse mesmo sonho.

O problema é que um só mundo, é sempre um sonho de poder, de poder político e de poder tecnológico que, forçosamente, implica a unidade de territórios, a unificação de nações e dos povos, em um só, prontinhos para serem conquistados, aldrabados, explorados.

 

Há um livro de Armand Mattelart, Histoire de l´utopie planétaire. De la cité prophétique à la societé globale, que nos mostra os muitos políticos e as tecnologias que, ao longo da história, entretiveram esse sonho de conseguirem um só mundo. Um mundo com “uma só nação, um só povo a viver em paz”. Evidentemente, desde que fossem eles a dizer como seria.

 

Mas o problema é que há um outro mundo comum como realidade que é compartilhada por todos nós que, anonimamente, vivemos neste planeta. Onde não há lugar para o sonho dos conquistadores nem para os gurus detentores das empresas informáticas.

Um mundo comum que não é uma sociedade planificada desde cima, mas antes uma comunidade sempre inacabada tecida desde baixo. Uma comunidade feita pela multiplicidade.

 

Dizia ingenuamente o padre celebrante da missa de repúdio pelos recentes ataques mortais aos católicos do Sri Lanka, que é na variedade que se encontra a beleza e o progresso, exemplificando:

 

“Se todas as árvores fossem coqueiros, que grande monotonia seria a natureza”.

 

Este mundo comum, por ser a base da nossa atividade e da nossa interdependência, porque “acolhe as sombras do que não sabemos, os nossos desejos e lutas, as fricções, tudo o que fica por fazer e o temor dos nossos medos e incertezas”, não pode ser transparente (como muito conviria aos extirpadores de almas e inquisidores contemporâneos).

Por isto, desde que existam seres humanos, um mundo comum não poderá jamais ser reduzido a um só mundo.

 

Por isto, mesmo quando bem-intencionadamente os bem-intencionados nos apresentarem a utopia de um só mundo pacificado como um valor, deveremos prontamente rejeitar tal utopia como verdadeiro pesadelo.

(218) “As prisões do possível”

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

Tudo é possível, exceto questionar o sentido e os limites do possível.

 

Vivemos condenados a escolher num mundo em que não há alternativa.

 

Participar, como no exercício do voto, significa ser contado sem contar para nada.

 

O pensamento como atividade tendencialmente colaboracionista.

 

Só há um mundo e está feito à imagem do Capital.

 

 

 

 

 

 

Nas prisões do possível, é o título do livro de Marina Garcés, refletindo a sua tese de doutoramento em filosofia, e no qual analisa o modo de ser de uma realidade que se afirma como única em cada um dos seus possíveis.

Viver nas “prisões do possível” significa termos de viver condenados a escolher num mundo em que não há alternativa.

Ou seja, viver num mundo em que tudo é agradavelmente possível, exceto questionar o sentido e os limites do possível.

 

Vivemos numa sociedade que promove as ideias e o livre pensamento, ao mesmo tempo que desativa todos os seus efeitos. Kant, prócere do despotismo iluminista, escrevia o célebre “atreve-te a saber”, mas, não deixava de o complementar com “raciocinai sobre tudo o que quiserem, mas obedecei”.

A diferença (grande) é que hoje, o despotismo global, diz-nos:

 

Obedecei raciocinando sobre tudo o que quiserem”.

 

Ou seja, o pensamento passa a ser uma atividade tendencialmente colaboracionista.

 

Podemos ver tudo sem ver nada. O mundo é a realidade que nos põem diante de nós, seja através do ecrã, seja através das formas que temos de a narrar, de a analisar ou de nos deixarmos afetar por ela.

É através da visão que nos abstraímos da realidade, distanciando-nos dela, colocando-nos no seu exterior.

Não é em vão que, desde a caverna de Platão, a visão tem sido considerada como o mais nobre dos sentidos.

Não é, pois, de admirar que hoje nos encontremos na posição de espectadores:  espectadores da história, espectadores culturais, espectadores das nossas vidas, espectadores do mundo.

Como fazia notar G. Debord sobre esta prática de aperfeiçoamento da visão que nos transformou em espectadores do mundo:

 

O espetáculo é o herdeiro de toda a debilidade do projeto filosófico ocidental que foi uma compreensão da atividade dominada pelas categorias de ver (…) O espetáculo não realiza a filosofia, filosofa a realidade. A vida concreta de todos é que se degradou num universo especulativo”.

 

Passamos de filósofos a científicos e de científicos a espectadores. Esta relação privilegiada com o mundo, não conduziu a uma melhor disseminação da verdade, mas a uma entrega massiva ao império da mentira.  “Vivemos num espetáculo de roupas e de máscaras vazias”, John Berger.  Brutal e ligeira, a cultura da imagem entrega-nos a “um jogo em que ninguém joga e todos espreitam”.

 

Vemos a realidade do mundo como algo que nos puseram em frente e à distância da nossa vida. Todos agora nascemos com a imagem do nosso planeta implantada nas nossas retinas (a partir dos novos dispositivos de captação de imagens do planeta Terra) e com o sentido da situação que ocupamos no mundo. O mundo já não necessita ser imaginado, como acontecia.

Mas esta imagem que nos domina, temos obrigação de saber, não depende exclusivamente da capacidade tecnológica em produzir e difundir essas imagens do planeta. Tem também que ver com outros fenómenos igualmente importantes: a eliminação de qualquer ideia de transmundo (divino) ou de outro mundo (nascido da revolução) e do triunfo da globalização como imagem do mundo.

Fenómenos que podem ser resumidos numa frase: “Só há um mundo e está feito à imagem do Capital”.

 

Ou seja, a realidade fez-se una com o capitalismo. O mundo do capitalismo globalizado esgota hoje a totalidade do visível e proclama que não há mais nada para ver, que não há nada escondido, que não há outra imagem possível. Isto é o que há, diz-nos.

 

Noutra épocas, o invisível, era património das religiões cujos dogmas estabeleciam de que era feito e quem estabelecia a sua lei. Hoje, o capitalismo global cancela toda a invisibilidade, todo o não-saber, em favor da sua única verdade presente. O mundo, convertido em imagem sintetiza esta verdade.

Por isso, deixa de ser aquilo que há em nós, entre nós, aquilo que fazemos e que transformamos coletivamente, para converter-se em algo que se nos oferece, mas apenas para ser visto e acatado.

Como escreve Susan Buck-Morss:

 

O mundo-imagem é a superfície da globalização. É o nosso mundo compartido. Empobrecida, obscura, superficial, esta imagem-superfície é toda a nossa experiência compartida. Não compartimos o mundo de outro modo”.

 

A própria cultura como expressão autónoma através da qual uma sociedade pode pensar-se a si mesma, como atividade viva, plural e conflituante com que damos sentido ao mundo que compartimos, acabou instrumentalizada e colonizada por forças políticas e mercantis.

Em vez de ser uma ameaça para a ordem social, ou o tesouro privilegiado de uns quantos, a cultura mostra-se hoje sem qualquer vergonha perante a sociedade, como servindo para criar postos de trabalho, aumentar os índices do PIB, oferecer divertimento e entretenimento para todos os gostos e para todas as camadas sociais, tornar o país mais coeso e torná-lo mais competitivo no mercado global.

 

Por um lado, ao tornar-se espetáculo e fonte de entretenimento, cria uma esfera separada que isola os conflitos da sua realidade social, da vida concreta.

Por outro lado, os mesmos princípios do que é a política democrática aceite, têm correspondência na esfera cultural: a liberdade e a participação.

A liberdade, como liberdade de eleição entre gostos, estilos e visões do mundo que coexistem ao lado uns dos outros, na maior das indiferenças.

A participação, que não significa aderir implicando-se. Participar, como no exercício do voto, significa ser contado sem contar para nada. É ser convocado sem poder convocar. Um campo de possíveis fechado. Tem infinitas opções, mas as regras do jogo estão claramente estabelecidas. Há lugar para todos, mas cada um tem o seu lugar.

 

Funciona, mas não é credível. Tal como com os partidos que continuam a funcionar, mas que não se levam a sério. Da mesma forma que votamos num ou noutro partido, ou ficamos em casa sem votar, também vamos ao cinema ou ao teatro, ou nos emocionamos com uma proposta musical.

 Temos os nossos autores preferidos, tiramos cursos uns atrás dos outros, vamos a ciclos de conferências, estamos em dia com as últimas novidades, editamos os nossos próprios vídeos, revistas, etc. Mas, nada de nós é lá posto. A nós nada nos acontece, nada de nós se joga. Tanta atividade em que nada se passa.

 

Esta é a cultura que as democracias atuais oferecem ao mundo. A mesma ideia de liberdade e de participação despolitizadas, idênticas à da esfera política. O mundo global é em si mesmo este campo de possíveis no qual estamos condenados a eleger sem alternativas possíveis. Por isto, a cultura é hoje o instrumento preferencial perfeito desta economia avançada.

 

 

A falência do comunismo em 1989 foi celebrada como o triunfo do capitalismo, e declarada pelos ideólogos da globalização como a abertura da via para o aparecimento de “um só mundo” que legitimaria o que então se chamava de “pensamento único”.

Passados trinta anos, damos connosco a envergonhadamente celebrar o que consideramos ser a melhor opção possível, a resignarmo-nos a não ter outra opção que não seja a de seguir em frente, mesmo que contra nós próprios, uns contra os outros.

E aquele outro mundo que nos venderam como possível, tem vindo a demonstrar não oferecer promessas de bem-estar nem de justiça generalizada, mas apenas uma ficção provisória de privilégios para uns poucos.

Para todos os outros, resta um quotidiano mal-estar resignado, que se vê hoje relativamente ao trabalho, à educação, ao meio ambiente, ao amor, à política, e que se expressa na frase:

Isto é o que se pode fazer…vamos ver o que acontece”.

 

Ficamos apenas com o sabor do irrevogável e do inexorável. As prisões que nos rodeiam. Pior: o facto é que já as interiorizámos.

 

É urgente recordarmos Kafka quando nos diz que a prisão está aberta, que não tem porta, e que somos nós, somente nós, que nos aferramos ao umbral.

 

 

 

 

 

Recomendação:

A sociedade do espetáculo, Guy Debord.

“A indústria cultural”, na Dialética do Iluminismo, Adorno e Horkheimer.

 

 

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